Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 137/2025-T
Data da decisão: 2025-10-06  IRS  
Valor do pedido: € 17.153,39
Tema: Aquisição do direito à tributação como residentes não habitual; incumprimento da obrigação de inscrição; art. 14º, nº 2, da LGT.
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SUMÁRIO: 

 

I- Os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a cumprir as obrigações estabelecidas  na lei reguladora dos mesmos, sob pena de os  benefícios ficarem sem efeito, nos termos do art. 14º, nº 2, da Lei Geral Tributária.

IV-Não tendo sido  cumprida a obrigação prevista    no nº 10º, do art. 16º, do CIRS, o benefício fiscal em causa, ficou   sem efeito, sem prejuízo de, à luz de  jurisprudência uniforme  do Supremo Tribunal Administrativo (acórdão do STA de 5-01-2025, processo n.º 1750/22.6BEPRT e  acórdão de 29-05-2024, processo n.º 842/23.9BESNT) o  regime poder ser aplicado   após a inscrição prevista na referida norma.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. No dia 07.02.2024,  o  Requerente , A..., residente na rua ..., nº..., ..., Lisboa, contribuinte fiscal nº ...,  requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração da ilegalidade e consequente anulação do despacho e indeferimento da reclamação graciosa nº ...2024..., mediante a qual foi solicitada a anulação da liquidação de IRS número 2024..., referente ao ano de 2023.

O Requerente pede, ainda, que seja “ordenada a inscrição do Requerente como Residente Não Habitual com efeitos a partir de 2020”, a  declaração de ilegalidade e anulação  da liquidação mencionada, a realização de nova liquidação com aplicação do regime de  residente não habitual  e a  devolução do montante de imposto acrescido de juros indemnizatórios a calcular desde a data de indeferimento da reclamação graciosa até ao momento do seu pagamento.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 22.04.2025.

 

3. Os fundamentos apresentados pelos Requerentes, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese e no essencial, os seguintes:

 

a.     O Requerente alterou a sua residência fiscal para Portugal  em outubro de 2020, com efeitos retroativos à data de 01-08-2020, não tendo sido residente no país nos cinco anos anteriores àquela data.

b.     Em 7.10.2024 o Requerente procedeu à sua inscrição como residente não habitual no sistema informático da Autoridade Tributária.

c.     Posteriormente o Requerente enviou à Requerida através dos CTT Correios de Portugal, por carta registada com aviso de receção de   8.11.2024  novo pedido inscrição como residente não habitual, com efeitos retroativos ao mês de Outubro do ano de 2020 uma vez que o sistema informático da Requerida não o permitia fazê-lo com tal efeito retroativo.

d.     Até à data da apresentação do pedido de pronuncia arbitral o Requerente não recebeu qualquer resposta ao Requerimento mencionado no ponto que antecede.

e.     Nos termos da lei, a falta de pedido de inscrição como residente não habitual, previsto no art. 16º, nº 10, do CIRS,  ou o seu pedido intempestivo, não prejudica o reconhecimento desse direito, nem a aplicação dos respetivos benefícios.

f.      Subsidiariamente, e sem prescindir, sempre se dirá que também não se compreende a razão pela qual não foi considerada a totalidade de crédito de imposto uma vez que no campo das deduções à coleta aparece o montante de € 33.587,41 quando a soma dos montantes pagos no estrangeiro foi de € 43.576,53, razão pela qual o imposto a liquidar, em qualquer caso, deveria ser inferior ao efetivamente cobrado.

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por exceção e por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:

 

 

Por exceção,

 

a) Incompetência do tribunal arbitral para conhecer dos vícios suscitados e/ou conhecer do 

estatuto de residente não habitual (RNH)

 

a.     Do disposto no artigo 2.º do RJAT decorre que a competência do CAAD se circunscreve à declaração de ilegalidade de atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

b.     Ora, como taxativamente decorre do PPA, o que os Requerentes efetivamente pretendem com a presente lide é que lhes seja aplicado o estatuto de residente não habitual para  efeitos de liquidação de imposto em 2023.

c.     Parece, assim, não existirem dúvidas que o pedido dos Requerentes se circunscreve ao 

reconhecimento do estatuto de RNH e à sua consequente aplicação na liquidação em causa.

d.     Porém, nos termos da lei, o reconhecimento pretendido está excluído do âmbito da competência material deste Tribunal Arbitral, não podendo, assim, este conhecer, e/ou 

pronunciar-se sobre o mesmo.

e.     A incompetência material configura uma exceção dilatória, que desde já se suscita, e que determina a absolvição da instância no que a este pedido concerne, nos termos do estabelecido na alínea a) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.

 

b) Impropriedade do meio processual

 

f.      Os mesmos argumentos que sustentam a incompetência absoluta do CAAD supra suscitada aplicam-se mutatis mutandis à impropriedade do meio processual, que igualmente se suscita.

g.     Ou seja, a aplicação do regime jurídico do residente não habitual só pode ser peticionada

junto do tribunal tributário por via da ação administrativa prevista e regulada no CPTA, pelo que, como se viu, é inquestionável que o P.P.A. apresentado pelos Requerentes não 

é o meio próprio para fazerem valer a sua pretensão, existindo erro na forma de processo sempre que a forma processual escolhida não corresponde à natureza do processo.

h.     A impropriedade do meio consubstancia uma exceção dilatória inominada, de utilização

indevida de uma forma de processo desadequada à pretensão deduzida nos autos, que determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos do estatuído no n.º 2 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Sem conceder, e por mera cautela de patrocínio,

 

Defesa por impugnação

 

i.      Ainda que as exceções invocadas não procedam, o que por mera hipótese académica se admite, sempre se teria que concluir que os Requerentes não preenchem os pressupostos 

para que o regime jurídico dos residentes não habituais lhes possa ser aplicado na liquidação impugnada, como peticionado.

j.      Nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, consideram-se residentes não habituais as pessoas singulares que, tendo-se tornado residentes em Portugal de acordo 

com as regras previstas no n.º 1 do referido artigo, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

k.     A inscrição como residente não habitual tem de ser solicitada por via eletrónica, posteriormente à inscrição como residente fiscal ou, em momento ulterior, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte aquele em que se tornou residente em Portugal, conforme estabelece o n.º 10 artigo 16.º do CIRS.

l.      O artigo 16.º do CIRS consagra um procedimento de reconhecimento da verificação, em concreto, da existência de dois dos pressupostos legais necessários para que possa existir a aplicação de algum benefício fiscal no âmbito deste regime, nomeadamente, que a pessoa singular se tornou fiscalmente residente em território português, e, que a pessoa em causa não foi residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

m.   Tendo o pedido de inscrição no Regime dos Residentes Não Habituais sido apresentado 

em 2024-11-08, apenas, poderá beneficiar do regime de RNH a partir do ano de 2024, não sendo o estatuto de residente não habitual aplicável ao ano de 2023, pelo que o ato impugnado deve ser mantido na ordem jurídica.

n.     Conclui-se, assim, que a atuação da Requerida não merece qualquer juízo de censura, antes se afigurando que esta posição é a única que se coaduna com o princípio da legalidade.

 

 

5. Por despacho  de 22.08.2025 foi dispensada a reunião arbitral prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, e determinou-se a notificação das partes para, querendo, apresentarem alegações sucessivas no  prazo de 7 dias, podendo nas suas alegações  o Requerente responder às exceções suscitadas pela Requerida.

 

 

 

6. O Requerente apresentou alegações, nas quais reiterou  os fundamentos já expostos no PPA.

No que respeita à matéria de exceção, referiu:

 

Mediante Ofício N.º...., emitido pelo Diretor de Serviços de Registo de Contribuintes, foi deferido parcialmente o pedido de inscrição como residente não habitual,

 

 

Tendo sido averbada a inscrição como residente não habitual, e

 

 

Estando atualmente o Requerente inscrito como residente não habitual.

 

 

Consequentemente, não é necessário responder às exceções suscitadas pela Requerida relativamente à competência para o reconhecimento do estatuto de residente não habitual ou a forma processual adequada para o pedido de inscrição como residente não habitual, uma vez que já foi realizada a inscrição como residente não habitual.”

 

O Requerente não juntou documento comprovativo do ofício invocado, nem indicou a respetiva data.

 

7. A Requerida não apresentou alegações.

 

 

-II-SANEAMENTO 

 

 

8. Exceção da incompetência do CAAD para conhecer dos vícios suscitados e/ou reconhecer o estatuto de residente não habitual

A Autoridade Tributária e Aduaneira  suscita a questão  da incompetência do tribunal e uma vez que a questão  de incompetência é  de conhecimento prioritário, começar-se-á pela apreciação da mesma.[1]

O Requerente formula vários pedidos entre os quais o que que seja “ordenada a inscrição do Requerente como Residente Não Habitual com efeitos a partir de 2020” .

Ora nos termos do art. 2º, nº 1,  do RJAT:

1-A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A  declaração  de  ilegalidade  de  actos  de  liquidação  de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de  ilegalidade  de  actos  de fixação  da  matéria  tributável  quando  não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais
;”
 

Pelo que, relativamente ao referido pedido procede, indubitavelmente,  a exceção de incompetência do tribunal arbitral.

Mas não é este o único pedido formulado pelo Requerente.

É impugnada a  liquidação do imposto  o que se insere na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, nos termos do art. 2.º do RJAT.

Na impugnação judicial, como no pedido de pronúncia arbitral, pode ser invocada qualquer ilegalidade (art. 99.º do CPPT) 

A questão colocada é a de saber se é ilegal a liquidação por não ter aplicado aos Requerentes o estatuto do residente não habitual.

Independentemente dos fundamentos de anulação invocados, está-se perante um pedido de apreciação da legalidade de uma liquidação emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que o pedido de insere na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

 

Improcede, pois, a exceção em causa, nesta parte.

 

Termos em que se julga procedente a exceção de incompetência material do tribunal arbitral no que respeita à pretensão de ser “ordenada a inscrição do Requerente como Residente Não Habitual com efeitos a partir de 2020” julgando-se, ao invés, improcedente a exceção de incompetência material  no que respeita à apreciação da legalidade e eventual anulação da liquidação.

 

9.  Exceção de impropriedade do meio processual

 

Os Requerentes  formularam pedido de  anulação do ato de liquidação de IRS de 2023, com fundamento na sua ilegalidade.

 

Decorre, designadamente,  do art. 10º, nº 1, al. a) e nº 2, al. c)  e do  2º, nº 1, al. a), do RJAT, que o pedido de pronúncia arbitral é  meio próprio para apreciação da pretensão de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos.

Assim, tendo sido formulado pedido de anulação de liquidação de imposto, improcede, também manifestamente, a exceção em causa.

 

10. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

11. Cumpre solucionar  as seguintes questões:

1) Ilegalidade da liquidação objeto do processo e anulação da mesma.

2) Direito dos Requerentes à restituição do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

 

II – A matéria de facto relevante

 

12.  Consideram-se provados os seguintes factos:

 

12.1. O Requerente alterou a sua residência fiscal para Portugal  em outubro de 2020,  não tendo sido residente no país nos cinco anos anteriores.

12.2. Em 7.10.2024 o Requerente procedeu à sua inscrição como residente não habitual no sistema informático da Autoridade Tributária (cfr. doc. nº 5 junto com o PPA).

12.3. Posteriormente o Requerente enviou à Requerida através dos CTT Correios de Portugal, por carta registada com aviso de receção de   8.11.2024  novo pedido inscrição como residente não habitual, com efeitos retroativos ao mês de Outubro do ano de 2020 uma vez que o sistema informático da Requerida não o permitia fazê-lo com tal efeito retroativo (cfr. doc. nº 4 junto com o PPA).

12.4. Até à data da apresentação do pedido de pronuncia arbitral o Requerente não recebeu qualquer resposta ao Requerimento mencionado no ponto que antecede.

12.5. O Requerente apresentou a declaração de rendimentos referente ao ano de 2023 que deu origem à liquidação nº 2024..., com o  valor  a pagar  de 17.153,39 € (cfr. doc. nº 6 junto com o PPA).

12.6. Na liquidação em causa foram considerados os seguintes valores:

 

 

(cfr. pag. 17 do   PA, parte 5 e doc. nº 6 junto com o PPA)

 

12.7 Na declaração de rendimentos que o Requerente apresentou consta, além do mais, o seguinte:

 

 

 

 

(…)

 

 

 

 

(cfr. pags. 9, 10 e 11 do   PA, parte 5 e doc. nº 7 junto com o PPA)

 

12.8. Em 12.11.2024  foi recebida pela Requerida reclamação graciosa  apresentada pelo Requerente  contra a liquidação em causa, que foi indeferida por despacho de 27.11.2024, notificado ao mandatário do Requerente por correio registado datado de 29.11.2024. (cfr. PA, parte 6 e doc. nº 3 junto com o PPA)

 

 

Com interesse para decisão da causa, não resultou não provado que a liquidação em causa tenha incidido sobre os rendimentos de categoria E obtidos no Canadá no montante de € 131.949,19  e aí tributados no montante de € 19.818,45. 

 

 

 

13. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto resulta dos documentos constantes do processo que não foram impugnados por nenhuma das partes, indicados por referência a cada um dos factos do probatório,  bem como no acordo das partes, expresso ou por falta de impugnação, quanto aos demais  factos.

 

Relativamente à matéria considera não provada a decisão resulta de ter sido provado que os rendimentos obtidos no Canadá no montante de € 131.949,19   e aí tributados no montante de € 19.818,45, não foram tributados em Portugal conforme pagina. 9, 10, 11 e 17, da parte 5 do   PA e doc. nº 7 junto com o PPA, donde consta com clareza que o Requerente respondeu negativamente à opção pelo seu englobamento e que os mesmos não foram considerados para o rendimentos tributado, como também resulta patente dos valores considerado na liquidação constante do ponto 12.6 do probatório.

 

 

-III- O Direito aplicável

 

 

14. À data dos factos relevantes, os nºs 8, 9º e 10º, do art. 16º, do CIRS, tinham a seguinte redação:

 

8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.” 

 

 

Por outro lado,  a redação do art. 14º, nº 2, da Lei Geral Tributária, é a seguinte:

 

- Os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a revelar ou a autorizar a revelação à administração tributária dos pressupostos da sua concessão, ou a cumprir outras obrigações previstas na lei ou no instrumento de reconhecimento do benefício, nomeadamente as relativas aos impostos sobre o rendimento, a despesa ou o património, ou às normas do sistema de segurança social, sob pena de os referidos benefícios ficarem sem efeito.

 

Este tribunal acompanha o entendimento da  decisão   arbitral proferida no proc. 1380/2024-T, de 11.06.2025[2], onde se pode ler:

 

“Face aos nºs 9º e 10º do art. 16 do CIRS  e ao nº  14º, nº 2, da LGT, que não podem deixar de ser aplicados conjugadamente, afigura-se que o benefício fiscal em fiscal em causa tem carácter automático,  como decorre do nº 9, do art. 16º, do CIRS, mas fica subordinado à conditio juris[3] do cumprimento do  dever de solicitar a  inscrição como residente não habitual. Na verdade,  Resulta do art. 14º, nº 2, da LGT,  que que os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a cumprir as obrigações previstas na lei, sob pena de os referidos benefícios ficarem sem efeito.[4]

 

Face ao teor da  norma em causa, relativamente à qual não se vislumbra qualquer fundamento de não aplicação, tanto mais que a mesma se reporta a “benefícios fiscais de qualquer natureza”, carece de sustentação a tese de que a  obrigação consignada no art. 16º, nº 10, do CIRS, pode ser incumprida sem que tal tenha consequência relativamente ao benefício fiscal em causa.

Nesta Linha, escreve Lima Guerreiro em anotação ao nº 4 do art. 14º da LGT na  redação (originária) do Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de Dezembro (correspondente no essencial ao atual nº 2) que “Caso o contribuinte não siga a conduta prevista no número 4 do presente artigo, aplicam-se as regras gerais de tributação. É o que resulta de o seu conteúdo ser o de um verdadeiro ónus legal.”[5]

Em idêntico sentido vão Diogo Leite de Campos-Benjamim Silva Rodrigues-Jorge Lopes de Sousa que sustentam, em comentário à mesma norma que “O nº 4 deste art. 14º na redacção  inicial, a que corresponde  o nº 2 na redação da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro , tem força vinculativa.”[6]

 

Acresce que, nem será pertinente imputar  severidade ao regime pois que, como é consabido, os benefícios fiscais são, eles próprios, derrogações ao princípio da igualdade fiscal e ao princípio da capacidade contributiva, que o legislador, em determinado contexto histórico, considera justificados por interesses extra-fiscais relevantes. Porém,   é compreensível que faça depender tais derrogações ao  cumprimento das obrigações previstas na lei, o que o nº 2, do art. 14º, da LGT, estabelece com carácter genérico, relativamente a  “benefícios fiscais de qualquer natureza”.

A esta luz, se compreende também  o teor do nº 1 do art. 7º do Estatuto dos Benefícios Fiscais  que estabelece: “Todas as pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou de direito privado, a quem sejam concedidos benefícios fiscais, automáticos ou dependentes de reconhecimento, ficam sujeitas a fiscalização da Autoridade Tributária e Aduaneira, da Direção Regional dos Assuntos Fiscais e das demais entidades competentes, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respetivos e do cumprimento das obrigações impostas aos titulares do direito aos benefícios

 

 

Não é irrelevante a eliminação pelo legislador, em 2012, da norma que determinava que o sujeito passivo só adquiria o direito a ser tributado como residente não habitual com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes. Com a alteração, o direito passou a ser adquirido, nos termos do nº 9, a partir do momento em que o sujeito passivo  seja considerado residente não habitual, independentemente do registo. Simplesmente, caso a obrigação estabelecida no nº 10 não seja cumprida (o que resulta incontroverso dos elementos constantes dos autos e da versão apresentada pelos Requerentes no pedido de pronúncia arbitral), a consequência será ficar o benefício fiscal em causa ficar sem  efeito, de acordo com o artigo 14º, nº 2, da LGT, nos termos referidos. Para além  de ser esta a consequência normal de incumprimento de obrigações inerentes à fruição de benefício fiscal, é  ainda significativo  que a norma que impõe a obrigação da inscrição (nº 10º do art. 16) se siga imediatamente à que estabelece a aquisição do benefício, ficando bem clara a correspetiva ligação regulatória, não se afigurando necessário que o legislador estabelecesse neste número o que já se encontrava estabelecido, com carácter geral, para todos os benefícios fiscais, no art. 14º, nº 2, da LGT. 

Verifica-se, assim,  harmonia e completude regulatória resultante  da aplicação conjugada dos números 9º e 10º do art. 16º do CIRS e do nº 2 do art. 14º da LGT, de que  emerge  o  entendimento supra exposto.

Nesta medida, não tendo sido observado pelos sujeitos passivos o disposto   no referido nº 10º, do art. 16º do CIRS, o benefício fiscal em causa ficou sem efeito, sem prejuízo, de acordo com jurisprudência uniforme  do Supremo Tribunal Administrativo, o  regime poder ser aplicado após a inscrição prevista na  mencionada norma.

Com efeito, conforme se refere  no acórdão do STA de 5-01-2025, processo n.º 1750/22.6BEPRT “a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº.10, do preceito, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro, ou seja, só é aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual”. E, na mesma linha, no acórdão do mesmo tribunal de 29-05-2024, processo n.º 842/23.9BESNT, expressamente invocado pela AT na Resposta, “a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº 10, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro, ou seja, só é aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual”.”[7]

 

Ora, os Requerentes não cumpriram a obrigação prevista no art. 16º, nº  10º, do do CIRS até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se tornaram  residentes no território nacional. Assim, e   à luz de  jurisprudência uniforme  do Supremo Tribunal Administrativo citada na referida decisão,  o benefício fiscal não vigora no período tributário em causa, apenas sendo aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual, pelo que carece de fundamento a pretensão anulatória.

 

Improcede, igualmente a pretensão subsidiariamente colocada com o fundamento de que “não se compreende a razão pela qual não foi considerada a totalidade de crédito de imposto uma vez que no campo das deduções à coleta aparece o montante de € 33.587,41 quando a soma dos montantes pagos no estrangeiro foi de € 43.576,53, razão pela qual o imposto a liquidar, em qualquer caso, deveria ser inferior ao efetivamente cobrado.”.

Na verdade, conforme resulta do probatório de € 19.818,45 destes € 43.576,53, resultam de rendimentos de capitais no valor de  € 131.949,19 tributados  no país da fonte dos rendimentos e que a Requerida não tributou, em linha com opção inscrita pelo  sujeito passivo na sua declaração de rendimentos.

Como é consabido, o crédito de imposto a que o Requerente alude destina-se a eliminar a dupla tributação internacional. Não tendo a mesma ocorrido, conforme resulta claro do probatório e manifesto do conteúdo da liquidação, falece também neste ponto a pretensão do Requerente, quer à luz da CDT Portugal Canadá (cfr. arts. 10º, nº 1 e 22º, nº 2, al. a)) quer à luz do direito internacional  fiscal unilateral do Estado Português cfr. (art. 81º, nº 1, do CIRS).

 

Termos em que, improcede totalmente a pretensão anulatória, o que implica a improcedência dos demais pedidos formulados.

 

-IV- Decisão

 

Assim, decide o Tribunal arbitral julgar totalmente improcedente o  pedido de pronúncia arbitral.

 

 

Valor da ação: € 17.153,39 (dezassete mil cento e cinquenta e três euros e trinta e nove cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem. 

 

Custas pelo Requerente  no valor de 1.224,00 €, nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 6.10.2025

                      

 O Árbitro

 

 

Marcolino Pisão Pedreiro

 



[1] Artigos 16º do Código de Procedimento e Processo Tributário e   13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT.

 

[2] Cujo coletivo o signatário da presente decisão integrou, tendo exercido a função de  relator.

 

[3] Sobre as condições legais como “requisitos ou pressupostos legais de um certo efeito jurídico” e não como verdadeiras condições cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, 2012, 6ª ed. pp 606-606.

[4] O benefício fiscal fica ainda dependente duma segunda conditio júris: a obtenção pelo contribuinte em algum ano, dos 10 anos de direito ao regime, de  rendimentos da categoria A e/ou B de atividades que estejam elencadas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, alterada pela Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho.

[5] LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA, Rei dos Livros, 2001, pag. 104.

Na lição de João de Castro Mendes, “Chama-se ónus à necessidade de certa conduta para conseguir certo resultado, que a lei não impõe, somente faculta, se obtenha” (Teoria Geral do Direito Civil, Lisboa, 1978, de harmonia com as lições dadas ao 1º ano jurídico da Universidade Católica Portuguesa, vol. II, pag. 159.

[6] LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA E COMENTADA, Encontros da Escrita,  4ª Ed., 2012, pag. 159.

[7] No mesmo sentido cfr. decisão arbitral de 30.07.2025  proferida no processo 37/2025-T.