SUMÁRIO.
O artigo 5º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6º , n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, devem ser interpretados no sentido de que: não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6º , no 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações (acórdão do TJUE de 5. 6. 2025 — C-685/23).
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I- RELATÓRIO
A) O pedido
A Requerente peticiona que:
a) Seja anulada a liquidação de Imposto do Selo, efetuada pelo Cartório B..., SP, Unipessoal Lda, NIPC ..., nos termos da verba 10.2 da TGIS, no valor de € 2.309.600,00, relativa à constituição de garantias ao abrigo do "Security Package" de 16 de dezembro de 2022, associado ao contrato de emissão obrigacionista designado de “Upsizing Facilities Agreement”, de 9 de dezembro de 2022,
b) Seja declarada a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, relativa a tal liquidação, nº ...2024...,
c) A Requerida seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios.
B) O litígio
Está em causa uma liquidação de Imposto do Selo aquando da autenticação notarial de um contrato de prestação de garantia associado a uma emissão obrigacionista
Considera a Requerente que a tributação deste pacote de garantias viola o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, na medida em que a sua constituição configuraria uma operação acessória que deve ser vista como parte integrante de uma operação global de reunião de capitais, por necessária à realização desta.
Louva-se em jurisprudência do TJUE e em várias decisões arbitrais proferidas no seguimento desta.
A Requerida sustenta a legalidade da liquidação.
C) Tramitação processual
O pedido foi aceite em O3/02/2025.
A Requerente usou da faculdade de nomear árbitro, designando o Sr. Dr. João Taborda da Gama.
A Requerida designou a Srª Drª Maria dos Prazeres Lousa.
O presidente foi escolhido por consenso dos demais árbitros.
Os árbitros aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 30/04/2025.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
As partes, para tal notificadas, apresentaram alegações em 09/09/2025 e 10/09/2025.
D) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades
Não foram alegadas exceções nem detetadas outras questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.
II -PROVA
II.1 - Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente adquiriu uma participação de 49,99% no capital da sociedade D..., sociedade resultante da cisão da C..., S.A. - para a qual foi transferido o ramo de atividade correspondente ao negócio de fibra ótica.
b) Para financiar esta aquisição, a Requerente emitiu obrigações, as quais foram tomadas por um sindicato bancário.
c) Em virtude desta emissão obrigacionista, a Requerente e outra sociedade do grupo E... ( E...), em que se integra, prestaram garantias aos tomadores das obrigações, as quais se encontram descritas no Supplemental Security Agreement junto aos autos.
d) Tais garantias consistiram em:
- Penhor financeiro sobre as ações da Requerente prestado pela sua acionista única (a F...), incluindo a promessa de penhor em relação à emissão de novas ações;
- Penhor mercantil sobre os créditos resultantes (i) da prestação de suprimentos por parte da Requerente à D..., bem como (ii) das prestações acessórias prestadas pela F... à Requerente;
- Penhor financeiro sobre as obrigações intra grupo emitidas pela Requerente e subscritas pela F...;
- Cessão, com escopo de garantia, de créditos resultantes da emissão de obrigações, outros valores mobiliários representativos de dívida ou suprimentos de que viessem a ser titulares a Requerente, ou a F..., após a data desta emissão obrigacionista;
- Penhor financeiro sobre o saldo da conta bancária da Requerente, incluindo a promessa de penhor em relação a saldos relativos a contas bancárias a constituir após a emissão obrigacionista;
- Penhor sobre créditos (“Pledged Receivables”, i.e., créditos empenhados, nos termos e de acordo com o significado atribuído no Security Package) resultantes de vários contratos estabelecidos para a aquisição da D...;
- Cessão, com escopo de garantia, de créditos que não qualifiquem como Pledged Receivables nos termos acima, mas que também resultaram dos vários contratos estabelecidos para a aquisição da D... .
e) A notária, perante quem foram autenticados tais contratos, procedeu à liquidação de Imposto do Selo em nome da Requerente, à taxa prevista na verba 10.2. da TGIS, no montante de € 2.309.600,00.
f) A Requerente interpôs reclamação graciosa de tal liquidação, a qual foi expressamente indeferida em 1 de novembro de 2024.
Estes factos estão comprovados pela documentação junta aos autos, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.
II.2 - Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
III- O DIREITO
A questão a decidir nos presentes autos é a de saber se a tributação em Imposto do Selo de um negócio jurídico de prestação de garantias, constituídas essencialmente por penhores, associada a um contrato de emissão de obrigações, viola o disposto na Diretiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.
Importa começar por frisar que a questão será apreciada à luz da jurisprudência mais recente do TJUE, o acórdão C-685/23, jurisprudência esta que, como é sabido, vincula este tribunal, independente de uma eventual divergência de opinião.
III.1 – A diretiva 2008/7/CE
Comecemos pelo disposto na Diretiva 2008/7/CE do Conselho, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.
Segundo o respetivo preambulo,
(2) Os impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, designadamente o imposto sobre as entradas de capital (imposto que incide sobre as entradas de capital nas sociedades), o imposto de selo sobre os títulos, e o imposto sobre as operações de reestruturação, independentemente de essas operações envolverem ou não um aumento de capital, dão origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais. O mesmo se aplica a outros impostos indiretos com características idênticas às do imposto sobre as entradas de capital e do imposto de selo sobre os títulos.”
(3) Consequentemente, é do interesse do mercado interno harmonizar a legislação relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais para eliminar, tanto quanto possível, fatores suscetíveis de distorcer as condições de concorrência ou entravar a livre circulação de capitais.
Por sua vez, o artigo 1.º determina que a Diretiva 2008/7/CE regula a aplicação de impostos indiretos sobre: (…) c) Emissão de determinados títulos e obrigações.
E o artigo 5.º, com a epigrafe “Operações não sujeitas a impostos indiretos”, estipula:
2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto: (…)
b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis. (…)
Por fim, o artigo 6.º, Impostos e direitos determina:
Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos: (…) d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas
III.2 – Formalidades conexas
Haverá, em primeiro lugar, que apurar se a constituição das garantias em causa neste processo deve ser havida como uma “formalidade conexa” com a operação de reunião de capitais (com a emissão de obrigações). Isto porquanto sendo-o a sua tributação estaria expressamente vedada pela alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva.
O conceito “formalidades conexas” é um conceito indeterminado, que cabe ao tribunal preencher casuisticamente.
Seja qual for o melhor entendimento que deva ser feito deste conceito, numa sua definição pela positiva, o certo é que o negócio jurídico através do qual um terceiro constitui uma garantia de cumprimento das obrigações alheias, derivadas de um outro negócio jurídico (mútuo), não pode ser havida como uma formalidade inerente a este.
Por muito que a Requerente procure evidenciar a “indispensabilidade” da constituição da garantia para o êxito do empréstimo obrigacionista, o certo é que estamos perante negócios jurídicos totalmente distintos, em que os intervenientes não são os mesmos. A constituição da garantia não é um “trâmite” do contrato obrigacionista.
A “essencialidade” da prestação de garantia resulta de razões económicas, de exigência de mercado, não de exigências legais – não está em causa uma obrigação acessória imperativa do contrato de mútuo[1].
O contrato de prestação de garantias a que se refere o caso aqui em apreço não só constitui um contrato distinto e juridicamente autónomo do contrato principal (não correspondendo a qualquer requisito legal da respetiva eficácia), como a prestação de garantia foi efetuada voluntariamente não se mostrando, em rigor, indispensável para a operação, com maior ou menor êxito, ter lugar[2].
III.3- A regra da não sujeição a impostos indiretos
Como vimos, o artigo 6.º da Diretiva, estabelece que, em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos: (…) d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção deprivilégios e hipotecas
Citamos do acórdão do TJUE de 19 de outubro de 2017, no processo C‑573/16 (Air Berlin)
31- Resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que tendo em conta os objetivos prosseguidos pelas referidas diretivas, os artigos 10.º e 11.º da Diretiva 69/335 e o artigo 5.º da Diretiva 2008/7 devem ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições previstas nestas disposições sejam privadas de efeito útil (v., neste sentido, acórdãos de 15 de julho de 2004, Comissão/Bélgica, C‑415/02, EU:C:2004:450, n.º 33; de 28 de junho de 2007, Albert Reiss Beteiligungsgesellschaft, C‑466/03, EU:C:2007:385, nº 39; e de 1 de outubro de 2009, HSBC Holdings e Vidacos Nominees, C‑569/07, EU:C:2009:594, n.º 34).
32 - O Tribunal de Justiça declarou assim que, em conformidade com os objetivos do artigo 11º da Diretiva 69/335 e do artigo 5º, n.º 2, da Diretiva 2008/7, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais se aplica igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, acórdão de 9 de outubro de 2014, Gielen, C‑299/13, EU:C:2014:2266, n.º 24 e jurisprudência referida).
Portanto teremos que as operações (negócios jurídicos) conexas com operações de reunião de capitais não podem, por regra, ser sujeitas a impostos indiretos (salvo as exceções que a seguir analisaremos).
III.4 – As exceções: a noção de “privilégios”
A exceção prevista na Diretiva, como vimos, é a da constituição de hipotecas e privilégios.
Apenas nos deteremos sobre a noção de privilégios, uma vez que hipoteca não só é um termo de significado consensual como não está em causa no presente processo, pois que as garantias nele em causa se referem a bens móveis, incluindo direitos
Há que começar por frisar que este conceito é utilizado pela Diretiva no âmbito do seu escopo de harmonização da tributação indireta incidente sobre operações de reunião de capitais. O mesmo é dizer que o seu significado pode ser (é) diferente daquilo que poderia ser extraído da sua utilização por normas de direito interno[3].
A questão do que se deva entender por “privilégios” foi recentemente analisada no processo C‑685/23, de 5 de junho de 2025 (Corner and Border, S. A.).
Citamos:
36 - A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o artigo 6.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2008/7 utiliza, na grande maioria das versões linguísticas, a expressão «privilégios e hipotecas». Ora, uma vez que o legislador utilizou termos distintos para designar instrumentos que criam direitos preferenciais constituídos sobre o património de uma pessoa, não há que considerar a priori que estes termos dizem unicamente respeito a um tipo destes direitos, a saber, os de natureza imobiliária.
43- Com efeito, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, o âmbito de aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2008/7, que se aplica «[e]m derrogação» das proibições de tributação previstas no artigo 5.° da mesma, está em estreita correlação com o âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), desta diretiva e comprova que o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados‑Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista. Nestas condições, como, em substância, o advogado‑geral considerou no n.° 50 das suas conclusões, a expressão «privilégios e hipotecas», referida neste artigo 6.°, n.° 1, alínea d), engloba todos os instrumentos contratuais que façam parte integrante de uma operação de reunião de capitais de empréstimo que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.
Vejamos agora o essencial das conclusões do Advogado Geral, as quais o Tribunal expressamente assumiu no acórdão em análise:
38 - Embora o conceito de hipoteca seja conhecido e o seu significado seja análogo nos diferentes ordenamentos jurídicos, sendo a garantia imobiliária típica destinada a assegurar um crédito, a questão interpretativa radica no significado a atribuir ao termo «privilégio», cuja definição não existe na legislação da União e varia nos ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros.
42- A Comissão, ao examinar os objetivos da diretiva e o contexto em que se insere a disposição, conclui, em substância, que se deve atribuir à expressão «privilégio» o significado de uma garantia de natureza imobiliária, análoga àquela prevista em caso de hipoteca.
46- Em contrapartida, não considero correto, mesmo adotando uma interpretação restritiva das situações previstas no artigo 6.o, em particular no n.o 1, alínea d), que se prive completamente de significado a expressão «privilégios e hipotecas» utilizada, considerando‑a, em substância, uma hendíade. Equivaleria a dizer que a exceção só se aplica em caso de hipotecas ou de garantias análogas de natureza exclusivamente imobiliária.
47- Penso, pelo contrário, que há que examinar o sentido da disposição avaliando qual a função e a característica particular da hipoteca na prestação de garantias para assegurar o crédito e, em seguida, atribuir um significado adequado ao termo «privilégio».
48- A hipoteca é manifestamente um tipo de garantia que oferece direitos preferenciais especiais ao credor em caso de incumprimento por parte do devedor. Isto significa que, no caso de uma pluralidade de dívidas por parte do devedor, o credor beneficiário de uma hipoteca verá o seu crédito satisfeito preferencialmente por conta do património do devedor
50- Pois bem, em meu entender, a diretiva, ao utilizar a expressão «privilégios e hipotecas», visava agrupar os tipos de garantias cuja constituição, inscrição ou extinção tivesse um efeito análogo sobre os direitos do credor: o de constituir uma garantia especial suscetível de conferir direitos preferenciais na satisfação do crédito em caso de incumprimento. E isso independentemente da sua natureza mobiliária ou imobiliária.
51 -Neste contexto, o termo «privilégios» deveria indubitavelmente incluir os penhores mobiliários, na medida em que estes últimos confiram, no ordenamento do Estado‑Membro, direitos preferenciais especiais na aceção acima indicada, bem como, eventualmente, outros tipos de garantias que tenham os mesmos efeitos.
Pensamos que os excertos que acabámos de transcrever resultaram esclarecedores: a palavra «privilégios» deve ser entendida, neste contexto, como referida a garantias das obrigações com o mesmo efeito de uma hipoteca, independentemente da sua denominação em cada ordenamento jurídico nacional e de incidir sobre bens móveis ou imóveis
São subsumíveis, portanto, no conceito de «privilégios» as garantias que, em caso de concurso de credores, conferem ao credor que delas goza o direito a ser pago com prioridade relativamente a outros credores (os que não beneficiem de uma garantia mais forte), desde logo os credores comuns.
Está em causa a graduação de créditos, a hierarquia dos diferentes credores na satisfação dos seus créditos pelo património do devedor.
Atento o conceito de privilégio relevante para efeitos de aplicação da Diretiva, importa apurar se o penhor (principal garantia ora em causa), atentas as suas caraterísticas à luz do direito interno, é subsumível a tal conceito, deve ser qualificado como privilégio. Tarefa que o citado acórdão expressamente remeteu para o tribunal nacional.
Percorrendo as pertinentes normas do nosso Código Civil, facilmente verificamos que hipoteca e penhor são garantias equivalentes, que apenas o fato de a elas estarem sujeitos bens imóveis e bens móveis distinguem (irrelevando aqui a questão da sujeição registo)[4].
Assim, há que qualificar os penhores em causa nos presentes autos como “privilégios”, para efeitos da Diretiva e, assim concluir como o TJUE no referido acórdão C‑685/23, de 5 de junho de 2025 (Corner and Border, S. A.): O artigo 5.º , n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º , n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, devem ser interpretados no sentido de que: não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.o , n.o 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.
IV- DECISÃO
Pelo exposto improcede o pedido principal (anulação da liquidação de Imposto do Selo) e, consequentemente, improcedem os demais pedidos, dele dependentes.
Valor: € 2.309.600,00
Custas: (já pagas) pelo Requerente, desde logo porquanto exerceu a opção de designar árbitro.
25 de setembro de 2025
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
João Taborda da Gama (com voto de vencido)
Maria dos Prazeres Lousa
Declaração de Voto Vencido do Árbitro João Taborda da Gama:
Vencido, porque teria julgado o pedido procedente.
No recente Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-685/23, o entendimento que decorre do Acórdão Air Berlin (processo C-573/16) é reiterado, no sentido de que “(…) o artigo 5.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2008/7 proíbe que fiquem sujeitos a qualquer forma de imposto indireto os empréstimos contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e de todas as formalidades conexas, bem como a criação, a emissão, a admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.” (cf. p. 27). Também a interpretação perfilhada pelo Acórdão IM Gestão de ativos (processo C-656/21), que determina que “o artigo 5.º desta última deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que essa proibição fique privada de efeito útil” (cf. p. 30) é sublinhada. Impõe-se, portanto, uma interpretação ampla do artigo 5.º da Diretiva: o que determina que a criação, a emissão, a admissão à cotação em bolsa, a colocação em circulação ou a negociação das emissões de obrigações ou de qualquer valor mobiliário ou os respetivos certificados representativos não podem ser sujeitos a imposto indireto.
Partindo deste pressuposto, o TJUE reconhece no referido processo C-685/23 que “(…) uma vez que as garantias são prestadas com vista ao cumprimento adequado das obrigações resultantes de um empréstimo obrigacionista, estas garantias apresentam, por esse facto, uma ligação estreita com a emissão do referido empréstimo, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2008/7, pelo que se deve considerar que fazem parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, independentemente da questão de saber se são prestadas em execução de uma obrigação legal ou voluntariamente”, motivo pelo qual “em princípio, a prestação das referidas garantias deveria estar sujeita à proibição de sujeitar a imposto indireto as reuniões de capitais na aceção do artigo 5.° da Diretiva 2008/7” (cf. p. 32 e 33).
Assim, contrariamente ao decidido no presente processo, o TJUE declara expressamente que as garantias prestadas no âmbito de uma operação de reunião de capitais fazem parte integrante daquela operação ficando sujeitas à proibição de tributação decorrente do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capital (“Diretiva”).
Não ignorando o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva, que derroga o disposto no artigo 5.º, permitindo que os Estados-Membros cobrem impostos sobre “direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas”, o TJUE recorda que “o objetivo da Diretiva 2008/7, que, como resulta dos seus considerandos 2 e 3, consiste em eliminar, tanto quanto possível, as discriminações, as duplas tributações e as disparidades suscetíveis de falsear as condições de concorrência ou de dificultar a livre circulação de capitais, que podem resultar de impostos indiretos que incidam especificamente sobre as reuniões de capitais e não os impostos indiretos que incidam sobre qualquer forma de empréstimo concedido a uma sociedade de capitais” (cf. p. 41).
É certo que para o TJUE “o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados‑Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista. Nestas condições, como, em substância, o advogado‑geral considerou no n.° 50 das suas conclusões, a expressão «privilégios e hipotecas», referida neste artigo 6.°, n.° 1, alínea d), engloba todos os instrumentos contratuais que façam parte integrante de uma operação de reunião de capitais de empréstimo que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações” (cf. p. 43).
Todavia, sem prejuízo disso, o TJUE concede discricionariedade “ao órgão jurisdicional de reenvio [para] examinar, à luz das considerações expostas no n.° 43 do presente acórdão, se os penhores, as promessas de penhor e a cessão de créditos em causa no processo principal, uma vez que não constituem hipotecas, podem ser qualificadas de «privilégios» na aceção do referido artigo 6.°, n.° 1, alínea d)” (cf. p. 44).
No caso sub judice, a operação de reunião de capitais em causa é a emissão de obrigações pela Requerente, utilizada como meio de financiamento para a aquisição de capital social da sociedade D... . Para concretizar a emissão obrigacionista foram prestadas diversas garantias como penhores financeiros, penhores mercantis, cessões de créditos e penhores sobre créditos e estas garantias foram sujeitas a Imposto do Selo, à taxa de 0,5%, prevista na Verba 10.2 da TGIS, que originou imposto no montante de € 2.309.600,00 – imposto ilegalmente cobrado em violação do disposto no artigo 5.º da Diretiva.
Não há dúvidas de que a operação de emissão de obrigações se encontra expressamente descrita na alínea b) do n. 2 do artigo 5.º da Diretiva: “Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”. Motivo pelo qual não deverá ser sujeita a tributação.
À luz de toda a jurisprudência do TJUE sobre este tema, que, sublinhe-se, tem sido constante e reiterada no sentido de considerar que as proibições de impostos indiretos sobre reuniões de capital devem ser objeto de uma interpretação lata para garantir o seu efeito útil, entendo que as garantias constituídas no âmbito da emissão de obrigações fazem parte dessa operação global e, por isso, se encontram abrangidas pela alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva.
Entendo também que as garantias em causa não são “privilégios” na aceção da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva porque mais do que serem parte integrante da operação de reunião de capitais, devem considerar-se inerentes à referida operação, configurando um pressuposto essencial da mesma – suscetível de influenciar decisivamente a emissão (ou não) das obrigações.
Tal como decorre das decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 892/2024-T e n.º 1185/2024-T, também sou da opinião de que “A separação entre o contrato principal de emissão de obrigações e o contrato acessório de constituição de garantias seria uma operação conceitual de natureza artificial, indiferente à estreita ligação económica e funcional que se estabelece entre ambos no quadro de uma operação global de reunião de capitais”. Ao que acresce que, a autonomização da constituição destas garantias das operações de emissão de obrigações contrariaria o espírito da Diretiva, que pretende incentivar e promover as operações de aumento de capital como modo de estimular o mercado interno. Dito de outro modo, ao tributar as garantias que constituem parte integrante da operação de capitais – visto que, caso não tivessem sido constituídas, tal operação não se concretizaria – verifica-se um entrave à livre circulação de capitais e ao próprio funcionamento do mercado interno.
Por último, parece-me evidente que a derrogação à não sujeição das operações previstas no artigo 5.º da Diretiva se encontra delimitada de forma expressa às situações taxativamente elencadas no n.º 1 do artigo 6.º da mesma, não existindo qualquer referência a penhores financeiros, penhores mercantis, cessões de créditos e penhores sobre créditos como os que estão em causa no presente processo.
Em concreto no que concerne às expressões utilizadas na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, é de notar que “hipotecas” e “privilégios” se opõem à expressão genérica “garantias” que poderia ter sido utilizada caso fosse essa, de facto, a pretensão do legislador europeu.
Não tendo sido utilizado o termo genérico que abarca várias categorias de garantias é porque a intenção foi apenas onerar “hipotecas” e “privilégios”.
Assim, considerando o que o TJUE deixou margem de discricionariedade “(…) ao órgão jurisdicional de reenvio [para]examinar (…) se os penhores, as promessas de penhor e a cessão de créditos em causa no processo principal, uma vez que não constituem hipotecas, podem ser qualificadas de privilégios na aceção do referido artigo 6.º, n.º 1, alínea d)” (cf. p. 44 do Acórdão C-685/23), neste caso concreto, não teria considerado que os penhores financeiros, penhores mercantis, cessões de créditos e penhores sobre créditos são “privilégios” na aceção da diretiva.
Estes instrumentos contratuais utilizados pelas partes servem para garantir o cumprimento das obrigações estabelecidas, visto que, em caso de incumprimento daquelas o credor poderá executar a garantia fazendo-se pagar quanto àquela dívida em concreto pelos montantes em apreço. Mas isto não significa que se permite que um “(…) titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações” (cf. p. 43 do Acórdão C-685/23). O que significa é que aquela obrigação contratual específica fica garantida e acautelada mediante um acordo entre as partes.
Efetivamente, sem prejuízo da possibilidade das variações legais do direito interno dos Estados-Membros, o pagamento preferencial decorrente precisamente dos “privilégios” encontra-se expressamente definido no artigo 733.º do Código Civil: “Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.
E é amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que os privilégios creditórios não se confundem com as garantias especiais das obrigações, como os penhores financeiros, penhores mercantis, cessões de créditos e penhores sobre créditos, ora em causa. Desde logo, os privilégios decorrem da lei, enquanto as garantias são contratualmente definidas pelas partes do negócio. Mas, mais do que isso, os privilégios creditórios visam “(…) apenas assegurar dívidas que, por sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, portanto, que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens” (cf. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, Almedina, 2016, 12.ª Edição, p. 960). Do mesmo modo, “Os privilégios creditórios gerais não se configuram actualmente como direitos reais de garantia, estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de prevalência sobre as garantias reais que incidam sobre tais bens, nomeadamente o penhor e a hipoteca” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de dezembro de 2011, processo n.º 1593/10.0TBVNO-A.C1).
Adicionalmente, e no sentido de que as “hipotecas” e os “privilégios” são categorias próprias de garantias das obrigações equiparáveis (mas que se distinguem de outras modalidades de garantias) a doutrina reconhece que “(…) nenhuma destas garantias pode resultar de negócio jurídico e ambas são concedidas atendendo à causa do crédito” (cf. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, Almedina, 2016, 12.ª Edição, p. 960). Estas semelhanças de regime entre “privilégios” e “hipotecas” reforçam a sua especificidade perante as restantes garantias especiais, motivando que a derrogação à não sujeição a imposto prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva se aplique apenas a estas duas realidades concretamente mencionadas e não a todas as garantias genericamente consideradas.
Neste contexto, acolhendo a interpretação perfilhada pelo TJUE, considerando as disposições de direito interno relevantes e analisada a situação concreta em apreço, só poderia concluir-se que os penhores financeiros, penhores mercantis, cessões de créditos e penhores sobre créditos em causa neste processo:
1. fazem parte integrante da operação de emissão de obrigações, pois caso não tivessem sido constituídos tal operação não se teria realizado, motivo pelo qual devem considerar-se abrangidas pela alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva;
e
2. não integram o conceito de “privilégios” na aceção da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, visto que não estão expressamente discriminados pela letra da norma e não determinam o pagamento preferencial ou prioritário do crédito – este pagamento preferencial decorre dos privilégios creditórios.
O árbitro
(João Taborda da Gama)
[1] Como é o caso da emissão de quitação relativa ao cumprimento de um mútuo, feita através de escritura pública, situação apreciada pelo TJUE no acórdão de 27 de outubro de 1998, processos C-31/97 e C-32/97 (FECSA e ACESA).
[2] Citamos, das conclusões do advogado Geral no processo C‑685/23:
32. Não estou convencido de que o facto de a prestação de garantias representar, por hipótese, a «normalidade» no caso de empréstimos obrigacionistas seja suficiente para enquadrar a prestação de garantias na categoria das diligências comerciais necessárias de uma operação complexa e única e, de todo o modo, à luz das respostas divergentes obtidas na audiência, caberá ao órgão jurisdicional nacional verificar qual é a situação real no mercado financeiro português.
33. Em substância, em minha opinião, para o contrato de garantia poder ser considerado uma formalidade conexa com o contrato de financiamento, é necessário que o órgão jurisdicional nacional constate a existência de uma das seguintes condições alternativas: a obrigação imposta por lei ou por outra fonte que vincule a autonomia privada à prestação de garantias em caso de emissão de obrigações, a existência de situações de facto tais que permitam considerar a prestação de uma garantia uma diligência comercial necessária de uma operação complexa e única.
[3] Uma vez que a Diretiva 2008/7 não define o termo «privilégios» nem remete para o direito dos Estados‑Membros para este efeito, decorre das exigências da aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade que o sentido e o alcance dos termos de uma disposição do direito da União devem em princípio ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta a redação desta disposição, o contexto em que se insere e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 20 de março de 2025, Lindenbaumer, C‑61/24, EU:C:2025:197, n.° 38 e jurisprudência referida).
[4] Artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil (Noção de hipoteca): A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Artigo 666.º, n.º 1 do Código Civil (Noção de penhor): O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.