DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 20 de janeiro de 2025, o contribuinte A..., com o número de identificação fiscal n.º ..., residente em Rua ..., n.º..., Gafanha da Nazaré, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e juros indemnizatórios, n.º 2023..., relativa ao ano de 2019, no valor de € 7.558,08, acrescido dos juros indemnizatórios.
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No dia 20-01-2025, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 07-03-2025, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 25-03-2025.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e a apresentação de alegações.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir decisão.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- O Requerente, durante o ano de 2019, prestou a atividade profissional de marinheiro de primeira classe, ao abrigo de um contrato individual de trabalho ao serviço da entidade empregadora denominada B... A/S, com sede na Dinamarca (Doc. n.º 1 apresentado pelo Requerente).
2- A sociedade B... A/S encontrava-se abrangida pelo regime especial de tributação designado por “Tonnage Tax”, ao abrigo da lei dinamarquesa, conforme Doc. n.º 2 apresentado pelo Requerente).
3- O Requerente exerceu a sua atividade profissional a bordo do navio ..., durante o período de janeiro de 2018 a julho de 2020 (Doc. n.º 1 apresentado pelo Requerente).
4- A AT procedeu à liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., em 11 de novembro de 2023.
5- Na sequência daquela liquidação oficiosa, o Requerente apresentou, em 21-06-2024, um pedido de revisão oficiosa da liquidação.
6- Em 20-01-2025, o Requerente apresentou junto do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa o presente pedido de constituição de tribunal arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
B. DO DIREITO
1. Da legalidade da liquidação de IRS relativa ao ano de 2019
A questão a apreciar nos presentes autos é a de saber se o regime fiscal instituído pelo art.º 4º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, que institui o Regime do Registo de navios e embarcações simplificado e de determinação da matéria coletável é aplicável a um sujeito passivo que prestou atividade de marinheiro a bordo de uma embarcação registada na Dinamarca e explorada por uma entidade residente na Dinamarca.
O Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/2018, de 9 de Agosto, são relativos à introdução no ordenamento jurídico português da denominada “Taxa de Tonelagem” (“tonnage tax”).
Este diploma veio estabelecer um regime especial de determinação da matéria coletável, com base na tonelagem de navios (“tonnage tax”), um regime fiscal e contributivo próprio para a atividade marítima, assim como um registo de navios e embarcações simplificado.
Em especial, a “tonnage tax” isenta os tripulantes das embarcações elegíveis do pagamento de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) se estiverem a bordo pelo menos 90 dias num período de tributação.
Estabelece o artigo 4º do citado Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, o seguinte:
“1 -Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.
2 - Não obstante o disposto no número anterior, quando estejam em causa navios que efetuam serviços regulares de passageiros entre portos do Espaço Económico Europeu, só podem beneficiar do regime previsto no presente artigo os respetivos tripulantes que tenham nacionalidade de um Estado-Membro da União Europeia ou de um Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.
3 - A isenção prevista no número anterior está condicionada à permanência do tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias em cada período de tributação.
4 - O disposto no número anterior não prejudica o englobamento dos rendimentos isentos, para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 22.º do Código do IRS.”
Segue-se, no essencial, a fundamentação apresentada nos processos n.º 355/2023, de 23 de janeiro de 2024 e n.º 667/2023, de 24 de abril de 2024.
Na decisão arbitral proferida no processo n.º 667/2023, de 24 de abril de 2024, diz-se:
“Ora, nos termos do preâmbulo do DL 92/2018, que institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo de navios e embarcações simplificado ( designado por “tonnage tax”), refere-se que este regime visa «(…) promover a marinha mercante nacional, com vista a potenciar o alargamento do mercado português de transporte marítimo e o desenvolvimento dos portos nacionais e da indústria naval, a criação de emprego, a inovação e o aumento da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, com o consequente aumento da receita fiscal.»
Assim, nos termos do artigo 1.º do DL 92/2018, este regime «(…) institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo simplificado de navios e embarcações.»
No que respeita aos benefícios fiscais aplicáveis a tripulantes, o artigo 4.º, n.º 1, do DL 92/2018 determina que «Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.»
Contudo, o artigo 4.º, n.º 2, do DL 92/2018, clarifica que «(…) quando estejam em causa navios que efetuam serviços regulares de passageiros entre portos do Espaço Económico Europeu, só podem beneficiar do regime previsto no presente artigo os respetivos tripulantes que tenham nacionalidade de um Estado-Membro da União Europeia ou de um Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.». Nestes casos, a isenção fica condicionada à permanência do tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias em cada período de tributação, nos termos do n.º 3 da referida disposição legal.
Por sua vez, no preâmbulo destaca-se que «A criação de um regime fiscal especial («tonnage tax») para as empresas detentoras de navios que sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu e estejam afetos ao exercício da atividade de transporte marítimo de mercadorias e pessoas incide num aspeto essencial da decisão dos agentes económicos e incentiva de forma direta o investimento, potenciando o alargamento do mercado português de transporte marítimo, a inovação, a criação de emprego e o aumento da receita fiscal e da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, contribuindo igualmente para o aumento da competitividade do transporte marítimo europeu.
O regime fiscal proposto para os tripulantes e a fixação de uma taxa contributiva global reduzida visam incentivar o investimento e promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades para os jovens e fomentando a formação de um número suficiente de marítimos que obste à atual escassez de recursos humanos com as habilitações necessárias, devido em parte à inexistência de saídas profissionais.»
Importa, ainda, salientar que o artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018 explicita que o capítulo III (onde se insere o mencionado artigo 4.º) é aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações registados no registo convencional português ou num outro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.
Ora, conforme decorre dos factos assentes, o Requerente foi tripulante de um navio ou embarcação nos períodos de 2020 e 2021, tendo permanecido a bordo, em cada um daqueles períodos de tributação, pelo período igual ou superior a 90 dias, preenchendo, desta forma, os requisitos ínsitos no artigo 4.º, n.º 3, do DL 92/2018.
O navio ou embarcação, no qual o Requerente foi tripulante no referido período, é elegível para efeitos do regime de tonnage tax, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do DL 92/2018.
Por fim, a B..., nos períodos em referência, optou e encontrava-se abrangida pelo regime de tonnage tax dinamarquês.
Neste plano, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018, o artigo 4.º do DL 92/2018 é aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações registados no registo convencional português ou num outro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.
Neste sentido, e ao contrário do que alega a Requerida, da leitura conjugada do artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018 com o preâmbulo deste mesmo diploma, não resulta a obrigatoriedade de sujeição a imposto em Portugal, por parte das entidades responsáveis pelas atividades elegíveis.
Aliás, o preâmbulo do DL 92/2018 salienta que «O regime fiscal proposto para os tripulantes e a fixação de uma taxa contributiva global reduzida visam incentivar o investimento e promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades para os jovens e fomentando a formação de um número suficiente de marítimos que obste à atual escassez de recursos humanos com as habilitações necessárias, devido em parte à inexistência de saídas profissionais.» (sublinhado nosso)
Ou seja, no que ao regime fiscal especial para tripulantes diz respeito, o objetivo da sua aprovação foi o de promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades de trabalho, para os sujeitos passivos residentes em território nacional, independentemente de as entidades que exercem essas atividades se encontrarem, ou não, estabelecidas em Portugal ou serem aqui sujeitas a imposto.
Por outro lado, importa destacar que o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018, que prevê a isenção de IRS aplicável aos tripulantes, exige, apenas, que os navios ou embarcações se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável.
Deste modo, não especificando aquela disposição legal que as referidas entidades têm de ter exercido a opção pelo regime de tonnage tax português, o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018 deverá ser interpretado no sentido de o mesmo ser aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações que se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime de tonnage tax português ou por um outro regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.
Ademais, entende este Tribunal que a eventual condição da sujeição a imposto em Portugal, apenas deverá reporta-se às disposições relativas à fiscalidade da atividade de transporte marítimo (i.e., ao artigo 3.º do DL 92/2018) e não, também, aos benefícios fiscais e contributivos aplicáveis aos tripulantes. Ou seja, apenas a aplicação do artigo 3.º do DL 92/2018, referente ao regime especial de determinação da matéria coletável aplicável às atividades de transporte marítimo, está dependente de a pessoa coletiva se encontrar sujeita a imposto em Portugal e ter optado pelo regime de tonnage tax português aprovado pelo DL 92/2018.
Não vislumbramos, pelo exposto, qualquer violação dos princípios da legalidade ou da tipicidade.
Em conclusão, a atuação da AT subjacente à liquidação impugnada relativa ao ano de 2019 enferma de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de fato e de direito, com manifesta e errónea interpretação das regras aplicáveis do citado Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, em especial do artigo 4º, uma vez que os rendimentos obtidos pelo Requerente na Dinamarca, no ano de 2019, estavam isentos de IRS em Portugal.
2. Do pagamento de juros indemnizatórios
Relativamente ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, rege o artigo 43.º da LGT, nos termos de cujo número 1 se define que “1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
No presente caso, não foi apresentada impugnação judicial nem reclamação graciosa, mas pedido de revisão oficiosa, em 21 de junho de 2024.
Ora, a revisão oficiosa dos atos tributários é um instituto distinto do da reclamação graciosa e do da impugnação judicial, não podendo, pois, o presente caso, ser integrado no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas sim, na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, nos termos da qual são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
In casu, já decorreu mais de um ano desde que o pedido foi efetuado, pelo que são devidos juros indemnizatórios, contados desde o dia 21 de junho de 2025 até à data do integral reembolso do imposto pago indevidamente.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral de anulação do ato de liquidação de IRS e juros compensatório objeto do presente pedido de pronúncia arbitral;
b) Condenar a Requerida a restituir o montante indevidamente pago pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos supra definidos.
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 7.558,08 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de setembro de 2025
O Árbitro
(Amândio Silva)