Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 18/2025-T
Data da decisão: 2025-09-04  IRC  
Valor do pedido: € 72.353,41
Tema: IRC – Derrama municipal – rendimentos provenientes do estrangeiro
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SUMÁRIO: 

Para efeitos de cálculo da Derrama Municipal, deve ser excluída do lucro tributável sujeito e não isento de IRC a componente do lucro tributável obtida fora do território nacional.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, João Pedro Rodrigues e Cristina Aragão Seia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I.          RELATÓRIO

 

1.          A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, representação permanente de sociedade de Direito Espanhol, com sede em ..., ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, titular do número único de identificação de pessoa colectiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ... (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo, nomeadamente, dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação das autoliquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) plasmadas na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 (“Modelo 22”) de IRC n.º ..., referente ao exercício de 2019, e na Modelo 22 de IRC n.º ..., referente ao exercício de 2020, na parte correspondente à derrama municipal, no montante total de € 72.353,41, e, bem assim, da decisão final de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto tributário apresentada por aquela.

 

2.          O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”) em 3 de Janeiro de 2025.

 

3.          O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

 

4.          As partes foram notificadas dessa designação em 21 de Fevereiro de 2025, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

5.          Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 11 de Março de 2025.

 

6.          Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo em 21 de Abril de 2025, tendo-se defendido por excepção e por impugnação e pugnado pela sua absolvição da instância e do pedido.

 

7.          Em 23 de Abril de 2025, foi proferido despacho no qual se concedia à Requerente o prazo de 10 dias para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.

 

8.          Em 8 de Maio de 2025, a Requerente apresentou requerimento no qual respondeu à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.

9.          Em 22 de Maio de 2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e a notificar as partes para, querendo, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias, o que vieram a fazer, a a Requerida em 6 de Junho de 2025 e a Requerente em 12 de Junho de 2025.

 

II.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

§1 -   Posição do Requerente

 

10.       Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:

i.            A autonomia local é um pilar da organização territorial portuguesa, prevista no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), que garante a descentralização administrativa;

ii.          O artigo 238.º, da CRP, consagra que as autarquias locais possuem património, finanças próprias e podem dispor de poderes tributários;

iii.         O Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro (“RFALEI”), concretiza estes princípios constitucionais, garantindo uma justa repartição de recursos entre Estado e autarquias;

iv.         O artigo 3.º, n.º 2, alínea c), do RFALEI, sujeita a actividade financeira das autarquias aos princípios da autonomia financeira e justa repartição de recursos;

v.          O artigo 6.º, do RFALEI, reforça que a autonomia inclui poderes tributários para liquidar, arrecadar e gerir receitas próprias;

vi.         O artigo 10.º, do RFALEI, estabelece o equilíbrio financeiro vertical, adequando recursos às competências locais;

vii.       Neste contexto, surge a derrama municipal, imposto destinado a financiar a actividade dos municípios;

viii.      O Tribunal Constitucional reconhece a derrama municipal como manifestação do poder tributário municipal, essencial para a autonomia financeira;

ix.         O produto da derrama municipal é receita própria dos municípios, em conformidade com o artigo 14.º, alínea c), do RFALEI;

x.          O artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI, define que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável de IRC “que corresponda à proporção do rendimento gerado” no município;

xi.         A sujeição à derrama municipal exige a (i) presença do sujeito passivo num município português e a (ii) ligação directa entre a actividade exercida e os rendimentos obtidos;

xii.       Quanto à incidência objectiva da derrama municipal, só deve ser tributado o lucro gerado na área geográfica do município;

xiii.      Os rendimentos de fonte estrangeira não podem integrar a base de incidência da derrama municipal;

xiv.      As Modelo 22 não permitem distinguir a proveniência (nacional e/ou estrangeira) dos rendimentos, o que conduziu a que a Requerente não conseguisse excluir os rendimentos de fonte estrangeira da base de incidência da derrama municipal;

xv.        Os rendimentos de fonte estrangeira obtidos pela Requerente não estão conexos com a actividade comercial que desenvolve, pelo que não podem considerar-se como sendo decorrentes do exercício da actividade económica na área geográfica dos municípios onde se encontra presente;

xvi.      A Requerente suportou derrama municipal sobre rendimentos sem conexão com municípios portugueses;

xvii.     Para calcular a derrama municipal, é necessário subtrair os rendimentos estrangeiros do lucro tributável e só depois aplicar a taxa de derrama municipal sobre o lucro tributável gerado em território nacional;

xviii.   Essa interpretação é corroborada por jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), que exclui rendimentos estrangeiros da derrama municipal;

xix.      Também a jurisprudência arbitral tem vindo a adoptar o mesmo entendimento, considerando ilegal a tributação em sede de derrama municipal de rendimentos obtidos no estrangeiro;

xx.        Os actos tributários em questão devem reflectir apenas a parcela de lucro gerado em Portugal, com exclusão integral dos rendimentos de fonte estrangeira.

xxi.      A inclusão desses rendimentos de fonte estrangeira viola o disposto no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI, justificando a anulação das autoliquidações na parte correspondente;

xxii.     Padecendo os actos tributários em questão vício de violação de lei e tendo a Requerente suportado derrama em excesso (face ao legalmente devido), verifica-se o direito à percepção de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

11.       A Requerente invocou, ainda, em resumo, em sede de resposta às excepções aduzidas pela Requerida, o seguinte:

i.                   O entendimento perfilhado pela Requerida quanto à alegada incompetência material do tribunal arbitral, assenta numa errónea interpretação dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”), 131.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”);

ii.                 A obrigatoriedade de prévio “recurso à via administrativa” nos casos de autoliquidação de imposto não se limita ao procedimento tributário de reclamação graciosa;

iii.                Esta obrigatoriedade permite à Requerida ter, pela primeira vez, a oportunidade de apreciar a legalidade daqueles actos tributários;

iv.                Este é o motivo pelo qual o legislador consagrou um ónus de reclamação necessária de autoliquidações de imposto: possibilitar que a Requerida se pronuncie sobre a (i)legalidade do acto tributário sem necessidade de recurso aos tribunais tributários (ou arbitrais);

v.                 Para efeitos de impugnação contenciosa (judicial ou arbitral) de actos de autoliquidação, o pressuposto procedimental relativo à obrigatoriedade de precedência de reclamação graciosa – cfr. artigo 131.º, n.º 1, do CPPT – basta-se com a existência de um procedimento tributário prévio em que a pretensão do sujeito passivo se reconduza à apreciação da legalidade daqueles actos tributários por parte da Requerida;

vi.                O procedimento de revisão oficiosa – enquanto procedimento tributário destinado à declaração de ilegalidade e anulação de actos tributários, nos termos do artigo 54.º, n.º 1, alínea c), da LGT – também preenche o requisito procedimental relativo à obrigatoriedade de prévio “recurso à via administrativa” para efeitos de impugnação contenciosa de actos de autoliquidação de imposto, nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, 2.º, alínea a), da Portaria de Vinculação, e 131.º, n.º 1, do CPPT;

vii.              A equiparação do pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa necessária para efeitos de impugnação contenciosa de actos de autoliquidação é amplamente reconhecida pelo STA;

viii.             No mesmo sentido já se tem pronunciado a jurisprudência arbitral, inclusivamente em casos idênticos ao dos presentes autos (i.e., em processos cujo objecto imediato é uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa de autoliquidação de IRC, peticionando-se a sua anulação parcial no que respeita à derrama municipal);

ix.                Sendo o pedido de revisão oficiosa equiparável à reclamação graciosa necessária prevista no artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, claudicam todos os argumentos invocados pela Requerida, inclusive, a alegada questão de inconstitucionalidade por esta suscitada na sua resposta, que manifestamente não se verifica;

x.                 A excepção invocada pela Requerida deve ser julgada improcedente, devendo os presentes autos prosseguir termos, quanto a todos os pedidos formulados pela Requerente.

 

§2 -   Posição da Requerida

 

12.       Por seu turno, a Requerida contestou a posição da Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:

i.                   O tribunal arbitral é incompetente para apreciar o indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa de acto tributário, dado que tal apreciação extravasa as competências que lhe estão reservadas por lei, à luz dos artigos 2.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, do RJAT, e do artigo 2.º, alínea a), da Portaria de Vinculação;

ii.                 O legislador restringiu o conhecimento na jurisdição arbitral às pretensões que, sendo relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, tenham sido precedidas de reclamação;

iii.                A Requerida apenas se vinculou, nos termos da Portaria de Vinculação, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de acto de liquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação graciosa;

iv.                Apesar da jurisprudência equiparar a natureza administrativa do procedimento de revisão oficiosa à reclamação graciosa necessária, tal equiparação é vedada em sede arbitral;

v.                 Os litígios que tenham por objecto a declaração de ilegalidade de autoliquidações, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais, se não forem precedidos de reclamação graciosa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º, do CPPT;

vi.                É constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito, da separação dos poderes e da legalidade, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da Requerida à tutela arbitral fixada legalmente;

vii.              A incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação da autoliquidação de IRC inerente ao pedido de revisão oficiosa de acto tributário consubstancia uma excepção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa;

viii.             O pedido arbitral tem como objecto mediato o IRC de 2019 e 2020 e como objecto imediato o indeferimento do pedido de revisão oficiosa;

ix.                O litígio centra-se na derrama municipal liquidada, no montante de € 72.353,41, e centra-se em aferir se este tributo pode incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento que inclua rendimentos de fonte estrangeira;

x.                 Os rendimentos obtidos pela Requerente, decorrentes de investimentos que realizou, são directamente conexos com a actividade comercial exercida por aquela em território português;

xi.                Esses rendimentos não podem ficar desassociados da área de negócio da Requerente, já que servem de base de para os eventuais pagamentos das suas obrigações contratuais com os seus beneficiários, colocando-os na esfera da actividade empresarial e na sede da entidade. 

xii.              Para a obtenção desses rendimentos, foram inevitavelmente suportados gastos directos e indirectos suportados pela entidade, tais como gastos com pessoal, com a gestão de activos, com encargos financeiros e outras despesas;

xiii.             O entendimento da Requerente colide com disposições legais do ordenamento jurídico português, bem como com jurisprudência do Tribunal Constitucional e do STA;

xiv.             A base de incidência da derrama municipal é a mesma que a do IRC, a do lucro tributável;

xv.               De acordo com o artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI, estabeleceu-se a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama aplicável às sociedades e outras pessoas colectivas, cuja sede ou estabelecimento se situem na sua área geográfica, por sujeitos passivos residentes em território que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território;

xvi.             A derrama visa financiar os municípios, pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respectivos municípios de sociedades comerciais (infra-estruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.);

xvii.            A derrama municipal recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro;

xviii.          O regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respectiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias;

xix.             Não se pode inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso;

xx.               O legislador determina que, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição da derrama pelos diferentes municípios nos termos do n.º 2, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo, tal como foi efectuado pela Requerente nas autoliquidações controvertidas e em estrito cumprimento desta lei;

xxi.             A tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e dos obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos, sem que haja qualquer excepção quanto a rendimento provenientes do estrangeiro;

xxii.            A Requerente pretende excluir, para efeitos de revisão do valor da derrama municipal, o montante dos rendimentos obtidos no estrangeiro, porém, o seu cálculo é sobre o lucro tributável, onde, naturalmente, estão incluídos os gastos que incorreu para obter esses rendimentos;

xxiii.          Não são rendimentos de geração espontânea, como defende a Requerente;

xxiv.          A Requerente também não cumpriu com o ónus de prova que lhe compete, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, no que tange à exigências de prova que lhe competiam para poder expurgar da base de incidência da derrama municipal do lucro tributável comprovadamente obtido em resultado dos rendimentos obtidos no estrangeiro, para efeitos daquele cálculo, não juntando quaisquer documentos probatórios do lucro tributável apurado naquelas operações realizadas com origem no estrangeiro;

xxv.            Se o legislador pretendesse que o lucro tributável que serve de base à imputação, nos termos do n.º 2 do artigo 14.º do RFALEI, pudesse ser objecto de ajustamentos com a finalidade de expurgar algumas realidades nele incorporadas (e.g. lucros ou prejuízos imputáveis a estabelecimentos estáveis) teria de o dizer expressamente e, além disso, prever as regras aplicáveis para a sua execução;

xxvi.          A coincidência entre o conceito de lucro tributável para efeitos do IRC e da determinação da base de incidência da derrama tem sido reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência do STA e resulta da melhor interpretação conjugada das normas reguladoras deste tributo;

xxvii.         Para efeitos das convenções para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento, celebradas por Portugal, a derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento, pelo que se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fracção da colecta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque na base de cálculo da derrama estão incluídos não só sobre os rendimentos (e gastos) provenientes do território português, mas também os com origem no estrangeiro;

xxviii.       São manifestamente improcedentes os argumentos aventados pela Requerente, devendo manter-se as autoliquidações de IRC, porquanto nenhuma ilegalidade lhes pode ser assacada;

xxix.          As liquidações em causa não provem de qualquer erro dos serviços mas decorrem directamente da aplicação da lei; 

xxx.            A Requerida limitou-se, portanto, a aplicar as consequências jurídicas, que, do ponto de vista fiscal, se impunham face à ocorrência dos pressupostos de facto e de direito, devendo, por conseguinte, ser julgada improcedente a impugnação quanto aos juros peticionados.

 

III.      SANEAMENTO

 

13.       Para efeitos de saneamento do processo cumpre primeiramente apreciar a excepção enunciada pela Requerida na sua Resposta.

 

§ -     Da incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral

 

14.       Em relação à questão da competência material dos tribunais arbitrais constituídos no seio do CAAD, entende-se que o pressuposto visado pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, e pelo artigo 2.º, alínea a), da Portaria de Vinculação, é o de impor uma filtragem administrativa prévia à via arbitral, que confira à Requerida a possibilidade de sindicar a legalidade dos actos tributários contestados e, dessa forma, decidir sobre a sua manutenção ou anulação da ordem jurídica. 

 

15.       Assim, a apresentação de um pedido de revisão oficiosa pela Requerente permite colmatar a necessidade de apresentar reclamação graciosa, assegurando o mencionado pressuposto.

 

16.       Isto é, o que importa é assegurar uma apreciação administrativa das autoliquidações de imposto antes da respectiva contestação junto dos Tribunais, e a revisão oficiosa permite fazê-lo. 

 

17.       De resto, a circunstância de a Requerida ter proferido decisão expressa no sentido de indeferir tal pedido de revisão oficiosa é uma evidência adicional – se dúvidas houvesse – de que houve essa apreciação administrativa prévia à contestação efectuada pelos contribuintes (neste caso, a Requerente) junto dos Tribunais (reforçando, de resto, a imputabilidade do erro à própria Requerida). 

 

18.       A este propósito este Tribunal adere à decisão arbitral, de 15.04.2024, proferida no processo n.º 560/2023-T, que refere o seguinte:

O recurso à via administrativa é exigido como condição de impugnabilidade contenciosa dos atos de retenção na fonte e de autoliquidação nos termos do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e da remissão por esta operada para o artigo 131.º do CPPT, que dispõe que a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.

Tal alegação [da Requerida] é, todavia improcedente, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, tendo sido apresentado previamente à propositura da ação arbitral, entendimento reiterado sucessivamente pela doutrina e jurisprudência portuguesas.

É verdade que os artigos 131.º e 132.º do CPPT, para os quais a Portaria n.º 112-A/2011 remete, fazem referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação e as retenções na fonte (em que os contribuintes atuam em substituição e no interesse da Autoridade Tributária) sejam objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte ou nas retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.

Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência portuguesas (acórdão do STA de 12.07.2006, Processo nº 042/06) veem no pedido de revisão do ato tributário um meio impugnatório administrativo com um prazo mais alargado que os restantes, um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária.

Como referido por Carla Castelo Trindade (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado” Coimbra, 2016, Almedina, páginas 96 e 97 “(…) as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessidade de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária, mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.

E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.”

Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid(a)s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.

Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011, aludindo-se neste sentido às decisões proferida nos processos arbitrais n.º 245/2013-T e 678/2021T.

De igual modo, o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação, entre outros, no acórdão de 26.05.2022, no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB, cujo excerto se transcreve de seguida:

O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa (cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)(…)”

De referir ainda que o problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da impugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.)Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer (vide decisão do processo arbitral n.º 397/2019-T, de 12 de junho de 2020).

Em qualquer caso, independentemente da qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação e/ou de retenção na fonte que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011” (com negritos nossos).

19.       É também este entendimento que vem sendo seguido pelo STA, recordando-se aqui o exposto por este tribunal no acórdão de 08.02.2017, proferido no processo n.º 0678/16, em que o mesmo conclui que “[a] circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do acto de liquidação, não obsta a que seja pedida a respectiva revisão oficiosa e seja impugnado contenciosamente o eventual acto de indeferimento desta”.

 

20.       Em função do acima exposto, é de concluir que a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral arguida pela Requerida terá de ser julgada improcedente, podendo o Tribunal conhecer o pedido de pronúncia arbitral.

 

21.       Termos em que o pedido foi tempestivamente apresentado, tal como dispõe o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

22.       O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT.

 

23.       As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º, da Portaria de Vinculação.

 

IV.      MATÉRIA DE FACTO

 

§1 -   Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

24.       O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

25.       Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

26.       Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pelo Requerente, do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

27.       Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

§2 -   Factos provados 

 

28.       Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

i.                   A Requerente é a representação permanente, em território português, da B..., S.A., sociedade de Direito Espanhol;

ii.                 A Requerente exerce, a título principal, a actividade seguradora e resseguradora do ramo vida e não-vida, designadamente automóvel, acidentes de trabalho e incêndio, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro; 

iii.                A Requerente prossegue a sua actividade comercial em território nacional, auferindo, por isso, rendimentos de fonte portuguesa; 

iv.                A Requerente aufere também rendimentos de fonte estrangeira, decorrentes da aplicação de capital em diversos instrumentos financeiros e outros investimentos;

v.                 Até 2024, a Requerente usava a designação social C..., S.A. - Sucursal em Portugal;

vi.                O formulário da Modelo 22 não permite que seja reflectido o lucro tributável em função da proveniência (nacional ou estrangeira) do rendimento obtido pelo sujeito passivo, e assim, excluir da base de incidência objectiva da derrama municipal, os rendimentos de fonte estrangeira; 

vii.              Em relação ao exercício de 2019, a Requerente entregou a Modelo 22, à qual foi atribuído o n.º ..., no dia 31.07.2020;

viii.             Nesta Modelo 22, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 1.891.740,54;

ix.                Nessa Modelo 22, a Requerente, no campo 364, do quadro 10, declarou o montante de € 28.376,11, a título de derrama municipal;

x.                 Relativamente ao exercício de 2019, a Requerente entregou a declaração anual de informação empresarial simplificada (“IES”), à qual foi atribuído o n.º ..., no dia 22.09.2020;

xi.                Nessa IES, a Requerente declarou, no quadro 4, do anexo H, os rendimentos por si obtidos no estrangeiro, os quais ascenderam a € 17.061.482,70;

xii.              Em relação ao exercício de 2020, a Requerente entregou a Modelo 22, à qual foi atribuído o n.º ..., no dia 19.07.2021;

xiii.             Nesta Modelo 22, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 13.160.237,98;

xiv.             Nessa Modelo 22, a Requerente, no campo 364, do quadro 10, declarou o montante de € 197.403,57, a título de derrama municipal;

xv.               Relativamente ao exercício de 2020, a Requerente entregou a IES, à qual foi atribuído o n.º ..., no dia 29.07.2021;

xvi.             Nessa IES, a Requerente declarou, no quadro 4, do anexo H, os rendimentos por si obtidos no estrangeiro, os quais ascenderam ao montante de € 15.479.269,10;

xvii.            Nos exercícios de 2019 e 2020, os rendimentos de aplicações de capital e de mais-valias mobiliárias de fonte estrangeira auferidos pela Requerente, que foram incluídos no apuramento do seu lucro tributável daqueles exercícios, ascenderam ao montante total de € 32.540.751,80, assim discriminados:

Natureza

Rendimento

Montante (€)

2019

2020

3

Dividendos ou lucros derivados de participações sociais

31.108,24

 

5

Rendimentos de outras aplicações de capital

15.279.145,75

12.057.976,82

9

Mais-valias derivadas da alienação de bens mobiliários, navios, aeronaves ou quaisquer outros bens

1.579.733,84

2.503.765,37

11

Outros rendimentos

171.494,87

917.526,91

Total

 

17.061.482,70

15.479.269,10

 

xviii.          A Requerida emitiu a liquidação n.º 2020 ..., datada de 19.08.2020, relativamente ao exercício de 2019;

xix.             A Requerida emitiu a liquidação n.º 2021..., de 05.08.2021, relativamente ao exercício de 2020;

xx.               A Requerente apresentou, em 28.03.2023, reclamação graciosa contra o acto tributário de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2020;

xxi.             Nessa reclamação graciosa, a Requerente peticionou a anulação parcial da autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, com o consequente reembolso do IRC liquidado em excesso, no montante de € 153.426,27, decorrente de erro na aplicação da respectiva taxa;

xxii.            A reclamação graciosa apresentada pela Requerente foi deferida pela Requerida, através de despacho de 05.07.2023; 

xxiii.          Com o deferimento desta reclamação graciosa, à Requerente, por referência ao exercício de 2020, foi liquidada derrama municipal, no montante de € 43.977,30 (correspondendo esta à diferença entre o montante inicialmente liquidado de € 197.403,57 EUR e o valor de € 153.426,27, cujo reembolso foi deferido pela Requerida);

xxiv.          A 31 de Julho de 2020, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do imposto autoliquidado no exercício de 2019, no montante de € 603.645,90;

xxv.            A 19 de Julho de 2021, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do imposto autoliquidado no exercício de 2020, no montante de € 1.491.472,80;

xxvi.          A 29 de Maio de 2024, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa de acto tributário, no qual peticionou a anulação parcial dos actos de autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, referentes aos exercícios de 2019 e 2020, com o consequente reembolso do imposto - € 72.353,41 - indevidamente liquidado e entregue à Requerida, acrescido de juros indemnizatórios;

xxvii.         A 23 de Setembro de 2024, a Requerente foi notificada da decisão final, datada de 5 de Setembro de 2024, de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto tributário, ao qual foi atribuído o n.º ...2024..., da autoria da Requerida;

xxviii.       A Requerida sustentou essa decisão de indeferimento, arguindo o seguinte:

1. A... S.A. Sucursal em Portugal (doravante Requerente), com domicilio fiscal em ..., Lisboa, vem nos termos previstos no n.º 1 do 

artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), apresentar pedido de revisão dos atos tributários de autoliquidação de IRC consubstanciados na entrega das declarações periódicas de rendimentos respeitante aos períodos de tributação de 2019 e 2020, identificadas com os n.ºs ... e... , respetivamente.

2. A Requerente dispõe de personalidade e capacidade tributárias, nos termos do preceituado nos artigos 15.º e 16.º, ambos da Lei Geral Tributária (LGT), e artigos 3.º e 8.º do Código de Processo e de Procedimento Tributário (CPPT). 

3. O procedimento de revisão do ato tributário é meio próprio para reagir contra os atos tributários identificados, nos termos do art.º 78.º da LGT. 

4. A Requerente é parte interessada no procedimento, tendo legitimidade para a respetiva interposição ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 18.º da LGT e no n.º 1 do art.º 9.º do CPPT. 

5. O requerimento de revisão do ato tributário é tempestivo, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 78.º da LGT, tendo dado entrada na UGC a 29 de maio de 2024, ou seja, dentro do prazo de 4 anos contados da data de apresentação das respetivas declarações periódicas de rendimentos conforme o estabelecido na segunda parte do art.º 78.º da LGT tendo esses factos ocorridos a 31/07/2020 e 19/07/2021, relativamente aos períodos de tributação de 2019 e 2020.

(…)

Dito isto, a respeita da questão decidenda conclui-se pelo seguinte: 

- a regra contida nas instruções de preenchimento da declaração periódica de rendimentos respeitante ao preenchimento dos campos 246 e 249 segundo a qual as empresas que exerçam tesouraria ou de distribuição) e as entidades enquadradas no regime especial de tributação de grupos de sociedades, não beneficiam da redução de taxa praticada nas regiões autónomas tem o seu fundamento jurídico na Decisão da Comissão (2003/442/CE), para as entidades residentes na RAA, e no art.º 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, para as entidades residentes na RAM; 

- a Decisão da Comissão em causa é um ato jurídico de direito derivado europeu que pela sua densidade goza de efeito direto na ordem jurídica interna, não carecendo de qualquer atividade do legislador nacional para produzir os seus efeitos; 

- o quadro regulamentar contemporâneo em matéria de auxílios de estado com finalidade regional, confrontado com o atual, mantém-se idêntico, acrescendo ao facto a expressa exclusão das entidades referidas dos auxílios de estado ao funcionamento nas orientações mais recentes; 

- a jurisprudência europeia invocada não tem paralelo com a situação da Madeira e dos Açores, qualificada como região ultraperiférica e à luz desta qualificação, autorizada à região, no exercício da sua autonomia, praticar genericamente taxas mais baixas de imposto sobre o rendimento das empresas. Também as conclusões transcritas pela Requerente não sugerem que o TJUE e o Tribunal Geral se encontrem a derrogar as regras europeias relativas a auxílios de estado em função duma plena ou limitada autonomia regional 

(…). 

Perante o exposto, mantendo-se as conclusões de facto e de direito apuradas no projeto de decisão que antecede, deverá ser indeferida a pretensão formulada, com todas as consequências legais”.

 

§3 -   Factos não provados 

 

29.       Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.

 

V.        MATÉRIA DE DIREITO

 

30.       A questão central e única dos presentes autos consiste em saber se a derrama municipal, constante do artigo 18.º, do RFALEI, incide somente sobre o lucro tributável das pessoas colectivas, em sede de IRC, gerado na área geográfica em que tenham a sua sede em território nacional ou também sobre o lucro tributável que resulte do exercício da sua actividade económica em Estado terceiro.

 

31.       Dito de outra forma, a questão a dirimir reconduz-se em determinar se os rendimentos provenientes de fonte estrangeira auferidos pela Requerente, nos exercícios fiscais de 2019 e 2020, devem ou não ser integrados na base de incidência da derrama municipal.

 

Vejamos,

 

§1 -   Normas legais relevantes

 

32.       Para apreciar a questão central a analisar nos presentes autos, importa fixar, desde já, a base legal relevante que se encontrava em vigor à data dos factos ora em apreciação:

Artigo 18.º, do RFALEI

“Derrama

1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.

2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

(…)

13 - Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.

14 - Entende-se por massa salarial o valor dos gastos relativos a despesas efetuadas com o pessoal e reconhecidos no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários.

15 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo n.º 2 indicam na declaração periódica de rendimentos a massa salarial correspondente a cada município e efetuam o apuramento da derrama que seja devida.”.

§2 -   Do mérito da causa

 

33.       Através do presente processo pretende o Requerente sindicar a legalidade dos actos de actos de autoliquidação de IRC, referentes aos exercícios de 2019 e 2020, na parte concreta respeitante à liquidação da derrama municipal suportada nestes exercícios, por considerar que a mesma, ao incluir rendimentos provenientes de fonte estrangeira, é ilegal e, por conseguinte, indevida.

 

34.       Para tal, argumenta a Requerente, em síntese, que a derrama municipal apenas deve incidir sobre os rendimentos imputáveis aos municípios situados em território português, pelo que os rendimentos de fonte estrangeira – ao não serem gerados na circunscrição de nenhum daqueles municípios – deverão ficar fora do âmbito de incidência daquele tributo.

 

35.       Por outro lado, argumenta a Requerida, em síntese, na sua Resposta, que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município (sendo que caso não seja possível a repartição entre diferentes municípios, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo). 

 

36.       Nesta medida, conclui a Requerida que, inexistindo qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação, deverá aquele tributo recair também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro.

 

37.       Ora, a questão que cumpre ora apreciar já foi objecto de apreciação pelo STA, no âmbito do acórdão proferido em 13.01.2021, no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, onde este Tribunal entendeu, ao que aqui importa, o seguinte:

Numa formulação sintética, a discórdia reside na questão de saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal, incidente, consensualmente, sobre “o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)” (Cf. art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias portuguesas.

Em breve excursão legislativa (pelos tempos mais próximos), o artigo (art.) 18.º n.º 1 da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto, que estabeleceu o regime financeiro dos municípios e das freguesias, na sequência de o art. 16.º alínea (al.) b) identificar como receita dos municípios “O produto da cobrança de derrama lançada nos termos do disposto no artigo 18.º;”, permitia-lhes que, anualmente, pudessem lançar uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do IRC, que proporcionalmente correspondesse ao rendimento gerado na sua área geográfica … Este diploma foi, expressamente, revogado, pelo art. 64.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro - intitulada Lei das Finanças Locais (LFL) (Presentemente, esta, também, se encontra, já, revogada, vigorando, desde 1 de janeiro de 2014, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), estabelecido pela Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro, cujos arts. 14.º al. c) e 18.º n.º 1, no essencial, reproduzem, “ipsis verbis”, os arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 da LFL.)-, cujos arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 passaram a estatuir: «

“O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do disposto no artigo 14.º;”

“Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica …”. »

Atento a esta evolução legislativa, o STA, com expressão, entre outros, no acórdão de 2 de fevereiro de 2011 (0909/10) (Que se debruçou, nuclearmente, sobre hipótese de anulação de derrama, autoliquidada em declaração de rendimentos de IRC, respeitante ao exercício de 2008, no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.), desde logo, perfilhou e explicitou, o entendimento de que com a Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro, a partir do início desse ano, a derrama passava a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta, de IRC, perdendo, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixando de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento. “A circunstância, porém, de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira. (…). É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (…)”.

Posto isto e realçando, sobretudo, este cariz de tributo autónomo relativamente ao IRC, para solucionar a questão que nos ocupa, importa começar por mencionar que a comparação dos quadros legais (sucessivos), enformadores da cobrança de derrama(s) municipal(ais), permite extrair, com objetividade, estas premissas:

- sempre (nas Leis n.ºs 42/98, 2/2007 e (73/2013)) esteve (e está) presente a previsão e exigência, de o IRC sobre que recai a percentagem de derrama seja a proporção correspondente “ao rendimento gerado na sua (do município) área geográfica”; aliás, neste aspeto particular, a Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (Revogada pela Lei n.º 42/98 de 6 de agosto.), ainda, era mais incisiva e precisa, estabelecendo que os municípios podiam lançar uma derrama…, “na parte relativa ao rendimento gerado na respectiva circunscrição”;

- comummente àquelas três leis, por referência à redação da Lei n.º 2/2007 (aqui, aplicável), há de considerar-se: “2 - …, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria colectável superior a (euro) 50000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado …”. “5 - Nos casos não abrangidos pelo nº 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 117º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.”;

- desde a redação inicial, o art. 18.º da Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro (RFALEI) estabeleceu a regra, inalterada até hoje, de que “(…) Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.”.

Neste momento, dirigindo, já, atenções para a situação julganda, podemos afirmar, com segurança, que a rte, no exercício de 2010, estando coletada pelo exercício de atividade sujeita e não isenta de IRC, possuindo sede (Nada se provou (ou consta dos autos), quanto a, eventual, direção efetiva noutro local.) no município de Oeiras (………… - Edifício …….., ……….), com um lucro tributável de € 65.181.876,87, tinha, em princípio, de apurar e pagar (o que, efetivamente, fez), derrama municipal, na importância de € 938.619,03 (€ 65.181.876,87 x 1,44%). Assim, legitimava e impunha, o art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro ao dispor que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola …”. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante mencionado ou, perante a comprovação de que esse valor integra, comporta, a importância (global) de € 52.079.027,80, obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser o de € 13.102.849,07 e, consequentemente, a derrama, devida, fixar-se em € 188.681,03 (€ 13.102.849,07 x 1,44%), portanto, num montante inferior ao autoliquidado (-749.938,00).

Antecipando o resultado, entendemos que a razão está do lado da rte.

Como emana do antes exposto e, destacadamente, das premissas acima expressas, o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente, por exemplo, num preâmbulo à Lei n.º 2/2007 (aplicável, neste caso) (No âmbito da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto a derrama podia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro. A, precedente, Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (art. 5.º n.º 6) só admitia o lançamento de derrama “para acorrer ao financiamento de investimento ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro”.), certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e devem respeitar “os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material” (Artigo 5.º da Lei Geral Tributária (LGT).), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).

Obviamente, não é incorreto afirmar (como na sentença recorrida) que, na LFL, “nada … se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas …, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do nº 1, do artº 4º, do CIRC, …”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, “relativamente ligeira”. Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”.

 

38.       Este entendimento do STA tem sido adoptado e seguido por diversa jurisprudência arbitral, designadamente nos acórdãos arbitrais proferidos nos processos n.ºs 31/2024-T, de 09.09.2024, e 315/2024-T, de 29.10.2024.

 

39.       À semelhança daqueles Tribunais, também o presente Tribunal Arbitral adere à jurisprudência do STA que, com rigor e clareza, deixou evidente a necessidade de excluir da base de incidência da derrama municipal fixada no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI, isto é, de excluir do lucro tributável sujeito e não isento de IRC, a parcela do lucro tributável obtido fora do território nacional. 

 

40.       É certo que a Requerida, em sede de resposta, suscita a questão de a Requerente não ter cumprido com o ónus da prova a que estava obrigada, por força do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, para demonstrar que haveria – efectivamente – uma parcela do seu lucro tributável que haveria sido gerada no estrangeiro.

 

41.       Sucede, porém, que em face do disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, as “declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal” gozam de uma presunção de veracidade e de boa-fé.

 

42.       Ora, no caso presente, nenhuma prova foi carreada para os autos – mormente por parte da Requerida – de que essa presunção a que alude esta norma da LGT pudesse ou tivesse sido abalada oportunamente por aquela, pelo que não pode este tribunal concluir por uma eventual ou suposta verificação de qualquer das situações previstas no artigo 75.º, n.º 2, da LGT susceptíveis de afastar aquela presunção de que goza a Requerente, relativamente às suas declarações fiscais (e.g. as Modelo 22 e as IES oportunamente entregues) e à sua contabilidade que lhes subjaz.

 

43.       Aqui chegados, e sem necessidade de mais considerações, adere o presente Tribunal Arbitral às conclusões da jurisprudência supra mencionada, sob evocação do desiderato uniformizador decorrente do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, razão pela qual se julga procedente o vício de violação da norma de incidência objectiva em sede de derrama municipal prescrita no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI invocado pelo Requerente e se declaram ilegais:

i.            os actos de autoliquidação de IRC, na concreta parte em que fizeram incidir a derrama municipal dos exercícios de 2019 e 2020 sobre a componente do lucro tributável da Requerente proveniente do estrangeiro; e, por conseguinte, também

ii.          a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa de actos tributários oportunamente apresentado pela Requerente.

 

44.       Face ao exposto, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2 do CPC, ex vi artigo 29º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

§3 -   Do pedido de reembolso das quantias pagas e de juros indemnizatórios

 

45.       A Requerente pediu que a Requerida seja condenada “na restituição à Requerente do montante legalmente devido, nos termos do artigo 100.º da LGT”. 

 

46.       O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, estatui que em caso de procedência da decisão arbitral que a Requerida deve: “(…) restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

47.       No caso concreto, na sequência da ilegalidade dos actos de autoliquidação postos em crise, há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e 100.º, da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

48.       Assim é de concluir que o valor a que a Requerente tem direito a ser reembolsada ascende ao montante de € 72.353,41, correspondendo o mesmo à importância da derrama municipal que foi ilegal e indevidamente liquidada e paga por aquela.

 

49.       Por fim, cumpre apreciar o pedido formulado pela Requerente de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados a partir do dia 30 de Maio de 2025, até à emissão da respectiva nota de crédito, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

50.       Para este efeito é necessário apurar se este erro de direito (ilegalidade) dos actos de liquidação ora postos em crise (actos de primeiro grau) é ou não imputável à Requerida nos termos do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT, já que esse era um pressuposto da procedência da revisão oficiosa.

 

51.       Note-se, a este respeito que o facto de o legislador ter eliminado a presunção que vigorava no n.º 2 do artigo 78.º da LGT não obsta a que os sujeitos passivos possam fazer uso da revisão oficiosa. 

52.       Necessário é que se demonstre a imputabilidade do erro à Requerida.

 

53.       Ora, no presente caso, a Requerente logrou demonstrar que, apesar de a Requerida não ter tido intervenção nas autoliquidações contestadas, a verdade é que, ainda assim, influenciou o seu resultado, dando azo à verificação do erro de direito anteriormente identificado. 

 

54.       Por um lado, porque na Modelo 22 não é possível ao sujeito passivo (como é o caso da Requerente), por erro que lhe é inimputável, indicar o lucro tributável por si apurado expurgado da componente do rendimento atribuída a uma fonte ou proveniência estrangeira. 

 

55.       Por outro lado, porque independentemente dos fundamentos empregues pela Requerida para fundamentar a sua decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto tributário apresentado pela Requerente, aquela não deixou de se pronunciar – nos moldes que assim considerou pertinentes – sobre a legalidade dos actos de liquidação entretanto controvertidos e aqui sindicados, concluindo pelo indeferimento da pretensão enunciada por esta.

 

56.       A este propósito, subscreve-se, com as devidas adaptações, o entendimento professado pelo STA, no acórdão de 02.10.2024, no processo n.º 01917/21.4BELRS, no qual se enuncia o seguinte:

·            “(…) a revisão oficiosa, apesar de dever ser efetuada pela Administração Tributária, pode resultar da iniciativa desta ou do sujeito passivo. (…). A AT, por seu lado, pode fazer a revisão no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”;

·            “O procedimento de revisão dos atos tributários caracteriza-se, sobretudo, por nele ser a entidade que os praticou que eventualmente os vai rever. Podendo fazê-lo por iniciativa própria, no prazo de 4 anos, após a liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços, ou por iniciativa do sujeito passivo que terá, tal como decorre da jurisprudência deste STA, um prazo de 4 anos para requerer, também com fundamento em erro imputável aos serviços, a revisão do ato. (…). Pois, uma coisa é o prazo que AT tem para rever o ato, outra, distinta, é o prazo que o sujeito passivo tem para requerer a revisão que, a ser feita, terá sempre como executante a AT, no prazo de 4 anos”;

·            “O procedimento de revisão tem, como o próprio nome indica, o propósito de que seja revisto o ato tributário com o objetivo de reforçar as garantias dos contribuintes e, no respeito pela verdade material, permitir que, detetando a AT algum erro, ou sendo alertada para alguma ilegalidade por parte do sujeito, faça as correções que são devidas O objetivo último do procedimento de revisão é, por conseguinte, que seja feita a correção de qualquer erro, incluindo uma qualquer ilegalidade, sempre, no interesse do sujeito passivo, sendo este, aliás, o espírito do procedimento”;

·            “(…) decorre da lei e da jurisprudência que no âmbito do procedimento de revisão, tanto a AT como o sujeito passivo poderão ter a iniciativa da revisão no prazo de 4 anos quando se verifique um erro imputável aos serviços, valendo esta última condição para os dois. Isto é, o fundamento tem de ser sempre um erro imputável aos serviços quer para AT quer para o sujeito passivo.”; e

·            “(…) no quadro do artigo 78.º da LGT, está, neste momento, consolidada a possibilidade de o sujeito passivo poder, ainda, solicitar a revisão num período de 4 anos quando se verifique um erro imputável aos serviços. Conceito este que, pela sua abrangência, contempla vícios de facto e de direito o que, em última análise, permitirá abranger ilegalidades que, por essa via, poderão ser suscitadas, já não somente no período e 2 anos, mas num período de 4, pelo facto de serem suscetíveis de ser reconduzidas a um erro de direito imputável aos serviços” (com negritos nossos).

 

57.       Acresce que, conforme é enunciado na decisão arbitral proferida no processo n.º 133/2021, de 31.03.2022 (remetendo para jurisprudência proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul), “constitui erro imputável aos serviços qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte, isto é, qualquer ilegalidade para a qual não tenha contribuído, por qualquer forma, o contribuinte através de uma conduta activa ou omissiva, determinante da liquidação, nos moldes em que foi efectuada”.

 

58.       Nesta linha de entendimento, resultando inequívoco que tais actos tributários padecem de um erro de Direito e que, por conseguinte, o mesmo será imputável à Requerida, então efectivamente assistia à Requerente (como de resto, a própria Requerida reconheceu aquando da apreciação do pedido de revisão oficiosa de acto tributário) o direito de, num prazo de 4 anos, recorrer ao disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, para solicitar àquela a revisão oficiosa daqueles actos.

 

59.       Por conseguinte, conclui-se pela existência de erro imputável aos serviços, razão pela qual estavam preenchidos todos os pressupostos para que tivesse sido deferido o pedido da Requerente.

 

60.       Nesse sentido, dever-se-á ter em atenção – para efeitos de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios – ao disposto na regra prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, já que a mesma versa em específico sobre os casos de revisão oficiosa.

 

61.       Esta norma determina, concretamente, o seguinte:

“[q]uando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”. 

 

62.       Este entendimento é, de resto, conforme com a jurisprudência uniformizada pelo STA, designadamente no acórdão proferido no processo n.º 51/19.1BALSB, em 11 de Dezembro de 2019, que tem o seguinte sumário:

Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].

 

63.       Em face do exposto, deve a Requerente ser reembolsada do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, contados apenas a partir do decurso de um ano após a apresentação daquele pedido, ou seja, a partir de 30 de Maio de 2025, sendo que o respectivo montante deverá ser apurado em sede de execução de julgados.

 

VI.      DECISÃO

 

64.       Termos em que se decide:

a.          Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida;

b.          Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, declarar a ilegalidade dos actos de autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, referentes aos anos de 2019 e 2020, e, também, em consequência, declarar a ilegalidade do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa de actos tributários apresentado pela Requerente;

c.          Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 72.353,41, e condenar a Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios calculados à taxa legal supletiva, a partir do dia 30 de Maio de 2025, sobre a importância a reembolsar, até à data da emissão da correspondente nota de crédito;

d.          Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VII.    VALOR DO PROCESSO

 

65.       Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 72.353,41.

VIII. CUSTAS

 

66.       Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.448,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem. 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de Setembro de 2025

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e relatora)

 

 

 

João Pedro Rodrigues 

 

 

 

Cristina Aragão Seia