SUMÁRIO:
I. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
II. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outros Estados, ao mesmo tempo que permite aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, de 17.03.2022.
III. O artigo 63.º, n.º 1, do TFUE proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
DECISÂO ARBITRAL
A..., com sede em ..., ..., ..., Estados Unidos da América, NIPC ..., representado pela sua entidade gestora, B..., com sede no mesmo local, veio solicitar a constituição de Tribunal Arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
a) O pedido
A Requerente pede a anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC efetuados sobre rendimentos de capitais por ela obtidos em Portugal, imposto esse que foi entregue nos Cofres do Estado, em maio e setembro de 2022, através das guias de retenção na fonte n.º ... e n.º ... .
Pede a devolução do imposto pago apenas no valor correspondente à aplicação da taxa de 15% (prevista no art.º 94.º do CIRC e art.º 10 da CDT Portugal – EUA)), num valor total de € 283.711,45. Isto porquanto, embora a retenção na fonte tenha sido feita por aplicação da taxa normal de 25%, já peticionou, em procedimento próprio, a devolução da diferença entre o montante retido e o que o deveria ter sido nos termos da CDT aplicável.
Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
Pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
b) O litígio
A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.
Na sua resposta, por impugnação, a Requerida salienta que, no seu entender:
- não foi feita prova feita prova de que a Reclamante não logrou deduzir nos EUA, Estado da sua residência, o imposto retido na fonte em Portugal.
- não foi feita a prova de que a Requerente seja um Organismo de Investimento Coletivo que cumpra as condições requeridas pela diretiva 2009/65/EC.
- a documentação junta pela Requerente para prova da retenção na fonte não ser da autoria nem das entidades que procederam ao pagamento dos dividendos em causa (que a Requerida identifica), nem do substituto tributário, mas sim de duas entidades financeiras intervenientes, a custodiante e a sub-custodiante dos títulos que originaram o direito à receção dos dividendos em causa.
Quanto ao direito aplicável, sustenta a legalidade das liquidações (retenções na fonte) impugnadas.
c) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 26/02/2025.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 08/05/2025.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
A Requerida replicou.
Por despacho de 29/07/2025, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
d) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades
Não foram alegadas exceções nem detetadas outras questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.
II- PROVA
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente é um organismo de investimento coletivo que reúne capital de investidores para investir num portefólio de ações de empresas, situadas principalmente em mercados emergentes, sendo os riscos do investimento partilhados pelos investidores e a gestão dos investimentos realizada pela respetiva entidade gestora
b) O Requerente é qualificado para efeitos fiscais pelo direito norte-americano como Regulated Investment Company.
c) O Requerente é um sujeito passivo de IRC, residente nos EUA e sem estabelecimento estável em Portugal.
d) Em 2022, entre maio e setembro, o Requerente auferiu dividendos de fonte portuguesa, num total de € 1.891.409,51, tendo sofrido retenção na fonte à taxa de 25%, num total de € 472.852,38.
e) As retenções na fonte em apreço foram efetuadas pelo C... S.A. enquanto entidade registadora dos títulos (ações representativas do capital de sociedades com sede em Portugal) de que o Requerente era titular.
f) Os valores retidos foram entregues ao Estado através das guias de pagamento nº ... e n.º ... .
g) Em procedimento próprio, o Requerente pediu a devolução da diferença entre o imposto retido (á taxa de 25%) e o que o deveria ter sido por aplicação da taxa de 15% prevista no art. 10º da CDT Portugal-EUA.
h) Em 20.05.2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa necessária relativamente às liquidações (retenções na fonte) que ora impugna, a qual foi expressamente indeferida em 16.12.2024
A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos.
Relativamente às “objeções” da Requerida quanto ás questões de facto, dir-se-á o seguinte:
(i) É irrelevante para a boa decisão da causa saber se a Requerente deduziu ou podia deduzir no seu país de residência o imposto retido na fonte, em Portugal.
O que está em causa neste processo é a legalidade de tal retenção por ofensa a princípios do Direito da União.
Temos duas diferentes questões, a, se necessário, serem apreciadas em sucessão: primeira, a da legitimidade de um Estado (de cada um dos Estados envolvidos) para tributar; segunda, (só) existindo legitimidade de ambos os Estados existirá um concurso legítimo de pretensões tributárias, o mesmo é dizer que só então se poderia colocar a questão do uso dos meios previstos na CDT aplicável para eliminar a dupla tributação internacional.
Concluindo-se, como se concluirá, pela ilegalidade da tributação por retenção na fonte operada em Portugal, fica prejudicada a apreciação da questão da eventual eliminação da dupla tributação internacional.
(ii) Relativamente à prova de que a Requerente seja um Organismo de Investimento Coletivo que cumpra as condições requeridas pela diretiva 2009/65/EC, começamos por reconhecer que o facto de a Requerente ser uma Regulated Investment Company não é suficientemente esclarecedor, pois tal qualificação refere-se a um estatuto fiscal semelhante ao da nossa transparência fiscal interna.
Porém, a jurisprudência do TJUE, que vincula este tribunal arbitral, não exige que os organismos de investimento coletivo com sede em países terceiros estejam sujeitos a uma regulação idêntica àquela a que estão sujeitos os constituídos em estados membros da EU:
A circunstância de os fundos de investimento não residentes não fazerem parte do quadro regulamentar uniforme da União criado pela diretiva OICVM que regula as modalidades da criação e funcionamento dos fundos de investimento na União, conforme transposta para o direito interno pela Lei polaca sobre os fundos de investimento, não basta por si só para demonstrar que as situações dos referidos fundos são diferentes. Com efeito, na medida em que a diretiva OICVM não se aplica aos fundos de investimento estabelecidos em países terceiros, uma vez que se encontram fora do âmbito de aplicação do direito da União, exigir que estes últimos sejam regulamentados de forma idêntica relativamente aos fundos de investimento residentes privaria a liberdade de circulação de capitais de todo o efeito útil., processo C-190/12, de 10.04.2014, Emerging Markets Series).
O que parece não oferecer dúvidas (e a AT não põe em causa) é que a Requerente se apresenta publicamente como sendo um OIC que reúne capital de investidores para investir num portefólio de ações de empresas, situadas principalmente em mercados emergentes, sendo os riscos do investimento partilhados pelos investidores e a gestão dos investimentos realizada pela respetiva entidade gestora (cfr. prospeto junto à reclamação graciosa como doc 1). Não foram alegados quaisquer factos que indiciem que a atividade do Requerente não acontece no cumprimento da legislação americana aplicável (reconhecidamente exigente nestas matérias).
Tal bastará para se poder entender que a Requerente goza da proteção conferida pelos princípios do Direito da União aplicáveis a residentes em países terceiros.
(ii) Relativamente à prova (ao meio de prova utilizado) temos:
Primeiro, não se entende que a AT ponha em causa factos de que necessariamente tem conhecimento (que lhe foram entregues determinadas quantias para pagamento, por retenção na fonte, de imposto devido por determinado contribuinte em razão da obtenção de determinado rendimento).
Segundo, em Direito Processual Tributário valem os princípios da liberdade dos meios de prova e da livre convicção do juiz. Não faz, pois, sentido afirmar que as retenções na fonte e os rendimentos que lhes deram origem deveriam ter sido certificados pelo agente pagador e pelo substituto tributário e não, como foi feito, pelo custodiante e sub-custodiante dos títulos. Declarações estas que o tribunal não tem razões para pôr em causa.
II.2 - Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
III- O Direito
Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.
Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1].
Citamos:
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
Por último, há que frisar ser irrelevante o facto de o acórdão do TJUE no qual, desde logo por obrigação legal, nos louvamos, ter versado sobre uma situação de um OIC de direito de direito americano, com residência nos EUA. Como consta do excerto atrás transcrito, o TJUE foi claro em afirmar estar em causa uma ofensa à liberdade de circulação de capitais. Ora o artigo 63.º, n.º 1 do TFUE é claro em proibir “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
a) Anular, por ilegais, a liquidações (retenções na fonte liberatórias) que incidiram sobre dividendos obtidos pela Requerente entre a em maio e setembro de 2022 e entregues nos cofres do Estado através das guias n.º ... e n.º ...
b) Condenar a Requerida na devolução de parte do imposto indevidamente pago, no montante peticionado de € 283.711,45, acrescido de juros indemnizatórios, calculados sobre tal sobre a quantia, a liquidar nos termos legais.
c) Reconhecer o direito da Requerente a receber juros indemnizatórios, a serem quantificados em execução de sentença.
Valor: € 283.711,45
Custas, no valor de € 5.202,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
25 de setembro de 2025
Rui Duarte Morais (relator)
José Luís Ferreira
Sérgio Santos Pereira
[1] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).