Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 100/2025-T
Data da decisão: 2025-09-12  IRS  
Valor do pedido: € 50.489,90
Tema: IRS; Rendimentos de Capitais; Incrementos Patrimoniais; Fundamentação; Sanação de errada fundamentação jurídica
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Sumário:

I – Alegando a Autoridade Tributária que os montantes pagos à Requerente por uma sociedade de que não é sócia, sob a aparência de reembolso do crédito que lhe teria sido cedido, não são verdadeiros reembolsos de capital, uma vez que considera que é altamente improvável que os mútuos da Requerente sobre a sócia da sociedade (e cuja extinção teria servido como contrapartida da cessão) tenham efetivamente sido concedidos, era seu dever ter recorrido ao regime da cláusula geral anti abuso ou à avaliação indireta, não podendo estes recebimentos ser qualificados como rendimentos de capital quando não foi feita qualquer distinção cabal entre reembolso de capital e frutos da aplicação de capitais, sendo apenas estes últimos suscetíveis de ser tributados ao abrigo da categoria E.

II – Os processos impugnatórios tributários, sejam eles judiciais ou arbitrais, têm a natureza de contencioso de plena jurisdição e não de mera anulação, devendo equilibrar-se os princípios do inquisitório e de descoberta da verdade material com o princípio da legalidade da atuação administrativa e o dever de adequada fundamentação, sendo nessa medida os poderes de cognição do juiz ou árbitro tributário mais amplos do que os do juiz cível.

III - Assim, não só o árbitro tributário pode considerar factos não alegados pelas partes desde que consiga apurá-los no contexto das, ou em relação às, questões levantadas pelas partes (uma vez que o princípio da verdade material se sobrepõe ao da verdade formal) como, em determinados casos, quais sejam, os de atos tributários emitidos num cenário de estrita vinculação, o tribunal arbitral tributário poderá mesmo substituir-se à Autoridade Tributária no enquadramento jus-tributário do ato impugnado ainda que, em sede inspetiva, a Autoridade Tributária haja fundamentado o ato objeto de impugnação com base na errónea aplicação de determinadas normas.

IV – Um ato de liquidação adicional de IRS emitido com base no enquadramento de um determinado montante, recebido pela Requerente, como rendimento de capital (e portanto tributável ao abrigo da Categoria E do IRS), relativamente ao qual a própria Autoridade Tributária suscitou dúvidas sobre a correta categorização do rendimento não se encontra nestas circunstâncias

V - No caso concreto crê este tribunal que existe uma probabilidade séria de estarmos perante um caso em que deveria ter sido aplicado o regime da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º da LGT ou, pelo menos, a avaliação indireta – áreas de maior incerteza quanto à aplicação do Direito, e com garantias procedimentais e processuais próprias até para possibilidade de defesa adequada dos sujeitos passivos, o que reforça que a errada qualificação feita pela Autoridade Tributária quanto à categoria em que deveria enquadrar-se o rendimento não é suscetível de sanação pelo tribunal arbitral, pelo que é de anular o ato tributário.

 

DECISÃO ARBITRAL

I.        RELATÓRIO

1.       A..., titular do NIF ..., residente na Rua ..., n.º ...,  ..., ... (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “IRS”) com o n.º 2024... e conexas demonstrações de acertos de contas, relativa ao ano de 2021, da qual resulta um montante a pagar de € 50.489,90 a título de imposto e juros compensatórios (doravante simplesmente referida como a “Liquidação”), e bem assim, a anulação da Liquidação, mais pedindo a este tribunal arbitral que determine a condenação da Requerida no reembolso dos montantes pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, e no pagamento das custas do processo.

2.       De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

3.       O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 1 de abril de 2025, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

4.       Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 8 de maio de 2025.

5.       A Requerente alega, em síntese, que andou mal a Requerida ao liquidar adicionalmente IRS no exercício em causa, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS, posto que os montantes que recebeu da sociedade B... Lda. (a “B...”) constituem meros reembolsos de capital com origem em créditos sobre aquela sociedade, os quais recebeu da senhora C... a título de dação em pagamento de mútuos que havia concedido a esta. 

6.       {C} A Requerida, por seu lado, pugna pela legalidade da liquidação impugnada porquanto, resumidamente, considera que não existem provas dos alegados mútuos concedidos pela Requerente à senhora C... e que, consequentemente, carecem de causa os pagamentos efetuados pela sociedade C... à Requerente, pelo que sendo a Requerente acionista maioritária da sociedade que detém 100% da C..., devem aqueles pagamentos considerar-se rendimentos de capitais ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS.

{C}II.      {C}MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

{C}1.       {C}A Requerente é acionista maioritária e administradora única da sociedade D... SGPS S.A. (doravante “D...”), que detém 90% do capital social da B...– facto não controvertido e corroborado por ambas as testemunhas;

{C}2.       {C}A Requerente foi alvo de procedimento de inspeção interna determinada por informações e elementos que foram recolhidos e analisados no âmbito das ações inspetivas realizadas à B..., visando os anos de 2018 e 2019 – facto não controvertido e corroborado quer pelo capítulo IV do RIT quer pelo depoimento da segunda testemunha.

{C}3.       {C}Em 2019 a B... vendeu um imóvel à Requerente por € 200.000 – facto constante do Processo Administrativo.

{C}4.       {C}À data da venda, a Requerente era colaboradora da B..., não sendo ainda administradora única da D..., cargo que passou a desempenhar em 2021 – factos constantes do RIT, corroborados por ambas as testemunhas e resultantes das Publicações Relativas a Atos Societários do Ministério da Justiça.

{C}5.       {C}O preço de venda do imóvel foi pago por compensação parcial com um crédito que a Requerente detinha sobre a B..., no valor de € 1.980.993,67 – facto constante do RIT e corroborado por ambas as testemunhas.

{C}6.       {C}Tal crédito encontrava-se registado na conta do SNC “278210010 –A...” da B...– facto constante do RIT e corroborado por ambas as testemunhas.

{C}7.       {C}O documento que suporta o lançamento do referido saldo naquela conta é um Contrato De Dação Em Cumprimento Mediante Cedência De Créditos, datado de 31 de dezembro de 2015, doravante referido como “Contrato de Cessão de Créditos 2015”.

{C}8.       {C}O Contrato de Cessão de Créditos 2015 apenas foi registado na contabilidade da B...em 2019, ou seja, 4 anos após a sua assinatura – facto admitido por acordo e corroborado pela primeira testemunha.

{C}9.       {C}O referido crédito no valor de € 1.980.993,67 sobre a B... (o “Crédito B...”) encontrava-se, até 2019, registado na conta 278210009 –C...– facto admitido por acordo.

{C}10.    {C}O Crédito B... foi inicialmente constituído como suprimento prestado pela D..., em data não concretamente apurada – facto constante do Processo Administrativo, resultante do Contrato de Cessão de Créditos 2015 e não controvertido.

{C}11.    {C}Em 31 de Dezembro de 2014 e por valor não concretamente apurado, o crédito B... foi cedido pela D... à Senhora C...– facto alegado no PPA, extraível do Contrato de Cessão de Créditos 2015 anexo ao RIT e do Doc. n.º 4 anexo ao PPA e não contestado pela AT.

{C}12.    {C}Através do Contrato de Cessão de Créditos 2015 o Crédito B... foi cedido à Requerente – facto provado pelos extratos bancários juntos ao PPA, pelo Contrato de Cessão de Créditos 2015 junto ao RIT e depoimento da primeira testemunha.

{C}13.    {C}No Contrato de Cessão de Créditos 2015 anexo ao RIT refere-se que a contrapartida da cessão de créditos ali operada é a extinção de um alegado direito de crédito da Requerente sobre a senhora C..., resultante de supostos mútuos que lhe teriam sido concedidos pela Requerente entre 2000 e 2006, de montante “superior a três milhões e oitocentos mil euros” (os “Mútuos de 3,8M€”).

{C}14.    {C}No Contrato de Cessão de Créditos 2015 a senhora C... confessou-se devedora à Requerente de “quantia superior a três milhões e oitocentos mil euros”, tendo a Requerente, pela assinatura daquele Contrato, aceite a extinção do crédito por dação em cumprimento dos créditos cedidos (pelo preço global de € 3.729.754,82), nada mais tendo a exigir da senhora C... .

{C}15.    {C}No Contrato de Cessão de Créditos 2015 a cedente – senhora C...– declara expressamente não garantir a solvabilidade das sociedades cujos créditos cedeu à Requerente por força daquele Contrato, nas quais se inclui a B... .

{C}16.    {C}Entre o ano 2000 e o ano de 2006 os rendimentos declarados pelo agregado familiar da Requerente cifraram-se em € 438,189.47 – facto constante do RIT e da Resposta e não contestado pela Requerente.

{C}17.    {C}Notificada a Requerente para fornecer documentação justificativa dos Mútuos de 3,8M€, ainda no contexto da inspeção tributária à B..., a Requerente nada disse – facto resultante do Processo Administrativo instrutor.

{C}18.    {C}A B... nunca realizou pagamentos/reembolsos do Crédito B... até 2019, ano em que iniciou pagamentos à Requerente – facto extraível do Processo Administrativo e corroborado pela primeira testemunha.

{C}19.    {C}Em 2021 a B... pagou à Requerente o valor de € 170.000 a título de reembolso parcial do Crédito B..., que lhe foi cedido através do Contrato de Cessão de Créditos 2015 – facto não controvertido.

{C}20.    {C}Este valor foi considerado pelos serviços de inspeção, no RIT, como rendimento de capital, constando do RIT (e confirmado pela segunda testemunha) o seguinte:

Em face do exposto, considera-se que o pagamento de 170.000,00€ efetuado em 2021 pela B..., Lda, deve ser considerado na esfera pessoal da Sra. A... como respeitando a rendimentos obtidos por esta e que, nos termos do artigo 1.º nº 1 do CIRS, devem ser sujeitos a tributação em sede de Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS). 

Determinado que estamos perante rendimentos sujeitos a IRS na esfera pessoal da Sra. A..., importa agora enquadrar os ditos rendimentos numa das categorias previstas para este imposto. 

Assim, atendendo:

1) ao descritivo das várias categorias de rendimentos previstas no respetivo Código;

2) ao facto de a Sra. A... não ter sido em 2021 funcionária da B..., Lda (foi até julho de 2019), o que permite inferir que os rendimentos que lhe foram pagos nesse ano não resultam de uma relação de trabalho dependente;

3) ao facto de a Sra A... não se encontrar inscrita, para o ano em análise, para o exercício de uma atividade empresarial ou profissional (Categoria B), bem como, não terem sido recolhidos indícios de que os rendimentos agora em análise possam resultar de rendas de prédios de que aquela seja proprietária (Categoria F).

4) ao facto de ser conhecida a entidade que disponibilizou os rendimentos agora em análise (B...), o que nos permite excluir os ditos rendimentos da Categoria G de IRS (só serão enquadrados nesta categoria de IRS, nomeadamente na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRS, os rendimentos em que seja desconhecida a entidade que procedeu ao seu pagamento).

5) ao facto de não terem sido recolhidos indícios que pudessem levar a considerar como plausível a inserção dos aludidos rendimentos na Categoria H.

Considera-se, por exclusão das restantes categorias, que o rendimento agora em análise deve ser enquadrado na Categoria E do IRS, ou seja, que deve ser enquadrado como rendimentos de capitais

{C}21.    {C}A Requerente deduziu reclamação graciosa contra a Liquidação (notificada em 3 de fevereiro de 2024) em 14 de junho de 2024, a qual foi indeferida em 30 de Outubro do mesmo ano – facto não controvertido.

{C}22.    {C}A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 23 de janeiro de 2025.

A.2. Factos dados como não provados

Com relevância para os autos, não se considera provada a efetiva concessão dos Mútuos de 3,8M€ pela Requerente à senhora C... .

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

{C}1.       {C}Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

{C}2.       {C}Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfrart. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

{C}3.       {C}Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida e a informação pública extraível dos portal de publicações de atos societários do Ministério da Justiça, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

{C}4.       {C} Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

{C}5.       {C}Na situação em análise no presente processo, é de salientar que a nebulosidade e até improbabilidade dos factos alegados no PPA para justificar o percurso dos fluxos financeiros que deram origem à liquidação impugnada foi confirmada pelo depoimento pouco convincente e até errático da primeira testemunha, especialmente nas questões colocadas pela Senhora Representante da Fazenda Pública e pelo Tribunal.

{C}6.       {C}Na verdade, cabendo a quem invoca um direito o ónus da prova sobre o mesmo, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, “é de concluir que cabe à AT «o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua actual compreensão, entendido não como mero limite à actividade da administração mas como fundamento de toda a sua actividade.

O que corresponde ao ensinamento de Vieira de Andrade in Justiça Administrativa, 2ª edição, pág, 269: «há-de caber, em princípio à Administração, o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegalidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos"» (ac. do STA, de 30/4/2003, no proc. nº 0241/03).(No qual se referenciam, igualmente, os ac.s de 24/4/02, rec. 102/02, de 17/4/02, rec. 26.635, de 9/10/02, rec. 871/02 e de 14/11/01, rec. 26.015.)” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) relativo ao processo n.º 0591/15, proferido em 17 de fevereiro de 2016.

7.       No caso dos autos, afigura-se manifesto a este Tribunal que a AT cumpriu devidamente com esse ónus relativos aos pressupostos legais da sua atuação, tendo carreado para os autos indícios sérios (e resultado da prova testemunhal produzida) de que os factos relatados pela Requerente para justificar os montantes recebidos da B... – que estão na origem da inspeção tributária a montante da liquidação impugnada – não corresponderão  totalmente à realidade, por um lado, e, por outro, que as declarações de IRS da Requerente bem como a escrita da B... não são merecedoras da presunção de veracidade estabelecida no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, posto que “2 - A presunção referida no número anterior [i.e. artigo 75.º, n.º 1, da LGT] não se verifica quando: a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo [tendo resultado do depoimento da primeira testemunha que inexistiu qualquer razão objetiva que justificasse que o Contrato de Cessão de Créditos 2015 apenas tivesse sido registado em 2019 e uma confusão generalizada quanto à relação da Requerente com a B..., não tendo sido também carreada para os autos qualquer prova que justificasse a verosimilitude de a Requerente ter concedido os Mútuos de 3,8M€ sem qualquer documentação e quais as razões para ter aceite receber créditos sobre sociedades em pagamento de tais mútuos sem que a cedente garantisse a solvabilidade das referidas sociedades];” ou quando “b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações”, devendo recordar-se que, notificada para o efeito, a Requerente não prestou quaisquer esclarecimentos relativamente à efetiva concessão dos Mútuos de 3,8M€ entre 2000 e 2006.

8.       Contudo, como veremos, essa nebulosidade das explicações da Requerente para os fluxos financeiros é insuficiente para salvar o ato de liquidação que, como veremos, se encontra inquinado por vício de violação de lei conexo com o errado enquadramento do recebimento ali em causa em sede de IRS, erro de direito esse insuscetível de ser sanado por este Tribunal.

III.   DO DIREITO

1.       O dissídio aqui em causa, dizendo respeito a uma liquidação referente ao exercício de 2021, remonta ao ano de 2019, tendo a Autoridade Tributária notificado a Requerente de liquidações adicionais de IRS relativas, pelo menos, aos exercícios de 2019 a 2021, com base nos mesmos factos e fundamentos, salvo quanto aos montantes pagos pela B... à Requerente e às datas desses pagamentos.

2.       No que concerne à liquidação adicional de IRS relativa ao exercício de 2019, foi a mesma objeto de reclamação graciosa pela aqui Requerente, que veio a impugnar o respetivo indeferimento tácito através de pedido de pronúncia arbitral, que correu termos sob o n.º 879/2024-T e cuja decisão, que em alguma medida (mas não na totalidade) aqui acompanhamos, foi de procedência da pretensão impugnatória e consequente anulação do ato tributário de Liquidação por vício de violação de lei, a saber, do artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS.

3.       Para o que aqui releva, e escusando-nos propositadamente a citar toda a decisão arbitral relativa ao processo n.º 879/2024-T, resulta da mesma o seguinte:

7. A Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral contra o ato de liquidação adicional de IRS relativo ao ano de 2019, praticado na sequência de um processo de inspeção interna determinado pelos elementos colhidos em sociedades com as quais se encontra relacionada, invocando errónea qualificação e quantificação da matéria tributável e erro nos pressupostos de facto e de direito do facto tributário.

Justifica a sua posição estribada num documento particular denominado CONTRATO DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO MEDIANTE CEDÊNCIA DE CRÉDITOS celebrado em 31 de dezembro de 2015 e assinado pela cedente e pela cessionária, com assinaturas não reconhecidas presencialmente ou por semelhança, em cujos termos, no Considerando IV que antecede o clausulado, a cedente se confessa devedora à Requerente de importância superior a três milhões e oitocentos mil euros em razão de empréstimos que, no período compreendido entre 2000 e 2006 e, para integral pagamento da sua dívida, cede créditos, consistentes em suprimentos e créditos de outra natureza, que detém, registados em seu nome, em quatro sociedades, no valor nominal total de € 3.887.485,01 e que lhe foram transmitidos pelo preço global de € 3.729.754,82.”

4.        A Requerente, tal como fez no processo arbitral acima citado, contesta nos presentes autos a qualificação de rendimentos de capitais atribuída no Relatório da Inspeção Tributária à importância de € 170.000,00 que, em 2021, recebeu em resultado do Contrato de Cessão de Créditos 2015, sustentando que as importâncias recebidas constituem reembolso parcial do capital mutuado no contexto dos referidos créditos e que, consequentemente, não existe no Código do IRS nenhuma norma que as qualifique, em qualquer das categorias de rendimentos, como rendimento tributável. E tal como se refere na decisão daquele processo, “embora a não tenha invocado, retira-se dos factos invocados que a Requerente entende inexistir facto tributário”.

5.       A Autoridade Tributária, por seu turno, defende que, por ser inverosímil a efetiva concessão dos Mútuos de 3,8M€ pela Requerente à senhora C..., a cessão de créditos consubstanciada no Contrato de Cessão de Créditos de 2015 carece de causa (insinuando apenas de forma indireta e sem grande preocupação de exaustão que na verdade a cessão não terá existido) e que, por isso, atenta a qualidade da Requerente de acionista da D..., que detém 91% do capital social da B..., os pagamentos efetuados por esta última à Requerente em 2021 não constituem reembolso de capital mutuado, constituindo verdadeiro rendimento-acréscimo e devendo ser tributados no quadro da Categoria E do IRS, o que é dizer ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS.

6.       Remetendo-se para o excurso constante da decisão proferida no processo n.º 879/2024-T relativamente ao regime das cessões de créditos e à valoração dos Considerandos na execução e interpretação dos contratos, matérias que, tendo interesse para contextualização, não serão essenciais à decisão a proferir, importa citar aquela decisão no que se refere à força probatória a conferir ao Contrato de Cessão de Créditos 2015, por nessa parte acompanharmos a decisão proferida na totalidade:

7.       Está em causa, apenas, a força probatória do CONTRATO DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO MEDIANTE CEDÊNCIA DE CRÉDITOS junto aos autos como documento particular não autenticado. O contrato de dação em cumprimento bem como o contrato de cessão de créditos, ainda que estes sejam, total ou parcialmente, suprimentos, não exigem forma especial. Assim, o documento particular não autenticado, forma sob a qual o contrato se apresenta, tem a força probatória que lhe for conferida por lei.

[…] Porque a Requerida também nada disse sobre o estado civil das outorgantes e sobre se, sendo casadas, o documento devia ter sido ou não assinado pelos seus cônjuges, bem como não arguiu a sua falsidade, o Tribunal está vinculado a considerar que o documento particular em causa faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores na parte dispositiva.

Porém, o Tribunal aprecia livremente a pretensa confissão de dívida constante do Considerando IV do Contrato, uma vez que não reúne as formalidades que a lei exige para este negócio jurídico unilateral. Por outro lado, mesmo que se admitisse a legalidade formal da confissão, a mesma não seria admissível, nos termos da alínea c) do artigo 354.º do CC, porque o facto confessado é notoriamente inexistente, segundo a convicção do Tribunal. Vejamos.

De harmonia com a declaração constante do Considerando IV, a Requerente, segunda outorgante, teria efetuado durante o período de 2000 a 2006 à primeira outorgante diversos mútuos em "quantia superior a três milhões e oitocentos mil euros". A Requerente invoca, sem fazer prova ou indicar normas legais que a dispensem, que não está obrigada a comprovar os mútuos que efetuou, quer em razão do tempo decorrido (entre 17 e 23 anos), da não obrigatoriedade de guardar os documentos comprovativos durante aquele período e do facto de os bancos não guardarem documentos com tanta antiguidade (p.i., artigos 50.º e seguintes).

Ora, considerando o montante pretensamente mutuado, de harmonia com as regras da experiência, não é normal que se emprestem quantias tão elevadas, independentemente do fim a que se destinem, sem um documento escrito, sem garantias e sem a fixação de uma remuneração, isto é, de juros. Não pode considerar-se normal que se emprestem mais de três milhões e oitocentos mil euros, aparentemente sem prazo de restituição, sem garantias e a título gratuito.

De resto, e já no plano fiscal, a AT comprovou que a Requerente durante, pelo menos, o período em causa, não declarou quaisquer juros. Por outro lado, a Requerente nem sequer indiciou que teria elidido por algum dos meios legalmente previstos no n.º 5 do artigo 6.º do Código do IRS (CIRS) a presunção constante do seu n.º dois: "2 - Presume-se que os mútuos e as aberturas de crédito referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior são remunerados, entendendo-se que o juro começa a vencer-se nos mútuos a partir da data do contrato e nas aberturas de crédito desde a data da sua utilização". Pelo que, atenta também a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 40.º do CIRS - "1 - Presume-se que os mútuos e aberturas de crédito referidos no n.º 2 do artigo 6.º são remunerados à taxa de juro legal, se outra mais elevada não constar do título constitutivo ou não houver sido declarada" - e considerando que a taxa de juro legal é a estabelecida nos termos do artigo  559.º do CC e, para o período em causa, foi de 7%  até 30 de abril de 2003 (Portaria n.º 263/99, de 12 de abril) e de 4% a partir de 1 de maio de 2003 (Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril), se não tiver sido elidida, determinaria a declaração para efeitos de tributação de somas também muito significativas.

Tem, ainda, de se levantar a questão da forma, uma vez que, para o mútuo, nos termos do disposto no artigo 1143.º do CC é exigida forma específica: escritura pública para mútuos superiores a € 25.000,00 e documento escrito para mútuos de valor superior a € 2.500,00. A mutuária não declara quantos mútuos lhe foram efetuados pela mutuante, o que, no quadro dos valores em causa, também não é normal. Se se assumir que foram seis empréstimos (um por ano), o valor médio de cada um teria sido de € 633.333,33; que foram sessenta (dez por ano), o valor médio de cada um teria sido de 63.333,33; que foram seiscentos (cem por ano), o valor médio de cada um teria sido de € 6.333,33. Ou seja, nos dois primeiros casos com exigência de escritura pública e, no último, por documento assinado pelo mutuário. E se houvesse sido celebrada escritura pública, não poderia ser alegado que se não estava obrigado a guardar o documento: este manter-se-ia nos livros próprios do Notário em cujo cartório a escritura tivesse sido celebrada.

Por último, não pode igualmente deixar de sublinhar-se que o nível de rendimentos declarados entre 2000 e 2006 e o facto de, à data da celebração do contrato de dação em cumprimento, a Requerente ser empregada de uma das sociedades com um modesto salário, de modo algum se podem considerar reunidos quaisquer indícios para que o empréstimo possa ter sido efetuado pela Requerente.

Releve-se também que da prova testemunhal produzida não resultou qualquer elemento de que possa resultar a efetiva realização do empréstimo.

Em conclusão, tendo em conta as alegações das partes e apreciando livremente a prova apresentada sobre a concessão de empréstimo(s) pela Requerente, o Tribunal não considera provada a existência do empréstimo ou empréstimos invocados. O que significa que se considera não existir relação fundamental que justifique a dação em cumprimento.” (cit., sublinhados nossos).

8.        Ou seja, entendeu-se naquela decisão arbitral, como se entende aqui, que os fluxos financeiros que terão resultado no pagamento de valores pela B... à Requerente não foram explicados de forma minimamente convincente pela Requerente, o que poderia inquinar a tentativa da Requerente de invalidação do ato tributário aqui em crise através do presente processo arbitral.

9.       As questões que resta dirimir são, portanto, as seguintes: i) sendo facto incontestado que a B..., em 2021, pagou € 170.000 à Requerente no quadro factual acima dado como provado, esse montante constitui ou não um rendimento tributável em IRS? E, sendo, deve tal rendimento ser qualificado como um rendimento de categoria E, como sustenta a AT?

10.    Ora, a fundamentação de qualquer ato tributário é constituída por duas vertentes: uma fáctica e outra jurídica.

11.    Quanto à vertente fáctica, no caso dos autos nada tem este Tribunal a apontar à ação da AT ou à fundamentação que fez constar do RIT e reiterada na Resposta, tendo a AT cumprido as suas obrigações de aplicação dos princípios da legalidade e do inquisitório, diligenciando pela obtenção de prova adicional e efetiva quantificação do facto tributário, como lhe impõem as normas resultantes dos artigos 55.º e 58.º da LGT .

12.    Contudo, no que se refere à vertente jurídica da fundamentação do ato tributário em crise, que, no caso do IRS, implica uma verdadeira operação de qualificação do rendimento por relação a dada categoria, com impactos significativos no modo e quantum da tributação, entende este Tribunal que andou mal a AT ao qualificar o pagamento em causa como um rendimento de capital.

13.    Com efeito, como resulta do n.º 1 do artigo 5.º do Código do IRS os rendimentos de capitais são “frutos e demais vantagens económicas […] procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária”.

14.    Ora, a AT coloca em causa a efetividade dos Mútuos de 3,8M€ e, consequentemente, que a senhora C... tivesse uma causa para ceder o Crédito B...  à Requerente e, ademais, que esta última fosse efetivamente titular de um direito de crédito que pudesse ser extinto contra entrega do Crédito B... e dos demais créditos objeto do Contrato de Cessão de Crédito 2015.

15.    Mas a verdade é que não contesta em lugar algum que o Crédito B... exista e tenha efetivamente sido transmitido à Requerente.

16.    Repare-se que, mesmo que se desconsiderasse qualquer pagamento, no âmbito da sua autonomia privada e liberdade contratual, a senhora C... poderia ter cedido o Crédito B... à Requerente gratuitamente – caso em que estaríamos a discutir uma eventual tributação de transmissão gratuita em sede de Imposto do Selo, à taxa de 10%.

17.    Sucede que a AT não emitiu, que se saiba, uma liquidação de Imposto do Selo, mas uma liquidação de IRS, que implica a onerosidade da transmissão.

18.    A fundamentação factual aduzida pela AT e a prova carreada para os autos – que, reitere-se, demonstram, no entender deste tribunal, que os factos que rodeiam os fluxos financeiros em causa são muito pouco compreensíveis – induzem até que é provável que tenha existido aproveitamento de estruturas societárias para transformação de rendimentos que normalmente seriam tributados na esfera pessoal ou redução de tributação dos mesmos sem qualquer justificação económica válida.

19.    Mas, para suscitar a tributação daqueles montantes sob essa fundamentação, a AT deveria ter recorrido à cláusula geral anti abuso prevista no artigo 38.º da LGT, ou eventualmente, à avaliação indireta.

20.    A verdade é que alegando a Autoridade Tributária que os montantes pagos pela sociedade B... à Requerente (que não é sócia desta, mas da sociedade dominante, e admitindo-se rendimentos de capitais derivados de participações indiretas) sob a aparência de reembolso do crédito que lhe teria sido cedido pela senhora C... não são verdadeiros reembolsos de capital, uma vez que considera que é altamente improvável que os mútuos da Requerente sobre a senhora C... (e cuja extinção teria servido como contrapartida da cessão) tenham efetivamente sido concedidos, era seu dever ter recorrido ao regime da cláusula geral anti abuso ou à avaliação indireta (que resultaria na tributação daqueles valores  ao abrigo da categoria G.

21.    De facto, não podem estes recebimentos ser qualificados como rendimentos de capital quando não foi feita qualquer distinção cabal entre reembolso de capital e frutos da aplicação de capitais, sendo apenas estes últimos suscetíveis de ser tributados ao abrigo da categoria E do IRS (em sentido semelhante mas em contexto muito diverso, v. o acórdão do TCA Sul de 9 de janeiro de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 640/09.2BELRS, em cujo sumário se pode ler que “de acordo com o artigo 74º, nº 1 da LGT, é sobre a AT que impende o ónus da prova dos pressupostos legais da sua atuação o que, no caso, obrigava a que esta provasse não apenas a existência de lucros a distribuir pelos sócios antecipadamente, mas também que as quantias em questão haviam sido lançadas na contabilidade na sociedade e que as mesmas não são resultantes de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”).

22.    O que significa que o ato tributário aqui imediatamente em crise, emitido com base no disposto no artigo 5.º n.º 1 do Código do IRS, se encontra inquinado por vício de violação de lei, por erro de direito consubstanciado na errada aplicação do referido artigo do Código do IRS, sendo por isso suscetível de anulação com tal fundamento, não obstante os contornos factuais altamente nebulosos da situação em causa.

23.    Como se referiu na decisão arbitral proferida no processo n.º 879/2024-T, que vimos acompanhando e que aqui subscrevemos:

Generalizou-se, na doutrina e na jurisprudência, a ideia, nem sempre adequadamente fundamentada, de que a categoria E se tinha tornado uma categoria residual e nela poderia incluir-se, para tributação em IRS, tudo o que não estivesse contemplado noutras categorias. Nem acentuado sequer que esse "tudo", subjacente a bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, nunca poderia abranger, pelo menos como regra geral, o próprio capital. Na verdade, continuam a ser rendimentos de capitais "os frutos ou vantagens económicas" o que aponta para a conceção civilística de frutos, constante do artigo 212.º, n.ºs 1 e 2, do CC: "1 - Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância. 2 - ... dizem-se civis as rendas ou interesses que a coisa produza em função de uma relação jurídica".

           Pode-se, ainda assim, afirmar, com Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, a pp. 149/150:

«A incidência que decorre do artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do CIRS é suficientemente ampla para abarcar qualquer situação de rendimentos derivados de bens ou direitos mobiliários, desde que não sejam tributados noutra categoria.

Em suma, o modo de tipificação dos rendimentos de capitais seguido no CIRS procura face a uma realidade em que os contratos subjacentes à obtenção dos rendimentos em causa são múltiplos, extremamente variados, em muitos casos atípicos, por vezes de extrema complexidade e em contínua evolução. Todos os dias surgem novos "produtos financeiros", frequentemente bastante sofisticados.

O legislador fiscal procurou salvaguardar a tributação dos rendimentos em apreço mediante uma tipificação tão ampla quanto possível. Para tal, conjugou uma definição geral de rendimentos de capitais com uma enumeração exemplificativa dos mesmos, tentando alcançar o equilíbrio viável entre o combate à elisão fiscal, por um lado, e à previsibilidade por parte dos contribuintes relativamente aos rendimentos neste campo, por outro.

Também merecedora de atenção é a caracterização dos rendimentos de capitais como "frutos" e "vantagens económicas". Esta caracterização encontra-se bem patente na letra dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CIRS. Os rendimentos assentam, portanto, na figura dos "frutos civis".

Desta forma, o rendimento de capitais corresponde a um rendimento periódico, cujo recebimento não prejudica a substância do bem, direito ou situação jurídica de natureza mobiliária, que está na origem do rendimento.»

Segundo Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, reimpressão em 2016, pp. 96) «há rendimentos de capitais [...] quando uma coisa deva ser havida por capital (Património, bens, direitos ou situações jurídicas de natureza mobiliária) e produza vantagens económicas sem que tal implique para o respetivo titular a perda dessa fonte. Havendo alienação da fonte, o ganho obtido constituirá, em princípio, uma mais-valia.

Deste modo, a obtenção de rendimentos de capitais não pressupõe a renúncia a ganhos futuros, dado não implicar a alienação da fonte produtora dos rendimentos.»

    E na jurisprudência pode citar-se o que se escreveu no Acórdão do TCAS proferido em 20-12-2012, no Processo 03410/09:

«A definição de “rendimentos de capitais” implantada no art. 5.º n.º 1 CIRS traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla, distendida, que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias, em que opera o IRS. Por outras palavras, este normativo traduz a preocupação do legislador em satisfazer a necessidade de estabelecer a incidência real da forma mais abrangente possível, objetivando prevenir a endémica evasão fiscal e assegurar o pagamento de imposto, quanto a todo o tipo de rendimentos, surgidos da operação dos mais diversos instrumentos financeiros, com a condição de não ser inquestionável a sua sujeição no âmbito de outra típica categoria de ganhos. Assim, além de outros, são susceptíveis de integrar a versada previsão legal, “vantagens económicas”, independentemente da natureza ou denominação, pecuniárias ou em espécie, provenientes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, bem como, da respectiva modificação, transmissão ou cessação; atente-se que nas diversas alíneas do seu n.º 2 são fornecidos exemplos das “vantagens económicas” mais frequentes, comuns.»

            Ou seja, distinguir entre "rendimentos de capitais" enquanto frutos ou vantagens económicas e “capital”, isto é, a fonte de natureza patrimonial mobiliária, é hermenêuticamente indissociável para uma adequada interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 5.º do CIRS. Foi o que não se fez na fundamentação expressa pelo RIT, e reiterada pela Resposta da Requerida. A qualificação ali efetuada está, pois, votada ao insucesso, por erro nos pressupostos de facto e de direito do facto tributário.

            E não podia ser de outro modo porque, no entendimento do Tribunal, o facto tributário que permitiria a tributação da totalidade do capital em que consiste a cessão de créditos em dação em cumprimento, a montante do reembolso parcial de um dos créditos verifica-se, na situação fática exposta, mas não aprofundada, no RIT, como acréscimo patrimonial não justificado, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRS.

24.    Aqui chegados, e porque a situação factual apurada suscita neste Tribunal sérias dúvidas de legalidade, cumpre ainda ponderar e verificar se seria ou não lícito, à luz dos poderes de cognição que lhe são conferidos pelo RJAT, pelo CPPT e pela LGT, sanar essa errada fundamentação jurídica efetuada pela Autoridade Tributária no caso dos autos, em nome do princípio do inquisitório, do aproveitamento dos atos tributários, dos poderes de gestão processual conferidos ao juiz/árbitro e do fim último do processo tributário, orientado para o interesse público e visando a verdade material mais do que formal, o que é perguntar pelos critérios de equilíbrio entre o princípio do inquisitório a que o tribunal está obrigado e o dever de adequada fundamentação que impende sobre a AT. 

25.    A esta questão dedicam Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade algumas páginas do seu manual de Contencioso Tributário (Volume II, Almedina, Coimbra 2017) enunciando o tema da seguinte forma 

A questão que se coloca no confronto deste dever de fundamentação dos actos com o princípio do inquisitório é a de saber se perante um acto tributário ilegal por falta de fundamentação ou por fundamentação errada, poderá o tribunal, ao abrigo deste princípio e da descoberta da verdade material, "corrigir" a fundamentação da Administração Tributária substituindo-se a esta.

Deverá o juiz determinar "sempre" a anulação total dos actos tributários por vício de forma em caso de falta de fundamentação, ou por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito, quando a fundamentação do acto, pese embora existente, não seja válida? Se este for o único vício a inquinar a validade do acto que foi praticado em obediência à lei e que devia ser praticado, não poderá o juiz, em nome da descoberta da verdade material e do princípio do aproveitamento do acto, corrigir a fundamentação e sanar o acto tributário praticado?” (cit., p. 82, sublinhados nossos).

26.    E prosseguem as mesmas Autoras, referindo que “[a] favor da possibilidade de o juiz não proceder à anulação de todo e qualquer acto que enferme do vício de falta de fundamentação ou de fundamentação errada, admitindo-se a sanação do mesmo, devem ser referidos o princípio da economia procedimental, o facto do contencioso tributário se assumir hoje como um contencioso de plena jurisdição, o princípio do aproveitamento do

acto administrativo e, naturalmente, os princípios da verdade material e do inquisitório. Contra esta possibilidade serão de ter em conta os princípios da tutela jurisdicional efectiva, da separação de poderes, do inquisitório – que também impende sobre a Administração Tributária - e o dever de fundamentação formal dos actos tributários” (cit., pp. 82-83).

27.    Depois de afastarem a possibilidade de sanação nos casos de total ausência de fundamentação, as Autoras que vimos citando defendem que “caso o acto tributário enferme de vício de fundamentação errada, será de admitir, em princípio, a sanação deste vício pelo tribunal, pese embora também se exija um exame casuístico, tendo sempre em especial consideração que a contextualização de direito que é dada no acto que fundamenta o acto tributário cristaliza-se, pelo menos quanto àquele acto tributário, na ordem jurídica. Isto é, a resposta a esta questão nunca poderá ser dada em termos absolutos. Assim, em nossa opinião, poderá admitir-se a sanação deste vício de fundamentação errada quando não pudesse ter sido outra a decisão tomada e mediante a verificação de certas condições.

Aqui seguimos de perto o entendimento perfilhado por Vieira de Andrade, pese embora a sua tese diga respeito ao aproveitamento dos actos administrativos estritamente vinculados. De facto, os actos tributários são, na grande maioria dos casos, actos vinculados. Exige-se o cumprimento do dever de fundamentação formal, ou seja, o acto tem que conter a fundamentação legalmente exigida, designadamente as razões de facto e de direito que levaram a Administração a tomar aquela decisão. Senão, o acto será, em regra, anulável por vício de falta de fundamentação, nos termos do artigo 99.º, alínea c), do CPPT. Por outro lado, o juiz tem que ter a certeza da existência de outros fundamentos de facto ou de direito, não formalmente invocados pela Administração mas capazes de sustentar o facto. Na verdade, só será de admitir a sanação do acto tributário erradamente fundamentado quando, pese embora os fundamentos de facto e de direito invocados pela Administração não justifiquem a decisão tomada, existam, contudo, na realidade disposições normativas ou factos aptos a suportarem legitimamente uma decisão de conteúdo idêntico.

Será de referir ainda o entendimento deste autor - com o qual concordamos - de que só será de admitir a sanação de um acto mal fundamentado praticado pela Administração Tributária em estrita vinculação, nos termos da lei, sendo que os parâmetros da sua actuação deverão estar totalmente definidos na lei.

[…] Em tempos idos, o próprio STA defendeu o aproveitamento de actos administrativos mal fundamentados, seguindo a doutrina de Vieira de Andrade. Este tribunal superior exigia, em primeiro lugar, que tivesse havido "enunciação suficiente, embora errónea ou inexacta dos fundamentos de facto e de direito da decisão", excluindo os casos de falta ou insuficiência de fundamentação. Por outro lado, o acto a sanar devia ser estritamente vinculado e praticado com o sentido imposto pela lei, "independentemente dos concretos motivos invocados". Por fim, entendia-se que o juiz só podia aplicar o princípio do aproveitamento dos actos administrativos quando pudesse concluir, sem margem para dúvidas, que o acto em causa não podia ter outro conteúdo decisório” (cit., pp. 84-86, sublinhados nossos).

28.    Este Tribunal acompanha sem reservas a posição acabada de citar e nesse sentido defende uma possibilidade genérica de sanação do ato tributário quando esteja em causa errada fundamentação (jurídica) pela AT.

29.    Contudo, e pelas razões apontadas na obra acima citada, tal prerrogativa apenas deverá ser usada no contexto de atos tributários emitidos no exercício de poderes vinculados e nos casos em que a decisão correta seja apenas uma e que se afigure clara e evidente.

30.    Ora, o caso dos autos respeita à emissão de um ato de liquidação de IRS com origem num recebimento que, como vimos, suscitou dúvidas de qualificação à AT e a este tribunal e que abstratamente será até suscetível de originar uma liquidação de Imposto do Selo em vez de IRS. Aliás, isto é confirmado pelo facto de este tribunal ter posto a hipótese de a AT poder ter lançado mão da Cláusula Geral Antiabuso, o que se implica, por natureza, estarmos perante um caso cujo tratamento jurídico está na periferia de uma ideia de vinculação e certeza extremas. Aliás, uma atuação do tribunal, neste caso, para lá da qualificação feita pela AT, colocaria também em causa, com grande probabilidade, o exercício de defesa da requerente.

31.    O que, aplicando a doutrina acima explicitada, afasta a possibilidade de sanação do vício de errada fundamentação por este tribunal, por incumprimento das condições que enunciámos e impõe a efetiva anulação do ato impugnado por vício de violação de lei, i.e. do artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS, com todas as legais consequências, como se fará no segmento decisório, podendo eventualmente a AT vir a enquadrar corretamente o rendimento em causa através de novo ato, caso se encontre dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação no que concerne ao exercício em causa e posteriores.

32.    Por fim, salientar que não consta dos autos qualquer menção ou prova de pagamento do imposto liquidado, razão pela qual não se pondera qualquer condenação em juros indemnizatórios.

IV.    DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando, em consequência o ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação do IRS com o n.º 2024... e conexas demonstrações de acertos de contas e juros, relativa ao ano de 2021, da qual resulta um montante a pagar de € 50.489,90 a título de imposto e juros compensatórios, bem como o próprio ato tributário reclamado, condenando-se a AT, em cumprimento do artigo 100.º da LGT, a praticar todos os atos necessários à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade e ao pagamento das custas do processo.

V.      VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 50.489,90 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

VI.    CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se. 

Lisboa, 12 de setembro de 2025

 

O Árbitro,

João Taborda da Gama