Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1162/2024-T
Data da decisão: 2025-07-03  IRS  
Valor do pedido: € 24.034,99
Tema: IRS | Partilha da herança | Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis | artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS
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Sumário:

I.Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.

II.A partilha hereditária tem uma natureza declarativa na parte em que determina os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança até então indivisa, quinhão esse adquirido com a aceitação da herança, a qual é retroagida ao momento da abertura da sucessão. Cada um dos herdeiros receberá diretamente os seus direitos do defunto e não dos restantes co‑herdeiros, não tendo a partilha um carácter constitutivo ou translativo pois a aquisição hereditária não decorre de recíprocas alienações e aquisições entre os co-herdeiros.

III.A partilha, por óbito, não configura uma “alienação onerosa de direito reais sobre bens imóveis” nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

 

DECISÃO ARBITRAL

A árbitra, Alexandra Gonçalves Marques, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar tribunal arbitral, em formação singular, constituído em 8 de janeiro de 2025, decide o seguinte: 

I – Relatório

1.     O Requerente, A..., contribuinte fiscal n.º..., residente em ... n.º ..., ... e ..., ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de tribunal arbitral singular nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.º e 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), e apresentar pedido de pronúncia arbitral (doravante, “PPA”) para apreciar a legalidade do ato de liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (doravante, IRS), correspondente ao ano de 2022, no valor total de 24.034,99 €, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas no processo.

2.     O Requerente peticiona, também, a restituição do montante do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal.

3.     É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “AT”).

4.     Em 29-10-2024, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, subsequentemente, notificado à Requerida.

5.     A árbitra designada pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitou a designação.

6.     Em 17-12-2024, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT.

7.     Decorrido o prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 08-01-2025.

8.     A AT apresentou resposta em 10-02-2025. 

9.     Em 12-02-2025, a Requerente juntou aos autos documentos.

10.  Por despacho de 26-06-2025, foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas.

 

11.  O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas. 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

II – Posição das Partes

12.  Nos presentes autos, o Requerente alega, em síntese, que procedeu, juntamente com os demais co-herdeiros, à partilha da herança aberta por óbito de B..., da qual fazia parte o imóvel sito em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo ... . Nos termos da partilha, ao Requerente coube o montante de 145.174,20 €, a título de tornas, que lhe foram pagas pela co-herdeira C..., a quem aquele imóvel foi adjudicado, pelo valor de 2.032.439,08 €.

 

Na declaração de IRS, Modelo 3, referente ao ano de 2022, o Requerente não declarou o montante auferido a título de tornas, por entender que este não configurava qualquer rendimento para efeitos de IRS, nomeadamente, como mais-valias. 

 

No entanto, a AT – após exercício do direito de audição prévia – veio a inscrever oficiosamente a correspondente mais-valia tendo o Requerente sido notificado da liquidação adicional de IRS n.º 2024... e demonstração de acerto de contas n.º 2024..., mediante os quais foi apurado o valor a pagar de 24.034,99 €.

 

Entende o Requerente que estes atos são ilegais porquanto, face ao disposto nos artigos 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Código de IRS, “o direito que incida, direta ou indiretamente, sobre bens imóveis, não integra o conceito de direitos reais presente no ordenamento jurídico português e não será subsumível à alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS”, do qual resulta “um enquadramento normativo de incidência seletiva e restritiva de mais-valias tributáveis em sede de IRS”.

 

Sustenta que não alienou um direito real sobre um bem imóvel, tendo apenas ocorrido o preenchimento da quota ideal que detinha sobre a herança, do direito a um quinhão hereditário. Mais invoca a natureza declarativa da partilha, havendo, por efeito desta, uma única transmissão sucessória e não transmissões entre co-herdeiros.  

 

Em abono da sua tese invoca as decisões arbitrais proferidas pelo CAAD, no âmbito dos processos n.º 60/2023, de 09.10.2023, n.º 862/2023-T, de 31.07.2024, n.º 345/2020-T, de 07.10.2021, o Acórdão do STA de 12.02.2020, proferido no âmbito do processo n.º 0360/12.0BECBR449/18 e o entendimento fixado pelo STA, através do acórdão Uniformizador de Jurisprudência, proferido em 24.02.2021.

 

Assim, conforme resulta da lei e das decisões jurisprudenciais invocadas, a partilha, à semelhança das operações de alienação da herança ou cessão do quinhão hereditário, não integra o conceito de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS.

 

O Requerente apresentou reclamação graciosa, relativamente à liquidação de IRS do ano de 2022, a qual veio a ser indeferida.

 

O Requerente peticiona como consequência da anulação dos atos sindicados, o reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Conclui requerendo que se julgue procedente o pedido de pronúncia arbitral e se anule o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024... e a liquidação de IRS n.º... e respetiva demonstração de acerto de contas, que apuraram um valor total a pagar de 24.034,99 €, respeitante ao período de tributação de 2022, com as legais consequências. 

 

13.  A Requerida, pela sua parte, opõe-se à pretensão do Requerente, reafirmando os fundamentos que constam da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

 

Na sua perspetiva, se o Requerente transmitiu uma quota-parte de um bem imóvel a troco de dinheiro, estamos, sem margem para qualquer dúvida, perante uma transmissão onerosa desse bem, que cabe no âmbito de incidência do artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do CIRS, à luz da correta interpretação das normas tributárias conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 9.º do Código Civil e 11.º da LGT.

 

Conclui, assim, pela improcedência do pedido formulado no PPA.

 

 

III – Matéria de facto

 

Com relevância para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

A.   No dia 12 de junho de 2020, faleceu B..., avô do Requerente (facto que se retira do documento n.º 3 junto com o PPA).

B.    Por escritura de Habilitação de Herdeiros outorgada em 15 de julho de 2020, o Requerente foi habilitado como herdeiro de B..., por ser filho da sua filha, pré-falecida, D... (cf. Documento n.º 3 junto com o PPA).

C.   No dia 19 de dezembro de 2022, no Cartório Notarial do Notário E..., por escritura intitulada “Partilha Por Óbito”, o Requerente, juntamente com os demais co-herdeiros, procedeu à partilha “do património que constitui a herança aberta por óbito de B...”, nos termos da qual:

- Para pagamento do quinhão hereditário da co-herdeira C..., foi-lhe adjudicado o imóvel identificado como prédio urbano sito na Rua ... n.º ... e ..., freguesia do ..., concelho de Lisboa, inscrito no artigo matricial n.º ..., da freguesia ..., pelo valor de dois milhões trezentos e vinte e dois mil setecentos e oitenta e sete euros e oito cêntimos

- Para pagamento do quinhão hereditário do Requerente, A..., é-lhe paga a quantia de cento e quarenta e cinco mil cento e setenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos (cf. documento n.º 4 junto com o PPA).

D.   O Requerente recebeu, a título de tornas, a quantia de cento e quarenta e cinco mil cento e setenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos (cf. documento n.º 4 junto com o PPA). 

E.    Em 30 de junho de 2023, o Requerente procedeu à entrega da declaração, Modelo 3, de IRS, ano 2022, que corresponde à declaração identificada com o n.º ... (cf. Documento n.º 6 junto com PPA).

F.    Por ofício n.º 2024..., com data de 2024-01-19, o Requerente foi notificado pelo Serviço de Finanças de Lisboa ..., face ao disposto no artigo 57.º do Código do IRS do ano de 2022, para no anexo G acrescer, declarando a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, conforme escritura de partilha outorgada em 2022/12/19, bem como para exercer o direito de audição prévia (cf. documento n.º 7 junto com o PPA).

G.   A Requerida procedeu, por sua iniciativa, à liquidação de IRS, referente ao exercício de 2022, que deu origem à liquidação n.º 2024..., a qual determinou o valor a pagar de 24.034,99 €, sendo 23.394,99 € a título de imposto e valor de 773,00 €, a título de juros indemnizatórios (cf. Documentos n.º 1 e 2 juntos com o PPA).

H.   Aquela liquidação deu origem ao documento de acerto de contas n.º 2024..., com data de 14 de maio de 2024, com valor a pagar de 24.034,99 euros (cf. Documento n.º 2 junto com o PPA).

I.     O Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação de IRS (cf. Documento n.º 10 junto com PPA), a qual foi autuada com o n.º ...2024... .

J.     Em 29 de julho de 2024, a AT proferiu despacho de indeferimento da reclamação graciosa (cf. Documento n.º 11 junto com o PPA).

K.   O despacho de indeferimento foi notificado ao Requerente por ofício n.º 2024..., com data de 30 de julho de 2024 (cf. Documento n.º 11 junto com o PPA).

L.    Em 21 de setembro de 2024, o Requerente procedeu ao pagamento do imposto (cf. Documento n.º 12 junto com o PPA).

M.  Em 25 de outubro de 2024, o Requerente apresentou o presente PPA.

 

Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

14.  Inexiste matéria de facto não provada com relevância para a decisão da causa.

 

Os factos foram dados como provados com base no exame crítico dos documentos constantes dos autos, em especial, os documentos juntos pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral (PPA), bem como no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, os quais não suscitaram controvérsia entre as partes, tudo de acordo com o indicado em cada um dos pontos dos factos provados.  

 

IV – Matéria de Direito

A questão que se coloca é a de saber se a partilha por óbito configura uma “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis” e, nessa medida, suscetível de originar ganhos tributáveis na esfera jurídica do herdeiro que recebe tornas, subsumíveis na previsão do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

15.  Importa, para o efeito, ter presente o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º, n.º 1 alínea a), do Código do IRS:

Artigo 9.º

Rendimentos da categoria G

1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias: 

a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte; (...)”

Artigo 10.º

Mais-valias

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: 

a)    Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (Redação da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro); 

(...)

16.  A tributação de mais-valias constitui um dos tipos de rendimentos cobertos pela norma de incidência que encontramos no artigo 9.º do CIRS, sujeita a um elenco exaustivo de factos geradores de imposto, onde se incluem as mais-valias obtidas com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis. 

17.  Daqui resulta a natureza seletiva da tributação das mais-valias: não são tributáveis mais-valias que não sejam as previstas no elenco do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS. Tomando de empréstimo as palavras de José Guilherme Xavier de Bastos, “Em matéria de incidência fiscal, as mais-valias são um numerus clausus[1].

18.  Atento o princípio da tipicidade fiscal, por mais-valias prediais deve entender-se os ganhos obtidos com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

19.  No presente caso, a questão que se coloca é saber se a partilha, por óbito, da qual resultou a adjudicação a um dos co-herdeiros de um bem imóvel, que integrava a herança a partilhar, com o recebimento de tornas pelos outros co-herdeiros, consubstancia uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, para efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

20.  A partilha da herança encontra-se regulada nos artigos 2010.º e seguintes do Código Civil. No plano civilístico, a partilha constitui um modo de proceder à divisão do património hereditário comum entre os herdeiros. No entanto, a partilha, afasta-se de um acto de divisão de coisa comum, desde logo por estar sujeita a um regime legal distinto que se encontra no Capítulo X do Código Civil que trata da partilha da herança, dentro do título das sucessões em geral. 

21.  Até à partilha, a herança manter-se-á indivisa. Havendo acordo de todos os interessados, a partilha far-se-á extrajudicialmente, sendo reduzida a escritura pública, ou a documento particular autenticado, se existirem bens imóveis (cf. artigo 2102.º do Código Civil e artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, que aprovou as medidas de simplificação, desmaterialização e eliminação de atos e procedimentos no âmbito do registo predial e atos conexos). 

22.  A partilha é, por outro lado, um ato imprescindível para fazer cessar a comunhão hereditária que é tida, à luz do pensamento da lei, como uma situação indesejável pelos inconvenientes económicos e sociais inerentes à comunhão ou contitularidade de direitos.

23.  Feita a partilha cada um dos herdeiros é considerado, sem prejuízo do direito quanto a frutos, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos – cf. artigo 2119.º do Código Civil.

24.  À luz desta disposição, a doutrina tem evidenciado, por um lado, a natureza retroativa da partilha, para esclarecer que – salvo o que respeita aos frutos da herança – os herdeiros que participam na partilha, a quem são adjudicados bens que integram a herança, são titulares dos bens desde o momento da morte do autor da herança e os outros herdeiros não são titulares desses bens ou direitos em nenhum momento do fenómeno sucessório. 

25.  A partilha converte os direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo a uma parcela determinada de um todo (cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, Reimpressão 2010, p. 196). 

26.  Assim sendo, são diferentes os direitos dos herdeiros antes da partilha e o direito desses mesmo herdeiros posteriormente à partilha. Antes da partilha, os herdeiros têm direitos sobre a herança, que abarcam o direito de administrar e zelar pelos bens, o direito de receber uma parte frutos e o direito de exigir a partilha. 

27.  Após a partilha, o herdeiro - a quem foram adjudicados bens da herança - passa a ter o direito de propriedade exclusiva sobre os bens que lhe foram atribuídos e, inerente a esse direito de propriedade, o direito de exigir a entrega dos bens que lhe foram adjudicados. 

28.  Já os herdeiros - a quem não foram adjudicados bens que integram a herança indivisa -, percebem tornas, i.e., o valor da quota (em bens) que caberia a cada um dos herdeiros, se os bens tivessem sido atribuídos a todos eles, na proporção em que a lei fixa os seus quinhões hereditários. Com a partilha todos os herdeiros ficam em igualdade de condições.

 

29.  Conforme vem sendo entendimento da doutrina e da jurisprudência:

“enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bensque constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram” (Acórdão do STJ, de 07.05.2009 – Processo nº 08B3572 que aqui seguimos. Em sentido idêntico, entre outros, v. os Acórdãos da Relação do Porto, de 04.03.2002 – Processo nº 0151906 e da Relação de Lisboa, de 12.06.96 –Processo nº 1936 e de 26.11.96 –Processo nº 740.). 

30.  Enquanto a herança se mantiver indivisa, os herdeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens (nesse sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 08-05-2025, Processo n.º 11402/24.7T8LRS.L1-6).

31.  Este entendimento é consentâneo com a distinção entre a instituição de herdeiro, que se traduz no chamamento do sucessor à totalidade ou a uma quota (parte) alíquota do património do falecido, e o legado que se traduz na atribuição por morte de determinados bens, a título singular ou particular (um prédio) ou de certo valor.

32.  Sobre a natureza dos direitos em causa, atente-se ainda ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-11-2021, em que se discutia o momento de extinção do usufruto de um bem imóvel que havia sido adjudicado em partilha, que distingue (cristalinamente, diga-se) os direitos que cabem aos herdeiros antes e depois da partilha:

“A “transferência” da propriedade/ modificação do direito (já veremos em que termos) do bem imóvel adjudicado à recorrente ocorre no momento em que se dá o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha em que se decidiu homologar (no caso concreto) “a partilha constante do mapa de fls. 615 e ss., adjudicando os bens em conformidade” – ainda que essa produção de efeitos seja retroactiva por força do art. 2119º do CC. Os factos alegados (e os argumentos apresentados) pela recorrente não têm qualquer virtualidade para impedir que tal atribuição da propriedade ocorra no indicado momento. Como refere Lopes Cardoso, “julgada por sentença, a partilha atribui aos respectivos interessados o direito de propriedade, em toda a sua extensão, relativamente a esses bens, e dá-lhes as garantias inerentes ao reconhecimento desse direito”. Assim, “a partilha julgada por sentença com trânsito em julgado… confere aos interessados, desde a abertura da herança, os bens que lhe foram atribuídos (…) – cfr. art. 2119º do CC.

Cada herdeiro fica tendo exclusiva propriedade dos bens que lhe foram aformulados em sua quota, cessando a indivisão entre os co-herdeiros derivada da herança, enquanto por partilhar” (…). “Em consequência da partilha fica reconhecida a propriedade exclusiva dos respectivos bens e cada um dos herdeiros fica exercendo em relação a eles, os mesmos direitos que detinha o autor da herança (…)”.

Como esclarece Rabindranath Capelo de Sousa “a nossa partilha hereditária tem um carácter marcadamente declarativo, limitando-se a determinar ou a materializar os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança até então indivisa, quinhão esse adquirido com a aceitação da herança, a qual é retroagida ao momento da abertura da sucessão. Cada um dos herdeiros receberá directamente os seus direitos do defunto e não dos restantes co-herdeiros (Nota de rodapé: “Há apenas uma transmissão da propriedade”), não tendo a partilha um carácter constitutivo ou translativo pois a aquisição hereditária não decorre de recíprocas alienações e aquisições entre os co-partilhantes.

Nesta lógica, mesmos os efeitos próprios da partilha, de cessação do estado de indivisão hereditária e de materialização dos bens de cada quinhão hereditário retroagem também ao momento da abertura da sucessão (art. 2119º), assim se evitando quaisquer hiatos na titularidade das relações jurídicas que são objecto da sucessão (…)”.

Embora a partilha não tenha natureza constitutiva, tem-se defendido que “a partilha, não sendo propriamente, para o herdeiro, um facto aquisitivo, tem eficácia modificativa. Em lugar do direito que lhe estava atribuído e que concorria, com os demais co-herdeiros, sobre a herança, enquanto universalidade, por efeito da partilha o herdeiro passa a ter um direito, em titularidade singular, sobre bens determinados – ou sobre dinheiro, se houver tornas – que representam o valor da sua quota. Há uma modificação quanto ao objecto, quanto ao conteúdo e quanto à titularidade do seu direito. A verdadeira natureza da partilha, isto é, a eficácia que lhe corresponde é, pois, modificativa”.

Esclarecida a natureza da partilha e os seus efeitos jurídicos, julga-se que se torna claro que o facto de, no caso concreto, a recorrente ter ficado devedora de tornas a outros interessados e de estes terem utilizados os meios processuais pertinentes no sentido de satisfazer os seus créditos (nº 3 do artigo 1378.º do CC - venda dos bens adjudicados à devedora/cabeça de casal até onde seja necessário para o pagamento dastornas), não produz qualquer efeito jurídico sobre a aludida atribuição da propriedade (já ocorrida e inclusivamente com efeitos retroactivos reportados à data da abertura da sucessão) – tanto mais que nem sequer é “… possível a resolução da partilha com base no incumprimento voluntário do dever de pagamento das tornas

A atribuição do direito a tornas, na sequência da partilha efectuada, destinando-se a igualar os quinhões de cada um dos interessados, não transforma a partilha num contrato de compra e venda (nem as tornas em preço), pelo que este argumento não pode ser aqui reconhecido.

O que se passa, como decorre do exposto, é que até à partilha, cada herdeiro tinha um direito (não exclusivo) sobre a titularidade da herança, direito quantitativamente limitado pela existência de outros direitos legais (na titularidade dos outros herdeiros). Feita a partilha, o direito de cada herdeiro amplia-se qualitativamente (relativamente ao conteúdo que se enriquece) e restringe-se quantitativamente (respeitante ao objecto, que se restringe), sendo que por força do disposto no citado art. 2119º do CC tal modificação do direito é retroactiva (“desde a abertura da herança”).

Assim, “a sentença homologatória da partilha produz, como qualquer sentença de mérito, efeito substantivos e processuais: a) a homologação da partilha transforma o direito dos herdeiros sobre um património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados (…)”.

Nessa medida, não há dúvidas que “os efeitos da partilha – definitiva – são os definidos no art. 2119º e 2120º do CC: Atribuição dos bens do autor da herança; reconhecimento da sua propriedade exclusiva sobre os respectivos bens, entrega a cada um dos co-herdeiros dos documentos relativos aos bens que lhes couberem”.

“O nº 1 (do art. 2119º) consagra o princípio da retroactividade ao momento da abertura da sucessão, ou seja, ao momento da morte, tal como já resultava do art. 2050º, nº 2. De acordo com este princípio, os herdeiros são considerados sucessores dos bens que lhe couberem na partilha, não apenas a partir desta, mas desde o momento da morte do de cujus.

Resulta assim desta regra que o direito do herdeiro sobre a herança nasce no momento da abertura da sucessão embora apenas com a partilha se converta o direito a uma simples quota no direito exclusivo sobre bens determinados”.

O nº 1 do art. 2020º “limita-se a conferir aos herdeiros o direito de receberem os documentos relativos aos bens em que foram encabeçados na partilha, o que faz todo o sentido, uma vez que tal como dispõe o artigo anterior, cada herdeiro é considerado o único titular desses bens”.

Nesta conformidade, e contrariamente àquilo que defende a recorrente, a partilha julgada por sentença com trânsito em julgado, conferiu-lhe a propriedade exclusiva do bem imóvel (verba nº 1), sendo que esse seu direito integrou a sua esfera jurídica patrimonial – inclusivamente com efeitos retroactivos desde a abertura da sucessão - como consequência da referida modificação operada no seu direito (que coincidia, antes da partilha, com um direito não exclusivo sobre a herança e que, com a partilha, modificou-se e passou a ser um direito exclusivo de propriedade que incide apenas sobre o bem imóvel que lhe foi adjudicado em sede de partilha).”

 

33.  Atente-se, igualmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07-04-2021, cujo sumário se transcreve, e que acompanha este entendimento no sentido de considerar que ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha o herdeiro, a quem o bem é adjudicado, passa a ser titular de um direito de propriedade:

IV - Tendo presente que este Supremo Tribunal Administrativo assume que, feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem qualquer destrinça dos que preenchem ou excedem o respectivo quinhão e ainda que um negócio jurídico de partilha de bens não é confundível com o contrato (nominado) de compra e venda, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, porquanto, desde logo, quanto a este último, o pagamento de tornas (forma privativa e específica de, numa partilha, o herdeiro que recebe bens/direitos em excesso cobrir a diferença - de valor monetário - aos demais) não tem a natureza de preço (correspondente à parte excedente, por exemplo, de uma parcela de um imóvel), mas sim, consubstancia uma forma de compensação, aos outros herdeiros/interessados, pelo excesso de quota-parte, resulta claro que não tem qualquer relevância, para efeitos do apuramento das mais-valias sujeitas a tributação, o facto de, para efeitos de partilha, os herdeiros terem atribuído ao imóvel em questão o valor de € 55.500,00, valor pelo qual foi adjudicado aos Recorridos (ponto 1) do probatório), nem se esta realidade redundou num excesso do seu quinhão hereditário, dado que, como vimos, do tal eventual excesso (que também não está demonstrado nos autos) não deriva uma aquisição para efeitos de IRS, por não existir norma que o estabeleça expressamente e se não existe aquisição, o presente recurso subordinado está condenado ao insucesso, na medida em que tem como pressuposto que a verba foi adquirida aos restantes herdeiros e que, por isso, o valor a atender é o dessa aquisição (onerosa).

 

34.  Com o acórdão de 29.05.2024, o Tribunal Administrativo Sul, concluiu que[2]:

“I - A partilha de bens comuns do casal, na sequência do divórcio, não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas;

II - Não se encontrando preenchida a previsão legal do artigo 10º, nº 1, alínea a) do CIRS, não pode haver lugar a tributação em sede de mais-valias.”

 

35.  Embora a questão dos presentes autos não seja coincidente com o acórdão proferido, na medida em que estava em causa a tributação de mais-valias com origem numa operação de partilha por divórcio, existem pontos de contacto entre as duas questões, pelo que entendemos justificar-se atentar em alguns dos argumentos apresentados:

Nas circunstâncias em que da partilha resulte a adjudicação de bens a um dos ex-cônjuges em valor superior àquele a que correspondia o valor da sua meação, este fica devedor ao outro pelo montante a que corresponder esta diferença, ficando este último com direito a tornas pelo montante correspondente ao excesso de quota-parte adjudicado. Tal decorre da necessidade de o ex-cônjuge cuja esfera patrimonial ficou, por efeito da partilha, deficitária em relação ao valor da meação ser compensado.

A partilha por divórcio configura, assim, uma reorganização dos bens comuns do casal, de modo a que os ex-cônjuges deixem de ser proprietários de partes indivisas de bens para passarem a titular direitos de propriedade individuais e exclusivos sobre os mesmos. Nestes termos, de acordo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial maioritário, a natureza jurídica da partilha por divórcio é meramente declarativa e modificativa e não constitutiva ou translativa (veja-se, neste sentido, a propósito da natureza jurídica da partilha hereditária, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2000, págs. 543-547; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 2012, págs. 238-242).

(...)

Atendendo à sua natureza declarativa ou modificativa, a partilha por divórcio não configura uma transmissão de direitos reais sobre imóveis em sentido próprio. Nestes termos, a sujeição a tributação, em sede de IRS, da partilha por divórcio ou do recebimento de tornas na sequência desta - e nomeadamente o seu enquadramento no âmbito de aplicação do artigo 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS - exigiria uma previsão expressa nesse sentido, em termos idênticos ao que ocorre em sede de IMT - artigo 2.º, n.ºs 1, 5 a) e 6 do Código do IMT (veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 12 de Fevereiro de 2020, no processo n.º 0360/12.0BECBR 449/18, disponível em www.dgsi.pt).

(...)

Conforme entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, enquanto o património comum do casal se mantiver indiviso, cada um dos cônjuges é titular do direito à meação sobre os bens comuns, que constituem um património autónomo, e não um direito individual sobre cada um dos bens qua a integram. Assim, só com a partilha é que o cônjuge se torna pleno titular dos direitos (seja qual for a respetiva natureza) que por ela lhe couberem no património comum.

 

E, ainda que o património comum do casal seja constituído por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. Assim, na partilha não ocorre uma alienação de imóveis concretamente identificados, até porque só após a realização desta é possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade.

 

Daqui se conclui que a partilha de bens comuns do casal não configura uma operação de alienação onerosa da propriedade ainda que, por efeito da adjudicação de bens que excedam o valor da meação de um dos ex-cônjuges, o outro fique com direito a tornas, o que significa que não se encontra preenchida a previsão legal do artigo 10º, nº 1, alínea a) do CIRS.

 

36.  Mais recentemente, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 29-04-2025, pelo pleno da Secção do Contencioso Tributário, no âmbito do processo 033/24.1BALSB, decidiu que: 

“A alienação de quinhão hereditário não configura “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS, pelo que não estão sujeitos a este imposto os eventuais ganhos resultantes dessa alienação.”.

37.  Embora a questão colocada neste acórdão diga respeita à alienação de quinhão hereditário, importa “trazer à colação” uma parte da fundamentação que conduziu ao sentido da decisão firmada, com interesse para os presentes autos porquanto, mais uma vez, reafirma a natureza dos direitos envolvidos, afastando o entendimento de que, antes da partilha, os herdeiros sejam titulares de um direito real sobre bens imóveis: 

“VIII. Ora, sobre esta questão pronunciou-se, muito recentemente, este Supremo Tribunal, em termos que merecem a nossa adesão e que, por isso mesmo, aqui ora se reproduzem.

Assim, por Acórdão de 12 de Fevereiro de 2025, lavrado no Processo n.º 82/19, foi sufragado o entendimento, avesso ao subscrito pela Recorrente, de que “assumindo o cessionário a posição do herdeiro cedente, a qual não corresponde, não se reconduz ou equivale à de proprietário, pois não dispõe nem passou a dispor de direito pleno sobre qualquer bem imóvel (o que se aferirá, sendo caso disso, em sede de futura partilha), evidencia-se que não ocorreu qualquer alienação de bens imóveis, não se verificando a situação prevista na alínea a) do número 1 do artigo 10.º do Código do IRS.”

Para tal sentido, estribou-se este Supremo Tribunal na seguinte fundamentação, a qual se subscreve integralmente: “A norma posta em evidência nos autos - art. 10º nº 1 al. a) do CIRS -, na redacção em vigor à data dos factos, determina que “[c]onstituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: (…) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário”.

Desde logo, com interesse para a matéria dos autos, cabe notar que, nos termos do art. 2030º nº 2 do C. Civil herdeiro é o “que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados”, ou seja, o herdeiro sucede no património enquanto universalidade ou sucessor universal, quer seja no seu todo - totalidade do património do de cujus - quer seja numa quota do património do de cujus.

Neste ponto, tal como aponta Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 6.ª Ed., Coimbra Editora, 1991, pág. 189, diga-se que “em resumo (...) herdeiro é o que sucede no “universum ius” do falecido ou numa quota desse “universum ius”, entendendo por este o património como unidade jurídica. Num caso ou noutro há sucessão universal. A diferença está em que no primeiro caso a universalidade fica a pertencer a um só herdeiro, ao passo que no segundo fica a pertencer a dois ou mais, e então cada um tem uma quota.”.

A partir daqui, só é possível a um herdeiro transmitir a sua quota parte na universalidade - universalidade que é o património uno e indiviso do de cujus, conjunto abstrato - enquanto se permanecer em tal indivisão, no sentido de que a alienação do quinhão hereditário só é possível até à partilha da herança, na medida em que, uma vez partilhada a herança (e sendo a partilha o acto pelo qual são adjudicados bens concretos da herança a cada herdeiro para preenchimento do respectivo quinhão) por definição deixa de existir quinhão hereditário, até porque, por efeito da partilha, os bens que tiverem vindo preencher o respectivo quinhão hereditário confundem-se, então, com o património pessoal do herdeiro.

Nestas condições, tendo presente o art. 2124º do C. Civil, o que o herdeiro transmite é o direito à herança, o “direito de quinhão hereditário”, que traduz uma quota-parte ideal da herança.

Na verdade, tal como refere Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 98, “Pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa, que abrange, v. g., direitos de gestão (art. 2091º do CCiv), direitos à recepção de rendimentos (art. 2092.º, CCiv) e direitos de exigir a partilha e de composição da quota (art. 2101.º, CCiv).(...)”.

Com este pano de fundo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 25-11-2009, Proc. nº 0975/09, www.dgsi.pt concluiu que:

“I - Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.

II - Assim, porque a alienação (…) de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, não estão sujeitos a IRS os eventuais ganhos resultantes dessa alienação. (…)”Com efeito, “(…) só com a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos (seja qual for a respectiva natureza) que por ela lhe couberem. E, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes”.

Nesta sequência, importa também ter presente o Acórdão deste Supremo Tribunal de 28-01-2015, Proc. nº 0450/14, www.dgsi.pt, onde se ponderou que:

“…Como bem se refere na sentença recorrida é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que “enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram”. (Acórdão do STJ, de 07.05.2009 - Processo nº 08B3572 que aqui seguimos. Em sentido idêntico, entre outros, v. os Acórdãos da Relação do Porto, de 04.03.2002 - Processo nº 0151906 e da Relação de Lisboa, de 12.06.96 - Processo nº 1936 e de 26.11.96 - Processo nº 740.)

Efectivamente só com a partilha é que o herdeiro é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos cfr artigo 2119 do CC. Embora cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro E só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem. E, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes.

No caso dos autos, como se referiu, com a cessão foi transmitido o direito ao quinhão hereditário pelo que o que se transmite é, como se refere no Ac. do STJ de 09.02.2012 - Proc. 2752/07.8TBTVD.L1.S1, “um direito abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras”.

Não ocorreu, portanto, uma alienação de imóveis concretamente identificados, até porque só com a realização da partilha seria possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tais imóveis. Como se referiu já no acórdão de 25 11 2009 do STA in processo 0975/09 citado na sentença sob recurso “Assumindo o cessionário a posição do herdeiro cedente a sua situação jurídica não é igual à do proprietário, o qual dispõe de direito pleno sobre o bem que pretende alienar, pelo que não estamos perante a “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis” a que se refere o citado artº 10º do CIRS.

E face à clareza da norma da incidência - artigo 10 do CIRS al a) em causa, não há também que fazer apelo ao critério económico que o artigo 11/3 da LGT consagra, já que a tal subsidariedade só é de acorrer quando persistir dúvida sobre o sentido da norma de incidência a interpretar, o que, aqui, manifestamente, não ocorre. …”.

Por outro lado, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 15-06-2016, Proc. nº 01863/13, www.dgsi.pt, dá nota que “… constituindo a herança indivisa uma universalidade relativamente à qual não houve ainda partilha de bens (art. 2119° do CCivil), estamos em presença de um «património autónomo» partilhado, em regime de comunhão (e não em compropriedade), pelos co-herdeiros, os quais não detêm qualquer direito próprio sobre cada bem individualizado que compõe a herança indivisa, sendo apenas seus titulares em comunhão. Na expressão do acórdão do STJ, de 21/4/2009, proc. n.º 635/09 «… até à partilha, os herdeiros são titulares, tão somente, do direito “a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 347-348, e Vol. VI, pág. 160, Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2ª ed, pág. 90-92, 99 e 126; Revista dos Tribunais, nº 84, pág. 196, nº 87, pág. 126 e nº 88, pág. 95)". Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança. (…) A partilha “converte os vários direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo de uma parcela determinada do todo” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, págs. 195 -196 e 203).» …”.

Ora, como já ficou dito, o art. 10º nº 1 al. a) do CIRS -, na redacção em vigor à data dos factos, determina que “[c]onstituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: (…) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário”, impondo-se ter presente que a norma de incidência não admite interpretação extensiva nem analógica e o critério económico tem de ter respaldo legal - art. 11º da LGT.

(...)

Em suma, alienar um direito sobre um património autónomo (herança) não é a mesma coisa do que alienar um direito de propriedade ou afim sobre um mais imóveis, mesmo que a herança seja constituída apenas por imóveis e não estando a alienação de herança prevista na norma de incidência das transmissões de direitos sobre imóveis não é possível tributá-la em sede de categoria G em IRS por força do princípio da tipicidade da lei fiscal.”

 

38.  Volvendo ao caso dos autos, da matéria de facto provada, resulta que o Requerente era – na qualidade de co-herdeiro - titular de uma quota na herança aberta por óbito do seu avô, cujo acervo patrimonial integrava o prédio sito na Rua ... n.º ... e..., freguesia do ..., concelho de Lisboa, inscrito no artigo matricial n.º ..., da freguesia ... (cf. ponto C da matéria de facto). 

39.  Face ao entendimento que vem sendo prevalecente, antes de efectuada a partilha, o Requerente foi titular de uma posição jurídica que lhe confere, entre outros, o direito de exigir a partilha (cf. artigo 2101.º do Código Civil). 

40.  No entanto, a sua posição não configura um direito real de propriedade sobre bens imóveis que integram a herança.

41.  Como é entendimento pacífico da jurisprudência, enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro – in casu, o Requerente – é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens que constituem um património autónomo e não de um direito individual sobre cada um dos bens que integram o acervo hereditário do de cujus.

42.  Efetuada a partilha, o Requerente não sucedeu na titularidade do direito de propriedade sobre aquele imóvel para, no acto de partilha, o alienar. Como efeito, a propriedade – direito real – sobre aquele bem foi transmitida à co-herdeira C..., a qual, por força da partilha sucedeu ao de cujus.

43.  Esta transmissão do direito de propriedade sobre o bem operou diretamente entre a esfera patrimonial do de cujus e a esfera patrimonial da co-herdeira, C... (cf. artigo 2119.º do Código Civil). 

44.  Assim sendo, como vem sendo reconhecido face às disposições legais aplicáveis e à citada jurisprudência, a partilha não configura um ato de alienação de direitos reais sobre bens imóveis que possa ser reconduzido ao âmbito de incidência dos artigos 9.º, n.º 1 alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

45.  Para igualar o quinhão hereditário dos demais co-herdeiros, a co-herdeira que inteirou a sua quota com aquele bem imóvel, ficou obrigada a entregar ao Requerente tornas.

46.  As tornas recebidas constituem um modo de composição do quinhão hereditário, destinado a igualar os direitos que cada um dos herdeiros possui sobre a herança (entendida esta como uma universalidade). Donde, as tornas não podem ser reconduzidas ao conceito de preço (enquanto contrapartida de um contrato de compra e venda) e, como tal, não têm a natureza de rendimento-acréscimo.

47.  Contrariamente à posição sustentada pela AT, as tornas não consubstanciam uma mais-valia pela alienação de um direito real sobre um bem imóvel, sujeita a tributação, por não ter ocorrido uma alienação de direitos reais sobre bens imóveis, para efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

48.  Pelo exposto, conclui-se que a partilha por óbito de bens da herança está excluída do âmbito da norma de incidência de IRS por não configurar uma “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

49.  Consequentemente, é ilegal a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, bem como a liquidação de IRS que dela foi objecto.

50.  Nestes termos, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

51.  Da ilegalidade do indeferimento do pedido de reclamação graciosa apresentado pelo Requerente e, consequentemente, da ilegalidade do acto de liquidação de IRS, resulta para a AT a obrigação de restabelecer a situação que existiria se os actos não tivessem sidos praticados. 

52.  De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

53.  Para além do reembolso do imposto indevidamente pago, dispõe o artigo 43.º, n.º 1, da LGT que: 

“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. 

54.  Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato de liquidação, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia indevidamente paga pelo Requerente, à taxa legal supletiva, desde a data do pagamento até integral e efetivo reembolso, nos termos conjugados do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4 e 35.º, n.º 10 e 100.º da LGT e do artigo 61.º, n.º 4 e 5 do CPPT.

 

V – Decisão

Termos em que se decide:

a)     julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação de IRS, referente ao ano de 2022, no montante total de 24.034,99 €, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida;

b)    Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago pelo Requerente e no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

c)     Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.

 

VI – Valor do Processo

Nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e Processo Tributário, conjugado com o artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 24.034,99 €.

 

VII – Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT fixa-se o montante das custas em 1.530,00 €, nos termos que resultam da aplicação da tabela I, ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique.

CAAD, Lisboa, 3 de julho de 2025

A Árbitra,

 

Alexandra Gonçalves Marques

 



[1] José Guilherme Xavier de Bastos, IRS, Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 396. 

[2] Em sentido contrário, acórdão do STA de 12-02-2025, com voto de vencido, proferido no processo n.º 01868/22.5BEBRG, disponível em www.dgsi.pt.