Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1417/2024-T
Data da decisão: 2025-09-12  IRC  
Valor do pedido: € 779.070,86
Tema: IRC – Suprimentos - Variações patrimoniais positivas
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SUMÁRIO: 

 

1.   Os suprimentos distinguem-se das prestações suplementares de capital (que podem configurar variações patrimoniais positivas), na medida em que, enquanto estas visam o reforço do património social podendo ou não ser restituídas, os suprimentos constituem meros empréstimos efetuados pelos sócios à sociedade. Ou seja, os suprimentos são um mero mútuo à sociedade.

2.   É essa também a razão que leva a que os suprimentos não sejam inscritos, em sede de Balanço, em Capitais Próprios, mas sim em Passivo/Ativo.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins (árbitro Presidente), Raquel Franco e Vasco Branco Guimarães (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 5 de março de 2025, acordam no seguinte:

 

 

I.       RELATÓRIO

A.        Identificação das Partes 

Requerente: A... UNIPESSOAL, LDA., com sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa e com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., doravante designada por “Requerente”, notificada dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.° 2018... e n.° 2018 ... e respetivos juros compensatórios, referentes, respetivamente, aos exercícios de 2014 e 2015, vem, ao abrigo do artigo 268.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro e, bem assim, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, solicitar a  CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de “Requerida” ou “AT”.

A Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 30.12.2024, e em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do 
Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei 
n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a AT.

A Requerente tinha apresentado impugnação judicial das liquidações adicionais de IRC ora em crise em 23-04-2019, tendo originado o processo n.º 846/2019.6BELRS, que correu termos no Juízo Tributário Comum, do Tribunal Tributário de Lisboa. Contudo, por sentença datada de 15/01/2025, o Tribunal Tributário de Lisboa declarou a extinção da instância, com fundamento no pedido de desistência da instância apresentado pela Requerente com vista à submissão da causa ao tribunal arbitral ao abrigo do n.º 1, do art.º 268.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro.

Nesta sede, a Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram no prazo legalmente estipulado a aceitação dos respetivos encargos.

Em 14.02.2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 05.03.2025, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer.

 

Depois de vários adiamentos, e por despacho de 04.16.2022, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi agendada para os dias:

a) 7 de julho, às 14h30;

b) 9 de julho, às 14h30 (caso fosse necessário).

As partes compareceram no primeiro dia agendado, tendo sido ouvidas as testemunhas indicadas. As partes ficaram ainda notificadas para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias.

A Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações finais a 03.09.2025. 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

B.  Pedido

A ora Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.° 2018 ... e n.° 2018 ... e respetivos juros compensatórios, referentes, respetivamente, aos exercícios de 2014 e 2015, solicitando, ao abrigo do artigo 268.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro e, bem assim, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.

 

C. Causa de Pedir

A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, com vista à declaração de anulação dos atos de liquidação, e em síntese, o seguinte:

a)     A Requerente é uma sociedade, constituída em 23.03.2009, que tem por objeto a compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, empreendimentos imobiliários e turísticos, arrendamentos e exploração de estabelecimentos comerciais.

b)    Para o efeito, a Requerente encontra-se coletada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, sob o regime geral de IRC, com o código de atividade empresarial (CAE) n.° 68100 “Compra e venda de bens imobiliários”.

c)     Com vista ao exercício da atividade da Requerente, a mesma, atendendo ao seu capital social (de € 5.000,00) e ao seu ativo, tem a necessidade de recorrer a outras formas de financiamento, neste caso recorrendo a suprimentos das suas acionistas (sendo que, no decurso de 2014, em apreço, já existia uma sócia - a sociedade B..., SGPS, S.A. (doravante “B...”)) e evitando a exposição financeira a entidades terceiras.

d)    Assim, em 31.01.2014, foi celebrado um contrato de suprimentos entre a B... e a Requerente, sua participada, nos termos do qual a sociedade C..., LDA. (por seu turno principal acionista da B... e doravante designada por C...”) se obrigava a pagar diretamente um determinado montante (máximo) à ora Requerente, por conta da B... (cf. o Documento 2, junto com o PPA).

e)     Posteriormente, em 9.07.2014, foi celebrado um contrato de suprimentos entre a B... e a Requerente, nos termos do qual a sociedade D..., LDA. (também acionista da B... e doravante designada por “D...”) se obrigava a pagar diretamente outros montantes à ora Requerente, igualmente por conta desta (cf. o Documento 3, junto com o PPA).

f)     Entretanto, no decurso de 2018, a Requerente foi objeto de uma ação de inspeção tributária, em sede de IRC, determinada pelas Ordens de Serviço n.ºs OI2018... e OI2018..., da Direção de Finanças de Lisboa, em que as referidas operações financeiras intragrupo (suprimentos) foram postas em causa, sendo requalificadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira. 

g)    Na sequência da referida inspeção tributária, a Requerente foi notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária, no qual se projetava o seguinte (cf. o Documento 4 junto com o PPA),

·      quanto ao exercício de 2014: uma correção de € 2.011.445,10, referente a uma variação patrimonial positiva, por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única, determinando um resultado tributável corrigido de € 1.977.041,70; e

·      quanto ao exercício de 2015: uma correção de € 1.075.820,43, referente a uma variação patrimonial positiva, igualmente por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única, determinando um resultado tributável corrigido de € 994.279,47.

h)    Por não se conformar com aquele entendimento, a Requerente exerceu o seu direito de audição, no qual invocou, em suma, que (cf. o Documento 5 que se junta e se dá como reproduzido):

·      no caso em análise não se está perante uma variação patrimonial positiva, porquanto os referidos montantes deram entrada na conta da ora Requerente, a título de suprimentos da sua principal acionista (in casu, a sociedade B...);

·      a grande parte dos valores em análise no projeto de relatório de inspeção são provenientes de remessas financeiras oriundas de Angola (com exceção dos montantes disponibilizados pela D...) - país onde a C... (acionista principal da sociedade B...) tem a sua sede -, sendo que, atendendo à dificuldade em retirar os montantes de Angola, os mesmos foram disponibilizados em numerário ou através de compra de moeda; e

·      tratando-se de suprimentos da principal acionista, estes constituem empréstimos à Requerente - que, como tal, implicam para a Requerente a obrigação de os restituir -, pelo que não se está perante uma variação patrimonial positiva - mas sim perante um financiamento que, em termos contabilísticos, implica uma inscrição em Passivo (dívida a sócios), por contrapartida de outra inscrição em Ativo (depósitos) -, uma vez que não se verifica qualquer aumento ou variação (positiva ou negativa) dos capitais próprios da Requerente, na medida em que os montantes emprestados pela sua sócia terão de ser devolvidos nos termos dos referidos contratos de suprimento.

i)      Posteriormente, através de requerimento apresentado em 30.11.2018, a Requerente procedeu à apresentação da documentação que havia protestado juntar aquando da submissão do requerimento de audição prévia, a saber, (i.) a cópia do contrato de suprimentos entre a sociedade B... e a ora Requerente nos termos do qual a sociedade C... se obrigava a pagar diretamente um determinado montante (máximo) à aqui Requerente e (ii.) a cópia do contrato de suprimentos entre a B... e a Requerente, nos termos do qual a sociedade D... se obrigava a pagar diretamente montantes à ora Requerente (cf. o Documento 6, junto com o PPA).

j)      Não obstante a argumentação aduzida pela Requerente, os Serviços de Inspeção Tributária mantiveram, em sede de Relatório Final de Inspeção, as correções propostas (cf. o Documento 7, junto com o PPA).

k)    Na sequência das conclusões do Relatório Final de Inspeção Tributária, a Requerente foi notificada do ato de liquidação adicional IRC n.° 2018 ... - a que corresponde a demonstração de acerto de contas n.° 2018 ...-, referente ao exercício de 2014, onde se apurou o montante de € 533.682,65 a pagar e do ato de liquidação adicional IRC n.° 2018 ... - a que corresponde a demonstração de acerto de contas n.° 2018 ... -, referente ao exercício de 2015, onde se apurou o montante de € 245.388,21 a pagar (cf. o Documento 8 e 9, juntos com o PPA).

l)      Dado que a Requerente não procedeu ao pagamento voluntário das liquidações adicionais de IRC acima referenciadas, foram instaurados os processos de execução fiscal n.ºs ...2019... e ...2019..., relativos aos exercícios de 2014 e 2015, respetivamente.

m)   A Requerente não se conforma com as liquidações adicionais de IRC, que reputa de manifestamente ilegais e violadoras das regras fiscais e contabilísticas vigentes.

 

 

D. Da resposta da Requerida 

A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese, alegou o seguinte:

a)     A fundamentação invocada pela Requerente nos presentes autos não difere da que havia anteriormente alegado, quer em sede de exercício do direito de audição prévia sobre o projeto de RIT, bem como em sede de impugnação judicial, inexistindo quaisquer factos ou fundamentos que imponham uma apreciação das questões de forma diversa da que já foi efetuada pelos serviços da AT, os quais contraditaram plenamente os argumentos que sustentam a alegada ilegalidade da correção contestada.

b)    A Requerente sustenta, em síntese, que “não se verifica qualquer variação patrimonial positiva no caso sub judice (…) porquanto (…) os referidos montantes deram entrada na conta da ora Requerente , a título de suprimentos da sua principal acionista (in casu, a sociedade B...).

c)     E tal facto resulta provado pelos contratos de suprimentos apresentados em sede de inspeção tributaria” (cfr. art. 12.º, 21.º e 24.º do PPA)

d)    A Requerente está enquadrada, para efeitos de IRC, no Regime Geral e, para efeitos de IVA encontra-se enquadrada no regime de isenção previsto no art.º 9.º do CIVA - cf. ponto II.3.1 “Caracterização do Sujeito Passivo – Atividade desenvolvida ” do RIT.

e)     A Requerente foi alvo de inspeção externa no cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2018... e n.º OI2018..., ambas com o código PNAITA 1..., relativas aos períodos de 2014 e 2015, de âmbito parcial (IRC), que visou identificar e comprovar a origem de eventuais financiamentos que serviram para adquirir imóveis, constando do ponto II.2 “Motivos e âmbitos de incidência temporal” do RIT que:

f)     “No âmbito da ação inspetiva realizada a E..., NIF ... ao abrigo da 012016..., constatou-se a existência de elevados fluxos financeiros de e para a sociedade A... Unipessoal Lda, cuja origem/proveniência era necessário averiguar.

g)    Em anos anteriores a sociedade "A..." adquiriu imóveis recorrendo a financiamentos de sócios, cuja origem do dinheiro não foi justificada.

h)    Nos anos de 2014 e de 2015 a sociedade "A..." adquiriu imóveis com recurso a dinheiro que entrou nas suas contas bancárias cuja origem não foi justificada, bem como com suprimentos efetuados pela sociedade "B... SGPS", NIF ....

i)      Pelo exposto as ordens de serviço abertas para a sociedade “A..." visam identificar e comprovar a origem de eventuais financiamentos que serviram para adquirir imóveis.

j)      Foram objeto de análise os períodos de 2014 e de 2015 em sede de IRC.”.

k)    Através do ofício n.º ... de 30-10-2018 (RH ...PT) a Requerente foi notificada do Projeto de Correções do Relatório de Inspeção Tributária, nos termos do art.º 60.º da LGT e do art.º 60 do RCPITA, para, querendo, exercer o direito de audição.

l)      A Requerente em 21-11-2018 exerceu o seu direito de audição prévia – cf. ponto IX “Direito de audição” do RIT.

m)   O procedimento inspetivo culminou com a elaboração do Relatório Final de Inspeção Tributária, tendo os SIT proposto correções em sede de IRC que totalizaram €2.011.445,10, para o ano de 2014, e €1.075.820,43 para o ano de 2015.

n)    Através do ofício n.º ... de 04-12-2018 foi a representante legal da Requerente notificada, por correio registado (RH...PT), do Relatório Final de Inspeção Tributária, o qual mereceu despacho do Diretor de Finanças em 04-12-2018.

o)    Na sequência da ação inspetiva foram emitidas, para o ano de 2014, a liquidação adicional de IRC n.º 2018... no montante de €466.251,84, a liquidação de juros compensatórios n.º 2018... no montante de €65.300,80, acrescido da liquidação de juros compensatórios por recebimento indevido n.º 2018... no montante de €251,01, perfazendo o montante total a pagar de €533.682,65, após estorno, conforme nota de cobrança – demonstração de compensação n.º 2018 ..., com data limite de pagamento em 21-01-2019.

p)    Não tendo o suprarreferido pagamento sido efetuado, foi emitida a certidão de dívida n.º 2019 ... e instaurado em 28-01-2019 o PEF n.º ...2019... .

q)    Na sequência da ação inspetiva foi emitida para o ano de 2015 a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., no montante de €216.929,71, a liquidação de juros compensatórios n.º 2018... no montante de €21.681,08 e a liquidação de juros compensatórios recebimento indevido n.º 2018... no montante de €594,26, perfazendo o montante total a pagar de €245.388,21, após estorno, conforme nota de cobrança demonstração de compensação n.º 2018..., com data limite de pagamento em 25-01-2019.

r)     Não tendo sido efetuado o referido pagamento foi emitida a certidão de dívida n.º 2019..., e instaurado em 01-02-2019 o PEF n.º ...2019... .

s)     Inconformada com as liquidações adicionais de IRC ora em crise, a Requerente apresentou a impugnação judicial em 23-04-2019, tendo originado o processo n.º 846/2019.6BELRS que correu termos no Juízo Tributário Comum, do Tribunal Tributário de Lisboa.

t)      Por sentença datada de 15/01/2025, o Tribunal Tributário de Lisboa declarou a extinção da instância, com fundamento no pedido de desistência da instância apresentado pela Requerente com vista à submissão da causa ao tribunal arbitral ao abrigo do n.º 1, do art.º 268.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro.

u)    Em 27/12/2024, foi apresentado pela Requerente o pedido de Constituição de Tribunal Arbitral em Matéria Tributária, nos termos da alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

II.       SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1 e artigo 5.º, nºs. 1 e 3 ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, nº 2, ambos do RJAT.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

Não foi suscitada matéria de exceção. 

O processo não enferma de nulidades. 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.       FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. Matéria de facto 

E.  Factos provados

Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, cumpre enunciar os factos relevantes que se julgam provados nos documentos juntos pelas Partes ao presente processo, bem como na prova testemunhal realizada em audiência de prova:

a)     A Requerente é uma sociedade, constituída em 23.03.2009, que tem por objeto a compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, empreendimentos imobiliários e turísticos, arrendamentos e exploração de estabelecimentos comerciais.

b)    Para o efeito, a Requerente encontra-se coletada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, sob o regime geral de IRC, com o código de atividade empresarial (CAE) n.° 68100 “Compra e venda de bens imobiliários”.

c)     Com vista ao exercício da sua atividade, e para evitar a exposição financeira a terceiros, a Requerente teve necessidade de recorrer a formas de financiamento, nomeadamente a suprimentos das suas acionistas.

d)    Em 31.01.2014 foi celebrado um contrato de suprimentos entre a B... e a Requerente, sua participada, nos termos do qual a sociedade C..., LDA. (por seu turno principal acionista da B...) se obrigava a pagar diretamente um determinado montante (máximo) à ora Requerente, por conta da B... (cf. o Documento 2 junto com o PPA).

e)     Em 9.07.2014, foi celebrado um contrato de suprimentos entre a B... e a Requerente, nos termos do qual a sociedade D..., LDA. (também acionista da B...) se obrigava a pagar diretamente outros montantes à ora Requerente, igualmente por conta desta (cf. o Documento 3 junto com o PPA).

f)     A grande parte dos valores objeto dos referidos contratos de suprimentos foram enviados à Requerente através de remessas financeiras oriundas de Angola (com exceção dos montantes disponibilizados pela D...) - país onde a C... (acionista principal da sociedade B...) tem a sua sede -, sendo que, atendendo à dificuldade em retirar os montantes de Angola, os mesmos foram disponibilizados em numerário ou através de compra de moeda; 

g)    No decurso de 2018, a Requerente foi objeto de uma ação de inspeção tributária, em sede de IRC, parcial determinada pelas Ordens de Serviço n.ºs OI2018... e OI2018..., da Direção de Finanças de Lisboa, em que as referidas operações financeiras intragrupo (suprimentos) foram postas em causa, sendo requalificadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira. 

h)    Na sequência da referida inspeção tributária, a Requerente foi notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária, no qual se projetava o seguinte (cf. o Documento 4 junto com o PPA),

·      quanto ao exercício de 2014: uma correção de € 2.011.445,10, referente a uma variação patrimonial positiva, por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única, o que determina um resultado tributável corrigido de € 1.977.041,70; e

·      quanto ao exercício de 2015: uma correção de € 1.075.820,43, referente a uma variação patrimonial positiva, igualmente por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única, o que determina um resultado tributável corrigido de € 994.279,47.

i)      A Requerente exerceu o seu direito de audição (cf. o Documento 5 junto com o PPA) sustentando a qualificação dos empréstimos em causa como contratos de suprimentos, que, como tal, implicam para a Requerente a obrigação de os restituir, pelo que não se está perante uma variação patrimonial positiva - mas sim perante um financiamento que, em termos contabilísticos, implica uma inscrição em Passivo (dívida a sócios), por contrapartida de outra inscrição em Ativo (depósitos);

j)      Não obstante a argumentação aduzida pela Requerente, os Serviços de Inspeção Tributária mantiveram, em sede de Relatório Final de Inspeção, as correções propostas (cf. o Documento 7 junto com o PPA).

k)    Na sequência das conclusões do Relatório Final de Inspeção Tributária, a Requerente foi notificada do ato de liquidação adicional IRC n.° 2018 ... - a que corresponde a demonstração de acerto de contas n.° 2018 ... -, referente ao exercício de 2014, onde se apurou o montante de € 533.682,65 a pagar e do ato de liquidação adicional IRC n.° 2018 ... - a que corresponde a demonstração de acerto de contas n.° 2018 ... -, referente ao exercício de 2015, onde se apurou o montante de € 245.388,21 a pagar (cf. o Documento 8 e 9 juntos com o PPA).

l)      Dado que a Requerente não procedeu ao pagamento voluntário das liquidações adicionais de IRC acima referenciadas, foram instaurados os processos de execução fiscal n.ºs ...2019... e ...201..., relativos aos exercícios de 2014 e 2015, respetivamente.

 

F.  Factos não provados e fundamentação e fixação da matéria de facto

Com relevo para a decisão não existem factos não provados.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT. 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

III. 2. Matéria de Direito 

Atenta a posição das partes, assente nos argumentos apresentados, a questão central que importa analisar neste processo prende-se com a qualificação, para efeitos fiscais, das valores recebidos pela Requerente, maioritariamente através de remessas em numerário provenientes de Angola, que esta sustenta terem sido realizadas a título de suprimentos, e que a AT entende que devem ser consideradas variações patrimoniais positivas por considerar a sua origem desconhecida.

Está em causa, recorde-se, relativamente ao exercício de 2014, uma correção de € 2.011.445,10, referente a uma variação patrimonial positiva, por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única da Requerente, o que determinou um resultado tributável corrigido de € 1.977.041,70 para esse ano; e, relativamente ao exercício de 2015, uma correção de € 1.075.820,43, referente a uma variação patrimonial positiva, igualmente por requalificação dos montantes contabilizados a título de suprimentos da sócia única, o que determinou um resultado tributável corrigido de € 994.279,47 para esse ano.

Entende a AT que as entradas em dinheiro incrementaram o património da Requerente, inicialmente através do aumento dos respetivos depósitos bancários e, posteriormente, como meio para a aquisição de imóveis, e que, não tendo sido justificada a origem do dinheiro, se verificou um acréscimo no património da Requerente que constitui uma variação patrimonial positiva. A Requerente esclareceu que os referidos montantes deram entrada nas suas contas a título de suprimentos e que a razão pela qual as entradas se fizeram através de valores em numerário provenientes de Angola se prende com o facto de que a alternativa mais comum, isto é, de os valores em causa serem objeto de uma transferência bancária, ou de várias transferências bancárias, não era exequível atendendo às dificuldades práticas encontradas na realização desse tipo de operações a partir de Angola. 

Ou seja, a primeira explicação fornecida pela Requerente para a realização das operações em causa e para a entrada de valores nas suas contas bancárias foi a celebração dos contratos de suprimentos oportunamente apresentados como prova, ainda no âmbito do processo administrativo, e que este Tribunal não tem razões para questionar do ponto de vista da sua veracidade. 

Depois de fornecidos os contratos de suprimentos pela Requerente, a Requerida manteve a sua posição de que os valores em causa deveriam ser tratados como variações patrimoniais positivas por entender que a origem dos valores em causa não era clara. Contudo, na audiência oportunamente realizada, diversas testemunhas tiveram oportunidade de explicar como se processavam as remessas de numerário para Portugal ao abrigo dos referidos contratos, tendo-o feito de uma forma que este Tribunal entendeu como clara e esclarecedora. Assim, também não logrou a AT pôr em causa a veracidade das alegações feitas, por parte da Requerente, quanto à origem dos montantes que entraram, nos períodos em causa, nas suas contas bancárias, e que a Requerida entendeu, por não encontrar justificação para os mesmos, como variações patrimoniais positivas.

Ora, resultando provado dos elementos reunidos nos autos que, efetivamente, houve contratos de suprimentos celebrados nos termos descritos pela Requerente e não havendo razões para não aceitar as justificações apresentadas nos autos para a circunstância de os respetivos valores terem sido remetidos à Requerente como o foram, não vislumbra este Tribunal razões suficientes para pôr em causa as justificações e explicações fornecidas pela Requerente para os factos em litígio. 

Assim, estando em causa, como parecem estar, suprimentos realizados a favor da Requerente, estes constituem empréstimos que implicam a correspondente obrigação de restituição por parte daquela, devendo ser, em termos contabilísticos, inscritos no respetivo Passivo como dívida a sócios, por contrapartida da inscrição no Ativo, neste caso, como depósitos bancários.

Deste modo, não assiste razão à AT quando sustenta que os respetivos valores devem ser requalificados como variações patrimoniais positivas, uma vez que não se verifica qualquer aumento ou variação (positiva) dos capitais próprios da Requerente, já que os montantes mutuados terão de ser restituídos nos termos dos referidos contratos de suprimento, como, de resto, parcialmente já foram.

O artigo 23.º do CIRC dispõe que:

1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido do período de tributação, exceto:

a) As entradas de capital, incluindo os prémios de emissão de ações ou quotas, as coberturas de prejuízos, a qualquer título, feitas pelos titulares do capital, bem como outras variações patrimoniais positivas que decorram de operações sobre ações, quotas e outros instrumentos de capital próprio da entidade emitente, incluindo as que resultem da atribuição de instrumentos financeiros derivados que devam ser reconhecidos como instrumentos de capital próprio; 

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

c) As contribuições, incluindo a participação nas perdas do associado ao associante, no âmbito da associação em participação e da associação à quota;

d) As relativas a impostos sobre o rendimento.

e) O aumento do capital próprio da sociedade beneficiária decorrente de operações de fusão, cisão, entrada de ativos ou permuta de partes sociais, com exclusão da componente que corresponder à anulação das partes de capital detidas por esta nas sociedades fundidas ou cindidas.

2 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado, não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo.

GUSTAVO COURINHA observa que as “[v]ariações patrimoniais são uma demonstração da pretensão de completude do IRC e da proximidade ao rendimento real (de que são um corolário), não deixando zonas por tributar. Elas ultrapassam os meros resultados contabilisticamente registados pela empresa e relevados fiscalmente e abarcam quaisquer outras oscilações de património (acréscimos ou decréscimos) apuradas no período de tributação”. (sublinhado nosso)

Alega a AT que “a forma de refletir as variações patrimoniais positivas no lucro tributável é proceder ao seu acréscimo no campo 702 do quadro 07 da declaração modelo 22 – Variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado liquido do período (art.º 21.º)”, e que “O quadro 07 da declaração modelo 22 serve precisamente para se fazerem os acréscimos e deduções legalmente previstos ao resultado liquido (resultado contabilístico), por forma a obter o resultado fiscal relativamente ao qual vai incidir a tributação” concluindo que, “in casu, a análise das DM 22 dos anos de 2014 e de 2015 permite constatar que a Requerente não efetuou o acréscimo dos valores depositados em numerário no quadro 07 das referidas declarações, o que significa que os referidos valores não foram objeto de tributação.”

Contudo, tratando-se, os valores em litígio, de suprimentos realizados a favor da Requerente pela sua sócia, estes constituem empréstimos à Requerente que, como tal, implicam para esta a obrigação de restituir (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17.11.2011, proferido no processo n.° 00467/07.6BEBRG e, ainda, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.01.1992, proferido no processo n.° 077834, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Note-se, ainda, que os suprimentos se distinguem das prestações suplementares de capital (que podem configurar variações patrimoniais positivas), na medida em que, enquanto estas visam o reforço do património social, podendo, ou não, ser restituídas, os suprimentos constituem meros empréstimos efetuados pelos sócios à sociedade. Ou seja, os suprimentos são um mero mútuo à sociedade (cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in Manual de Direito das Sociedades, Volume II, 2.ª edição, Coimbra: Almedina, 2007, página 289).

É essa também a razão que leva a que os suprimentos não sejam inscritos, em sede de Balanço, em Capitais Próprios, mas sim em Passivo/Ativo.

Portanto, é a própria razão para a qualificação dos montantes em causa como variações patrimoniais positivas – a qual constitui um passo necessário na argumentação utilizada pela AT para proceder às correções em causa – que falha por falta de sustentação fáctica. Nesse sentido, não pode este Tribunal concordar com essas correções, de onde resulta, consequentemente, a improcedência do pedido de anulação das liquidações adicionais de IRC em litígio, com referência aos períodos de tributação de 2014 e 2015 da Requerente.

 

IV.       DECISÃO 

Termos em que se decide:

a)  Julgar procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.° 2018 ... e n.° 2018 ... e respetivos juros compensatórios, referentes, respetivamente, aos exercícios de 2014 e 2015, dos quais resultou o valor a pagar de € 779.070,86;

b)  Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

V.       VALOR DO PROCESSO

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 779.070,86, que a AT não questionou e que corresponde ao valor da liquidação de imposto a que se pretendia obstar, para efeitos do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa. 

VI.       CUSTAS

Custas a cargo da Requerida, no montante de € 11.322,00, nos termos dos artigos 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de setembro de 2025

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins

 

A Árbitra vogal

 

Raquel Franco

 

O Árbitro vogal

 

Vasco Branco de Guimarães