Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1058/2024-T
Data da decisão: 2025-09-03  Selo  
Valor do pedido: € 1.500.000,00
Tema: Imposto do Selo - operação de reunião de capitais; constituição de garantia; Diretiva 2008/7/CE do Conselho.
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SUMRIARIO.

1-            De acordo com o ac. do TJUE C‑685/23, de 5 de junho de 2025 (Corner and Border, S. A.), a expressão «privilégios e hipotecas» visa agrupar os tipos de garantias cuja constituição, inscrição ou extinção tenha um efeito análogo sobre os direitos do credor: o de constituir uma garantia especial suscetível de conferir direitos preferenciais na satisfação do crédito em caso de incumprimento. E isso independentemente da sua natureza mobiliária ou imobiliária.

2-          Como reiteradamente afirmado pelo TJUE, a regra é a da não tributação das operações de reunião de capitais, entendidas em sentido amplo, incluindo as operações relativas a garantis, salva a exceção relativa a «privilégios e hipotecas», 

3-          Viola a alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008 (Diretiva Reunião de capitais) a tributação da constituição de uma garantia pessoal (fiança com renúncia ao privilégio da excussão prévia) relativa às obrigações do emitente de um empréstimo obrigacionista.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-..., Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

I-               RELATÓRIO

 

A)    O pedido

O Requerente peticiona:

- A anulação da autoliquidação de Imposto do Selo correspondente à declaração n.º..., de 8 de março de 2022, e à declaração de substituição n.º ..., de 8 de abril de 2022, na parte que se refere ao Imposto do Selo liquidado sobre emissão de garantia inerente a uma emissão de obrigações (verba 10.2 da TGIS), no valor de 1.150.000,00 €.

- Consequentemente, pede a anulação da decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa com o n.º ...2024... .

- Pede, ainda, a condenação da requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

- Subsidiariamente, pede que a questão seja colocada ao TJUE por via de um pedido de reenvio prejudicial.

 

 

b) O litígio

 

Está em causa a sujeição a Imposto do Selo (verba n.º 10.2 da TGIS) do ato de constituição de uma garantia, com as caraterísticas que adiante se darão por provadas, relativa a um empréstimo obrigacionista emitido pela Requerente.

A Requerente entende: (i) que tal tributação viola a alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais; (ii) que tal operação sempre estaria isenta em resultado do que dispõe a alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

A Requerida sustenta a legalidade da tributação em causa,

 

c) Tramitação processual

 

A Requerente usou da faculdade de designar árbitro, designado o Sr. Prof. Tomás Cantista Tavares.

A Requerida designou a Srª Drª Maria dos Prazeres Lousa.

O árbitro-presidente foi designado por consenso.

Os árbitros aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição. 

O tribunal arbitral ficou constituído em 14/01/2025

 

Em 12/03/2025, foi realizada a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e ouvidas as testemunhas conforme consta da respetiva ata.

As partes apresentaram alegações nas quais reafirmaram as suas posições.

Por despacho de 25/06/2021 foi prorrogado, por mais dois meses, o prazo para a prolação da decisão.

 

d)    Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não foram alegadas exceções e não existem questões que devam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

A Requerida questionou a não junção de tradução autenticada dos documentos juntos em língua inglesa, invocando para tal o disposto no art. 134º, nº 1, do CPC.

Sem necessidade de mais considerações, a questão tem de se ter por ultrapassada porquanto em sede de exercício de audição, o ora Requerente procedeu à junção da Tradução Certificada da ‘Deed of Guaranty”, que juntou aos autos.

 

II – PROVA

 

II.1- Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     O Requerente é uma instituição de crédito que tem como objeto social o exercício da atividade bancária.

b)    Por forma a financiar a sua atividade, o Requerente emitiu, em 2022, “obrigações garantidas” (Floating Rate Senior Guaranteed Notes due 2025), no valor de € 230.000.000,00.

c)     A sociedade B..., LdD constituiu uma garantia a favor dos tomadores de tal empréstimo obrigacionista. 

d)    Nos termos do ponto 2.1, alínea a), do documento que titula a constituição de tal garantia,  a Garante se obriga incondicionalmente e irrevogavelmente perante o titular de cada Obrigação ao pagamento devido e pontual de todos os montantes a pagar pelo Emitente relativamente a essas Obrigações, na medida em que as mesmas se tornem devidas e pagáveis e, consequentemente, compromete-se a que, se o Emitente não pagar qualquer montante pagável por si ao abrigo do Instrumento ou das Obrigações até ao momento e na data especificada para esse pagamento […] a Garante pagará esse montante na íntegra ao titular da Obrigação.

e)    Sendo que, nos termos da alínea b) de tal ponto, a garante se assume, para os casos em que a garantia deva ser ativada, como principal pagador.

f)      A constituição da garantia revelou-se fundamental, atentas as concretas condições de mercado, para atrair investidores institucionais, uma vez que a intervenção de uma outra entidade, com capacidade financeira e reputação no mercado muito superiores às da Requerente, permitiu aumentar a notação do risco da emissão para ‘investment grade’, o que significa que essa emissão passou a ser havida como sendo um “investimento seguro”.

g)     O Requerente submeteu a declaração n.º ... por forma a entregar o Imposto do Selo referente à garantia no montante de 1.150.000,00€ (sendo essa declaração mais tarde substituída pela declaração n.º ... que não alterou o valor aqui reclamado)

h)    O Requerente apresentou reclamação graciosa relativa à liquidação que ora impugna, a qual foi expressamente indeferida.

 

Com exceção do constante de f), estes factos constam da documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de qualquer controvérsia entre as partes.

O dado como provado em f) resultou do depoimento das testemunhas, as quais, no entender do tribunal, depuseram com verdade e conhecimento dos factos.

 

I.2 - Factos não provados

Não existem com relevância para a decisão da causa.

 

 

 

III – O DIREITO

 

III.1 – Ordem do conhecimento dos vícios

 

O tribunal começará por analisar a questão da compatibilidade da tributação em causa com o disposto na Diretiva 2008/7/CE. Isto porquanto entende que esta questão é prejudicial relativamente à da abrangência da operação em causa pela isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

Na realidade, na hipótese de a tributação ser considerada ilegítima por violação do Direito da União, resultará irrelevante saber se estaria isenta de imposto por força de um normativo do direito interno.

 

III.2 - Diretiva 2008/7/CE

Comecemos pelo disposto na Diretiva 2008/7/CE do Conselho, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.  

Segundo o respetivo preambulo, 

 (2) Os impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, designadamente o imposto sobre as entradas de capital (imposto que incide sobre as entradas de capital nas sociedades), o imposto de selo sobre os títulos, e o imposto sobre as operações de reestruturação, independentemente de essas operações envolverem ou não um aumento de capital, dão origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais. O mesmo se aplica a outros impostos indiretos com características idênticas às do imposto sobre as entradas de capital e do imposto de selo sobre os títulos.”

 (3) Consequentemente, é do interesse do mercado interno harmonizar a legislação relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais para eliminar, tanto quanto possível, fatores suscetíveis de distorcer as condições de concorrência ou entravar a livre circulação de capitais.

 

Por sua vez, o artigo 1.º determina que a Diretiva 2008/7/CE regula a aplicação de impostos indiretos sobre: (…) c) Emissão de determinados títulos e obrigações

 

E o artigo 5.º, com a epigrafe “Operações não sujeitas a impostos indiretos”, estipula:

2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto: (…) 

b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis. (…)

 

 Por fim, o artigo 6.º, Impostos e direitos determina: 

 Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos: (…) d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas

 

III.3 – Formalidades conexas

 

Haverá, em primeiro lugar, que apurar se a constituição da garantia em causa neste processo deve ser havida como uma “formalidade conexa” com a operação de reunião de capitais (com a emissão de obrigações). Isto porquanto sendo-o, a sua tributação estaria expressamente vedada pela alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva. 

O conceito “formalidades conexas” é um conceito indeterminado, que cabe ao tribunal preencher casuisticamente.

Seja qual for o melhor entendimento que deva ser feito deste conceito, numa sua definição pela positiva, o certo é que o negócio jurídico através do qual um terceiro constitui uma garantia de cumprimento das obrigações alheias, derivadas de um outro negócio jurídico (mútuo), não pode ser havida como uma formalidade inerente a este.

Por muito que a Requerente procure evidenciar a “indispensabilidade” da constituição da garantia para o êxito do empréstimo obrigacionista, o certo é que estamos perante negócios jurídicos totalmente distintos, em que os intervenientes não são os mesmos. A constituição da garantia não é um “trâmite” do contrato obrigacionista.

 

A “essencialidade” da prestação de garantia resulta de razões económicas, de exigência de mercado, não de exigências legais – não está em causa uma obrigação acessória imperativa do contrato de mútuo[1].

O contrato de prestação de garantias a que se refere o caso aqui em apreço não só constitui um contrato distinto e juridicamente autónomo do contrato principal (não correspondendo a qualquer requisito legal da respetiva eficácia), como a prestação de garantia foi efetuada voluntariamente não se mostrando, em rigor, indispensável para a operação, com maior ou menor êxito, ter lugar[2].

 

III.4- A regra da não sujeição a impostos indiretos

 

Como vimos, o artigo 6.º da Diretiva, estabelece que, em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos: (…) d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas

 

Citamos do acórdão do TJUE de 19 de outubro de 2017, no processo C‑573/16 (Air Berlin)

31- Resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que tendo em conta os objetivos prosseguidos pelas referidas diretivas, os artigos 10.º e 11.º da Diretiva 69/335 e o artigo 5.º da Diretiva 2008/7 devem ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições previstas nestas disposições sejam privadas de efeito útil (v., neste sentido, acórdãos de 15 de julho de 2004, Comissão/Bélgica, C‑415/02EU:C:2004:450, n.º 33; de 28 de junho de 2007, Albert Reiss Beteiligungsgesellschaft, C‑466/03EU:C:2007:385, nº 39; e de 1 de outubro de 2009, HSBC Holdings e Vidacos Nominees, C‑569/07EU:C:2009:594, n.º 34).


32 - O Tribunal de Justiça declarou assim que, em conformidade com os objetivos do artigo 11.º da Diretiva 69/335 e do artigo 5.º, n.º 2, da Diretiva 2008/7, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais se aplica igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, acórdão de 9 de outubro de 2014, GielenC‑299/13EU:C:2014:2266, n.º 24 e jurisprudência referida).

 

Portanto teremos que as operações (negócios jurídicos) conexas com operações de reunião de capitais não podem, por regra, ser sujeitas a impostos indiretos (salvo as exceções que a seguir analisaremos).

 

III.5 – Noção de “privilégios”

 

A exceção prevista na Diretiva, como vimos, é a da constituição de hipotecas e privilégios.

Há que começar por frisar que estes conceitos são utilizados pela Diretiva no âmbito do seu escopo de harmonização da tributação indireta incidente sobre operações de reunião de capitais. O mesmo é dizer que o seu significado pode ser (é) diferente daquilo que poderia ser extraído da sua utilização por normas de direito interno[3].

 

A questão do que se deva entender por “privilégios” foi recentemente analisada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no processo C‑685/23, de 5 de junho de 2025 (Corner and Border, S. A.).

Citamos:

 36 - A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o artigo 6.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2008/7 utiliza, na grande maioria das versões linguísticas, a expressão «privilégios e hipotecas». Ora, uma vez que o legislador utilizou termos distintos para designar instrumentos que criam direitos preferenciais constituídos sobre o património de uma pessoa, não há que considerar a priori que estes termos dizem unicamente respeito a um tipo destes direitos, a saber, os de natureza imobiliária.

 

 43- Com efeito, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, o âmbito de aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2008/7, que se aplica «[e]m derrogação» das proibições de tributação previstas no artigo 5.° da mesma, está em estreita correlação com o âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), desta diretiva e comprova que o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados‑Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista. Nestas condições, como, em substância, o advogado‑geral considerou no n.° 50 das suas conclusões, a expressão «privilégios e hipotecas», referida neste artigo 6.°, n.° 1, alínea d), engloba todos os instrumentos contratuais que façam parte integrante de uma operação de reunião de capitais de empréstimo que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.

 

 Vejamos agora o essencial das conclusões do Advogado Geral, as quais o Tribunal expressamente assumiu no acórdão em análise:

 

38 -   Embora o conceito de hipoteca seja conhecido e o seu significado seja análogo nos diferentes ordenamentos jurídicos, sendo a garantia imobiliária típica destinada a assegurar um crédito, a questão interpretativa radica no significado a atribuir ao termo «privilégio», cuja definição não existe na legislação da União e varia nos ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros.

42 - A Comissão, ao examinar os objetivos da diretiva e o contexto em que se insere a disposição, conclui, em substância, que se deve atribuir à expressão «privilégio» o significado de uma garantia de natureza imobiliária, análoga àquela prevista em caso de hipoteca.  

46 - Em contrapartida, não considero correto, mesmo adotando uma interpretação restritiva das situações previstas no artigo 6.o, em particular no n.o 1, alínea d), que se prive completamente de significado a expressão «privilégios e hipotecas» utilizada, considerando‑a, em substância, uma hendíade. Equivaleria a dizer que a exceção só se aplica em caso de hipotecas ou de garantias análogas de natureza exclusivamente imobiliária.  

47 - Penso, pelo contrário, que há que examinar o sentido da disposição avaliando qual a função e a característica particular da hipoteca na prestação de garantias para assegurar o crédito e, em seguida, atribuir um significado adequado ao termo «privilégio».  

48 - A hipoteca é manifestamente um tipo de garantia que oferece direitos preferenciais especiais ao credor em caso de incumprimento por parte do devedor. Isto significa que, no caso de uma pluralidade de dívidas por parte do devedor, o credor beneficiário de uma hipoteca verá o seu crédito satisfeito preferencialmente por conta do património do devedor 

50 - Pois bem, em meu entender, a diretiva, ao utilizar a expressão «privilégios e hipotecas», visava agrupar os tipos de garantias cuja constituição, inscrição ou extinção tivesse um efeito análogo sobre os direitos do credor: o de constituir uma garantia especial suscetível de conferir direitos preferenciais na satisfação do crédito em caso de incumprimento. E isso independentemente da sua natureza mobiliária ou imobiliária.   

51 -Neste contexto, o termo «privilégios» deveria indubitavelmente incluir os penhores mobiliários, na medida em que estes últimos confiram, no ordenamento do Estado‑Membro, direitos preferenciais especiais na aceção acima indicada, bem como, eventualmente, outros tipos de garantias que tenham os mesmos efeitos.

 

 

Pensamos que os excertos que acabámos de transcrever resultaram esclarecedores: a palavra privilégios deve ser entendida, neste contexto, como referida a  garantias das obrigações com o mesmo efeito de uma hipoteca, independentemente da sua denominação em cada ordenamento jurídico nacional e de incidir sobre bens móveis ou imóveis

 

Trata-se, portanto, de garantias que, em caso de concurso de credores, conferem ao credor que delas goza o direito a ser pago com prioridade relativamente a outros credores (os que não beneficiem de uma garantia mais forte), desde logo os credores comuns.

Está em causa a graduação de créditos, a hierarquia dos diferentes credores na satisfação dos seus créditos pelo património do devedor.

 

É manifesto que não é este o caso dos presentes autos: a garantia aqui em causa consiste no compromisso assumido por um terceiro de, se necessário, cumprir com as obrigações, nomeadamente a de pagamento, assumidas pela emitente das obrigações, o ora Requerente.

 

Estamos perante aquilo que no direito interno designaríamos por uma garantia pessoal das obrigações: ao património do devedor “soma-se” o do garante de forma a melhor assegurar, quando necessário, a satisfação do credor. O que é totalmente diferente das “garantias reais” as quais, como referimos, estabelecem um diferente grau de prioridade no pagamento em detrimento do princípio da igualdade dos credores.

 

Cremos que resulta da mais recente jurisprudência do TJUE, plasmada no acórdão que estamos a citar, que a tributação em impostos indiretos da constituição de garantias relativas a operações de reunião de capitais (como a emissão de obrigações) é aceitável, em derrogação à regra geral da proibição, quando esteja em causa a constituição de “preferências” sobre os bens do devedor.

Procurar estender a admissibilidade da tributação à constituição de garantias pessoais, como a que está em causa nos presentes autos, não só não tem qualquer suporte na interpretação feita pelo TJUE do conceito “privilégios” como significaria transformar a regra em exceção.

Admiti-lo seria o mesmo que aceitar que toda e qualquer constituição de garantia feita no quadro de uma operação de reunião de capitais poderia ser tributada em um imposto indireto.

Como muitas das operações de reuniões de capitais – o exemplo do caso em análise é paradigmático – obrigam, por exigências do mercado, a constituição de garantia, teríamos que a regra voltaria a ser a da tributação: não se tributariam as operações de reunião de capitais propriamente ditas, mas a generalidade resultaria tributada em razão do imposto incidente sobre a constituição de garantias especiais relativas a essas operações.

 

 III.6 - Reenvio prejudicial

 

Entende-se que após a prolação do acórdão do TJUE no processo C‑685/23, em 5 de junho de 2025, ficaram suficientemente clarificados os critérios que devem presidir à distinção entre as garantias (“privilégios”, no dizer da diretiva) cuja constituição pode ser sujeita a tributação em impostos indiretos e aquelas em que uma tal tributação resulta violadora da Diretiva.

Sendo, pois, agora clara a interpretação do conceito – concorde-se ou não com o entendimento do TJUE – não se justifica a consulta do TJUE sobre o concreto caso em apreciação-

 

III. 7 - Isenção de Imposto do Selo

 

Entendendo-se que a tributação em causa nos presentes autos viola a Direito da União, porque contrária às finalidades da Diretiva 2008/7/CE, não sendo enquadrável nas  exceções nela previstas, resulta prejudicada a apreciação  da questão de saber se a operação em causa estaria isenta de imposto do Selo por força do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

 

 

III.8 – Juros indemnizatórios

 

Estamos perante uma autoliquidação de Imposto do Selo, anulada por violação de disposições do Direito da União.

Nos termos doo art. 45º, nº 3 al. d) da LGT, são devidos juros indemnizatórios em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

Estando em causa a ilegalidade da norma em que se fundou a tributação impugnada, existe o peticionado direito a juros indemnizatórios.

Porém, o “erro imputável aos serviços”, pressuposto do direito ao recebimento destes juros, só aconteceu no momento em que, ilegalmente, foi indeferida a reclamação graciosa. Até aí, o erro na autoliquidação apenas poderia ser imputado ao Requerente. 

Pelo que os juros apenas serão de contar a partir de tal data.

 

 

IV - DECISÃO

Termos em que se conclui pela procedência do pedido, anulando-se parcialmente a liquidação impugnada no montante peticionado de 1.500.000 euros.

Reconhece-se o direito da Requerente a, para além do imposto indevidamente pago, receber juros indemnizatórias, a serem quantificados nos termos legais.

 

Valor: € 1.500.000,00

Custas (já pagas) pelo Requente uma vez que exerceu a opção de designar árbitro.

 

03 de setembro de 2025.

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

Maria dos Prazeres Lousa (com voto de vencida)

 

 


Tomás Castro Tavares 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto de vencida:

Votei vencida na presente decisão arbitral com a seguinte fundamentação:

 

Na análise da compatibilidade da tributação em imposto do selo da garantia em causa nos presentes autos com o disposto na Diretiva 2008/7/CE, a presente decisão arbitral, em linha com a jurisprudência do TJUE sobre a interpretação de disposições da mesma Diretiva, declara que “(…) as operações (negócios jurídicos) conexas com operações de reunião de capitais não podem, por regra, ser sujeitas a impostos indiretos (salvo as exceções que a seguir analisaremos)”.

 

Prosseguindo com a análise das normas da Diretiva que derrogam expressamente a proibição dos Estados-Membros tributarem em impostos indiretos as operações de reunião de capitais, concretamente a da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º: «Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas», a presente decisão arbitral, respaldando-se na decisão do TJUE no processo C-685/23, de 5 junho de 2025 e nas Conclusões do Advogado-Geral, a respeito do significado e alcance do termo «privilégios» considera que:

a palavra privilégios deve ser entendida, neste contexto, como referida a garantias das obrigações com o mesmo efeito de uma hipoteca, independentemente da sua denominação em cada ordenamento jurídico nacional e de incidir sobre bens móveis ou imóveis

 Trata-se, portanto, de garantias que, em caso de concurso de credores, conferem ao credor que delas goza o direito a ser pago com prioridade relativamente a outros credores (os que não beneficiem de uma garantia mais forte), desde logo os credores comuns.

Está em causa a graduação de créditos, a hierarquia dos diferentes credores na satisfação dos seus créditos pelo património do devedor.”

Daí inferindo que o termo «privilégios» não abrange o caso dos presentes autos em que a garantia “consiste no compromisso assumido por um terceiro de, se necessário, cumprir com as obrigações, nomeadamente a de pagamento, assumidas pela emitente das obrigações, o ora Requerente.” 

Ora, é precisamente este salto no raciocínio que me parece muitíssimo duvidoso, e que não posso subscrever. 

A decisão arbitral lembra que, quanto à fiança “estamos perante aquilo que no direito interno designaríamos por uma garantia pessoal das obrigações: ao património do devedor “soma-se” o do garante de forma a melhor assegurar, quando necessário, a satisfação do credor”.

 

E daí foi extraída a conclusão que “estender a admissibilidade da tributação à constituição de garantias pessoais, como a que está em causa nos presentes autos, não só não tem qualquer suporte na interpretação feita pelo TJUE do conceito “privilégios” como significaria transformar a regra em exceção”. 

 

Mas creio que terá caído no perigo inverso: retirar da decisão do TJUE a conclusão de que todas as figuras nela não mencionadas, mesmo as que prosseguem a mesma função, não são suscetíveis de ser abrangidas pela alínea d) do nº 1 do art. 6º da Diretiva.

 

E, se é verdade que o acórdão do TJUE não fala em garantias pessoais – que não estavam em causa - as questões reenviadas referiam-se expressamente a penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos – parece-me que nada autoriza a fazer o raciocínio a “contrario sensu” de que, então, não estariam abrangidas pela exclusão quaisquer outras garantias especiais que reforçam a posição dos credores detentores das obrigacionistas.

 

Aliás, um sinal de que o termo «privilégios» é suscetível de abarcar outros instrumentos que conferem direitos especiais aos credores é dado pelo Advogado-Geral ao referir (n.º 51 das Conclusões) que: “Neste contexto, o termo «privilégios» deveria indubitavelmente incluir os penhores mobiliários, na medida em que estes últimos confiram, no ordenamento do Estado‑Membro, direitos preferenciais especiais na aceção acima indicada, bem como, eventualmente, outros tipos de garantias que tenham os mesmos efeitos.”

 

E, indo até mais longe, neste caso, poderia levantar-se a questão de saber se o âmbito da Diretiva não abrange apenas a prestação de garantia do devedor do empréstimo obrigacionista, não de um terceiro, que não é o devedor principal. 

 

Como referido no n.º 43 do acórdão do TJUE, de 5 de junho, “ (…) o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados‑Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista.”

 

Torna-se, pois, pertinente a formulação da dúvida: Por que terá pretendido tirar essa competência tributária no caso de garantias, também especiais, mas pessoais?

 

Assim, em face das dúvidas enunciadas não posso acompanhar a douta decisão quando considera que, tendo ficado clara a interpretação do conceito «privilégios», não se justifica a consulta do TJUE sobre o concreto caso em apreciação. 

 

Ao invés, entendo que a decisão que permitiria conduzir a um julgamento conforme com o direito europeu seria a do reenvio prejudicial do processo ao TJUE para que este Tribunal pudesse emitir pronúncia sobre a matéria.  

 

 

A árbitra,

 

 

Maria dos Prazeres Lousa

 

 



[1] Como é o caso da emissão de quitação relativa ao cumprimento de um mútuo, feita através de escritura pública, situação apreciada pelo TJUE no acórdão de 27 de outubro de 1998, processos C-31/97 e C-32/97 (FECSA e ACESA).

[2] Citamos, das conclusões do advogado Geral no processo C‑685/23:

 32.      Não estou convencido de que o facto de a prestação de garantias representar, por hipótese, a «normalidade» no caso de empréstimos obrigacionistas seja suficiente para enquadrar a prestação de garantias na categoria das diligências comerciais necessárias de uma operação complexa e única e, de todo o modo, à luz das respostas divergentes obtidas na audiência, caberá ao órgão jurisdicional nacional verificar qual é a situação real no mercado financeiro português.

33.      Em substância, em minha opinião, para o contrato de garantia poder ser considerado uma formalidade conexa com o contrato de financiamento, é necessário que o órgão jurisdicional nacional constate a existência de uma das seguintes condições alternativas: a obrigação imposta por lei ou por outra fonte que vincule a autonomia privada à prestação de garantias em caso de emissão de obrigações, a existência de situações de facto tais que permitam considerar a prestação de uma garantia uma diligência comercial necessária de uma operação complexa e única.

 

[3]  Uma vez que a Diretiva 2008/7 não define o termo «privilégios» nem remete para o direito dos Estados‑Membros para este efeito, decorre das exigências da aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade que o sentido e o alcance dos termos de uma disposição do direito da União devem em princípio ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta a redação desta disposição, o contexto em que se insere e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 20 de março de 2025, Lindenbaumer, C‑61/24, EU:C:2025:197, n.° 38 e jurisprudência referida).