Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 373/2014-T
Data da decisão: 2014-12-03  Selo  
Valor do pedido: € 12.910,50
Tema: IS – Verba 28.1 da TGIS – Terreno para construção
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

I.              Relatório

 

1.             A…, Lda., sociedade com sede no …, pessoa coletiva número …, requereu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 9 de maio de 2014, a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo a que corresponde o documento n.º 2014…, de 18 de março de 2014, no valor de €12.910,50 (doze mil, novecentos e dez euros e cinquenta cêntimos).

 

2.             A Requerente optou por não designar árbitro.

 

3.             O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 13 de maio de 2014 e automaticamente notificado à AT em 14 de maio de 2014.

 

4.             A Signatária foi designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro de tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT.

 

5.             A Signatária comunicou ao Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo, no prazo legal, nos termos do disposto no artigo 4.º do Código Deontológico do CAAD.

 

6.             As Partes foram notificadas da designação da Signatária, em 30 de junho de 2014, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) do RJAT, não se tendo oposto à mesma.

 

7.             O tribunal arbitral singular ficou, assim, regularmente constituído em 15 de julho de 2014, de acordo com o disposto na alínea c) do n.º1 do artigo 11.º do RJAT.

 

8.             A AT foi notificada, por despacho arbitral de 21 de julho de 2014, para apresentar resposta no prazo de 30 dias (prazo esse que, nos termos do artigo 17.º A do RJAT, se suspendeu durante as férias judiciais).

 

9.             A AT apresentou a sua resposta em 30 de setembro de 2014, tendo, igualmente, requerido a dispensa da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

10.         Por despacho arbitral de 9 de outubro de 2014, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre a dispensa daquela reunião, tendo a Requerente indicado, em 15 de outubro de 2014, não se opor a tal dispensa.

 

11.         O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do artigo 2.º n.º1 alínea a) do RJAT.

 

12.         As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

13.         O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

 

 

II.           Pedido da Requerente

 

14.         A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto do Selo n.º 2014…, de 18 de março de 2014, no valor de €12.910,50 (doze mil novecentos e dez euros e cinquenta cêntimos).

 

III.        Matéria de Facto:

 

15.         Com relevância para a apreciação do pedido da Requerente, são os seguintes os factos que se dão por provados, com base nos documentos juntos ao processo, e não contestados pela Requerida:

 

a.              A Requerente adquiriu, por escritura outorgada em 1 de fevereiro de 2012, o prédio urbano, composto de lote de terreno, destinado a construção, lote n.º …, sito no …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º ….

 

b.             O prédio urbano em questão encontra-se descrito na matriz como terreno para construção.

 

c.              O prédio tem o valor patrimonial tributário de €1.291.050,00 (um milhão, duzentos e noventa e um mil e cinquenta euros).

 

d.             Nos dados de avaliação constantes da caderneta predial, o prédio tem como “tipo de coeficiente de localização” habitação.

 

e.              Infere-se do processo que inexiste qualquer construção no prédio identificado.

 

f.                     A Requerente foi notificada do documento de cobrança referente à primeira prestação de Imposto do Selo (IS) referente à verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), do ano de 2013, com o n.º 2014 …, de 18.03.2014, no valor de €4.303,50.

 

g.             O documento de cobrança identificado na alínea anterior estabelece como valor total da coleta €12.910,50.

 

16.         Não existem, com relevância para o processo, outros factos que não se considerem provados.

 

17.         A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental indicada, junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas pela Requerida.

 

IV.        Matéria de Direito

 

18.         A Requerente considera, sucintamente, que a liquidação identificada é ilegal, na medida em que a verba 28.1 da TGIS não abrange terrenos para construção, pois estes não têm afetação habitacional:

 

19.         Indica que a verba 28.1 da TGIS (aditada pelo art.4º da Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro, e com a redação que esteve em vigor até 31 de dezembro de 2013) prescreve a sujeição a imposto dos “prédios com afetação habitacional”, e que o conceito de “prédio com afetação habitacional” não é densificado por qualquer dispositivo legal, tratando-se de um conceito indeterminado e original, cujo conteúdo se terá de definir por recurso ao seu sentido literal.

 

20.         Os “terrenos destinados a construção” são os situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para que tenha sido concedida licença ou autorização de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo (artigo 6º n.º3 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI)). Trata-se, portanto de prédios ainda sem construção definitiva (apenas dotados de licença de construção ou objeto de operação de loteamento).

 

21.         De onde se conclui que um terreno destinado a construção não tem no presente (e poderá não ter no futuro) uma afetação habitacional: tudo dependerá do que nele vier a ser construído, assim dependendo da sua aplicação ou afetação a um fim habitacional.

 

22.         Os trabalhos legislativos preparatórios que antecederam a aprovação da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, apontam no sentido de que a intenção do legislador foi tributar especificamente prédios com edifícios construídos - e não terrenos destinados a construção.

 

23.         Cita decisões proferidas no âmbito do próprio CAAD nos termos das quais se decide que “sendo o prédio urbano em questão um terreno para construção, o mesmo não cai no âmbito da norma de incidência objetiva da verba 28.1 da TGIS, o que fere de ilegalidade a liquidação objeto do presente processo arbitral (…)”.

 

24.         A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, alterou a redação da verba n.º 28.1 da TGIS. Mas como entrou em vigor em 1 de janeiro de 2014, não se aplica a um facto tributário ocorrido em 2013.

 

25.         A nova redação da verba 28.1 (a partir de 2014) não legitima uma interpretação extensiva da sua anterior redação (vigente a partir de outubro de 2012), que permita incluir nesta o que agora o legislador expressamente pretendeu.

 

26.         Agora, a norma refere expressamente o “prédio habitacional”, conceito que tem óbvias afinidades com o conceito de “prédio com afetação habitacional” e que esgotava o conteúdo da verba 28.1 de 2012. Mas refere, a mais, “o terreno para construção cuja edificação seja para habitação” e que não constava, explicita ou implicitamente, da norma anterior.

 

27.         É assim evidente que a nova norma (introduzida pela Lei n.º 83-C/2013 de 31 de dezembro) abrange algo que não constava da norma de 2012: os terrenos para construção. E se não constava, então é porque foi essa a vontade do legislador.

 

28.         Cita ainda jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, na qual se faz referência à alteração da redação na norma: “a que o legislador não atribuiu carácter interpretativo, nem nos parece que o tenha – apenas torna inequívoco para o futuro que os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação se encontram abrangidos no âmbito da verba 28.1(…), nada esclarecendo, porém, em relação às situações pretéritas (liquidações de 2012 e 2013), como a que está em causa nos presentes autos.”(…) “Conclui-se pois, (…) que, resultando do artigo 6º do Código do IMI uma clara distinção entre prédios urbanos ‘habitacionais’ e ‘terrenos para construção’, não podem estes ser considerados (…) ‘como prédios com afetação habitacional’ para efeitos do disposto na verba 28.1 (…) na sua redação originária”.

 

29.         Já a Requerida entente, em síntese, que se encontram preenchidos todos os requisitos para a aplicação, ao caso concreto, da verba 28.1 da TGIS sendo, consequentemente legal a liquidação notificada à Requerente:

 

30.         A título prévio, indica que o pedido de pronúncia arbitral tem por objeto a anulação da liquidação de Imposto do Selo identificada no pedido de pronúncia arbitral, no montante de €12.910,50, pese embora o ato em causa seja, efetivamente o documento de cobrança n.º 2014 …, no montante de €4.303,50, respeitante à 1.ªprestação - não podendo pois a apreciação do pedido extravasar este ato, devendo em consequência, as prestações subsequentes ser objeto de pedido autónomo.

 

31.         É entendimento da AT que o prédio sobre o qual recai a liquidação impugnada tem natureza jurídica de prédio com afetação habitacional, pelo que o ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral deve ser mantido, por consubstanciar correta interpretação da Verba 28 da TGIS, aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro.

 

32.         Na ausência de qualquer definição sobre os conceitos de prédio urbano, terreno para construção e afetação habitacional, em sede de IS, há que recorrer ao CIMI, na procura de uma definição que permita aferir da eventual sujeição a IS, de acordo com o previsto no artigo 67.º, n.º 2 do CIS na redação dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro.

 

33.         Nos termos da referida disposição legal, às matérias não reguladas no Código, respeitantes à verba n.º 28 da TGIS aplica-se subsidiariamente o disposto noCIMI.

 

34.         Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do CIMI que “prédio é toda a fração de território, abrangendo águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou coletiva e, em circunstâncias normais tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fração de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial”.

 

35.         Por sua vez, o artigo 6.º, n.º 1 do CIMI dispõe acerca das espécies de prédios urbanos existentes, integrando neste conceito os terrenos para construção, isto é os “terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações…”

 

36.         A noção de afetação do prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis, porquanto a avaliação do imóvel (finalidade) incorpora valor ao imóvel, constituindo um facto de distinção determinante (coeficiente) para efeitos de avaliação.

 

37.         Conforme resulta da expressão “…valor das edificações autorizadas”, constante do artigo 45.º, n.º 2 do CIMI, o legislador optou por determinar a aplicação da metodologia de avaliação dos prédios em geral, à avaliação dos terrenos para construção, sendo-lhes por conseguinte aplicável o coeficiente de afetação previsto no artigo 41.º do CIMI.

 

38.         Assim, para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, é clara a aplicação do coeficiente de afetação em sede de avaliação, pelo que a sua consideração para efeitos de aplicação da verba 28 daTGIS não pode ser ignorada, porquanto:

 

a.              Na aplicação da lei aos casos concretos importa determinar o exato sentido e alcance da norma, de modo a que se revele a regra nela contida, condição indispensável para que possa ser aplicada, de acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Civil, ex vi artigo 11.º da Lei Geral Tributária;

 

b.             O artigo 67.º n.º 2 do CIS manda aplicar subsidiariamente o disposto no CIMI;

 

c.              A afetação do imóvel (aptidão ou finalidade) é um coeficiente que concorre para a avaliação do imóvel, na determinação do valor patrimonial tributário, aplicável aos terrenos para construção;

 

d.             A própria verba 28 TGIS remete para a expressão “prédios com afetação habitacional”, apelando a uma classificação que se sobrepõe às espécies previstas no n.º 1 do artigo 6.º do CIMI.

 

39.         A AT entende que o conceito de“prédios com afetação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS, compreende quer os prédios edificados quer os terrenos para construção, desde logo atendendo ao elemento literal da norma.

 

40.         O legislador não refere “prédios destinados a habitação”, tendo optado pela noção “afetação habitacional” - expressão diferente e mais ampla, cujo sentido há-de ser encontrado na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no artigo 6.º, n.º1 alínea a) do CIMI.

 

41.         A mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa, daí a regra constante do artigo 45.º do CIMI que manda separar as duas partes do terreno.

 

42.         No que diz respeito ao regime jurídico da urbanização e edificação, é de salientar que o mesmo tem como pressuposto as edificações já construídas.

 

43.         Não se podendo ignorar que o alvará de licença para a realização de operações urbanísticas deverá conter, entre outros elementos, o número de lotes e a indicação da área de localização, finalidade, área de implantação, área de construção, número de pisos de número de fogos de cada um dos lotes, com especificação dos fogos destinados a habitações a custos controlados, quando previstos, nos termos da alínea a) do artigo 77.º do RJUE;

 

44.         E ainda que o artigo 77.º do RJUE contém especificações obrigatórias, desde logo para os alvarás de operação de loteamento ou obras de urbanização, e para as obras de construção.

 

45.         Também os Planos Diretores Municipais estabelecem a estratégia de desenvolvimento municipal, a política municipal de ordenamento do território e de urbanismo e as demais políticas urbanas. Integra e articula as orientações estabelecidas pelos instrumentos de gestão territorial de âmbito nacional e regional e estabelece o modelo de organização espacial do território municipal.

 

46.         Nestes termos, muito antes da efetiva edificação do prédio, é possível apurar e determinar a afetação do terreno para construção.

 

47.         A Requerida propugna ainda pela constitucionalidade da norma em apreço, referindo, entre outros, tratar-se de uma norma geral e abstrata, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se verifiquem os pressupostos de facto e de direito, e que procura buscar um máximo de eficácia quanto ao objetivo a atingir, com o mínimo de lesão para outros interesses considerados relevantes.

 

V.           Questões a decidir

 

48.         Considerando os factos e a matéria de direito constantes do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, bem como da resposta da Requerida, a questão a decidir por este tribunal arbitral é a de saber se terrenos para construção devem ser considerados, para efeitos de incidência de Imposto do Selo, quanto à verba 28.1 da TGIS, na redação da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, como prédios com afetação habitacional.

 

VI.        Apreciação

 

49.         A questão em apreço foi já objeto de apreciação diversas vezes, pelo Supremo Tribunal Administrativo (vejam-se, a título de exemplo, os recentes Acórdãos de 24/9 e 9/7 de 2014) e pela jurisprudência arbitral (designadamente no âmbito dos processos 42/2013-T, de 18/10/2013; 48/2013-T, de 09/10/2013; 49/2013-T, de 18/09/2013; 53/2013-T, de 02/10/2013; 75/2013-T, de 01/11/2013; 144/2013-T, de 12/12/2013; 158/2013-T, de 10/02/2014; 308/2013-T, de 28/04/2014; 310/2013, de 22/04/2014 e 202/2014-T, de 16/10/2014).

 

50.         A jurisprudência citada decidiu, em todos os casos, contra o entendimento da Requerida, decisões que, se indica desde já, este tribunal arbitral acompanha, conforme se detalhará.

 

51.         Para a apreciação da questão em causa importa, antes de mais, analisar o artigo 4º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que aditou à TGIS, anexa ao CIS, a verba nº 28, com a seguinte redação:

 

“28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

 

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

 

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.”

 

52.         O texto legislativo em apreço introduziu um conceito não utilizado em qualquer outra disposição tributária – o de prédio com afetação habitacional – nem definiu o mesmo.

 

53.         Para compreender o seu conteúdo, deverão assim ser compulsados os conceitos de prédio constantes do CIMI (artigos 2.º a 6.º) – ao abrigo do disposto no artigo 67.º, n.º 2 do CIS, segundo o qual, às matérias não reguladas no CIS respeitantes à verba n.º 28 da TGIS, se aplica subsidiariamente o disposto no CIMI.

 

54.         E tal interpretação deverá ser sempre realizada nos termos do disposto nos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil, para o qual aquele remete.

 

55.         O artigo 11.º da LGT estabelece que:

 

1.             Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2.             Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.

3.             Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4.             As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica.

 

56.         Por sua vez, o artigo 9.º do Código Civil indica que:

 

1.             A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2.       Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3.       Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

57.         Da análise dos conceitos constantes dos indicados artigos do CIMI (2.º a 6.º), verifica-se não existir correspondência de qualquer um com aquele estabelecido na verba 28.1 da TGIS (prédio com afetação habitacional).

 

58.         De facto, o CIMI diferencia claramente os prédios habitacionais dos terrenos para construção. Os primeiros são classificados em função da respetiva licença autárquica ou, na sua falta, do seu uso normal, os segundos são definidos em função da sua potencialidade legal.

 

59.         O licenciamento ou o uso normal de um prédio cujo destino seja a habitação referem-se, naturalmente, a prédios edificados que reúnam as características exigíveis para tal licenciamento ou uso.

 

60.         Já o terreno para construção – independentemente da potencialidade de construção, ou do momento em que essa potencialidade é aferida, ao contrário do que refere a Requerida – não terá qualquer aptidão para ser licenciado para habitação, ou para se definir este fim como o seu destino normal.

 

61.         Ora, se a norma tributária em apreço não define, por si, o conceito de afetação habitacional, não é possível extrair, ao abrigo dos normativos supra citados, e sem mais, que no seu escopo caiba uma qualquer potencialidade futura de um edifício que venha a ser construído num terreno para construção – cabe apenas a efetiva edificação habitacional.

 

62.         E ao contrário do que alega a Requerida, não se pode interpretar a norma no sentido de afirmar que a opção do legislador com a expressão “afetação habitacional” tenha sido a de se sobrepor às espécies contidas no artigo 6.º do CIMI.

 

63.         As regras sob as quais o intérprete deve prosseguir a atividade de interpretação de normas legais, tal como supra detalhadas, não conferem qualquer apoio legal a tal interpretação.

 

64.         Se tal fosse a opção do legislador, este haveria, certamente indicado expressamente a mesma.

 

65.         Ora, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento de forma adequada, encontramos, pelo contrário, uma remissão expressa para os conceitos constantes do CIMI (o que a própria Requerida reconhece), e não para outras realidades nos mesmos não contidas.

 

66.         Adicionalmente, também não concorda este tribunal arbitral com o entendimento da Requerida, segundo o qual o significado de afetação habitacional se deva extrair do disposto no artigo 45.º do CIMI.

 

67.         O artigo 45.º do CIMI reporta-se às regras aplicáveis na determinação do valor patrimonial dos terrenos para construção, estabelecendo que este é o que resulta do valor da área de implantação do edifício a construir adicionado do terreno adjacente à implantação. Na fixação do valor daquela área, considera-se uma percentagem, variável entre 15% e 45%, do valor das edificações autorizadas ou previstas.

 

68.         Refere a Requerida que nessa fixação de valor são utilizados os coeficientes aplicáveis na determinação do valor patrimonial tributário, designadamente o coeficiente de afetação “habitação”, e que tal deverá ser, também, um elemento determinante para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS em apreço.

 

69.         Por cabalmente esclarecedor deste ponto, cite-se o disposto no Acórdão do STA de 9 de julho de 2014, com o qual se concorda na íntegra:

 

“O facto de se poder considerar que na determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos classificados como terrenos para construção se deve levar em conta a afetação que terá a edificação para ele autorizada ou prevista para determinação do respetivo valor da área de implantação (cfr. os n.ºs 1 e 2 do artigo 45.º do CIMI) não determina que os terrenos para construção possam ser classificados como “prédios com afetação habitacional”, porquanto a afetação habitacional surge sempre no Código do IMI referida a “edifícios” ou “construções”, existentes, autorizados ou previstos, porquanto apenas estes podem ser habitados, o que não sucede no caso dos terrenos para construção, que não têm, em si mesmos, condições para tal, não sendo suscetíveis de serem utilizados para habitação senão se e quando neles for edificada a construção para eles autorizada e prevista (mas nesse caso não serão já “terrenos para construção” mas outra espécie de prédios urbanos – “habitacionais”, “comerciais, industriais ou para serviços” ou “outros” – artigo 6.º do CIMI).

 

Estranho seria, aliás, que a determinação do âmbito da norma de incidência tributária da verba n.º 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo se encontrasse, ao fim e ao cabo, nas normas de determinação do valor patrimonial tributário do Código do IMI, e que a imprecisão terminológica do legislador na redação daquela regra fosse, afinal, elucidada e finalmente esclarecida por via de uma remissão, indireta e equívoca, para o coeficiente de afetação estabelecido pelo legislador em relação a prédios edificados (artigo 41.º do Código do IMI).”

 

70.         Refira-se ainda que a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, veio alterar a redação da norma em questão, passando a verba 28.1 da TGIS a dispor: “por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação”.

 

71.         É entendimento deste tribunal arbitral que a nova norma apenas dispõe para o futuro (a partir de 1 de janeiro de 2014), e que não se poderia – se fosse o caso - retirar da mesma qualquer caráter interpretativo da redação até então vigente e ora em apreço.

 

72.         Se houvesse uma pretensão de conferir natureza interpretativa à norma, tal teria sido expressamente indicado pelo legislador.

 

73.         A prática jurisprudencial tem sido unânime, constante e pacífica quanto ao entendimento a conferir à norma em questão, pelo que, na verdade, nem existia norma que necessitasse de interpretação autêntica.

 

74.         Assim, o legislador, com a alteração introduzida em 2013, veio apenas claramente incluir uma nova realidade a sujeitar à verba 28.1 da TGIS, para além dos prédios manifestamente habitacionais (os terrenos para construção, não constantes da redação anterior).

 

75.         Por fim, e no sentido de reforçar o entendimento que vem sendo delineado, procura-se ainda a reconstrução do pensamento legislativo que presidiu à aprovação da redação da verba 28.1 da TGIS em 2012:

 

76.         Por um lado, da exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 96/XII – 2.ª, de 21/09/2012 (a qual originou a já citada Lei n.º 55-A/2012), não decorre qualquer elemento que permita esclarecer o conceito de prédio com afetação habitacional.

 

77.         Por outro lado, e como constante do Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 9/XII, 2.ª sessão legislativa, de 11 de outubro de 2012, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresentou esta inovação legislativa nos seguintes termos:

 

“Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital e sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais.

 

Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.” (sublinhado nosso)

 

78.         Do exposto decorre que não é possível, e por força dos normativos legais citados, inferir que na expressão “prédios com afetação habitacional” possam ser subsumidos os terrenos para construção. Pelo contrário.

 

79.         A Requerida apresenta ainda argumentação no sentido de demonstrar que a norma em apreço não é violadora de qualquer preceito constitucional. No entanto, considerando que tal avaliação não foi objeto do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, não será, consequentemente, apreciado pelo tribunal arbitral, por extravasar o pedido.

 

80.         A Requerida indica, igualmente, conforme estabelecido no parágrafo 30. supra, que a apreciação do pedido não poderá extravasar o ato de cobrança da primeira prestação, devendo em consequência, as prestações subsequentes ser objeto de pedido autónomo.

 

81.         Nos termos do disposto nos artigos 23.º n.º7 e 44.º n.º5 do CIS, à liquidação e pagamento do imposto a que se refere a verba 28 da TGIS, serão aplicáveis os termos da liquidação e pagamento de imposto constantes do CIMI.

 

82.         De acordo com o artigo 113.º do CIMI, o imposto é liquidado anualmente, nos meses de fevereiro e março do ano seguinte àquele a que o imposto respeita, e será pago (cfr. artigo 120.º n.º1 alínea a) do CIMI) em três prestações quando o seu montante for superior a €500,00.

 

83.         A Requerente apresenta com o seu pedido a nota de liquidação do imposto a que se refere a verba 28 da TGIS, a qual contém, igualmente, os dados para cobrança da primeira prestação, em cumprimento da norma supra indicada.

 

84.         Refira-se, aliás, que o próprio documento emitido pela AT contém a indicação de que “poderá reclamar ou impugnar a liquidação nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 70.º e 102.º do CPPT” (sublinhado nosso).

 

85.         É através do documento identificado que a Requerente tem, pela primeira vez, conhecimento da coleta.

 

86.         Pelo que será, assim, o documento adequado a ser objeto de impugnação ou reclamação, pela totalidade do valor da coleta.

 

87.         As prestações em que o imposto deverá ser pago decorrem, necessariamente, desse valor assim determinado e informado ao contribuinte.

 

88.         Ora, impor à Requerente a impugnação autónoma de cada prestação não é, no entendimento deste tribunal arbitral, compatível com os princípios da proporcionalidade, justiça e celeridade, constantes do artigo 55.º da LGT, ou com o princípio da eficiência.

 

89.         Determinada a ilegalidade da liquidação do imposto aplicado ao caso concreto, deverão ser também, subsequentemente, anuladas todas as notas de cobrança emitidas ao abrigo de tal liquidação.

 

VII.     Decisão

 

Nestes termos, e com base nos fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação da liquidação de imposto do selo da verba 28 da TGIS, no valor de €12.910,50 e notas de cobrança ao abrigo da mesma emitidas.

 

Valor do processo: €12.910,50 (doze mil, novecentos e dez euros e cinquenta cêntimos)

 

Custas: Ao abrigo do disposto no artigo 22.º do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas em €918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 3 de dezembro de 2014

 

O árbitro

 

Ana Pedrosa Augusto