Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1359/2024-T
Data da decisão: 2025-08-13  IRC  
Valor do pedido: € 5.787,40
Tema: IRC - Artigo 22º do Estatuto dos Benefícios Fiscais - Organismo de investimento colectivo não residente - Violação do Direito da União Europeia - Retenção na Fonte – Dividendos - Livre circulação de capitais.
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SUMÁRIO

I - O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando interpretado no sentido de que o regime aí previsto apenas é aplicável a entidades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados-Membros da União Europeia e de países terceiros. 

II - A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquela. 

III - É ilegal o ato de tributação em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por organismo de investimento coletivo (OIC) de direito irlandês e com sede na Irlanda, com desaplicação do regime previsto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF.

 

DECISÃO ARBITRAL 

 

O árbitro Pedro Miguel Bastos Rosado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:   

 

 

 

I. Relatório

 

1.A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito irlandês, com o número de contribuinte português..., com sede na República da Irlanda, doravante designado por “Requerente”, apresentou, em 16 de dezembro de 2024, pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, bem como o acto tributário de retenção na fonte a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), que foi efectuada sobre os dividendos auferidos de fonte portuguesa, em Maio de 2020, mais peticionando a restituição integral dos valores indevidamente pagos, de € 5.787,40, acrescido de juros indemnizatórios, sendo Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante também designada por Requerida ou AT.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 17 de dezembro de 2024, e posteriormente notificado à AT.

 

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou, em 5 de fevereiro de 2025, o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.

 

4. Em 5 de fevereiro de 2025, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 25 de fevereiro de 2025.

 

 

6. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida apresentou resposta em 2 de abril de 2025, não tendo junto o “processo administrativo”.

 

7. Na sua resposta a AT suscitou as exceções de inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte e de incompetência material do tribunal arbitral.

 

8. Em 6 de abril de 2025, o Tribunal notificou o Requerente para exercer, querendo, o contraditório quanto à matéria de exceção suscitada pela Requerida na sua resposta. 

 

9. Em 29 de abril de 2025, o Requerente exerceu o contraditório quanto à matéria de exceção suscitada pela Requerida na sua resposta. 

 

10. Por despacho de 21 de maio de 2025 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinou-se que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, o Requerente no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho, e a Requerida no prazo de 10 dias contado da notificação das alegações da Requerente, ou da falta de apresentação das mesmas.

 

11. Em 6 de junho de 2025, o Requerente apresentou alegações.

 

II. Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. Importa apreciar adiante e prioritariamente a questão da incompetência (artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, atendendo à invocada exceção pela Requerida.

 

III. Matéria de fato 

 

1. Fatos provados 

 

Dão-se como provados os seguintes fatos relevantes para a decisão:

 

A)   O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na República da Irlanda, constituído sob a forma contratual e não societária, comumente designado de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável em Portugal (documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teo se dão como reproduzido);

B)   Em Maio de 2020, o Requerente auferiu dividendos pagos por uma sociedade comercial com residência fiscal em território português (EDP Energias de Portugal, S.A.), no montante total de € 23.149,60, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, nos seguintes termos: 

Ano da retenção – 2020

Valor bruto do dividendo – € 23.149,60

Data de pagamento – 14 de maio de 2020

Guia de pagamento –...

Valor da retenção – € 5.787,40 

(documentos n.ºs 2 e 3, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

C)   A quantia de € 5.787,40, retida na fonte, foi entregue ao Estado pelo B... em 14-05-2020, com base na guia n.º ... (documento n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

D)   No dia 14-05-2024, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do referido ato de retenção na fonte (documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

E)   No pedido de revisão oficiosa, o Requerente invocou a ilegalidade da liquidação de IRC por retenção na fonte por violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do primado do Direito Comunitário sobre o Direito Interno, ínsito no artigo 8.º, n.º 4 da CRP;

F)    Não foi proferida decisão sobre o pedido de revisão oficiosa até 16-12-2024, data em que o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fatos não provados e fundamentação da matéria de fato dada como provada e não provada

 

Relativamente à matéria de fato, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os fatos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT). 

 

Deste modo, os fatos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os fatos provados acima elencados baseiam-se, segundo o princípio da livre apreciação da prova, nos documentos juntos pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, atrás mencionados, cuja autenticidade não foi colocada em causa, bem como nas posições assumidas pelas partes nos articulados apresentados em relação aos fatos essenciais, que não foram questionados, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

Dão-se por integralmente reproduzidos, para os devidos efeitos,  todos os documentos juntos pelo Requerente no PPA. 

 

Não se provou que a Autoridade Tributária e Aduaneira tenha efectuado qualquer diligência na sequência da apresentação pelo Requerente do pedido de revisão oficiosa. 

 

Na verdade, a Requerida, por um lado, nem sequer juntou o processo administrativo, limitando-se questionar documentos juntos pelo Requerente e alegar que “o requerente não logrou fazer a prova dos factos por si alegados e, nessa medida, fica prejudicada a subsunção dos factos efetivamente demonstrados aos referidos princípios e normas jurídicas do Direito da União”.

 

Por outro lado, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação do pedido de revisão oficiosa, no sentido de apurar a autenticidade da documentação junta pelo Requerente, incluindo a existência de créditos de imposto por dupla tributação internacional que questiona, desde logo através do recurso aos mecanismos de troca de informações previstos no artigo 26º da Convenção de Dupla Tributação entre Portugal e a Irlanda, como lhe seria imposto. 

 

Pelo que é apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a fatualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre fatos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

 

As regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos fatos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT. 

 

«No procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

 

A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

 

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os fatos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de fato é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

 

Por isso, não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de fato, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os fatos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Não existem quaisquer outros fatos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

IV. Exceções invocadas pela Requerida na Resposta

 

Na sua Resposta veio a AT invocar as exceções de inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte e de incompetência do tribunal arbitral, em razão da matéria.

 

A AT começa por defender a inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte por entender que, havendo lugar a prévia impugnação administrativa necessária para efeito de poder deduzida a impugnação judicial dos atos de retenção na fonte, o pedido de revisão oficiosa apenas pode ser entendido como preenchendo esse requisito procedimental se fosse apresentado no prazo de dois anos legalmente previsto para a reclamação graciosa.

 

Quanto à incompetência, alega, em suma, que a AT se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, referidas no nº 1 do art. 2º do RJAT, “com excepção de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”. Mais refere a AT que “(…) relativamente ao pedido de revisão oficiosa, constata-se que a requerente – na qualidade de substituído tributário, pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário sem que tenha desencadeado procedimento de reclamação graciosa nos termos do art. 132º do CPPT.”, que, no seu entender, é uma “situação está fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.”. Acresce que “não se retira do pedido de revisão oficiosa, que foi indeferido tacitamente, que o Requerente tenha “invocado erro de direito imputável à AT, ou que, tendo-o invocado, o comprove invocando, designadamente, que as retenções na fonte se deveram a orientações ou instruções da AT”, pelo que “no caso da revisão dos atos tributários ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, o pedido terá que ser apresentado no prazo da reclamação administrativa”. Pelo que “(s)empre que o contribuinte opte pelo pedido de revisão, não tem quatro anos para o fazer, mas o prazo da reclamação graciosa”, sendo que “preclude, com o decurso do prazo de reclamação, de dois anos, o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do acto de liquidação”.

 

Por fim, entende a AT que “o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT”.

 

No seu requerimento relativo ao exercício do contraditório, o Requerente defende, em suma, que a “revisão oficiosa do ato de retenção na fonte pode ser solicitada pelo contribuinte, com base em erro de direito imputável aos serviços, no prazo de quatro anos a contar da data do ato tributário”, que “estando em causa uma retenção na fonte a título definitivo pelo substituto fiscal, o erro sobre os pressupostos de direito dessa retenção na fonte é suscetível de configurar erro imputável aos serviços para efeitos da apresentação, no prazo de 4 anos, de pedido de revisão oficiosa dos atos tributários”. Mais defende que “a circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do ato de liquidação, não obsta a que seja pedida a respetiva revisão oficiosa e seja impugnado contenciosamente o eventual ato de indeferimento desta”. E que “tendo o presente pedido de pronúncia arbitral sido precedido de recurso à via administrativa, não sobram dúvidas sobre a competência material deste Tribunal Arbitral”.

 

O Tribunal entende que a Requerida não tem razão na invocação das duas exceções atrás referidas, que incluindo as mistura na sua alegação, procedendo aqui a argumentação do Requerente, com a qual se concorda, bem como a jurisprudência citada e parcialmente reproduzida.  

 

Entende o Tribunal destacar, ainda, a decisão arbitral proferida em 24/04/2024 no âmbito do processo nº 855/2023-T, onde se pode ler: 

3. Questão da incompetência material do tribunal arbitral

 

“A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o tribunal arbitral é incompetente, por dois motivos, em suma:

– a Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, de onde decorre a vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral, exclui do âmbito desta vinculação, conforme alínea a) do seu artigo 2º, as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de retenção na fonte que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do artigo 132.º, do CPPT, e quanto às retenções na fonte relativas aos anos de 2019 e 2020 não foi deduzida reclamação graciosa mas, antes, pedido de revisão oficiosa; e a sua interpretação sobre e o âmbito da vinculação impõe-se «por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT», «sendo constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade [cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP], como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno [cf. artigos 25.º e 27.º da RJAT, que impõem uma restrição dos recursos da decisão arbitral].”»

– o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa é um ato silente, na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito, para efeitos de impugnação arbitral, pelo que consubstancia indeferimento por extemporaneidade e o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT. 

3.1. Questão da inclusão dos actos  de retenção na fonte precedidos de pedido de revisão oficiosa no âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira

A arbitragem tributária foi criada pelo Governo através do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa que lhe foi concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril.

No n.º 4 desse artigo 124.º estabeleceu-se que o âmbito da autorização prevista no presente artigo compreende, nomeadamente, as seguintes matérias:

a) A delimitação do objecto do processo arbitral tributário, nele podendo incluir-se os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária;

A autorização legislativa era indispensável para o Governo legislar validamente sobre esta matéria, uma vez que se está perante matéria atinente às garantias dos contribuintes, inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, e, por isso, o Governo não tem competência legislativa própria, como decorre dos artigos 198.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP.

Utilizando essa autorização legislativa, o Governo estabeleceu no artigo 2.º, n.º 1, alínea A), do RJAT que «a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta».

É, assim, inequívoco que o Governo, no exercício dos poderes legislativos que lhe foram concedidos pela autorização legislativa, atribuiu aos tribunais arbitrais competência para a declaração de ilegalidade de actos de retenção na fonte, sem qualquer restrição.

No artigo 4.º do RJAT estabeleceu-se, na redacção inicial, que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», norma esta ao abrigo da qual foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que se incluiu a norma invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, através da qual se exceptuam da competência dos tribunais arbitrais as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

Já depois de a Portaria n.º 112-A/2011 ter sido emitida, a Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, veio estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Na alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles artigos 131.º a 133.º do CPPT, para cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do artigo 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

Neste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se faz qualquer referência expressa aos actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os actos de indeferimento total ou parcial de «pedidos de revisão de actos tributários».

No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de autoliquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de autoliquidação, incorporando a sua ilegalidade.

É unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação (a que são equiparáveis os actos de retenção na fonte) na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa.

Como se diz no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul  de 27-04-2017, processo n.º 8599/15 (reproduzindo a decisão arbitral proferida no processo n.º 630/2014-T):

Conforme resulta do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta [alínea a)] e a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais [alínea b)].

Por outro lado, a competência dos tribunais arbitrais depende dos termos da vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT. Com efeito, o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Nos termos da alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011 ficam excluídas do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

Considerando aqueles preceitos legais a decisão arbitral concluiu pela viabilidade de apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa, julgando não verificada a excepção de incompetência suscitada. Concordamos na íntegra com todo o discurso fundamentador da decisão arbitral, cuja fundamentação aqui transcrevermos apenas em parte:

 “A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

(...)

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».

No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. 

A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.

Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

(…)

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa.

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a soluça mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”

No que concerne às questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, para além de a Autoridade Tributária e Aduaneira não ter explicitado de que que forma os princípios constitucionais invocados podem ser violados, deve ter-se em conta que a questão da constitucionalidade desta interpretação sobre o âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD já foi objecto de apreciação do Tribunal Constitucional que decidiu «não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD». 

Nestes termos, aderindo à referida jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul e do Tribunal Constitucional, julga-se improcedente a excepção de incompetência invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto ao âmbito da sua vinculação.

3.2. Questão da incompetência do tribunal arbitral para apreciar o indeferimento tácito que entende dever ficcionar-se baseado em extemporaneidade

A tese da Autoridade Tributária e Aduaneira, embora confusamente explicitada, será a de que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não têm competência para apreciar a legalidade de actos de segundo grau que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação e, no caso, o indeferimento tácito «teria obrigatoriamente que se reportar a um indeferimento por extemporaneidade».

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Há restrições à competência dos tribunais arbitrais  derivadas das excepções que constam da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, operada pelo artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, mas não têm aplicação no caso em apreço, em que está em causa a apreciação da legalidade de actos de retenção na fonte que foram objecto de pedido de revisão oficiosa.

Refere-se no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

Para além da apreciação directa da legalidade de actos deste tipo, o facto de a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa e o recurso hierárquico, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele artigo 2.º do RJAT.

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Mas, resulta do teor do artigo 2.º do RJAT que a arbitragem tributária não foi implementada quanto às matérias susceptíveis de serem objecto de acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo ou de acção administrativa, pois é manifesto que não se enquadram em qualquer das situações previstas.

De qualquer forma, extrai-se também da referida autorização legislativa, designadamente da alínea a) do n.º 4 do referido artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, ao fazer referência aos «actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», que não se pretendeu estender o âmbito da arbitragem tributária à apreciação de actos que, nos termos do CPPT, não podem ser objecto de impugnação judicial, mas para que e adequada a acção administrativa.

Na verdade aquela expressão tem ínsita a exclusão dos «actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação» e das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do artigo 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação. 

É este o único critério de distinção dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa, não havendo suporte legal para sustentar que, relativamente a impugnação de actos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação se possa utilizar a acção administrativa, designadamente para apreciar questões relativas à verificação dos pressupostos de pedido de revisão oficiosa. 

Nos casos de indeferimento tácito não há, obviamente, apreciação expressa da legalidade de acto de liquidação (neste caso, através de retenção na fonte), mas, tratando-se de uma ficção de acto destinada a assegurar a impugnação contenciosa em meio processual que tem por objecto um acto de liquidação, o meio de impugnação adequado depende do conteúdo ficcionado.

No caso de impugnação administrativa directa de um acto de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do acto de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito de meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objecto directo acto de liquidação se baseia em razões substantivas e não por razões formais. 

De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo actos de retenção na fonte, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade desses actos e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa, nos tribunais estaduais, é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo ao processo arbitral.

Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:

– de 6-10-2005, processo n.º 01166/04: «o indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se, para efeito das alíneas d) e p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, como um acto que comporta a apreciação da legalidade de acto de liquidação»;

– de 02-02-2005, processo n.º 01171/04, de 08-07-2009, processo n.º 0306/09, de 23-09-2009, processo n.º 0420/09, de 12-11-2009, processo n.º 0681/09: «o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o acto silente atribuído a director-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um acto de liquidação de um tributo é a impugnação judicial».

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o acto ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um acto que comporta a apreciação da legalidade do acto de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e, consequentemente, também o meio alternativo que é o processo arbitral.

Quanto à alegação da Autoridade Tributária e Aduaneira de que o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se estão reunidos os pressupostos de aplicação do «mecanismo de revisão oficiosa», não é claro a que se refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, num caso em que está em causa um indeferimento tácito, não está em causa a aplicação de qualquer «mecanismo», mas sim a mera inércia da administração.

De qualquer modo, assente que o Tribunal Arbitral é competente para apreciar a legalidade do acto de retenção na fonte, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, «é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa» [artigo 91.º, n.º 1, do CPC subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

Aliás, como se referiu, é unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa, o que naturalmente tem implícita a possibilidade de apreciação de qualquer «mecanismo» previsto no artigo 78.º da LGT que possa ter sido aplicado.

 

Nestes termos, aderindo à referida jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul,  do Tribunal Constitucional e arbitral, bem como à argumentação do Requerente no seu requerimento de 29 de abril de 2025, julgam-se improcedentes a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, bem como se julga improcedente a exceção de inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte, ambas invocadas pela AT na sua Resposta.

 

V. Matéria de Direito 

 

1. Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral 

 

1.1. Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou, em suma, o seguinte:

 

- que “Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu a República da Irlanda), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”).”;

 

- que “existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa, entre os OIC residentes e os OIC não residentes, na tributação de dividendos de fonte portuguesa.”;

 

- que “esta diferença de tratamento consubstancia-se no diferente tratamento fiscal que é conferido aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão isentos de imposto – e aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão sujeitos a retenção na fonte liberatória de IRC a uma taxa de 25%.”;

 

- que “um tratamento desfavorável por um EM dos dividendos pagos a entidades não residentes face ao tratamento favorável reservado aos dividendos pagos às entidades aí residentes é inequivocamente suscetível de dissuadir as entidades não residentes de realizarem investimentos nesse EM e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º do TFUE.”;

 

- que “(a) consequência jurídica do princípio do primado do Direito da UE é a não aplicação, em caso de conflito entre leis, das disposições internas contrárias à disposição comunitária bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária.”.

 

A AT defende, em suma, o seguinte:

 

- que “o requerente não logrou fazer a prova dos factos por si alegados e, nessa medida, fica prejudicada a subsunção dos factos efetivamente demonstrados aos referidos princípios e normas jurídicas do Direito da União”;

 

- que “a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e que a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas.”;

 

- que “o princípio da não discriminação atende à necessidade de conferir tratamento igual ao que é igual e diferente àquilo que é diferente, na medida dessa diferença.”;

 

- que “as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português.”;

 

- que “paralela a esta opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC.”;

 

- que “no presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela requerente.”;

 

- que “ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.”;

 

- que “não sendo as situações comparáveis parece difícil de aceitar o argumento da requerente de que a legislação nacional e particularmente o artigo 22.º do EBF está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais, tendo em apreço a proibição geral de discriminação face a uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º do referido TFUE.”.

 

1.2. Da ilegalidade da liquidação de IRC 

Tal como resulta da matéria de fato assente, o Requerente é uma pessoa coletiva constituída como um fundo de investimento ao abrigo da lei da República da Irlanda, e residente na Irlanda, sendo, para efeitos de IRC, um sujeito passivo não residente e sem estabelecimento estável em território português. 

Em 2020, foram pagos ao Requerente dividendos no valor total bruto de € 23.149,60, sujeitos a retenção na fonte em Portugal, no montante de € 5.787,40, decorrente de participações detidas em sociedade residente em Portugal.

Os OIC são atualmente regulados pelo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo (“RJOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundo de investimento alternativo e a Diretiva n.º 2013/14/UE, do Parlamento e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativo no que diz respeito à dependência excessiva relativamente às notações de risco. E na sequência da entrada em vigor do RJOIC, foi igualmente alterado o regime fiscal pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 janeiro.

Nessa medida, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.

Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.

Assim, em face do exposto, cumpre assim analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.

Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão ao Requerente quando defende que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OICs constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OICs constituídos segundo a legislação de países terceiros (como sejam os EUA), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 23-02-2024, processo n.º 777/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T; Decisão Arbitral de 06-02-2025, processo n.º 714/2024-T.

Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: n.º 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; n.º 0806/21.7BELRS e n.º 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024, e n.º 0757/19.5BELRS de 05/06(2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS, de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt), destacando o excerto que de seguida se transcreve:

“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.

Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:

O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)

Deste modo, resulta de forma clara que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a sociedades constituídas à luz da legislação portuguesa, excluindo as que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da EU ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a um OIC residente num Estado Membro da EU ou terceiro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a um OIC que se constitua e opere de acordo com a legislação nacional não estaria sujeito a essa mesma retenção.

Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de imposto do selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 que se passam a transcrever:

53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. 

54 Além disso, como salientou a advogada-geral no n.o 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).

55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes. 

57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. 

58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.o TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.

Nestes termos, também aqui não assiste razão à Requerida.

Importa também aqui recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE.

Deste modo, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).

O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”

Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).

Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de Estados membros da UE, como é o caso da República da Irlanda, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegal e anula a liquidação de IRC por retenção na fonte contestada, e o ato de indeferimento tácito presumido do pedido de revisão oficiosa apresentada pelo Requerente, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

1.3. Reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios 

O Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios. 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 277/2020-T e 220/2020-T).

Na sequência da anulação do ato impugnado, o Requerente terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”. 

Já o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT vem dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Assim, como consequência da anulação da liquidação do ano de 2020 há lugar ao reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de € 5.787,40, valor que a Autoridade Tributária e Aduaneira não contesta. 

O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços. 

O pedido de revisão do ato tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido n processo n.º 402/06. 

Como também se refere no mesmo acórdão, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT». 

Foi uniformizada jurisprudência neste sentido pelo acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 30-09-2020, proferido no processo n.º 040/19.6BALSB, publicado com o n.º 4/2023, no Diário da República, I Série, de 16-11-2023, em que se conclui: «só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito a favor da Recorrida». 

Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do artigo 78.º da LGT. 

Assim, no caso em apreço, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária». 

Como decorre da matéria de facto fixada, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 14-05-2024, pelo que apenas a partir de 15-05-2025 há direito a direito a juros indemnizatórios. 

Assim, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 5.787,40 deverão contar-se desde o dia 15-05-2025 até ao integral reembolso do referido montante ao Requerente, nos termos do n.º 4 do artigos 43.º e n.º 10 do artigo 35.º, ambos da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

VI. Decisão

 

Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide:

a)     Julgar totalmente improcedentes as exceções invocadas pela AT;

b)    Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral; 

c)     Declarar ilegal e anular o ato de retenção na fonte contestado, incluído na guia de retenção na fonte n.º ..., do período de maio de 2020;

d)    Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento tácito presumido da revisão oficiosa apresentada pelo Requerente com referência à retenção na fonte em apreço;

e)     Condenar a AT no reembolso ao Requerente do montante de € 5.787,40; 

f)     Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante de € 5.787,40, contados desde 15-05-2025 até ao integral reembolso do referido montante ao Requerente;

g)    Condenar a AT no pagamento das custas processuais, em razão do decaimento.

 

 

VII. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.787,40 (cinco mil e setecentos e oitenta e sete euros e quarenta cêntimos), atribuído pelo Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VIII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 13 de agosto de 2025

 

O Árbitro,

 

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado