SUMÁRIO:
I. Conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o Direito da União Europeia opõe-se a uma legislação nacional que tributa os rendimentos derivados de prestações de serviços realizadas por entidades residentes (para efeitos fiscais) noutro Estado-membro, sem dar a possibilidade de deduzir os custos diretamente relacionados com a obtenção desses rendimentos, quando tal tributação pelo rendimento líquido é conferida aos sujeitos passivos de IRC residentes (para efeitos fiscais) em Portugal.
II. Integram o conceito de prestação de serviços as operações de locação operacional e financeira em que o locador é uma entidade residente (para efeitos fiscais) na Irlanda, pelo que a incidência da retenção na fonte sobre o valor bruto das rendas recebidas é contrária às liberdades de prestação de serviços e circulação de capitais, previstas nos artigos 56.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), respetivamente.
III. Estando em causa rendimentos derivados da locação financeira e operacional obtidos
por residentes (para efeitos fiscais) na União Europeia, a lei interna prevê a possibilidade de dedução dos encargos diretamente relacionados com a sua obtenção, como resulta do disposto no artigo 94.º, n.º 8, do CIRC, o qual remete para o disposto no artigo 71.º, n.os 8 a 11, do CIRS.
IV. No caso de rendas derivadas da locação financeira, deve deduzir-se a parte correspondente ao capital; no caso de rendas derivadas da locação operacional, devem deduzir-se os gastos derivados da depreciação do ativo. Devem ainda ser deduzidos outros encargos (comprovados) que estejam diretamente relacionados com os rendimentos obtidos em território português.
V. Tendo o sujeito passivo sofrido tributação por retenção na fonte sobre o valor (bruto) das rendas de locação recebidas, a liquidação de IRC deve considerar uma tributação em consonância com o disposto no artigo 94.º, n.º 8, do CIRC.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha, Dra. Sónia Fernandes Martins e Dra. Filipa Barros, designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo no processo identificado em epígrafe, decidem o seguinte:
I. RELATÓRIO
A.... (doravante “Requerente”), constituída e a operar na Irlanda, com sede em ..., ..., Irlanda, titular dos números de identificação fiscal irlandês ... e português ..., estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa 3, veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março (“Portaria de Vinculação”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”), na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou contra atos de retenção na fonte, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), referentes ao exercício de 2020, pretendendo obter a declaração de ilegalidade e consequente anulação da referida decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, a declaração de ilegalidade das liquidações de imposto por retenção na fonte, ocorridas em 2020, que geraram IRC no valor de € 795.188.56.
No PPA, a Requerente peticionou o seguinte:
i) A apreciação da ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa, datada de 8 de outubro de 2024 e notificada à Requerente a 14 de outubro de 2024;
ii) A declaração de ilegalidade e anulação dos atos de retenção na fonte em sede de IRC, incidentes sobre a prestação de serviços de locação financeira e operacional, relativos ao exercício de 2020, com a consequente restituição da importância indevidamente retida no valor de € 795.188,56, por excesso de base de incidência;
iii) A condenação da AT na restituição do imposto indevidamente suportado pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios em conformidade com o disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 6 de janeiro de 2025, tendo sido aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.°, e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.° do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros as signatárias desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 25 de fevereiro de 2025, as quais não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído desde 17 de março de 2025.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta a 2 de maio de 2025, tendo-se defendido por exceção, invocando a (i) incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria para determinar a anulação dos atos de retenção na fonte com base no apuramento do rendimento líquido por impossibilidade de apuramento do valor de imposto liquidado em excesso; (ii) incompetência do Tribunal Arbitral para ordenar a AT à prática de operações específicas de execução de julgados e (iii) por impugnação, defendendo a improcedência do PPA.
A Requerente apresentou resposta às exceções invocadas pela AT a 2 de junho de 2025, tendo ainda exercido o contraditório quanto à alegada insuficiência de prova apresentada nos autos para o cômputo da determinação da base tributável relativa às prestações de serviços realizadas em Portugal, tendo concluído pela improcedência dos argumentos aduzidos pela Requerida.
Por despacho de 23 de junho de 2025, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, tendo ambas as Partes deixado bem expressos os seus entendimentos quanto às questões de direito, o Tribunal Arbitral dispensou a produção de alegações. O Tribunal Arbitral concedeu à AT o prazo de 10 dias para, querendo, pronunciar-se sobre os documentos juntos pela Requerente a 2 de junho de 2025.
Por requerimento de 11 de julho de 2025, a Requerida exerceu o contraditório sobre os documentos apresentados pela Requerente, tendo concluído serem insuficientes os elementos de prova suscetíveis de demonstrar os valores invocados de retenção na fonte sofrida em Portugal e o montante das operações praticadas pela Requerente que respeitam e sejam diretamente subsumíveis na figura dos (i) contratos de locação financeira e nos (ii) contratos de locação operacional.
Em 18 de julho de 2025, a Requerente exerceu o contraditório em relação ao último articulado, tendo reiterado os argumentos apresentados em articulados anteriores.
O Tribunal Arbitral determinou a prolação da decisão arbitral até ao final do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
O PPA é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT, em conjugação com o disposto no artigo 88.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código do Procedimento Administrativo (doravante “CPA”).
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação).
A apreciação das exceções suscitada pela AT na resposta ao PPA será efetuada após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
III. POSIÇÃO DAS PARTES
Requerente
Quanto ao mérito da causa:
a) A Requerente é uma sociedade com sede na Irlanda que opera em Portugal na qualidade de entidade não residente, sem estabelecimento estável, prestando serviços a clientes portugueses que consistem na locação operacional e na locação financeira (leasing) de equipamentos informáticos;
b) No âmbito da prestação dos referidos serviços, a Requerente sofre retenções na fonte incidentes sobre o valor da faturação – traduzindo-se esta num rendimento bruto – a qual é efetuada pelos clientes portugueses na qualidade de substitutos tributários e por via da entrega obrigatória da declaração Modelo 30;
c) A entrega da Modelo 30 é uma obrigação declarativa que garante a correta comunicação dos rendimentos pagos a entidades não residentes em Portugal, dela constando a identificação da entidade não residente sujeita a retenção na fonte, a taxa aplicável, a base de incidência e o montante retido, conforme se encontra previsto na Portaria n.º 78/2020, de 20 de março de 2020, e na Portaria n.º 98/2021, de 5 de maio de 2021;
d) Em defesa da ilegalidade parcial das retenções na fonte de IRC, a Requerente sustenta existir um tratamento discriminatório conferido a empresas não residentes quando comparadas com empresas residentes em circunstâncias análogas, uma vez que, se aquelas faturações pertencessem a uma sociedade residente (para efeitos fiscais) em Portugal, a tributação em sede de IRC incidiria apenas sobre o rendimento líquido de encargos, nos termos dos artigos 94.º, n.º 8, do Código do IRC (“CIRC”), e 71.º n.os8 a 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”);
e) Em concreto, a Requerente é tributada por retenção na fonte a título definitivo sobre o rendimento bruto, o que, no seu entender, constitui uma discriminação contrária ao Direito da União Europeia, na medida em que se encontra impossibilitada de deduzir as despesas relacionadas com os rendimentos em causa;
f) Assim, em relação aos contratos de locação financeira, no montante faturado a título de prestações ou rendas estão incluídos valores correspondentes à amortização ou reembolso do capital que não possuem a natureza de rendimento, mas sim de compensação pelos encargos de aquisição dos equipamentos, devendo tal montante ser excluído de tributação na componente de reembolso de capital, pois uma entidade residente, prestando os mesmos serviços de locação junto de clientes portugueses, jamais veria incluído no cômputo do seu lucro tributável as parcelas respeitantes à amortização do capital adiantado para a compra do equipamento entregue ao cliente em locação financeira, concretizando a Requerente que, no caso dos autos, apenas € 763.664,68 dizem respeito a rendimento tributável (juros);
g) Em relação à locação operacional, cabe ao locador, contabilisticamente, o registo da depreciação dos respetivos bens, que constam no seu ativo e que são objeto de locação operacional, sendo que, no caso em apreço, tratando-se de computadores, é aplicável a taxa de 33,33%, nos termos do Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro de 2009, devendo ser considerado como dedução ao rendimento o gasto com a depreciação dos bens objeto de locação operacional, totalizando no caso em apreço o montante de € 1.343.316,55;
h) A Requerente refere ainda ter apurado custos de financiamento proporcionalmente imputáveis às suas operações de locação em Portugal, em 2020, que representam, na média dos 12 meses desse ano, 0,74% da operação;
i) Para a Requerente, a diferença de tratamento subjacente à percepção de rendimentos por prestadores de serviços de locação financeira e operacional residentes e sem estabelecimento estável em Portugal, quando comparado com o tratamento conferido aos mesmos prestadores de serviços residentes, consubstancia um tratamento discriminatório, com fundamento exclusivo no lugar da sua residência, em clara violação da liberdade de circulação de capitais constante do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), constituindo ainda uma violação à liberdade de prestação de serviços prevista no artigo 56.º do TFUE;
j) Refere ainda que, sendo residente fiscal na Irlanda, as retenções na fonte sofridas em Portugal não são objeto de neutralização ou de crédito de imposto, sendo, por conseguinte, o imposto suportado a título definitivo;
k) A Requerente invoca a favor da sua pretensão, designadamente, os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE”) nos seguintes processos: processo n.º C-290/04 (Caso FKP Scorpio), processo n.º C-334/02 (Caso Comissão vs. França), processo n.º C‑56/09 (Caso Emiliano Zanotti), processo n.º C-345/04 (Caso Centro Equestre da Lezíria Grande), processo n.º C‑387/11 (Caso Comissão vs. Bélgica), processo n.º C‑342/10 (Caso Comissão vs. Finlândia) e processo n.º C-18/15 (Caso Brisal), assim como os acórdãos arbitrais referentes à mesma questão e factualidade proferidos nos processos n.os1037/2023-T, 513/2023-T, e 866/2024-T;
l) Assim, apoiando-se na vasta jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), bem como em jurisprudência do CAAD, conclui pela inexistência de argumentos que possam justificar o tratamento discriminatório, considerando ser legalmente inadmissível sujeitar a tributação por retenção na fonte o valor da faturação bruta relativa aos contratos de locação financeira (sem a dedução da parcela correspondente ao reembolso de capital) e relativa aos contratos de locação operacional (sem a dedução dos gastos com depreciações), enquadramento que se aplica exclusivamente aos prestadores de serviços não residentes em Portugal;
m) A Requerente termina peticionando a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e dos subjacentes atos de retenção na fonte de IRC, com o consequente reembolso do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.
Quanto à matéria de exceção
a) Em 2 de junho de 2025, a Requerente apresentou requerimento a pronunciar-se sobre a exceção invocada pela Requerida quanto à alegada incompetência do Tribunal Arbitral para determinar a anulação dos atos de retenção na fonte com base no valor do rendimento líquido, bem como para ordenar à AT a prática de operações específicas de execução de julgados;
b) Segundo a Requerente, é incontroversa a competência do Tribunal Arbitral para conhecer de litígios nestas circunstâncias;
c) Começa então por se insurgir contra o facto de, por um lado, estar o contribuinte incumbido por lei de fazer liquidações em sede de IRC (cômputo do imposto), onde se incluem retenções na fonte sobre outros contribuintes (in casu, a Requerente), e de a estes mesmos contribuintes se negar legitimidade para obter decisão judicial, após apresentação de contas perante a AT, e subsequente recurso aos tribunais em reação à inércia ou oposição desta, sobre a mensuração de ilegalidades parciais imputadas às liquidações. Em consonância com o referido quadro normativo, se é da competência dos tribunais arbitrais anular liquidações por inteiro, tal competência terá igualmente de abarcar a anulação parcial de liquidações;
d) A Requerente defende que não pode o Tribunal Arbitral encontrar-se impedido de decidir sobre o valor a anular após terem sido dadas à contraparte (AT), quer em fase de instrução no âmbito da reclamação administrativa, quer em fase de impugnação em sede arbitral, toda a informação necessária ao recálculo do imposto implicado na contenda, pois tal não se compaginaria com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva. A este respeito, apresenta jurisprudência vária, no sentido em que não se verifica o vício de pronúncia indevida previsto na 1.ª parte, da alínea c), do artigo 28.º, n.º 1, do RJAT, quando o Tribunal Arbitral anula parcialmente o ato de liquidação, concretizando o quantum de imposto, e determina a devolução do imposto indevidamente pago, quantificando o montante do reembolso;
e) Nesta linha, conclui pela competência dos tribunais arbitrais para proferir decisões condenatórias nas situações em que, como a dos autos, o contribuinte solicite não só a anulação do ato tributário, mas também a devolução do montante do imposto pago em excesso, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios;
f) Ademais, faz notar que se encontra hoje consolidada na jurisprudência dos tribunais superiores a divisibilidade do ato tributário, considerando-se que a anulação parcial de um ato tributário insere-se nos poderes e função jurisdicional do Tribunal Arbitral, não constituindo interferência na área de competência da AT e, muito menos, podendo ser referenciado como um caso de inconstitucionalidade, alegação que a AT não explica, apenas suscita;
g) Assinala que a arbitragem é um meio de composição de litígios constitucionalmente previsto, decorrendo da lei de autorização legislativa em matéria de arbitragem que, enquanto meio processual alternativo à impugnação judicial, confere ao Tribunal Arbitral competência para apreciar se o imposto pré-existente foi ou não liquidado em excesso e anular, se for o caso, a liquidação em excesso.
Requerida
Quanto à matéria de exceção
a) A Requerida invoca como questão prévia a incompetência em razão da matéria do Tribunal Arbitral, porquanto a Requerente peticiona ao Tribunal Arbitral que proceda à quantificação, mediante um exercício meramente hipotético, da importância indevidamente retida na fonte a título de IRC, a qual deverá ser restituída acrescida de juros indemnizatórios;
b) Acresce que a Requerente formula, a título subsidiário, um pedido que consubstancia uma ordem para a AT levar a cabo concretas e específicas diretrizes de execução de uma eventual decisão de procedência da ação arbitral, decorrentes da execução de julgados, pedidos que não podem ser conhecidos no presente processo porquanto se encontram fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e da Portaria de Vinculação, ex vido artigo 4.º e 10.º do RJAT;
c) Para a AT, não se insere no âmbito das referidas competências a apreciação de pedidos de reconhecimento do direito formulado pela Requerente, na parte em que procede ao apuramento do IRC, caso fosse residente em Portugal, no montante de € 173.052,46, quantificando o imposto pago em excesso no montante de € 795.188,56 (= € 968.241,02 - € 173.052,46), acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios;
d) Com efeito, a definição dos atos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados previsto no artigo 146.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e nos artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), apresentando exemplos de acórdãos arbitrais, bem como jurisprudência dos tribunais administrativos na qual se preconiza semelhante entendimento;
e) Acrescenta que uma interpretação diversa da que propugna seria contrária à unidade da ordem jurídica, estando em violação dos princípios da certeza e da segurança jurídicas, sendo materialmente inconstitucional por violar o princípio da legalidade, o qual enforma toda a atividade administrativa, e o seu corolário da indisponibilidade do crédito tributário;
f) Invoca doutrina que dá primazia ao princípio da interpretação estrita da competência dos tribunais arbitrais, concluindo que o Tribunal Arbitral é competente para determinar a anulação dos atos de retenção na fonte referentes ao exercício de 2020. Contudo, extravasam as competências do Tribunal Arbitral os segmentos restantes do pedido por pressuporem a apreciação do pedido de reconhecimento do direito ao reembolso do imposto, de acordo com o valor quantificado pela Requerente, e, bem assim, do direito a juros indemnizatórios liquidados sobre esse montante e da definição dos termos em que deve ser executada a eventual decisão anulatória que vier a ser proferida.
Quanto à defesa por impugnação
a) Não se encontra demonstrado que os rendimentos obtidos em Portugal, que terão sido objeto das retenções na fonte efetuadas na data do seu pagamento pelos clientes da Requerente, foram declarados e tributados no Estado de residência (na Irlanda), e, se não o foram, ao abrigo de que legislação;
b) A AT desconhece se a Requerente acionou o crédito de imposto quanto ao imposto pago em Portugal (nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 23.º da Convenção celebrada entre Portugal e a Irlanda – “CDT”), tendo-lhe sido devolvido o valor da retenção de IRC que vem agora novamente solicitar ao Estado português;
c) Admitindo que os rendimentos obtidos pela Requerente foram tributados na Irlanda, coube certamente o reembolso do imposto pago em Portugal, ficando o presente pedido destituído de sentido, pois a CDT cumpriu a função de neutralizar o tratamento discriminatório resultante das disposições do CIRC. Da declaração de rendimentos apresentada não é possível retirar essa informação, cabendo apresentar uma confirmação, por parte da autoridade fiscal irlandesa, de que a Requerente declarou os rendimentos obtidos em Portugal e que não acionou o mecanismo de crédito de imposto previsto na CDT, e ainda que aquela declaração se encontrava vigente e consolidava a situação tributária da Requerente para aquele período de tributação de 2020;
d) A Requerente não veio demonstrar como apurou o montante de € 9.682.410,20 referente a rendimentos faturados a clientes residentes a título de locação financeira e operacional. Simplesmente, avançou com aquele valor (cfr. parágrafos 18.º, 22.º e seguintes do PPA), não tendo sido apresentada documentação contabilística que comprove tal valor;
e) Os contratos apresentados não correspondem ao montante total peticionado no caso concreto. Foram juntos alguns pagamentos de clientes residentes em Portugal, não sendo possível alcançar o montante de € 968.241,02, a título de retenções na fonte, não obstante ter junto as declarações Modelo 30 e a identificação das guias de pagamento do respetivo imposto. Da análise feita pela Requerida, baseada na informação que se pode retirar dos documentos apresentados pelos clientes (docs. 9 a 16 juntos aos autos), a Requerente não demonstra que o valor por si recebido foi objeto de retenção na fonte e que foi entregue nos cofres do Estado;
f) A Requerente apresenta o Relatório e Contas do Grupo para 2020 e não da Requerente;
g) Adicionalmente, não faz prova de que preste serviços de locação financeira. Pois, das amostras de contratos não consta a opção de compra do locado no final do contrato; por outro lado, as faturas não fazem alusão à amortização de capital e juros, referindo simplesmente, à semelhança dos demais contratos, que se tratam de “rendas”;
h) Os bens locados encontram-se sujeitos a depreciação pela Requerente (por aplicação das taxas de depreciação previstas na legislação portuguesa). Contudo, os registos contabilísticos não permitem apurar qual a taxa que terá sido praticada para efeitos de apuramento do resultado contabilístico e tributável declarado na Irlanda, o que levaria a uma duplicação na dedução dos gastos, sendo certo que, e tudo indica nesse sentido, estes contratos configuram locações operacionais;
i) Não há evidências que permitam qualificar parte dos contratos celebrados com clientes portugueses como locações financeiras. Ainda que a Requerente viesse a fazer tal prova, não existe informação nos autos que permita determinar o apuramento dos valores de faturação;
j) Em geral, não se encontram demonstrados os valores correspondentes aos gastos reconhecidos na contabilidade da Requerente relativos a depreciações de bens locados em Portugal, tal como não se encontra provada a alegada retenção na fonte de € 968.241,02, objeto de impugnação parcial (€ 795.188,56), por falta de apresentação de elementos, designadamente declarações Modelo 30 e guias de pagamento do correspondente imposto que perfaçam os valores peticionados;
k) Por outro lado, a AT nota que os valores apresentados nos autos referem-se ao Grupo: o Relatório e Contas de 2020 apresenta valores do Grupo e não da Requerente, o valor dos encargos com juros imputáveis à locação operacional e financeira em Portugal, calculado pela Requerente, numa base de imputação, quantificado em € 135.779,00, partiu de um valor total de € 18.348.558,46 (doc. n.º 6, pág.2, anexo ao PPA), que não traduz os encargos com juros incorridos pela Requerente, mas sim incorridos pelo Grupo de sociedades;
l) Em todo o caso, a Requerida alega que jamais poderia a AT efetuar a tributação pelo valor líquido, conforme pretendido, na medida em que não tem forma de saber quais as despesas efetivamente suportadas relativas aos rendimentos cuja retenção na fonte está aqui em discussão. Sendo que o ónus da prova recai sobre quem invoca os factos (n.º 1 do artigo 74.º da LGT) e a Requerente (que invocou os factos em apreço) não o logrou fazer;
m) Noutro plano, refere que a Requerente, ao pretender ser reembolsada do valor do imposto alegadamente pago em excesso, por via da retenção na fonte de IRC efetuada ao longo do ano de 2020, deveria ter apresentado, até ao final do ano de 2023, o necessário requerimento, nos termos dos n.os 10, 11 e 12 (os atuais n.os 11, 12 e 13) do artigo 71.º do CIRS, por remissão do n.º 8 do artigo 94.º do CIRC, o que não fez, tendo optado por apresentar reclamação graciosa, cuja decisão de indeferimento impugna.
IV. MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
Em face das posições das partes expressas nos articulados, bem como dos documentos integrantes do processo administrativo, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:
a) A Requerente é uma sociedade com sede na Irlanda (cfr. docs. n.os 2 e 3 anexos ao PPA), que obteve um número de identificação fiscal em Portugal (...) e aqui opera na qualidade de entidade não residente sem estabelecimento estável;
b) Os serviços que presta aos clientes portugueses consistem na locação operacional e na locação financeira de equipamentos informáticos (computadores) (cfr. doc. n.º 4 anexo ao PPA e docs. n.os 3 a 7 anexos ao requerimento de 2 de julho de 2025);
c) No exercício de 2020, no âmbito das locações operacionais e financeiras, a Requerente faturou aos clientes portugueses o montante de € 9.682.410,20, dos quais € 1.536.836,82 referentes a locação operacional e € 8.145.573,38 referentes a locação financeira (cfr. docs. n.os 5, 6 e 7 anexos ao PPA e docs. n.os 3 a 7 anexos ao requerimento de 2 de junho de 2025);
d) No exercício de 2020, a Requerente foi sujeita pelos clientes portugueses a retenção na fonte em Portugal sobre as faturações efetuadas no âmbito dos serviços de locação financeira e operacional de equipamentos informáticos (computadores), tendo incidido IRC sobre o valor bruto dessa faturação (€ 9.682.410,20), por retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 10%, no montante total de € 968.241,02 (conforme docs. n.os 6 e 7 anexos ao PPA);
e) Os rendimentos auferidos pela Requerente em Portugal, objeto de retenção na fonte, foram enquadrados pelos seus clientes como rendimentos derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico, como tal enquadráveis no disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 94.º do Código do IRC, e no n.º 3 do artigo 12.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e a Irlanda, com a consequente aplicação da retenção na fonte de IRC (em Portugal) à taxa de 10% prevista no n.º 2 do artigo 12.º dessa CDT;
f) No âmbito das suas operações, e relativamente aos rendimentos e retenções na fonte sofridas em Portugal, a Requerente apresentou lista completa dos seus clientes, números de identificação fiscal, exemplares de Modelos 30 com a decomposição dos clientes, rendimentos e retenções na fonte e, ainda, guias de pagamento das mesmas (cfr. docs. n.os 8 a 16 anexos ao PPA);
g) Da informação constante das declarações Modelo 30, relativa aos clientes portugueses (vide quadros 6, 7 e 8), encontra-se a identificação da entidade não residente sujeita a retenção na fonte, a taxa e a base de incidência da mesma, o tipo de rendimento e o montante retido, conforme previsto na Portaria n.º 78/2020, de 20 de março de 2020, e na Portaria n.º 98/2021, de 5 de maio de 2021 (cfr. docs. n.os 9, 10 e 11, e docs. n.os 12 a 16 anexos ao PPA);
h) No ano de 2020, fruto da destabilização causada pelo COVID-19, que implicou a impossibilidade temporária, na Irlanda, do Diretor Comercial da Requerente ter acesso ao escritório, foram implementadas medidas com impacto nas relações contratuais diretas com os clientes em todas as unidades de negócio da Requerente, situação que pode justificar o lapso na utilização da mesma minuta de contrato para as locações operacionais e financeiras, no caso dos clientes portugueses (as limitações no acesso ao locais de trabalho e as dificuldades de contacto entre clientes e empresas durante o período do COVID-19 são do conhecimento público). A justificação da Requerente, relativa ao lapso contratual, é consistente com o contexto vivido à data dos factos, estando em linha com a documentação apresentada nos autos, em particular doc. n.º 22, a págs. 7 a 9, anexo ao PPA, e docs. n.os 3 a 7 anexos ao requerimento de 2 de junho de 2025);
i) Não obstante a inexata formalização contratual, em termos operacionais, os contratos de locação financeira para os quais foi utilizada a minuta da locação operacional foram contabilizados e executados pelas partes enquanto locação financeira, com exercício da opção de compra a final pelo valor residual, videdesignadamente fatura referente ao contrato n.º... , com o descritivo de “compra de equipamento” e montante líquido de “€100,00” (cfr. docs. n.os 3 a 7 anexos ao requerimento de 2 de junho de 2025);
j) Os rendimentos auferidos em Portugal em resultado das referidas operações de locação não constituem rendimento líquido auferido pela Requerente, desde logo, porque parte da renda recebida na locação financeira constitui o reembolso de capital e, no caso da locação operacional, há custos imputáveis relativos à depreciação dos ativos dados em locação (facto alegado pela Requerente e não contestado pela Requerida);
k) No valor total recebido pela Requerente a título de rendas de locação financeira (€ 8.145.573,38), uma parcela, no montante de € 7.381.908,70, corresponde à amortização de capital e uma parcela, no montante de € 763.664,68, diz respeito a rendimento, ou seja, juro implícito na locação financeira (docs. n.os 6 e 7 anexos ao PPA);
l) No valor total recebido pela Requerente a título de rendas de locação operacional (€ 1.536.836,82), o valor das depreciações de equipamentos informáticos relativas ao ano de 2020 ascendeu a € 1.343.316,55 (cfr. docs. n.os6, 7, 22 e 23 anexos ao PPA);
m) A Requerente não abateu ao imposto de rendimento devido na Irlanda o valor das retenções na fonte sofridas em Portugal (cfr. docs. n.os 19 e 20 juntos com o PPA);
n) Existem vários números de identificação fiscal associados à Requerente, uma vez que a qualquer entidade obrigada a retenção na fonte lhe é permitido criar junto do sistema informático da AT um número de identificação fiscal português para reporte das retenções na fonte (conforme tabela exemplificativa apresentada por alguns clientes da Requerente, que realizaram retenções na fonte no âmbito das operações em causa, constante do ponto 29 do PPA);
o) Ao longo do procedimento administrativo, a Requerente facultou à AT os esclarecimentos e informação documental relativa aos rendimentos sujeitos a IRC em Portugal no ano de 2020 (facto ilustrado, designadamente, nas respostas da Requerente ao ofício da Direção de Finanças de Lisboa de 7 de março de 2022, e na comunicação emitida a 28 de julho de 2022, pelo Senhor Diretor de Serviços da Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, nos seguintes termos “Analisando o vosso pedido, bem como a identificação das guias de retenção na fonte conclui-se por uma efetiva quantidade de informação acima do normal.”) (cfr. processo administrativo);
p) Em 17 de dezembro de 2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as referidas retenções na fonte de IRC, no sentido de solicitar à AT a consideração do rendimento pelo valor líquido e consequente anulação parcial dessas retenções; (cfr. doc. n.º 1 anexo ao PPA);
q) Em 14 de outubro de 2024, por despacho do Diretor Adjunto da Direção de Finanças, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada (cfr. doc. n.º 1 anexo ao PPA);
r) Em 6 de janeiro de 2025, a Requerente apresentou junto do CAAD o presente PPA.
Factos não provados
Não se provou que os rendimentos de fonte portuguesa tenham representado para a Requerente custos de financiamento no montante de € 135.779,00.
Motivação da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de direito (cfr. artigo 596.º n.º 1 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi do artigo 29.º n.º 1, alínea e), do RJAT).
No requerimento apresentado a 11 de junho de 2025 (ponto 4), a AT vem invocar uma alteração de valores face aos indicados no PPA, que começa por considerar “não ser relevante”, não obstante extrair, como consequência probatória, “a falta de credibilidade dos valores apurados pela Requerente” no âmbito do processo em apreço. A AT preparou um quadro comparativo entre os valores do PPA e do requerimento de 2 de junho de 2025 para o exercício do contraditório (vide ponto 4 do requerimento de 11 de junho de 2025 apresentado pela Requerida), no qual identifica ligeiras diferenças, no total de rendimentos sujeitos a retenção na fonte, nos totais faturados em Portugal em contratos de locação financeira e em contratos de locação operacional, nos valores de amortização de capital na locação financeira, nos gastos com depreciações, entre outros.
Posteriormente, em sede de contraditório, a Requerente, no requerimento junto aos autos de 18 de julho de 2025, veio prestar os esclarecimentos que se transcrevem:
“importa lembrar a AT que o apuramento fatura-a-fatura foi a metodologia exigida pela própria AT na execução do julgado referente às retenções na fonte em 2021 (a decisão arbitral proferida no processo n.º 513/2023-T devolveu então à AT o poder de dirigir o apuramento dos valores finais a considerar, a cujo exercício a AT se tinha furtado na fase anterior da reclamação graciosa), o que aqui se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 74.º, n.º 2, da LGT, e que a aplicação desta metodologia mais fina (e muito mais trabalhosa, e que não é exigida a nenhuma entidade residente em Portugal, bancária ou de qualquer outro tipo), leva naturalmente a um somatório de valores diferente (embora com diferenças mínimas) do apurado com a metodologia Cliente a Cliente ou Contrato a Contrato, e que a AT aos comandos dessa execução de julgado referente ao ano de 2021 já procedeu ao reembolso do imposto em excesso justamente apurado com base na diferente metodologia de cálculo (relativamente à inicial) fatura a fatura, exigida pela AT (cfr. Doc. n.º 1 que aqui se junta).”
O Tribunal Arbitral acolhe a justificação da Requerente, atribuindo fiabilidade ao apuramento dos valores apresentados e aceitando que as diferenças detetadas (verdadeiramente imateriais) se encontram amparadas na forma de apuramento dos valores das operações pelo método de “cliente a cliente” (método utilizado pela Requerente no PPA) ou pelo método “fatura a fatura” (método fixado pela Requerida em sede de execução de julgados no âmbito do processo arbitral n.º 513/2023-T) e que veio a ser aplicado, em sede de contraditório, no requerimento de 2 de junho de 2025.
Resulta dos autos que, ao longo do procedimento administrativo, a Requerente pautou a sua atuação por uma atitude de transparência e total cooperação na disponibilização dos meios de prova necessários ao correto apuramento dos factos invocados. Com efeito, quer em sede administrativa, quer em sede de impugnação arbitral (seja no PPA, seja nos requerimentos subsequentes), a Requerente facultou um vasto número de documentos extraídos da sua contabilidade que espelham a realidade económica do negócio desenvolvido em Portugal. Sendo uma empresa que opera numa área geográfica muito mais vasta que Portugal, e representando o mercado nacional menos de 1% das suas operações, a Requerente veio juntar aos autos, não só informação relativa à atividade global (vide doc. n.º 22, Relatório e Contas de 2020, com o parecer do Auditor), como também informação autonomizada em relação à atividade do Grupo onde se insere, apresentando listas exaustivas dos locatários, clientes portugueses, constando das mesmas as denominações sociais completas das empresas devidamente identificadas, os valores das rendas cobradas, os valores das retenções na fonte sofridas e os números das guias de pagamentos.
Soma-se que foram apresentados factos atinentes à operacionalização da sua atividade, tendo a Requerente dado exemplos dos contratos “tipo” utilizados juntos dos seus clientes em Portugal no ano de 2020, identificando a natureza do contrato, o modo de execução até ao momento do seu terminus, o modelo de faturação utilizado de acordo com a natureza do contrato, as diferenças ao nível da respetiva contabilização, refletidas nas rubricas contabilísticas apresentadas.
No âmbito da extensíssima informação fornecida, a Requerente facultou guias de retenção na fonte e cópias de algumas declarações Modelo 30, bem como as listagens com a informação relativa às retenções na fonte levadas a cabo pelos clientes portugueses.
Não obstante o referido, a AT entende que a Requerente não cumpriu o ónus da prova que sobre si incumbia, não se encontrando demonstrado nos autos se obteve “rendimentos em Portugal resultantes de contratos de locação financeira e operacional assinados com sociedades residentes em Portugal, tendo alegadamente (porque não provado), tais rendimentos sido objeto de tributação, por retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 10%” estando ainda por demonstrar se “não foi acionado o crédito de imposto previsto na CDT quanto ao imposto suportado em Portugal”, nem demonstrados se encontram “os gastos que alega quando pretende que os rendimentos obtidos sejam tributados pelo valor líquido”.
Acontece que, no procedimento tributário, as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é imposto que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a AT de diligenciar no sentido de obtenção das provas necessárias para a adequada aplicação do direito. Note-se que as obrigações declarativas em causa e a liquidação do imposto, por retenção na fonte, não incumbem à Requerente, mas aos substitutos tributários.
Neste contexto, afigura-se manifesta a não observância por parte da AT do princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT, estabelecendo que “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”, em articulação com o dever de diligenciar no sentido da descoberta da verdade material,[1] deveres que se impõem sobre o órgão instrutor e que se situam a montante do ónus de prova, só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daqueles princípios, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.[2]
Sendo certo que as retenções na fonte efetuadas são obrigatoriamente reportadas à AT pelos clientes portugueses que operam essas retenções, e estando a informação relevante discriminada nos Quadros 7 e 8 da Modelo 30, bastaria para confirmação de tal informação ter oficiado os locatários (pelo menos alguns), tarefa que se encontra muito facilitada pelos dados fornecidos pela Requerente. Na verdade, e conforme resulta do processo administrativo, a AT limitou-se a solicitar à Requerente informação, sem nunca ter questionado analiticamente, nem a natureza das operações, nem o seu volume, nem tão-pouco a fiabilidade da prova que lhe foi fornecida.
Quanto às dúvidas colocadas em relação a rendimentos declarados e tributados na Irlanda (Estado da residência) e à neutralização por via do crédito de imposto pago em Portugal, bastaria à AT analisar a declaração de rendimentos junta aos autos (docs. n.ºs 19 e 20 anexos ao PPA). E se mais dúvidas houvesse, designadamente, quanto à hipótese aventada de se tratar de uma declaração de imposto provisória, poderia esclarecê-las, quer junto da Requerente – cujas declarações se presumem verdadeiras – quer ao abrigo dos deveres de assistência mútua previstos no Direito da União Europeia e na CDT celebrada entre Portugal e a Irlanda.[3] O que também não fez, pese embora a essencialidade de toda esta informação, segundo a perspetiva da Requerida.
Relativamente aos custos de financiamento a deduzir, não se considerou provado o respetivo quantitativo, porquanto resulta de uma imputação proporcional cujos pressupostos carecem de validação. Com efeito, analisado o Relatório e Contas da Requerente (doc. n.º 22 anexo ao PPA) resulta que os custos de financiamento não se encontram desagregados pelos mercados onde opera, incluindo Portugal.
V. MATÉRIA DE DIREITO
Questões decidendas
Conforme vimos, a questão decidenda consiste em determinar se, como pretende a Requerente, se verificam os pressupostos necessários para que seja declarada quer a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e das retenções na fonte em sede de IRC suportadas no exercício de 2020 – e que sejam consequentemente anuladas – nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, na medida em que padecem de um excesso que a Requerente computa no montante de € 795.188,56.
Com efeito, as faturações de locação financeira e operacional foram objeto de tributação final, por retenção na fonte em Portugal, à taxa de 10%, sobre o valor bruto dessas faturações, em contraste com o que se aplicaria nas mesmas circunstâncias se a faturação pertencesse a uma sociedade residente em Portugal, caso em que a tributação em sede de IRC incidiria apenas sobre o rendimento líquido de encargos.
Ora, a questão central a decidir respeita à compatibilidade com o Direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de circulação de capitais, consagradas respetivamente nos artigos 56.º e 63.º do TFUE, do regime de discriminação desfavorável aplicado às sociedades não residentes e sem estabelecimento estável, relativamente ao cômputo do lucro tributável nos contratos de locação financeira e operacional.
Esta matéria da tributação em sede de IRC, e das diferenças de tratamento entre entidades residentes e entidades não residentes que operam nessa qualidade noutro Estado-membro, tem sido objeto de profusa jurisprudência nacional e comunitária que, com as devidas adaptações, se tem pronunciado pela ilegalidade das liquidações com fundamento na desconformidade com o Direito da União Europeia, decisões que se seguirão de perto em obediência ao princípio geral consagrado no n.º 3, do artigo 8.º do Código Civil (“CC”).
No entanto, tendo a Requerida suscitado um tema de incompetência material, que constitui uma exceção dilatória suscetível de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal Arbitral apreciará primeiramente tal questão e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência da mesma, conhecerá dos vícios alegados pela Requerente suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação das referidas retenções na fonte (cfr. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).
Da incompetência material do Tribunal Arbitral
A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que, independentemente da ordem de arguição das questões, impõe-se a apreciação daquela previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do CPTA, ex vi da alínea c), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.
Acompanhando aqui a AT, a competência dos Tribunais Arbitrais em matéria tributária é regida, em primeiro lugar, pelo artigo 2.º do RJAT, que determina, no seu n.º 1, a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
Esta norma é complementada pela Portaria de Vinculação, a qual, no seu art.º 2.º, dispõe que os serviços e organismos referidos no artigo anterior (a AT) vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidas do recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.
Este recorte da jurisdição arbitral em razão da matéria corresponde, de um modo geral, às pretensões que são sindicáveis nos tribunais tributários por via da impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1, do CPPT.
Acrescenta o artigo 4.º do RJAT que a vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais depende da Portaria de Vinculação. E aqueles serviços e organismos vincularam-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais nos casos que tenham por objeto a apreciação das referidas pretensões, de valor não superior a € 10.000.000,00, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, o que abrange de forma inequívoca o IRC.
O fundamento invocado pela AT para sustentar a incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer diretamente da legalidade dos atos tributários respeita ao facto de não ter competência para determinar o rendimento líquido da Requerente, “na parte em que esta procede ao apuramento do IRC caso fosse residente em Portugal, no montante de € 173 052,46, e não aquela que alega ter sido paga através dos atos de retenção na fonte ora impugnados (€ 968 241,02) e quantifica o imposto pago em excesso em montante de € 795 188,56, (= € 968 241,02 - € 173 052,46) acrescidos dos correspondentes juros indemnizatórios”.
Assim, segundo a AT, o Tribunal Arbitral não tem competência para determinar a validade do cálculo do rendimento líquido apresentado pela Requerente, não podendo, consequentemente, condenar a AT ao pagamento da quantia pedida, pois tal implicaria a indicação expressa das operações tendentes à execução da decisão arbitral, indicadas no pedido subsidiário formulado pela Requerente.
O alegado pela AT é, contudo, improcedente pois, no caso, verifica-se que a Requerente peticiona ao Tribunal arbitral que declare “quer a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa, quer a ilegalidade das retenções na fonte de IRC suportadas no exercício de 2020 – e que sejam consequentemente anuladas –, nos termos do artigo 2.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, na medida em que padecem de um excesso que a Requerente computa no montante de € 795.188,56”.
Assim, e não obstante a invocação do montante de imposto que a Requerente considera liquidado em excesso por via de retenção na fonte, tal não afasta a impugnabilidade da liquidação de imposto subjacente a este pedido, na medida em que esta não configura uma mera liquidação corretiva, favorável ao interessado, mas sim um ato inovador de anulação praticado contra um conjunto de atos de liquidação de IRC, considerados lesivos, o que se enquadra na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e não se compreende em nenhuma das exceções estabelecidas no artigo 2.º da Portaria de Vinculação.
Acresce referir que a Requerente, ao apresentar a sua versão do quantum implicado na controvérsia arbitral, pedindo apenas a anulação de uma parte, mais não faz do que limitar a imputação dos vícios da liquidação de IRC ao valor que pretende ver anulado, sendo hoje incontroverso na jurisprudência dos tribunais superiores e na jurisprudência arbitral (na esteira da jurisprudência do STA), a divisibilidade do ato administrativo de liquidação. Neste sentido, veja-se o acórdão do STA de 02-12-2025, proferido no processo n.º 0754/15: “O Tribunal tributário, conhecendo em impugnação judicial de um ato administrativo de liquidação e da legalidade desse ato, tem o dever de, reconstituindo a situação lesiva, ordenar, se for caso disso, a sua modificação, pois só assim exerce a tutela judicial efetiva consagrada na CRP. III - A anulação parcial de tal ato insere-se nos poderes e na função judicial do Tribunal e não constitui interferência na área de competência da Administração Tributária”.
Termos em que a exceção dilatória suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a), da Portaria de Vinculação, as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação e/ou de retenção na fonte que sejam precedidos de reclamação graciosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e, bem assim, no artigo 2.º, alínea a), da Portaria de Vinculação.
Da violação do Direito da União Europeia
A Requerente invoca, no seu pedido, que, na qualidade de sociedade não residente e sem estabelecimento estável em Portugal, as suas faturações de locação financeira e de locação operacional foram objeto de tributação final, por retenção na fonte em Portugal, sobre o valor bruto dessas faturações, em contraste com o tratamento que se aplicaria nas mesmas circunstâncias se aquelas faturações pertencessem a uma sociedade residente em Portugal, caso em que a tributação em sede de IRC incidiria apenas sobre o rendimento líquido de encargos.
Assim, a questão a decidir no presente processo arbitral é a de saber se os atos de liquidação de IRC por retenção na fonte a título definitivo (ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 94.º do CIRC), ao incidirem sobre rendimentos brutos pagos por entidades residentes (clientes) à Requerente, e não sobre rendimentos líquidos, como aconteceria no caso de os mesmos rendimentos serem pagos a entidade residente, são ilegais, por violação do princípio da proibição de restrições à liberdade de prestação de serviços no mercado comum da União Europeia, consagrado no atual artigo 56.º do TFUE, e por violação do princípio da proibição de restrições à liberdade de circulação de capitais no mesmo mercado comum, estabelecido no atual artigo 63.º do mesmo Tratado.
Vejamos.
O artigo 56.º do TFUE consagra o princípio da proibição de restrições à liberdade de prestação de serviços na União Europeia, estipulando o seguinte:
“Artigo 56.º (ex-artigo 49.º TCE)
1. No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado-Membro que não seja o do destinatário da prestação.”
O artigo 63.º do mesmo Tratado estabelece, por sua vez, o princípio da proibição de restrições à liberdade de circulação de capitais, dispondo o seguinte:
“Artigo 63.º (ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
No caso sub judice, uma entidade residente na Irlanda e sem estabelecimento estável em Portugal realizou, com diversas entidades residentes, transações consistentes em locações financeiras e locações operacionais de equipamento informático.
Conforme resulta dos factos provados supra, a Requerente sofreu efetivamente retenção na fonte em Portugal, no ano de 2020, relativamente aos rendimentos derivados da locação financeira e operacional, no montante de € 968.241,02.
As operações de locação operacional constituem transações de serviços não financeiros, efetuadas entre entidades pertencentes a Estados-membros diferentes, aplicando-se-lhes o artigo 56.º do TFUE. Por sua vez, as operações de locação financeira possuem a natureza de transações mistas, integrando uma componente de locação (serviço não financeiro) e uma componente de financiamento (movimentos de capital), ficando assim abrangidas tanto pelo artigo 56.º como pelo artigo 63.º do TFUE.
Nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 94.º do CIRC, os rendimentos obtidos em Portugal por entidades não residentes “derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico” ficam sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa geral de 25%, conforme previsto no n.º 5 do mesmo artigo.
Ainda no caso sub judice, esta retenção foi efetuada sobre os rendimentos pagos à Requerente, tendo sido calculada, em todos os casos, sobre os rendimentos brutos, i.e. sobre a totalidade do preço pago pelos adquirentes dos serviços, enquadramento que, primeiramente, decorre da lei, tendo ainda assim merecido descrição, explicação e exemplificação na extensa informação fornecida pela Requerente.
Por efeito do disposto no artigo 12.º, n.º 3, da CDT celebrada entre Portugal e a Irlanda, os rendimentos derivados do contrato de locação, pagos por sociedades portuguesas a uma sociedade irlandesa, sem estabelecimento estável em território nacional, encontram-se sujeitos a tributação sob a forma de retenção na fonte sobre a totalidade do rendimento obtido em Portugal à taxa reduzida de 10%, ao invés de à taxa de 25% prevista no artigo 94.º, n.º 4, do CIRC (por remissão para o artigo 87.º, n.º 4, do mesmo Código). Foi esta (10%) a taxa aplicada sobre os rendimentos pagos à Requerente, incidente sobre o valor bruto das rendas pagas.
A Requerente alega, contudo, que o facto de o imposto ter sido liquidado sobre os rendimentos brutos, i.e. sem dedução dos gastos que lhes são imputáveis, constitui uma desigualdade de tratamento em relação às entidades residentes que efetuem as mesmas transações (as quais são tributadas, como se sabe, pelo “lucro tributável”, apurado nos termos do artigo 17.º do CIRC) e, nessa medida, tal procedimento constitui uma restrição à liberdade de prestação de serviços, incompatível com o artigo 56.º do TFUE, sendo que, no caso das locações financeiras, constitui igualmente uma restrição à livre circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do mesmo tratado.
O TJUE já se pronunciou por diversas vezes sobre a questão concreta que aqui nos ocupa, que é a de saber se, sendo aplicável o mecanismo da retenção de imposto na fonte sobre rendimentos pagos por uma entidade residente a uma entidade não residente, essa retenção deve ser efetuada sobre os rendimentos brutos ou sobre os rendimentos líquidos (ou seja, deduzidos dos gastos que lhes sejam imputáveis).
A primeira decisão foi tomada no Processo C-234/01 (Caso Gerritse). No seu acórdão, o TJUE resume a questão a julgamento da seguinte forma: “24. Assim, há que considerar que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se os artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (atual artigo 50.° CE) se opõem a uma legislação nacional, como a em causa no processo principal, que, regra geral, por um lado, toma em consideração, quando da tributação dos não residentes, os rendimentos brutos sem dedução das despesas profissionais quando os residentes são tributados sobre os seus rendimentos líquidos após dedução das suas despesas profissionais e, por outro, sujeita os rendimentos dos não residentes a um imposto definitivo à taxa uniforme de 25%, retido na fonte, quando os rendimentos dos residentes são tributados de acordo com uma tabela progressiva que inclui uma parte de base isenta”.
Quanto à primeira das questões formuladas, o TJUE respondeu da seguinte forma:
“27. A título preliminar, importa observar que as despesas profissionais em causa estão diretamente relacionadas com a atividade que esteve na origem dos rendimentos tributáveis na Alemanha, pelo que os residentes e os não residentes estão, sob este aspeto, em situação comparável.
28. Nestas condições, uma regulamentação nacional que recusa aos não residentes, em matéria de tributação, a dedução das despesas profissionais, ao invés concedida aos residentes, corre o risco de funcionar principalmente em detrimento dos nacionais de outros Estados-Membros e comporta, portanto, uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, em princípio contrária aos artigos 59.° e 60.° do Tratado”.[4]
Posteriormente, no processo C-290/04 (Caso FKP Scorpio), o TJUE reafirmou os mesmos princípios, tendo concluído o seguinte:
“43. No acórdão Gerritse, já referido, o Tribunal de Justiça começou por declarar que as despesas profissionais mencionadas no processo em causa estavam diretamente relacionadas com a atividade que produziu os rendimentos tributáveis, de modo que os residentes e os não residentes estavam a este respeito numa situação comparável. De seguida respondeu afirmativamente à questão prejudicial que lhe foi submetida, declarando que uma regulamentação nacional que recusa aos não residentes, em matéria de tributação, a dedução das despesas profissionais, concedida em contrapartida aos residentes, comporta uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, em princípio contrária aos artigos 59.º e 60.º do Tratado CE. O Tribunal de Justiça não se pronunciou, no entanto, sobre o ponto de saber em que fase do procedimento de tributação devem as despesas profissionais efetuadas por um prestador de serviços ser deduzidas, no caso de diferentes fases poderem entrar em linha de conta”.[5]
Finalmente, no contexto do Caso Brisal[6], o STA formulou perante o TJUE a seguinte questão prejudicial:
“O artigo 56.° do TFUE opõe‑se à legislação fiscal interna segundo a qual as instituições financeiras não residentes em território português estão sujeitas a imposto sobre o rendimento de juros auferidos nesse território e retido na fonte à taxa definitiva de 20% (ou a taxa menor caso exista convenção para evitar dupla tributação), taxa que incide sobre o rendimento ilíquido, sem possibilidade de dedução das despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade financeira exercida, ao passo que os juros auferidos por instituições financeiras residentes são incorporados no rendimento global tributável, procedendo‑se à dedução das despesas associadas à atividade exercida quando se determina o lucro para efeitos de tributação em IRC, incidindo, assim, a taxa geral de 25% sobre o rendimento de juros líquido?”.
Sobre a questão, respondeu o Tribunal de Justiça: “23. No que diz respeito ao segundo aspeto do pedido de decisão prejudicial, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou, quanto à tomada em consideração das despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade exercida, que os prestadores residentes e os prestadores não residentes se encontram numa situação comparável (v., neste sentido, acórdãos de 12 de junho de 2003, Gerritse, C‑234/01, EU:C:2003:340, n.° 27; de 6 de julho de 2006, Conijn, C‑346/04, EU:C:2006:445, n.° 20; e de 15 de fevereiro de 2007, Centro Equestre da Lezíria Grande, C‑345/04, EU:C:2007:96, n.° 23).
24.O Tribunal de Justiça concluiu que o artigo 49.° CE se opõe a uma legislação nacional que, regra geral, ao tributar os não residentes, toma em conta os rendimentos ilíquidos sem dedução das despesas profissionais, enquanto os residentes são tributados pelos seus rendimentos líquidos, após dedução dessas despesas (acórdãos de 12 de junho de 2003, Gerritse, C‑234/01, EU:C:2003:340, n.os 29 e 55; de 3 de outubro de 2006, FKP Scorpio Konzertproduktionen, C‑290/04, EU:C:2006:630, n.º 42; e de 15 de fevereiro de 2007, Centro Equestre da Lezíria Grande, C‑345/04, EU:C:2007:96, n.° 23).
25. No caso vertente, tendo em conta o argumento invocado, nomeadamente pela República Portuguesa, segundo o qual as prestações de serviços das instituições financeiras devem, à luz do princípio da livre prestação de serviços consagrado no artigo 49.º CE, em princípio, ser tratadas de maneira diferente das prestações de serviços noutros domínios de atividade, na medida em que não é possível fazer qualquer ligação característica entre os custos suportados e os rendimentos de juros obtidos, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se a jurisprudência referida no número anterior pode ser transposta para o processo principal.
26. A este respeito, há que precisar que o Tribunal de Justiça não distingue entre as diferentes categorias de prestações de serviços. Além disso, o artigo 49.º CE, lido em conjugação com o artigo 50.º CE, visa indistintamente todas as categorias de prestações de serviços enumeradas nesta última disposição. Apenas o artigo 51.º, n.º 2, CE dispõe que a liberalização dos serviços bancários ligados a movimentos de capitais se deve efetuar de harmonia com a liberalização da circulação dos capitais. Ora, as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de capitais não contêm nenhum elemento suscetível de corroborar a tese segundo a qual os serviços bancários devem ser tratados de maneira diferente das outras prestações de serviços pelo facto de ser impossível estabelecer qualquer ligação característica entre os custos suportados e os rendimentos de juros obtidos.
27.Por conseguinte, em princípio, as prestações de serviços efetuadas por instituições financeiras não podem, à luz do princípio da livre prestação de serviços consagrado no artigo 49.° CE, ser tratadas de maneira diferente das prestações de serviços noutros domínios de atividade.
28. Daqui decorre que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, por força da qual as instituições financeiras não residentes são tributadas pelos rendimentos de juros obtidos no interior do Estado‑membro em causa, sem lhes ser dada a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em causa, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes, constitui uma restrição à livre prestação de serviços, proibida, em princípio, por força do artigo 49.° CE.”(nosso sublinhado).
Por conseguinte, existe por parte do TJUE uma jurisprudência clara e inequívoca no sentido de que os Estados-membros devem providenciar, quer no plano legislativo quer no plano administrativo, pela possibilidade da retenção na fonte a título definitivo sobre os rendimentos pagos a não residentes incidir sobre rendimentos líquidos, i.e., sobre os rendimentos deduzidos dos gastos que lhe estão diretamente associados.
Ainda recentemente, o TJUE teve oportunidade de corroborar este seu entendimento no âmbito do processo C-782/22, de 7-11-2024 (Caso XX).
É certo que o TJUE salvaguarda a possibilidade de serem admissíveis as discriminações descritas no caso de o Estado-membro invocar e se verificarem razões imperiosas de interesse geral que as justifiquem, sendo que, nesse caso, é ainda necessário que a aplicação dessa restrição seja adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não exceda o necessário para o alcançar (Caso Brisal, parágrafo 29). A este respeito, o TJUE vem afastar enquanto razões válidas para justificar um tratamento fiscal desfavorável as seguintes circunstâncias: (i) as instituições financeiras não-residentes encontrarem-se sujeitas a uma taxa de tributação mais favorável do que a aplicada às instituições residentes; (ii) a necessidade de preservar a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-membros; (iii) a necessidade de evitar a dupla dedução das despesas profissionais em causa; (iv) a necessidade de garantir a eficácia da cobrança do imposto.
Consentaneamente com a jurisprudência do TJUE, o STA tem decidido no mesmo sentido casos idênticos que lhe têm sido submetidos para apreciação e julgamento. Recentemente, no âmbito do seu acórdão uniformizador de jurisprudência de 29-06-2022, proc. 08/21.2BALSB, estava em causa “a questão de saber se as instituições financeiras não residentes e sem estabelecimento estável no território português podem ser tributadas pelos rendimentos de capitais obtidos em Portugal através de retenção na fonte, a título definitivo, nos termos dos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, sem a possibilidade de deduzirem os encargos diretamente relacionadas com a sua actividade, ao contrário do que sucede com as entidades residentes relativamente às quais a tributação incide sobre o lucro tributável”.
O Tribunal entendeu que “a circunstância de a norma aplicada [art.º 80.º, n.º 2, al. c) do CIRC] não permitir deduzir as aludidas despesas, constitui discriminação incompatível com uma liberdade económica fundamental da União Europeia, da qual resulta a necessidade de desaplicar essa norma do CIRC e o dever, para a administração tributária portuguesa, de tributar apenas os rendimentos líquidos. E, por tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os atos de retenção de imposto na fonte”.[7]
Acresce referir que a mesma questão já foi julgada em sede arbitral, a respeito dos exercícios de 2017, 2021 e 2022, tendo os acórdãos arbitrais decidido pela anulação das retenções na fonte incidentes sobre o rendimento bruto resultante de operações de locação financeira e locação operacional em discussão, em linha com a jurisprudência supracitada, emanada pelos TJUE e pelo STA.[8]
Por outro lado, as operações de locação operacional e financeira são prestações de serviços para efeitos do artigo 56.º do TFUE, sendo que, no caso da locação financeira, ainda que fosse de qualificar como uma forma de financiamento, o TJUE foi claro no Caso Brisal no sentido de os financiamentos serem uma forma de prestação de serviços bancários.
Não pode, assim, atender-se ao argumento da Requerida de que estão em causa “royalties” e não serviços.
Por conseguinte, dúvidas não restam que a conclusão do TJUE é de que uma regra que imponha a incidência da retenção na fonte sobre a renda bruta recebida é incompatível com o TFUE.
Todavia, estando em causa rendimentos derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento, é crucial realçar que a própria lei interna prevê a possibilidade de o rendimento tributável para efeitos de IRC ser o respetivo valor líquido. Com efeito, o artigo 94.º do CIRC, que regula as regras de retenção na fonte, estipula no seu n.º 8 que “é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos n.os 8, 9, 10 e 11 do artigo 71.º do Código do IRS”.
Preceituam os n.os 8 e 9 (conforme numeração à data dos factos) da referida norma do Código do IRS o seguinte:
Artigo 71.º do CIRS
“8 - Os titulares de rendimentos referidos nas alíneas a) a d), f), m) e o) do n.º 1 do artigo 18.º sujeitos a retenção na fonte nos termos do presente artigo que sejam residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa em matéria fiscal equivalente à estabelecida na União Europeia, podem solicitar a devolução, total ou parcial, do imposto retido e pago na parte em que seja superior ao que resultaria da aplicação da tabela de taxas prevista no n.º 1 do artigo 68.º, tendo em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.
9 - Para os efeitos do disposto no número anterior, são dedutíveis até à concorrência dos rendimentos, os encargos devidamente comprovados necessários para a sua obtenção que estejam direta e exclusivamente relacionados com os rendimentos obtidos em território português ou, no caso dos rendimentos do trabalho dependente, as importâncias previstas no artigo 25.º”.
Ora, os rendimentos derivados do uso ou da concessão de uso de equipamento (locação) estão expressamente incluídos no artigo 18.º, n.º 1, alínea d), do CIRS, sendo, portanto, aplicável o disposto nos referidos n.os 8 e 9 do artigo 71.º, e, por sua vez, sendo aplicável a sujeitos passivos de IRC, por via da remissão do CIRC que se referiu.
Pelo que a lei fiscal portuguesa, no que respeita aos rendimentos em questão, prevê a possibilidade de imputação de encargos diretamente relacionados com a sua obtenção, não se podendo afirmar que ela seja discriminatória, até porque o citado n.º 9 prevê a equalização com a carga tributária das empresas residentes.
Embora no PPA a Requerente tenha enveredado por uma defesa baseada no facto de ter sofrido uma tributação discriminatória e contrária ao direito da União Europeia, a verdade é que a Requerente também invocou as referidas normas dos CIRC e CIRS, em sede de reclamação graciosa, tendo fornecido os elementos relativos às retenções na fonte sofridas, e procurado fazer o necessário exercício quanto aos custos imputáveis ao respetivo rendimento.
Com efeito, teria sido possível à AT, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa e em aplicação dos princípios do inquisitório, da colaboração e da descoberta da verdade material, realizar as diligências necessárias para determinar os gastos incorridos para a obtenção dos rendimentos em território português, ainda que para o efeito se tornasse necessário obter informação para além dos elementos de prova oferecidos pelo contribuinte, não esquecendo que a cobrança deste imposto, sendo por retenção na fonte, funciona através do instituto da substituição tributária.[9]
Desta forma, em sede de reclamação graciosa, a Requerida deveria ter agido em conformidade com o que dispõem as citadas normas dos CIRC e CIRS, anulando parcialmente as retenções na fonte sofridas.
Assim, deve ser julgado procedente o pedido de anulação das liquidações resultantes das retenções na fonte sofridas pela Requerente, devendo ser recalculada a base de incidência do imposto, na qual será dedutível ao valor do rendimento bruto o montante de € 7.381.908,70, correspondente à amortização de capital adiantado para aquisição do equipamento pela Requerente, no caso das rendas de locação financeira.
Com efeito, o princípio relativo à segregação no valor da renda das componentes (i) juro ou rendimento da locadora e (ii) amortização ou reembolso de capital decorre do tratamento contabilístico e, por consequência fiscal, constante da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 9, aplicável ex vi do artigo 17.º n.º 1, do CIRC. Assim, a tributação imposta sobre a Requerente, assente fundamentalmente sobre os lucros espelhados pela respetiva contabilidade, pode atingir apenas a parcela de rendimento – ou seja, os juros – e nunca a parcela de reembolso de capital.[10]
As mesmas considerações são aplicáveis, mutatis mutandis, ao nível da tributação dos rendimentos decorrentes dos contratos de locação operacional. Sendo o locador contabilisticamente tratado como o titular dos equipamentos, haverá que considerar, para efeitos de custos, o valor das depreciações aplicáveis aos equipamentos informativos (vide IFRS 16 e NCRF 9, nos parágrafos 27 para o locatário e 37 a 43 para o locador), de acordo com a taxa de amortização prevista na lei portuguesa de 33,33% ao ano (cfr. o código 2240 da Tabela II, anexo ao Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro de 2009).
Ora, conforme resulta do probatório, o total destas depreciações de equipamentos informáticos objeto de locação operacional a clientes portugueses, no ano de 2020 aqui em causa, ascendeu a € 1.343.316,55, sendo este um gasto indissociável dos serviços de locação operacional prestados pela Requerente.
A este respeito, sublinhe-se que os gastos supra invocados pela Requerente foram determinados a partir dos dados inscritos na sua contabilidade, a qual beneficia de uma presunção legal de veracidade (cfr. artigo 75.º da LGT) sempre que esteja organizada de acordo com as regras de normalização contabilística e demais disposições legais em vigor, não tendo a AT apresentado razões nos autos para fazer crer que a contabilidade da Requerente não espelha a verdade económica da empresa.
A AT deverá ainda tomar em consideração outros custos diretamente ligados à obtenção destes rendimentos, e que sejam invocados e demonstrados pela Requerente, não podendo, porém, o valor a reembolsar ser superior ao valor que é pedido pela Requerente, ou seja € 795.188,56, por força do disposto na alínea e), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
Por tudo o que vem exposto, o Tribunal Arbitral julga procedente o pedido de anulação dos atos de retenção na fonte de IRC a título definitivo, relativos ao ano de 2020, impugnados no presente processo, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada.
Dos juros indemnizatórios
Entende a Requerente que a procedência do PPA implica o reembolso do valor peticionado e o pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
No caso sub judice, os erros que afetam as retenções na fonte contestadas não são imputáveis à AT, visto que não foram por ela praticados. No entanto, o mesmo não sucede com o indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.
Conforme se pode ler no Acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18-01-2017: “[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”.
No que se refere ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o STA no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07-04-2021: “(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto (…) só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária”.
E, mais recentemente, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 078/22.6BALSB, de 28-05-2025: “A solução assenta nos fundamentos seguintes. Por um lado, a impugnação judicial das retenções na fonte em causa está sujeita à reclamação administrativa necessária (artigo 132.º/3 e 4, do CPPT). Por outro lado, a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios não depende apenas da prova do prejuízo do contribuinte; importa também que tais prejuízos, derivados de atuação pública ilegal, sejam imputáveis à Administração Fiscal. Tal nexo de imputabilidade em relação à Administração Fiscal apenas se verifica quando ocorre o indeferimento do meio administrativo impugnatório das retenções na fonte em apreço; ou seja, no caso em exame nos autos, em 11/01/2021, data da notificação do indeferimento da reclamação graciosa (alínea K, do probatório). É que, através da instauração do meio impugnatório gracioso, foi ativado o poder-dever da Administração Fiscal de, no quadro do exercício dos poderes revisivos do ato tributário, corrigir as retenções na fonte contestadas, conformando-as com o ordenamento jurídico da União Europeia. Poder-dever que, após 11/01/2021, se verifica que não foi exercido, ao invés do que devia ter sucedido (artigo 100.º/1, da LGT). Em face do exposto, impõe-se conceder provimento parcial ao recurso de uniformização de jurisprudência, no sentido seguinte: Perante a desaplicação de norma legal com fundamento na sua desconformidade com o Direito da União Europeia e perante a inerente anulação das retenções na fonte indevidas, por decisão judicial transitada em julgado, a consequente obrigação da AT de reconstituição da situação ex ante impõe, não apenas a restituição dos montantes indevidamente pagos a título de imposto retido, mas também o pagamento de juros indemnizatórios, computados desde a data do indeferimento, expresso ou tácito, do meio impugnatório administrativo intentado contra as retenções na fonte indevidas até à data do processamento da respectiva nota de crédito”.
No caso vertente, a Requerente apresentou pedido de reclamação graciosa contra as retenções na fonte contestadas em 17 de dezembro de 2021, tendo sido notificada do seu indeferimento a 14 de outubro de 2024.
Assim sendo, o Tribunal Arbitral determina que os juros indemnizatórios (sobre o valor a reembolsar) deverão ser contabilizados a partir de 15 de outubro de 2024 até ao integral reembolso do referido montante à Requerente (nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do CC e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril).
VI. DECISÃO
Em face dos fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o PPA, com as legais consequências:
· Declaração de ilegalidade e anulação das retenções na fonte impugnadas, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada;
· Restituição à Requerente do valor das retenções na fonte liquidado em excesso, a determinar em execução da presente decisão arbitral, considerando o montante de € 7.381.908,70 correspondente à amortização de capital a deduzir às rendas de locação financeira, bem como a importância de depreciações no valor de € 1.343.316,55, a deduzir às rendas de locação operacional, e demais custos diretamente ligados com a obtenção destes rendimentos, invocados e demonstrados pela Requerente, com o limite peticionado de € 795.188,56;
· Condenação da AT a pagar à Requerente os juros indemnizatórios calculados sobre o montante que vier a ser restituído à Requerente, contados desde 15 de outubro de 2024, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.
· Condenação da AT ao pagamento das custas arbitrais.
VALOR DO PROCESSO: Fixa-se o valor do processo em € 795.188,56 nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
CUSTAS: Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 11.322,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
CAAD, 12 de setembro de 2025
O Tribunal Arbitral,
Rita Correia da Cunha
(Presidente, com declaração de voto em anexo)
Sónia Fernandes Martins
(Árbitro Adjunto)
Filipa Barros
(Árbitro Adjunto – Relator)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não obstante acompanhar o sentido da decisão da maioria dos árbitros (procedência do pedido de pronúncia arbitral) e respetiva fundamentação, parece-me ser de referir a mais recente jurisprudência do TJUE relativa aos juros devidos sobre montantes de imposto pagos em violação do Direito da União Europeia.
Não há dúvida que a decisão da maioria do Tribunal Arbitral segue a jurisprudência do STA relativa aos juros indemnizatórios devidos, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sobre o montante retido na fonte que um sujeito passivo tenta reaver através de reclamação graciosa. Contudo, estando em causa juros devidos sobre montantes de imposto pagos em violação do Direito da União Europeia, é necessário atender aos princípios da equivalência e da efetividade, tal como interpretados pelo TJUE, o que significa que as condições em que os referidos juros são calculados e pagos “não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União” (cf. Acórdão do TJUE de 18-04-2013, proferido no processo n.º C-565/11, e outros nele citados).
Também não há dúvida de que compete ao Estado Português regular as condições em que tais juros devem ser pagos, e de que o disposto no artigo 43.º da LGT respeita o princípio da equivalência referido pelo TJUE (na medida em que as mesmas regras aplicam-se a reclamações baseadas em disposições de direito interno e a reclamações fundadas numa violação do direito da União Europeia).
Quanto ao princípio da efetividade, o TJUE já veio estabelecer que os juros devidos sobre montantes de imposto pagos em violação do direito da União Europeia contam desde o dia do pagamento até ao dia do reembolso (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafos 40-41; Acórdão de 18 de abril de 22, processos C-415/20, C-419/20 e C-427/20, Gräfendorfer, Reyher and Flexi Montagetechnik, parágrafos 75-77). Acresce que tais juros são devidos independentemente de culpa, servindo para compensar o contribuinte “pela indisponibilidade da quantia de dinheiro de que a pessoa em causa foi indevidamente privada” (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafo 38). Se, em termos gerais, o TJUE admite que os Estados-Membros podem limitar a atribuição de juros indemnizatórios, também exige que tais limitações sejam justificadas e proporcionais ao seu objetivo, em face do princípio da efetividade (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafo 39).
À luz desta jurisprudência, e não encontrando justificação para que os juros indemnizatórios sejam apenas devidos apenas após o indeferimento da reclamação graciosa, tendo a favorecer o pagamento de juros indemnizatórios desde a data em que foram efetuadas as retenções na fonte em violação do Direito da União Europeia.
Por último, note-se que esta solução não fere o princípio da equivalência supra referido, na medida que este apenas impõe que as condições de pagamento de juros devidos na sequência de reclamações baseadas no Direito Europeu não podem ser menos favoráveis do que as condições de pagamento de juros devidos na sequência de reclamações baseadas em disposições de direito interno, mas não impede o inverso (ou seja, que as condições de pagamento de juros devidos na sequência de reclamações baseadas no Direito Europeu sejam mais favoráveis do que as condições de pagamento de juros devidos na sequência de reclamações baseadas em disposições de direito interno).
Rita Correia da Cunha
[1] Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º e 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”).
[2] Vide neste sentido, Acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09.
[3] Cfr. Acórdão do TCAN de 07-05-2020, processo n.º 00512/06.2BEVIS.
[4] Processo n.º C-234/01, Caso Gerritse, acórdão do TJUE de 12-06-2003.
[5] Processo C-290/04, Caso FKP Scorpio, acórdão do TJUE de 03-10-2006. Vide no mesmo sentido, processo C-345/04, Caso Centro Equestre da Lezíria Grande, acórdão do TJUE de 01-02-2007.
[6] Processo C-18/15, Caso Brisal, acórdão do TJUE de 13-07-2016.
[7] No mesmo sentido, vale a pena acrescentar o acórdão do STA de 22-03-2017, proc. 0165/13. (Rel: Pedro Delgado), perfeitamente em linha com a posição afirmada pelo TJUE, concluindo que são incompatíveis com os princípios da livre prestação de serviços e da livre circulação de capitais, as liquidações de IRC através de retenção na fonte a título definitivo que incidem sobre rendimentos brutos, não se permitindo ao sujeito passivo a dedução dos gastos diretamente relacionados com tais rendimentos.
[8] Referimo-nos aos acórdãos do CAAD proferidos nos processos n.os 1037/2023-T de 16-09-2024, 513/2023-T de 12-04-2024 e 866/2024-T de 03-03-2025.
[9] Vide neste sentido acórdãos do CAAD proferidos nos processos n.os 580/2022-T de 10-04-2023 e 886/2024-T supra citado.
[10] J.G. Xavier de Basto “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária”, Fiscalidade, 2001, n.º 5, p. 5-21.