Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1237/2024-T
Data da decisão: 2025-09-25  IRC  
Valor do pedido: € 936.855,76
Tema: derrama; não incidência sobre rendimentos obtidos no estrangeiro
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SUMÁRIO

 

A incidência da derrama municipal, sendo embora um imposto anexo ao IRC, tem uma dimensão territorial, apenas nele se computando os rendimentos obtidos no território nacional por causa daquela conexão com o território de cada município onde se afigura relevante a sede ou a atividade da pessoa coletiva, não podendo ser inseridos na sua previsão normativa os rendimentos obtidos no estrangeiro, os quais não têm qualquer ligação efetiva com o território municipal, ainda que sejam relevantes para a previsão geral do IRC.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O Tribunal Arbitral, composto pelos árbitros Fernando Araújo (presidente), Jorge Bacelar Gouveia (adjunto relator) e João Pedro Rodrigues (adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e constituído em 4 de fevereiro de 2025, acorda no seguinte:

 

 

I.   RELATÓRIO

 

1. A..., CRL, com o número único de identificação de pessoa coletiva..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, adiante designada por “A...” ou “Requerente”, veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” ou “RJAT”) e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à anulação dos atos tributários de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), com referência aos períodos de tributação de 2021 e 2022, peticionando a declaração da ilegalidade (por indevida liquidação) da parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referente aos períodos de tributação de 2021 e 2022, no montante total de €936.855,76 (o qual é composto pelos montantes de €531.631,83 e de €405.223,93, referentes ao períodos de tributação de 2021 e 2022, respetivamente), além do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD, em 24 de novembro de 2024, em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificado, nessa data, à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), ora Requerida. 

 

3. O Conselho Deontológico da CAAD, em 16 de janeiro de 2024, procedeu à nomeação dos árbitros ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 3, al. a), e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, tendo estes comunicado, no prazo legalmente estipulado, a aceitação dos respetivos encargos. 

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico. 

 

5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 4 de fevereiro de 2025, com base no preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada, por Despacho, a Autoridade Tributária e Aduaneira, na pessoa da sua Diretora-Geral, para apresentar resposta. 

 

6. A Requerida apresentou a sua resposta em 6 de março de 2025, impugnando a pronúncia apresentada por razões de direito, entendendo não haver razão para qualquer invalidação dos atos tributários praticados. 

 

7. Na sequência de Despacho de 25 de março de 2025 que dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, estabelecendo prazo para alegações, só a Requerente apresentou alegações escritas, em 8 de abril de 2025.

 

 

II.           SANEAMENTO 

 

8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, em conformidade com o estabelecido na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro. 

 

9. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente patrocinadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. 

 

10. O processo não padece de vícios que o invalidem. 

 

11. Cumpre apreciar e decidir.

 

III.        DOS FACTOS

 

12. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão desta causa, após exame crítico da prova documental e testemunhal existente nos respetivos autos, fixa-se como segue, não tendo sido objeto de controvérsia:

 

A)  Factos Provados

 

13. A Requerente é sujeito passivo de IRC, segundo o disposto na al. a) do n.° 1 do art. 2.° do CIRC, estando enquadrada no regime geral. 

 

14. A A..., CRL, é uma instituição de crédito constituída sob a forma de cooperativa de responsabilidade limitada, sendo seu objeto social a concessão de crédito e a prática dos demais atos inerentes à atividade bancária.

 

15. A Requerente desenvolve a sua atividade na prática dos demais atos inerentes à atividade bancária, nos termos do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola (“RJCAM”) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de janeiro (2), dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis.

 

16. Quanto ao período de tributação de 2021, a Requerente submeteu, em 06.06.2022, a declaração de autoliquidação a que coube o n.º..., na qual declarou, no que à matéria em apreço nos presentes autos interessa, um lucro tributável de 36.178.459,78€ e uma derrama municipal no montante de 534.452,74€, conforme liquidação n.º 2022 ... de 28.07.2022.

 

17. Posteriormente, a Requerente submeteu, em 06.04.2023, a declaração de substituição de autoliquidação, a que coube o n.º..., na qual declarou, no que à matéria em apreço nos presentes autos interessa, um lucro tributável de 35.987.505,84€ e uma derrama municipal no montante de 531.631,83€, conforme liquidação n.º 2023 ... de 12.04.2023.

 

18. Quanto ao período de tributação de 2022, a Requerente submeteu, em 05.06.2023, a sua declaração de autoliquidação com o n.º..., na qual declarou, no que à matéria em apreço nos presentes autos interessa, um lucro tributável de 27.773.999,18€, e uma derrama municipal no montante de 410.714,76€, conforme demonstração de liquidação n.º 2023 ... de 04.07.2023.

 

19. Depois, a Requerente submeteu, em 29.05.2024, a sua declaração de substituição de autoliquidação com o n.º..., na qual declarou, no que à matéria em apreço nos presentes autos interessa, um lucro tributável de 27.402.689,81 € e, uma derrama municipal no montante de 405.223,93 €, conforme demonstração de liquidação n.º 2024..., de 03.06.2024.

 

20. A Requerente apresentou um pedido de Reclamação Graciosa (sob o n.º ...2024...), referente à anulação parcial das autoliquidações de IRC, referentes aos períodos de tributação de 2021 e de 2022, na parte respeitante à derrama municipal, por entender que este tributo não devia incidir sobre rendimentos gerados fora do território português.

 

21. A Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, datado de 27/08/2024, pela Informação n.º 195-AIR2/2024. XVI, tendo a decisão final sido comunicada à Requerente através do oficio nº ...-DJT/2024 de 27.08.2024.

 

22. Em consequência disso, foi emitido o ato de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2024... pelo Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), por delegação e subdelegação de competências, em 27.08.2024, contra os atos tributários de autoliquidação em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) relativamente aos períodos de tributação de 2021 e 2022 efetuada pela Requerente, mediante a entrega das Declarações Periódicas de Rendimentos Modelo 22 (DM22).

 

B)  Factos não provados

 

23. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C)  Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi invocado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

 

25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

 

26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos.

 

 

IV.         DO DIREITO

 

 

A)  A não incidência objetiva da derrama municipal sobre rendimentos obtidos no estrangeiro

 

 

27. A principal questão de direito que divide as partes é atinente à sujeição a derrama municipal dos rendimentos que o sujeito passivo obteve fora do território do município onde tem a sua sede fiscal. 

O Tribunal Arbitral entende que a Requerente tem razão, o que passa a fundamentar-se. 

 

28. O IRC é um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas em cuja relação jurídica o sujeito ativo é o Estado, mas tem um imposto acessório ou complementar, com raízes históricas, em que avulta uma conexa e diversa relação jurídica em que o sujeito ativo é o município. 

            Vem esse imposto a ser a “derrama municipal”, que constitui receita dos municípios, nos termos da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (“Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais”), afirmando-se no seu art. 14.º o seguinte, sob a epígrafe “Receitas municipais”: “Constituem receitas dos municípios: (…) c) O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º”.

 

 

 

             29. No tocante ao regime específico da derrama municipal, é de observar os dois primeiros números do art. 18.º daquele diploma, com a epígrafe “Derrama”:

 

- n.º 1: “1 – Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”;

- n.º 2: “2 – Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional”. 

 

30. A leitura cuidada da redação daquela disposição convence o Tribunal Arbitral de que está subjacente à derrama municipal, como imposto autónomo, ainda que conexo com o IRC, e aproveitando-se de parte do regime deste, um quadro normativo que só permite considerar como abrangidos na sua previsão normativa os rendimentos obtidos por atividades desenvolvidas no território municipal, e não no estrangeiro.

Esse entendimento, de resto, percebe-se da perspetiva de a derrama ser um imposto complementar, que se destina a sustentar a atividade do município no qual se encontra uma manifestação de riqueza que tal justifica, assim permitido custear as despesas inerentes ao seu funcionamento, embora fora do raciocínio dos conceitos de taxa ou de contribuições especiais. 

 

31. Nem se entenderia o contrário: se a derrama, que é um imposto que funciona sob a discricionariedade optativa – haver ou não haver – e configurativa – haver mais ou haver menos, dentro do limite legal que se admite na fixação da sua percentagem – tem essa raiz, jamais se vislumbraria como essa decisão poderia ser tomada levando em consideração rendimentos que não são auferidos no território municipal, e em relação aos quais o município tudo “desconhece”, pelo que nem conseguiria fazer o juízo adequado e proporcional próprio da decisão de fixar a derrama em cada ano fiscal.  

 Além do mais, a não ser assim, a derrama subverteria a sua própria justificação de base, porque estaria a tributar uma manifestação de riqueza que não acontece nos limites do território municipal, fazendo-se perder a essência local de tal tributo.

É o próprio diploma do regime financeiro autárquico que, no art, 18.º, incluiu como um dos elementos da estatuição a “territorialidade municipal” dos rendimentos obtidos, o que, afora quanto se disse, bastaria para aquela conclusão.

E este entendimento sai reforçado quando, no art. 18.º, n.º 2, se refere a pluralidade de rendimentos do ponto de vista da haver mais do que um território municipal, nunca se falando sequer em rendimentos obtidos no estrangeiro.   

 

         32. Julga-se que se pode abreviar a fundamentação da presente decisão, invocando-se os princípios da justiça arbitral, porque se adere a vasta e uniforme jurisprudência que tem sido produzida no CAAD, sendo de recordar os processos n.ºs 917/2024, 946/2024, 947/2024, 969/2024, 1111/2024, 1130/2024 e 1156/2024. 

         Havendo opiniões divergentes na referida jurisprudência, seguimos, contudo, o entendimento largamente dominante.

  

B)  Juros indemnizatórios

 

33. O Requerente pede também a condenação da Requerente no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “…é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, tal implicando o pagamento de juros indemnizatórios segundo os arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT. 

 

34. Tendo havido o pagamento de um valor de IRS que, afinal, não era devido em face de um erro de Direito na respetiva liquidação atribuível à Requerida, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios a cargo da Requerida. 

 

V.            DECISÃO

 

35. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

a)  Condenar a Requerida no pedido, anulando a tributação das derramas municipais que foram autoliquidadas pelo Requerente, com o consequente reembolso dos valores indevidamente pagos, acrescidos do pagamento de juros indemnizatórios até à execução da decisão arbitral;

b)  Condenar a Requerida no pagamento das custas.

 

VI.         VALOR DO PROCESSO

 

36. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e art. 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de € 936.855,76 (novecentos e trinta e seis mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos), correspondente ao valor dos impostos que o Requerente considera como tendo sido indevidamente liquidados, o qual é o valor do pedido de pronúncia arbitral, não tendo o mesmo sido objeto de contestação.

 

VII.      CUSTAS

 

37. Custas a cargo da Requerida, de acordo com o art. 12.º, n.º 2, do RJAT, do art. 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 13.158,00 (treze mil, cento e cinquenta e oito euros).

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de setembro de 2025.

 

Árbitro Presidente

 

Fernando Araújo

 

Árbitro Relator

 

Jorge Bacelar Gouveia

 

Árbitro Vogal

 

 

João Pedro Rodrigues