Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1073/2024-T
Data da decisão: 2025-07-28  IVA  
Valor do pedido: € 131.706,36
Tema: IVA. Direito à dedução. Despesas com lugares de estacionamento destinados à actividade normal do sujeito passivo. Princípio da neutralidade fiscal.
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SUMÁRIO:

 

1. A despesa com a locação de lugares de estacionamento localizados no local onde o sujeito passivo desenvolve a actividade profissional tributada possui carácter intrinsecamente profissional, constitui encargo geral da Requerente na manutenção do seu estabelecimento e na prossecução da actividade de advocacia, e não uma despesa de transporte ou viagem de negócios do sujeito passivo ou do seu pessoal.

 

2. Por isso, tal despesa não cai no âmbito da exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, pelo que o IVA que a onerou deve ser considerado dedutível, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do mesmo Código.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Regina de Almeida Monteiro (Presidente), José Coutinho Pires e Martins Alfaro (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 06-12-2024, acordam no seguinte:

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., SP, RL, com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa.

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral

 

Anulação parcial das autoliquidações de IVA referentes aos períodos de 2022/01M, 2022/02M, 2022/03M, 2022/04M, 2022/05M, 2022/06M, 2022/07M, 2022/08M, 2022/09M, 2022/10M, 2022/11M, 2022/12M, 2023/01M, 2023/02M, 2023/03M, 2023/04M, 2023/05M, 2023/06M, 2023/07M, 2023/08M, 2023/09M, 2023/10M, 2023/11M e 2023/12M, constantes das declarações periódicas apresentadas pela Requerente.

 

A.4 - Pedido:

 

A Requerente formulou o seguinte pedido:

 

Ser anulada a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de IVA referente aos períodos de 2022/01M a 2023/12M e, bem assim, serem anuladas parcialmente as referidas autoliquidações de IVA, por vício de violação de lei, nos termos da alínea a) do artigo 99.º do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e, consequentemente, ser a Requerente reembolsada do montante pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal, desde a data do seu pagamento/não dedução até ao efectivo e integral reembolso, tudo com as legais consequências.

 

A.5 - Fundamentação do pedido:

 

A Requerente discute a questão de dedutibilidade do IVA sobre despesas de arrendamento de lugares de estacionamento.

 

Enquanto sociedade de advogados com escritórios em Lisboa, Porto e Faro, a Requerente arrendou lugares de estacionamento no valor total de € 572.636,36 (sem IVA) nos prédios onde tem os seus escritórios e em parques contíguos.

 

Estes lugares são utilizados pelos advogados associados, trabalhadores da sociedade, clientes e fornecedores que visitam diariamente os escritórios.

 

Seguindo o entendimento então vigente da Autoridade Tributária, constante da informação vinculativa n.º 1486/2011, de 28-11-2011, que considerava estas despesas excluídas do direito à dedução por aplicação da alínea c) do artigo 21.º do Código do IVA (despesas de transportes e viagens), a Requerente declarou o IVA suportado, mas não procedeu à sua dedução, entregando assim € 131.706,36 aos cofres do Estado. 

 

Contudo, na sequência de jurisprudência favorável sobre o tema, a Requerente apresentou em Março de 2024 uma reclamação graciosa sobre a qual se formou presunção de indeferimento tácito.

 

A argumentação da Requerente baseia-se fundamentalmente na violação do princípio da neutralidade fiscal que norteia o regime do IVA. Sustenta que as despesas com lugares de estacionamento na sede ou escritórios, destinados ao exercício normal da actividade, não se enquadram no conceito de "despesas de transportes e viagens" previsto na lei, devendo antes ser consideradas como custos operacionais dedutíveis.

 

Para a Requerente, esta interpretação encontra suporte em jurisprudência recente, nomeadamente no acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, de 05-112020, processo n.º 2500/10.5BELRS e em decisões arbitrais do CAAD que estabeleceram uma distinção entre despesas de estacionamento relacionadas com o local de exercício da actividade (dedutíveis) e aquelas suportadas no âmbito de viagens em representação da empresa (não dedutíveis).

 

A Requerente argumenta que a devolução deste montante é essencial para restabelecer o efeito neutralizador pretendido pelo sistema do IVA e corrigir o enriquecimento indevido do Estado resultante de uma interpretação errónea da legislação aplicável.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

A Requerida sustenta o seguinte:

 

Reconhece os factos essenciais do caso, confirmando que a Requerente arrendou lugares de estacionamento no valor de € 572.636,36 (sem IVA) e declarou € 131.706,36 de IVA sobre estes arrendamentos, seguindo inicialmente o entendimento resultante da Informação Vinculativa n.º 1486/2011 que excluía tais despesas do direito à dedução.

 

A defesa da Requerida centra-se fundamentalmente na natureza das exclusões previstas no artigo 21.º, do Código do IVA, argumentando que estas não constituem presunções ilidíveis, mas sim exclusões absolutas do direito à dedução.

 

A Requerida sustenta esta posição com extensa fundamentação jurídica, citando jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente os casos BLP Group, Enkler, Metropol e o recente despacho no caso PAGE International.

 

Segundo esta jurisprudência, o direito à dedução do IVA exige uma relação directa e imediata entre os bens ou serviços adquiridos e as operações tributadas realizadas a jusante.

 

A Requerida invoca a cláusula de standstill prevista no artigo 176.º da Directiva IVA, que permite aos Estados-Membros manter exclusões ao direito à dedução que já existiam na sua legislação nacional antes da entrada em vigor da Sexta Directiva.

Como o Código do IVA português entrou em vigor em 1986 e a Sexta Directiva só foi aplicada em Portugal em 1989, as exclusões do artigo 21.º beneficiam desta protecção.

 

A Requerida refere ainda que a jurisprudência do TJUE reconhece que estas exclusões podem abranger mesmo despesas com carácter estritamente profissional, desde que estejam definidas de modo suficientemente preciso.

 

Relativamente ao caso concreto, a Requerida argumenta que a Requerente não logrou comprovar adequadamente a utilização efectiva dos lugares de estacionamento por clientes, apresentando apenas declarações periódicas e facturas que, por si só, não permitem delimitar a utilização por parte do pessoal versus clientes.

 

A Requerida destacou que sobre o sujeito passivo impende o ónus da prova dos factos tributários alegados como pressuposto do direito à dedução.

 

Adicionalmente, a Requerida refere que não foram apresentados contratos de arrendamento que permitam concluir que os lugares de estacionamento se localizam efectivamente no local onde se exerce a actividade da A... .

 

A Requerida cita também uma decisão arbitral recente do CAAD (processo n.º 480/2023-T de 14-02-2024) que foi favorável à administração fiscal e que entendeu que o estabelecido no artigo 21.º, do Código do IVA não admite prova em contrário quando preenchidos os pressupostos legais.

 

Por fim, a Requerida invoca a própria Informação Vinculativa n.º 1486/2011 referida pela Requerente, destacando que aquela reconhece a necessidade de delimitar proporcionalmente a utilização dos lugares de estacionamento entre fins profissionais e pessoais, concluindo que a atribuição de lugares a funcionários e colaboradores limita o direito à dedução na proporção dos lugares atribuídos para esse fim.

 

Conclui entendendo que deve a ação ser julgada totalmente improcedente e a AT absolvida de todos os pedidos.

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.


As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo nenhuma delas manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 06-12-2024.

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente, atenta a conformação do objeto do processo e de acordo com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, ambos do RJAMT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

Com a sua Resposta, a Requerida juntou o Processo Administrativo.

 

O Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAMT, bem como a produção de prova testemunhal.

Notificadas para o efeito, ambas as partes apresentaram as suas alegações finais.

 

O processo não enferma de nulidades, nem existem exceções de que cumpra conhecer.

 

 

C - FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Matéria de facto - Factos provados:

 

Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

 

Constitui objecto do pedido de constituição do Tribunal arbitral a anulação parcial da autoliquidação de IVA referente aos períodos de 2022/01M, 2022/02M, 2022/03M, 2022/04M, 2022/05M, 2022/06M, 2022/07M, 2022/08M, 2022/09M, 2022/10M, 2022/11M, 2022/12M, 2023/01M, 2023/02M, 2023/03M, 2023/04M, 2023/05M, 2023/06M, 2023/07M, 2023/08M, 2023/09M, 2023/10M, 2023/11M e 2023/12M, constantes das declarações periódicas a seguir identificadas:

a) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/01M, na qual se apurou um crédito de imposto a recuperar no montante de € 62.022,86, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 5.144,28 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 2); 

b) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/02M, na qual se apurou o valor de € 2.534,73 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.926,60 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 3); 

c) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2022/03M, na qual se apurou o valor de € 387.508,08 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.926,60 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 4); 

d) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/04M, na qual se apurou o valor de € 137.326,43 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 22.852,80 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 5); 

e) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/05M, na qual se apurou o valor de € 135.767,57 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.945,30 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 6); 

f) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/06M, na qual se apurou o valor de € 28.169,59 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.947,40 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 7); 

g) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/07M, na qual se apurou o valor de € 78.326,31 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 5.165,06 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 8); 

h) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2022/08M, na qual se apurou um crédito de imposto a recuperar no montante de € 56.577,71, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.947,40 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 9); 

i) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2022/09M, na qual se apurou o valor de € 256.525,08 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.947,40 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 10); 

j) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2022/10M, na qual se apurou o valor de € 227.065,18 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.947,40 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 11); 

k) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/11M, na qual se apurou o valor de € 177.164,09 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.947,40 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 12); 

l) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2022/12M, na qual se apurou o valor de € 992.344,10 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.448.50 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 13); 

m) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/01M, na qual se apurou o valor de € 22.810,18 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.683,21 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 14); 

n) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2023/02M, na qual se apurou o valor de € 132.943,44 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.448,50 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 15); 

o) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2023/03M, na qual se apurou o valor de € 206.982,37 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.448,50 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 16); 

p) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/04M, na qual se apurou o valor de € 267.208,50 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.448,50 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 17); 

q) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/05M, na qual se apurou o valor de € 53.425,64 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 18); 

r) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/06M, na qual se apurou um crédito de imposto a recuperar no montante de € 100.641,02, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 19);

s) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2023/07M, na qual se apurou um crédito de imposto a recuperar no montante de € 6.838,38, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.771,81 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 20); 

t) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/08M, na qual se apurou um crédito de imposto a recuperar no montante de € 24.695,08, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 21); 

u) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/09M, na qual se apurou o valor de € 61.091,47 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 22); 

v) declaração periódica de IVA n.º..., referente ao período de 2023/10M, na qual se apurou o valor de € 328.780,72 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 23); 

w) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/11M, na qual se apurou o valor de € 326.974,70 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 24); 

x) declaração periódica de IVA n.º ..., referente ao período de 2023/12M, na qual se apurou o valor de € 473.184,93 a entregar ao Estado, sendo que no presente pedido arbitral apenas é contestado o montante de € 4.537,10 (pedido de pronúncia arbitral - Documento n.º 25), tudo no total de € 131.706,36. 

 

A Requerente é uma sociedade de advogados sujeita ao regime da transparência fiscal - facto não controvertido.

 

A Requerente é uma sociedade civil de responsabilidade limitada, sujeito passivo de IVA, enquadrada no regime normal com periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA - facto não controvertido.

 

A Requerente tem escritórios em Lisboa, Porto e Faro, tendo advogados e trabalhadores em cada um desses escritórios, recebendo nas suas instalações inúmeros clientes e fornecedores, essenciais para o normal exercício da sua actividade, sendo uma sociedade de advogados de grande dimensão - facto não controvertido.

 

No decurso dos anos de 2022 e 2023, a Requerente locou lugares de estacionamento às sociedades B..., S.A., C..., S.A. e D..., S.A., nos prédios onde tem os seus escritórios e em parques contíguos a esses prédios, no montante total de € 572.636,36 (sem IVA) - tabela resumo junta como Documento 26 ao pedido de pronúncia arbitral e correspondentes facturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral como Documento 27.

 

Nos anos de 2022 e de 2023 e por referência aos lugares de estacionamento em análise, a Requerente declarou (e entregou nos cofres do Estado) o montante de € 131.706,36 a título de IVA, nos termos do artigo 8.º do Código do IVA - Documentos 2 a 25, juntos ao pedido de pronúncia arbitral. 

 

A Requerente tem, para além da sua sede, sita na ..., n.° ..., em Lisboa, um escritório em Faro sito em Rua ..., ..., ...-... Faro, Portugal - Documento n.° 1 junto com as alegações.

 

Em 4 de Abril de 2019, a Requerente celebrou, com a sociedade B..., S.A., um contrato de arrendamento para fins não habitacionais de, entre outras fracções, 107 lugares de estacionamento simples, sitos na cave do Edifício localizado na ..., n.° ... a ... e ... e ..., em Lisboa - Documento n.° 2 junto com as alegações.

 

Em 8 de Maio de 2019, a Requerente celebrou, com a sociedade B..., S.A., um contrato de arrendamento para fins não habitacionais de, entre outras fracções, 12 lugares de estacionamento simples, sitos na cave do Edifício localizado na ..., n.° ..., em Lisboa - Documento n.° 3 junto com as alegações.

 

Os lugares de estacionamento em causa localizam-se na cave do Edifício onde a Requerente tem a sua sede - Documento n.° 3 junto com as alegações.

 

Com a sociedade C..., S.A., a Requerente contratou uma avença semestral para efeitos de utilização de utilização de lugares de estacionamento (4 lugares) sito no ..., sito em ... ...-..., Faro - facturas números lSAP.c/128, lSAP.c/3228, 231401.c/127 e 231401.c/3452 juntas com o pedido de pronúncia arbitral - Documento n.° 26.

 

Os lugares de estacionamento em causa localizam-se em lugar contíguo ao escritório da Requerente em Faro, cidade onde a Requerente também desenvolve a sua actividade - Documento n.° 26, junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

Em 8 de Abril de 2019, a Requerente celebrou, com a sociedade D..., S.A., um contrato de cedência de direitos de utilização de 60 lugares de estacionamento simples, sitos na ... em Lisboa, local contíguo ao local onde a Requerente tem a sua sede em Lisboa - Documento n.° 4 junto com as alegações.

 

Nos termos da Cláusula 1.2. da Política Interna da Equipa de Gestão, ou seja, a política interna aplicável aos trabalhadores da Requerente, apenas têm direito a lugar de estacionamento os directores/coordenadores da equipa de gestão - Documento n.° 5 junto com as alegações.

 

Nos anos de 2022 e de 2023, beneficiavam de lugar de estacionamento no escritório sito em Lisboa os directores/coordenadores - Documento n.º 6 junto com as alegações.

 

Nos termos das Políticas Internas - Advogados, Cláusula 2.2.1, os sócios, senior counsels, associados coordenadores, associados seniores e counsels, têm direito a lugar de estacionamento - Documento n.° 7 junto com as alegações.

 

Os lugares de estacionamento afectos aos advogados são usados por estes no âmbito da sua actividade profissional, isto é, na sua qualidade de prestadores de serviços jurídicos à Requerente, e bem assim, afectos a Clientes e Fornecedores - imagens ilustrativas dos lugares de estacionamento destinados a Clientes e Fornecedores, juntas com as alegações.

 

Os referidos lugares de estacionamento são destinados aos advogados associados da Sociedade, bem como aos trabalhadores da Requerente (recursos humanos, secretárias, contabilistas e demais trabalhadores) que operam a partir desses escritórios e, bem assim, a (inúmeros) clientes e fornecedores que visitam diariamente os escritórios da Requerente.

 

A Requerente não procedeu à dedução do IVA suportado referente aos lugares de estacionamento mencionados - Documento n.° 25 junto aos autos com o pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

A Requerente, seguindo o entendimento da Autoridade Tributária que retirou do conteúdo da Informação Vinculativa n.º 1486/2011, consistente em as despesas com lugares de estacionamento atribuídos a funcionários, colaboradores, titulares de cargos de direcção ou outros (tais como os advogados e solicitadores, enquanto prestadores de serviços), estarem excluídas do direito à dedução, por aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA, declarou o IVA suportado com o arrendamento dos lugares de estacionamento e não procedeu à sua dedução - facto não controvertido.

 

Em 11-03-2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa com vista à anulação parcial das autoliquidações de IVA dos períodos de 2022/01M a 2023/12M, nos mesmo termos em que o fez nos presentes autos - processo administrativo.

 

Até à data da apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, não foi proferida decisão final no referido procedimento de reclamação graciosa.

 

A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 27-09-2024 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

C.2 - Factos dados como não provados:

 

Com interesse para a decisão da causa, não existem factos que devam ser dados como não provados.

 

C.3 - Fundamentação da matéria de facto:

 

Relativamente à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAMT. 

 

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não prevalece, na apreciação da prova produzida, o princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).

 

No que se refere aos factos provados e não provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e na posição assumida por ambas as Partes, em relação aos factos essenciais.

 

Os factos foram dados como provados em função dos documentos para que é feita remissão na respectiva enunciação.

 

Quanto ao facto, dado como provado, de que os referidos lugares de estacionamento são destinados aos advogados associados da Sociedade, bem como aos trabalhadores da Requerente (recursos humanos, secretárias, contabilistas e demais trabalhadores) que operam a partir desses escritórios e, bem assim, a (inúmeros) clientes e fornecedores que visitam diariamente os escritórios da Requerente, o juízo do Tribunal baseou-se nos documentos constantes dos autos - contratos, facturas e ilustrações juntas com as alegações - e com o facto de ser natural e provável que uma sociedade de advogados da dimensão da Requerente destine lugares de estacionamento aos seus advogados, demais trabalhadores, clientes e fornecedores, dada a bem conhecida escassez de lugares para estacionamento no centro das cidades de Lisboa e de Faro.

 

Este juízo probatório do Tribunal assentou no artigo 19.º do RJAMT, o qual consagra o princípio da livre condução do processo, estipulando que o tribunal arbitral pode proferir decisão com base na prova produzida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e com a autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, com a particularidade de que o tribunal arbitral dispõe de liberdade ampla para admitir, apreciar e valorar os meios de prova necessários à descoberta da verdade material.

 

O princípio da livre apreciação ou livre convicção do julgador, consagrado explicitamente no artigo 607.º, n.º 5 do CPC, permite ao Tribunal Arbitral valorar a prova produzida de forma não tarifada, isto é, de acordo com a sua convicção racional e motivada sobre os factos. Trata-se de uma ponderação conscienciosa de todas as provas e circunstâncias do caso, formando a convicção de forma motivada e lógica. O julgador tem liberdade para valorar criticamente as provas - atribuindo-lhes a força que, segundo a experiência e a razoabilidade, lhes pareça adequada - apoiando a sua decisão em elementos que estejam nos autos ou em factos de conhecimento geral, explicando o percurso lógico-probatório que o levou a dar determinado facto como provado ou não provado.

 

No caso em análise, estes elementos referem-se: (i) à prova documental (facturas, contratos, ilustrações juntas com as alegações) que sugerem fortemente a existência e o uso dos lugares de estacionamento pela Requerente e (ii) em factos notórios e máximas da experiência comum, em particular quanto a ser natural e provável que a Requerente, uma sociedade de advogados de grande dimensão, localizada no centro da cidade, disponibilize os seus escassos lugares de parque aos profissionais do Escritório e às pessoas que diariamente a visitam. Trata-se de fundamentos reconhecidos pelo direito probatório (a prova documental directa aliada à prova indirecta ou por presunções e factos notórios), os quais legitimam a conclusão fática obtida.

 

Diga-se, de resto, que a circunstância de facto - a dificuldade generalizada de estacionar em tais centros urbanos - configura aquilo que o CPC denomina como “facto notório”. De acordo com o artigo 412.º, n.º 1 do CPC, os factos notórios não carecem de prova nem sequer de alegação pelas partes, devendo considerar-se notórios “os factos que são do conhecimento geral”. Em outras palavras, se um determinado facto é do domínio comum, de tal modo que qualquer pessoa medianamente informada o conhece, então o tribunal pode dá-lo por assente sem exigir prova formal.

 

No caso concreto, é razoável afirmar que a falta de estacionamentos disponíveis nos centros de Lisboa e Faro é do conhecimento geral - especialmente para quem vive ou trabalha nessas cidades, mas também de forma ampla a nível nacional, dada a notoriedade desse problema urbano. Portanto, o Tribunal pode legitimamente servir-se desse facto notório como parte da sua fundamentação, sem necessidade de prova testemunhal ou documental específica sobre tal escassez, podendo e devendo utilizá-lo como premissa fática na construção do seu raciocínio probatório.

 

Também o enunciado de que “é natural e provável” que uma sociedade de advogados de grande dimensão disponibilize os seus lugares de parque aos advogados, colaboradores e clientes, corresponde a uma máxima de experiência comum: resulta do conhecimento que, em geral, no curso normal das coisas, organizações - e não apenas as sociedades de advogados - com muitos funcionários e visitantes - tendem a reservar vagas privadas para uso interno e de clientes. Trata-se de uma ilação baseada naquilo que usualmente ocorre em situações análogas, apoiada na lógica e na experiência quotidiana.

 

E a verdade é que o recurso a juízos de probabilidade fundamentados na experiência é plenamente aceite no direito probatório, frequentemente ligado à utilização de presunções judiciais. As presunções são definidas no artigo 349.º do Código Civil como as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. 

 

Tais presunções consistem em inferências lógicas: partindo de factos base provados (ou de conhecimento notório), o tribunal infere a existência de outro facto que se pretende provar, desde que tal inferência seja razoável à luz das regras da experiência e das leis da lógica. 

 

Essas inferências devem fundar-se em juízos correntes de probabilidade, nas regras da lógica comum e até em dados da intuição humana, sempre extraídos de factos já apurados. 

 

No presente caso, o raciocínio foi: sabendo-se (por prova documental e/ou por notoriedade) que a Requerente dispunha de determinados lugares de estacionamento nos seus edifícios ou próximo destes e sabendo-se que há escassez de estacionamento na zona, é altamente provável, segundo a experiência comum, que tais lugares sejam efectivamente utilizados pelos membros da sociedade e por visitantes em serviço, e não deixados vagos ou entregues a estranhos. Em termos de presunção judicial, dos factos conhecidos - a existência das vagas de garagem da sociedade no centro urbano e a dificuldade genérica de estacionamento na área - o Tribunal inferiu o facto desconhecido - a destinação dessas vagas aos advogados, colaboradores, fornecedores e clientes da sociedade.

 

Esta operação mental está de acordo com os parâmetros legais. Primeiramente, não é exigível meio de prova específico para demonstrar a utilização de estacionamentos corporativos; tal facto não está sujeito a prova vinculada (como escritura pública, documento autêntico, etc.), pelo que se insere no âmbito da livre convicção (CPC 607.º, n.º 5) e admite prova testemunhal e presunções. Nos termos do artigo 351.º do Código Civil, “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”. Dado que seria lícito produzir prova do facto em apreço mediante testemunhas ou outros meios livres, nada obsta a que tal facto seja dado como provado por presunção judicial. Ademais, a inferência em si é lógica e não contraria nenhuma lei natural ou jurídica. Pelo contrário, está ancorada no que à luz das regras da experiência e do normal acontecimento da vida, será razoável concluir em face das circunstâncias apuradas. Ou seja, o Tribunal utilizou uma linha de raciocínio habitual e aceitável: do conjunto de indícios e circunstâncias, extraiu-se uma conclusão provável, que no contexto concreto faz pleno sentido.

 

Em arbitragem tributária, vigora também o princípio do inquisitório mitigado. Nos termos do artigo 411.º do CPC, o juiz (ou árbitro) pode oficiosamente determinar diligências probatórias complementares necessárias ao apuramento da verdade. Ou seja, caso o Tribunal Arbitral tivesse dúvidas sobre o destino efectivo das vagas de estacionamento, poderia ter ordenado diligências adicionais - por exemplo, solicitar documentação interna da Requerente, inquirir testemunhas (p. ex. funcionários ou clientes) ou até realizar uma inspecção ao local. No entanto, este Tribunal entendeu não ser necessário ir além da prova já existente nos autos, tendo logrado formar a sua convicção com os elementos disponíveis.[1] Ou seja, o Tribunal considerou que as provas apresentadas, conjugadas com as presunções e factos notórios, foram suficientes para gerar uma convicção segura no espírito do julgador. É que o exercício da livre apreciação da prova permite exactamente isso: dar por demonstrado um facto com base num conjunto de indícios convergentes e na experiência comum, desde que tal seja fundamentado, sendo que, neste caso concreto, a fundamentação explícita é demonstrativa de que o julgador ponderou quer a prova directa (documentos, ilustrações, contratos, facturas), quer a prova indirecta (inferências lógicas), num raciocínio devidamente explanado e não arbitrário, mediante uma dedução racional e juridicamente legítima a partir das evidências disponíveis e do conhecimento geral.

 

C.4 - Matéria de direito:

 

C.4.1 Direito Nacional - Enquadramento legal no Código do IVA.

 

O direito à dedução do IVA suportado a montante constitui um princípio basilar do sistema do imposto sobre o valor acrescentado, achando-se consagrado nos artigos 19.º e 20.º do CIVA (e, correspondentemente, nos artigos 167.º e 168.º da Directiva IVA). 

 

Em regra, os sujeitos passivos têm o direito de deduzir integralmente o IVA suportado em bens ou serviços adquiridos destinados à realização de operações tributadas, de forma que o imposto incidente sobre inputs não constitua um encargo efectivo da actividade económica. 

 

Este mecanismo visa assegurar o princípio da neutralidade fiscal, libertando completamente o operador económico do ónus do IVA incorrido no âmbito das suas actividades tributadas.

 

Todavia, a própria lei estabelece limites ou exclusões ao exercício do direito à dedução, designadamente no artigo 21.º, do Código do IVA, que elenca certas categorias de despesas em que o imposto suportado não é dedutível, por se presumir que os correspondentes gastos não têm um carácter estritamente profissional. 

 

Entre essas exclusões legais - cujas introdução, âmbito e validade serão analisados adiante -, interessa particularmente aos presentes autos a prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA.

Esta alínea exclui do direito à dedução o IVA “contido nas despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens”.

 

No caso vertente, importa desde já delimitar o âmbito de aplicação literal desta norma de exclusão: estão abrangidas as despesas com transportes e deslocações profissionais realizadas pelo sujeito passivo ou pelos seus trabalhadores/colaboradores, o que tipicamente cobre os custos de viagens de serviço, deslocações em trabalho (incluindo eventuais encargos com transportes, portagens, combustíveis, etc.), bem como outras despesas relacionadas com essas deslocações de negócios.

 

O legislador estabeleceu aqui uma presunção de não profissionalidade estrita para esse tipo de gastos, dada a sua natureza frequentemente mista ou susceptível de proporcionar um benefício pessoal aos participantes.

 

Por outras palavras, assume-se que as despesas com viagens de negócios e transportes do pessoal podem encobrir consumos de carácter privado ou de representação, não estando directamente e exclusivamente ao serviço da actividade produtiva da empresa. Daí que o IVA nelas suportado seja, por defeito, considerado não dedutível.

 

No entanto, é crucial ter presente que as exclusões do artigo 21.º do CIVA devem ser interpretadas restritivamente, por constituírem derrogações ao princípio geral do direito à dedução.

 

Como tem sido afirmado, não é pacífico determinar se todas as limitações consagradas no direito interno preenchem os exactos pressupostos admitidos pelo direito comunitário (cláusula de standstill). 

 

Em qualquer caso, o intérprete nacional deve aplicar tais normas de forma estrita, não as ampliando além do seu âmbito específico nem delas retirando ilações que levem à denegação do direito à dedução em situações não claramente previstas pelo legislador.

C.4.2 Direito da União Europeia - Directiva IVA e cláusula de standstill.

 

O ordenamento jurídico da União Europeia, através da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (vulgo Directiva IVA), estabelece nos artigos 167.º e seguintes as regras harmónicas sobre o direito à dedução do IVA. 

 

O artigo 168.º da Directiva consagra que o sujeito passivo tem direito a deduzir o IVA devido ou pago em bens e serviços adquiridos, na medida em que sejam utilizados para as suas operações tributadas. 

 

Não obstante o carácter amplo deste princípio, a própria Directiva prevê que poderão existir exclusões de determinadas despesas: em especial, o artigo 176.º (correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 6 da Sexta Directiva 77/388/CEE) dispõe que, até que o Conselho determine as despesas que não conferem direito a dedução, os Estados-Membros ficam autorizados a manter em vigor as exclusões ao direito à dedução que tivessem estabelecido no seu direito interno antes de 1 de Janeiro de 1979 (ou, no caso de Estados aderentes posteriormente, antes da data da adesão). Esta disposição transitória é conhecida precisamente como “cláusula de standstill” ou de não retrocesso.

 

Em termos práticos, a cláusula de standstill visa evitar que a harmonização fiscal implique a revogação imediata das restrições nacionais pré-existentes em matéria de direito à dedução, até que seja adoptada uma regulamentação comunitária uniforme sobre o tema.

 

Com efeito, o objectivo do artigo 176.º da Directiva IVA foi permitir que cada Estado-Membro mantivesse temporariamente as exclusões ao direito à dedução que já aplicava no seu ordenamento, impedindo, porém, que introduzisse novas exclusões ou que ampliasse o âmbito das existentes após as datas-chave fixadas (1979 ou data de adesão).

 

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem interpretado esta cláusula no sentido de que ela não legitima quaisquer ampliações das restrições nacionais além do que vigorava previamente, nem tão-pouco autoriza exclusões que não se enquadrem nas categorias gerais de despesas de carácter não profissional indicadas na própria Directiva (v.g. despesas de luxo, recreio ou representação).

 

No que toca à compatibilidade das exclusões do artigo 21.º do Código do IVA com o direito comunitário, a jurisprudência comunitária reconhece, de um modo geral, que despesas susceptíveis de uso privado ou de carácter de representação podem ser objecto de exclusão do direito à dedução, ao abrigo do artigo 176.º da Directiva, desde que tal exclusão já existisse na ordem jurídica nacional dentro do período protegido pela cláusula de standstill.

 

No caso português, o Código do IVA - em vigor desde 1986 - incluiu desde a origem um elenco de exclusões no direito à dedução (artigo 21.º) em termos essencialmente análogos aos actuais, tendo o Estado Português, à data da adesão (1986) e entrada em vigor plena das directivas do IVA (1989), optado por manter essas limitações.

 

Tais exclusões - que abrangem, entre outras, veículos de passageiros e despesas conexas, despesas de alimentação e alojamento, despesas de diversão ou luxo, e in casu despesas de transporte e viagens de negócios - estão, em princípio, cobertas pela cláusula de standstill, uma vez que revestem natureza similar às despesas identificadas na Directiva como não estritamente profissionais (“despesas sumptuárias, recreativas ou de representação” - cf. artigo 176.º, 1.º parágrafo). 

 

Com efeito, entende o TJUE que a manutenção destas categorias de exclusão pode justificar-se enquanto medida transitória, atendendo a que se trata de despesas que, pela sua natureza, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final dissimulado.

 

No tocante especificamente às despesas de transporte e viagens de negócios, é geralmente aceite que estas configuram uma categoria abrangida pela cláusula de standstill, dado tratar-se de gastos nos quais frequentemente se mistura o interesse da empresa com o interesse particular do viajante (por exemplo, deslocações que proporcionam benefícios pessoais acessórios, ou componentes de lazer). 

 

O TJUE reconheceu explicitamente que os Estados-Membros podem manter a exclusão da dedução de despesas desse tipo, por as mesmas não terem carácter estritamente profissional, desde que não ultrapassem o âmbito previamente definido no direito interno nem contrariem os princípios da Directiva. 

 

Importa sublinhar, todavia, que qualquer exclusão ao direito à dedução constitui uma derrogação ao regime regra e, como tal, deve ser interpretada de forma restritiva. 

 

Assim, ao aplicar a alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA, há que atender à finalidade subjacente permitida pelo direito comunitário - evitar deduções de IVA em despesas de aparente finalidade empresarial, mas passíveis de fruição privada - sem ampliar o seu alcance para além do estritamente necessário a essa finalidade.

 

Diversos arestos do Tribunal de Justiça elucidam os princípios acima referidos. Destacam-se, pela sua pertinência:

 

  • Acórdão Ghent Coal Terminal (Proc. C-37/95, de 15.01.1998),[2] onde se reafirmou que o direito à dedução do IVA nas despesas de investimento efectuadas com vista a operações tributadas futuras permanece intacto, mesmo que tais operações não cheguem a concretizar-se, salvo obrigação de ajuste nos termos da Directiva. Este acórdão reforça o carácter objectivo do direito à dedução - baseado na afectação prevista do bem ou serviço à actividade económica tributada - e a ideia de que o não uso efectivo para fins empresariais, por razões alheias à vontade do sujeito passivo, não compromete imediatamente o direito dedutível.
  • Acórdão Charles e Charles-Tijmens (Proc. C-434/03, de 14.07.2005),[3] no qual o TJUE abordou as regras de afectação de bens ao activo da empresa e a possibilidade de um sujeito passivo optar por incluir totalmente um bem de uso misto na esfera empresarial, deduzindo integralmente o IVA da sua aquisição, mediante posterior tributação das utilizações privadas. Ficou estabelecido que, desde que a legislação nacional assim o preveja, o sujeito passivo pode afectar integralmente um bem (por exemplo, um edifício parcialmente habitacional) à actividade económica, não sendo forçado a uma repartição a priori, devendo, porém, liquidar IVA sobre o uso privado para garantir a neutralidade e evitar vantagens indevidas. Esta jurisprudência releva para a distinção entre afectação total com tributação das utilizações privadas versus afectação proporcional inicial, tópica essa a considerar quando se trate de bens ou serviços usados tanto para fins empresariais quanto pessoais.

 

  • Acórdão Sveda (Proc. C-126/14, de 22.10.2015),[4] onde se decidiu que uma pessoa colectiva que construiu, com custos sujeitos a IVA, uma infra-estrutura (trilho pedagógico) de acesso público gratuito, mas destinada a atrair visitantes para uma loja tributada, mantinha o direito à dedução do IVA dessas despesas. O TJUE entendeu que existia um nexo directo e imediato entre os custos de construção e a actividade económica tributada (vendas na loja), não prejudicado pela gratuidade de parte da utilização da infra-estrutura. Este acórdão evidencia que a dedução não pode ser recusada quando as despesas, mesmo oferecendo utilizações gratuitas, servem objectivamente os fins da actividade tributada do sujeito passivo - reforçando a noção de que o critério essencial é o da afectação ao circuito económico tributado e não a natureza gratuita ou onerosa imediata da operação a jusante.

 

  • Acórdão Super Bock Bebidas (Proc. C-837/19, de 09.09.2021),[5] proveniente de reenvio prejudicial de jurisdição portuguesa, no qual se discutiu a dedutibilidade de IVA em despesas suportadas com ofertas e acções de promoção comercial. O TJUE reafirmou, nesse contexto, que apenas se podem excluir do direito à dedução as despesas previstas na Directiva ou abrangidas pela cláusula de standstill, invalidando práticas nacionais que equivalham a criar novas exclusões não autorizadas. Embora inserido noutra temática, este acórdão sublinha a necessidade de conformar o direito interno ao quadro harmonizado, nomeadamente no que toca a restrições ao direito à dedução.

 

  • Por fim, salienta-se o Acórdão Magoora (Proc. C-414/07, de 22.12.2008),[6] onde se clarificou que a cláusula de standstill permite manter exclusões nacionais já existentes, mas não justifica a introdução posterior de exclusões mais amplas ou de condições adicionais ao direito à dedução. O TJUE frisou que o propósito da disposição transitória foi dar tempo aos Estados-Membros, e não autorizar retrocessos no grau de neutralidade do imposto. Qualquer interpretação das normas internas de exclusão deve, por conseguinte, respeitar o sentido e alcance que tinham na ordem interna ao tempo devido, sob pena de violação do direito comunitário.

 

Em conclusão, do prisma do Direito da UE, resulta que o artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA só pode ser aplicado dentro dos limites em que seja compatível com o artigo 176.º da Directiva IVA, i.e., tal como vigorava à data relevante e apenas no seu escopo específico (despesas de transportes e viagens susceptíveis de finalidade extraprofissional).

 

Além disso, a interpretação dessa norma nacional deve ser conforme aos princípios da neutralidade e da proporcionalidade, evitando onerar indevidamente o sujeito passivo quando as despesas em causa estejam objectivamente vinculadas à sua actividade tributada.

C.4.3 Jurisprudência Nacional.

 

No âmbito da jurisprudência dimanada dos tribunais tributários nacionais - judiciais e arbitrais -, a questão da dedutibilidade do IVA suportado com despesas de estacionamento similares às dos presentes autos não é inédita.

 

Em especial, cita-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, de 05-11-2020, processo n.º 2500/10.5BELRS,[7] no qual estava em causa uma situação de empresa que arrendara lugares de parqueamento no edifício da sua sede, utilizados por funcionários, clientes e fornecedores.

 

Nesse aresto, o TCA - Sul confirmou a sentença de primeira instância que anulara a correcção de IVA efectuada pela AT, sufragando que tais despesas se encontravam “ligadas ao exercício da actividade económica” da empresa e, como tal, o imposto era dedutível, não se lhes aplicando a exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA.

 

Transcreve-se parte da fundamentação então expendida pelo tribunal superior, pela sua relevância e clareza:

 

É certo que as despesas referidas no preceito do artigo 21.º do CIVA, constituindo exclusões do direito à dedução e estando sujeitas ao princípio do não retrocesso (cláusula de standstill), têm sido aceites pela jurisprudência do TJUE como exclusões do direito à dedução, atendendo a que se trata de despesas que, pela sua natureza e características, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final.

 

Sem embargo, no caso em exame, estão em causa despesas relacionadas com o uso de lugares de estacionamento utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante […].

 

Na Informação Vinculativa da DGCI n.º 1486, de 28.01.2011, referente a “Direito à dedução - lugares de estacionamento”, a AT fixou a orientação seguinte: «i) De acordo com os argumentos da consulente e tendo em consideração a actividade declarada, o espaço de estacionamento afigura-se necessário ao exercício da sua actividade, pelo que pode, em princípio, conferir o direito à dedução por enquadramento no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA. ii) Todavia, face à exclusão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º, importa acautelar que a atribuição de lugares de estacionamento a funcionários, colaboradores, titulares de cargos de direcção ou outros que se subsumam nesta norma, limita aquele direito na proporção dos lugares atribuídos para esse fim».

 

Por seu turno, no caso em exame nos autos, o estacionamento referido o estacionamento referido está situado no mesmo edifício da sede da impugnante e era utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante, pelo que o imposto suportado respeita a despesas relacionadas com o exercício da actividade da impugnante (“despesas afectas à exploração”), não sendo as mesmas recondutíveis ao disposto no artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA (“Despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal”). De onde se retira que o imposto suportado em apreço é dedutível por parte da empresa/impugnante, como sucedeu no caso. A correcção em exame, ao decidir diferentemente, enferma de erro e não pode ser mantida na ordem jurídica.

 

Este aresto é particularmente elucidativo.

 

Nele, o TCA - Sul procede a uma distinção fundamental entre (i) despesas conexas com o local de exercício da actividade (despesas afectas à exploração da empresa) e (ii) despesas de deslocação/trânsito em contexto de viagens de negócios.

 

No entender daquele Tribunal, as primeiras não configuram “despesas de transportes e viagens de negócios” na acepção do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, ainda que os gastos acabem por beneficiar também os trabalhadores da empresa, ao passo que somente as segundas se enquadram no âmbito da exclusão.

 

Assim, lugares de estacionamento integrados nas instalações da empresa - ainda que utilizados pelos empregados para aí estacionarem as suas viaturas - são vistos como um custo inerente às instalações e funcionamento da actividade (equiparáveis, por exemplo, a despesas de condomínio, segurança ou manutenção do edifício), e não como um encargo com deslocações em representação da empresa.

 

Este critério foi considerado conforme aos ensinamentos do TJUE, pois evita alargar indevidamente a exclusão do direito à dedução a despesas que não constituem verdadeiras “viagens de negócios” ou consumos de natureza pessoal recreativa, mas sim custos operacionais do sujeito passivo no local onde exerce a sua actividade tributada.

 

No caso apreciado pelo TCA - Sul no processo n.º 2500/10.5BELRS, enfatizou-se ainda que os lugares eram utilizados indistintamente por funcionários, clientes e fornecedores, ou seja, não estavam ad personam atribuídos como regalia ou uso exclusivo de certos trabalhadores, reforçando o seu carácter de infra-estrutura de apoio geral à actividade.

 

Mesmo quando beneficiassem trabalhadores, considerou-se esse benefício meramente acessório face às necessidades da empresa, de molde semelhante ao raciocínio acolhido no Acórdão Fillibeck do TJUE (C-258/95)[8] a propósito do transporte gratuito de trabalhadores em certas condições necessárias ao empregador.

 

Cabe mencionar que este entendimento não é isolado.

 

Outros arestos nacionais alinham na mesma orientação.

 

Por exemplo, o TCA - Sul, em Acórdão de 27-10-2021, processo n.º 1113/05.8BELSB,[9] reafirmou que as exclusões do artigo 21.º, do Código do IVA devem ser interpretadas teleologicamente, à luz da Directiva IVA, não podendo abranger despesas que constituam custos empresariais comuns.

 

Também há notícia de jurisprudência arbitral tributária, considerando dedutíveis despesas de estacionamento quando necessárias à actividade e não configurando vantagens pessoais extravagantes.

 

Cumpre destacar as Decisões Arbitrais do CAAD no processo n.º 97/2022-T,[10] bem como no processo n.º 477/2023-T[11] - envolvendo períodos distintos, mas a mesma Requerente e a mesma questão de fundo -, nas quais se decidiu no sentido do reconhecimento do direito à dedução do IVA suportado no arrendamento de lugares de estacionamento situados no local de exercício da actividade, destinados aos colaboradores (tripulações, no caso concreto) e demais utentes profissionais.

 

Nesses acórdãos arbitrais entendeu-se, em linha com a jurisprudência do TCA - Sul acima referida, que tais despesas de estacionamento não se subsumem à previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA, por não constituírem verdadeiras despesas de transporte ou deslocação em viagem de negócios, mas sim custos operacionais ligados às instalações da empresa.

 

No sumário da Decisão Arbitral proferida no processo n.º 97/2022-T consignou-se expressamente que «As despesas suportadas com os lugares de estacionamento localizados no local a partir do qual se exerce a actividade profissional não constituem custos de transporte ou viagem do sujeito passivo e seu pessoal em representação da empresa, não estando abrangidas pela exclusão do direito à dedução prevista no artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA».

 

Não obstante, mais recentemente, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 480/2023-T[12] apresentou entendimento divergente, recusando o direito à dedução do IVA relativo a lugares de estacionamento exclusivos para funcionários de uma empresa.

 

Neste caso, o Tribunal Arbitral considerou que, estando os lugares destinados exclusivamente ao uso privativo dos trabalhadores (para parqueamento das suas viaturas pessoais no contexto das deslocações casa-trabalho), as correspondentes despesas consideram-se inseridas na previsão da al. c) do n.º 1 do artigo 21.º, do Código do IVA, configurando encargos de transporte suportados pela entidade patronal em benefício do seu pessoal.

 

Entendeu-se, ademais, que a eventual afectação exclusiva da despesa à actividade da empresa não bastava, por si só, para afastar a exclusão, já que a cláusula de standstill autoriza a manutenção de exclusões mesmo para despesas com aparente carácter profissional se estas se incluírem nas categorias tradicionais (como viagens de negócios).

 

Referiu-se ainda que a Requerente, nesse caso, não demonstrara que os funcionários utilizavam o estacionamento apenas em funções (isto é, sem qualquer uso pessoal ou deslocação de interesse próprio).

 

Em suma, na Decisão proferida no processo n.º 480/2023-T firmou-se a posição de que “a despesa assegurada com a aquisição de lugares de estacionamento destinados exclusivamente aos funcionários integra-se no âmbito das exclusões do direito à dedução do IVA, previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA”, enfatizando-se o carácter privativo e não indissociável da opção individual de transporte próprio por parte dos trabalhadores.

 

Este aparente dissídio jurisprudencial no plano arbitral parece radicar, essencialmente, na distinta factualidade subjacente: no caso dos processos nrs. 97/2022-T e 477/2023-T, os lugares de estacionamento eram utilizados de forma partilhada e funcional por vários intervenientes na actividade (incluindo terceiros, como clientes), ao passo que no caso do processo n.º 480/2023-T os lugares estavam cingidos aos trabalhadores da empresa, afigurando-se esta situação mais próxima de um benefício acessório concedido ao pessoal.

 

Em todo o caso, ambos os entendimentos concordam num ponto de partida: as exclusões do artigo 21.º, n.º 1, do Código do IVA, têm fundamento válido no direito da UE (cláusula de standstill), mas a sua aplicação deve ater-se às situações em que, pela natureza das despesas, se justifique presumir um uso alheio à actividade empresarial.

 

Quando essa justificação falha - como entendeu o TCA - Sul e a maioria das decisões arbitrais relativamente a parques/estacionamentos na sede da empresa - a exclusão não opera e o direito à dedução deve ser reconhecido.

 

C.4.4 Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

 

Conforme já aflorado anteriormente na análise do Direito da UE, a jurisprudência comunitária fornece importantes directrizes sobre a questão em discussão nestes autos.

Destacam-se os seguintes pontos pela sua relevância:

 

  • Princípio da neutralidade e direito pleno à dedução: O TJUE reiterou, em múltiplos casos, que o direito à dedução é parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. O sujeito passivo tem direito a deduzir de imediato todo o IVA suportado nas suas aquisições relacionadas com operações tributadas, de modo a assegurar que o imposto incide apenas sobre o consumidor final e não sobre o empresário ao longo da cadeia produtiva. Este princípio foi estabelecido em jurisprudência constante (v.g. acórdãos KEST-AG de 1985, BP Soupergaz de 1991, Général Beverage de 2001, entre outros) e reafirmado em casos como Dankowski (C-438/09, de 22.12.2010),[13] onde se considerou contrária à Directiva a recusa do direito à dedução baseada em meros formalismos de facturação ou situação cadastral do fornecedor, não previstos expressamente na legislação harmonizada. O TJUE concluiu que «um sujeito passivo beneficia do direito à dedução do IVA pago por prestações de serviços fornecidas por outro sujeito passivo não registado para efeitos desse imposto, desde que a factura contenha os elementos exigidos pela Directiva», não podendo o Estado invocar uma regra interna para excluir tal dedução. O que significa, para o que nos ocupa, que apenas razões excepcionais e fundamentadas na Directiva podem legitimar a supressão do direito à dedução, devendo rejeitar-se interpretações nacionais que, por analogia ou conveniência fiscal, restrinjam esse direito fundamental.

 

  • Cláusula de standstill e despesas de carácter não profissional: Nos casos Metropol Treuhand und Stadler (C-409/99, de 2005)[14] e Magoora (C-414/07, de 2008), o TJUE sublinhou que as excepções nacionais ao direito à dedução toleradas pela cláusula de standstill devem circunscrever-se ao âmbito das despesas de natureza não estritamente profissional enunciadas (ainda que exemplificativamente) na Sexta Directiva. Assim, despesas como viagens de recreio, luxos, ofertas não relacionadas com a actividade, viaturas de turismo para uso misto, etc., podem permanecer excluídas se já o estavam, mas não é permitido aos Estados alargar essa exclusão a despesas que não tenham essa natureza. No Acórdão Charles-Tijmens (C-434/03),[15] conexo com esta temática, realçou-se igualmente que o sujeito passivo pode afastar uma utilização privada do âmbito de uma exclusão optando por tratar o bem/serviço como completamente afecto à empresa, tributando depois o uso privado - mecanismo que salvaguarda a neutralidade sem negar o direito à dedução. Tais considerações conjugam-se, no presente caso, em desfavor de uma concepção lata da al. c) do n.º 1 do artigo 21.º, do Código do IVA: se a despesa de estacionamento for intrínseca à actividade (logo, estritamente profissional no propósito), tentar incluí-la na exclusão equivaleria a expandir indevidamente o respectivo campo de aplicação, contrariando o Direito da UE.

 

  • Distinção entre despesas de exploração e vantagens pessoais (Ac. Fillibeck): Merece referência o Acórdão Fillibeck(C-258/95, de 1997),[16] citado pela Requerente nestes autos e também no processo arbitral n.º 804/2024-T.[17]Neste Acórdão, o TJUE decidiu que o transporte gratuito de trabalhadores entre casa e trabalho, assegurado pelo empregador, constitui, em princípio, um uso privado dos trabalhadores (logo, fins alheios à empresa nos termos da Sexta Directiva), excepto se circunstâncias especiais da empresa tornarem esse transporte necessário (por exemplo, inexistência de alternativas, locais de trabalho remotos). Transpondo este critério para despesas de estacionamento: ceder gratuitamente estacionamento a funcionários pode ser visto como satisfação de uma necessidade privada (o conforto do transporte individual), a menos que se demonstre que, pelas condições da actividade, tal é exigido pela empresa (por ex., a natureza do negócio e localização impõem viatura própria, ou a disponibilidade de clientes exige parqueamento próprio, etc.). Este entendimento complementa a análise: a regra é considerar o estacionamento de colaboradores como algo de âmbito pessoal (não dedutível), mas a excepção - que é precisamente o caso dos autos, como se verá adiante - ocorre quando isso se incorpora nas necessidades operacionais da empresa, perdendo o carácter de atribuição de mera vantagem privada individualizada.

 

Em síntese, a jurisprudência europeia apoia uma leitura do direito à dedução que: (i) favorece a neutralidade e a plenitude do direito, (ii) tolera exclusões historicamente estabelecidas, mas sem extensões abusivas, e (iii) distingue situações em que a despesa serve intrinsecamente a empresa daquelas em que serve predominantemente interesses privados. Estes princípios serão adiante aplicados na resolução do caso concreto.

 

C.4.5 Aplicação ao caso concreto.

 

Feito o enquadramento legal e jurisprudencial, cumpre decidir se as despesas suportadas pela Requerente com o arrendamento de lugares de estacionamento utilizados e partilhados por membros da Equipa de Gestão, Equipa de Produção, Clientes e Fornecedores conferem, ou não, o direito à dedução do IVA nelas suportado, face à apontada exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA.

 

Desde já se adianta que, perante a factualidade provada e o quadro jurídico exposto, entende este Tribunal que a posição da Requerente merece acolhimento.

 

É incontroverso que os lugares de estacionamento em causa se situam no mesmo local ou muito próximo do mesmo local onde a Requerente desenvolve a sua actividade, sendo disponibilizados para uso dos intervenientes na própria actividade - gestores, advogados e demais colaboradores, e ainda clientes e fornecedores que aí se desloquem.

 

Ou seja, trata-se de uma infra-estrutura directamente ligada às instalações e ao funcionamento do escritório da Requerente, onde esta desenvolve a actividade tributada.

Tal assemelha-se, em natureza, a outras despesas gerais do escritório (v.g. renda das salas, limpeza, segurança, manutenção do parque, etc.), as quais, por regra, conferem direito à dedução do IVA suportado, por se incluírem nos encargos gerais de exploração da empresa, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA.

 

A Autoridade Tributária, porém, qualificou estas despesas como “despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo… e do seu pessoal” (artigo 21.º, n.º 1, alínea c)), argumentando, essencialmente, que os funcionários da Requerente beneficiam dos lugares de estacionamento nas suas deslocações pendulares diárias, o que configuraria um gasto de transporte não estritamente profissional.

 

Esta interpretação não colhe, à luz dos elementos fácticos e dos critérios jurídicos aplicáveis.

 

Em primeiro lugar, importa frisar que não estamos perante nenhuma viagem de negócios, deslocação em serviço ou missão exterior.

 

Os lugares de estacionamento servem, fundamentalmente, para que os colaboradores e visitantes da Requerente possam estacionar as viaturas no local de trabalho ou de reunião, durante o horário em que prestam ou obtêm serviços profissionais.[18]

 

Não há aqui um transporte organizado ou pago de ‘A’ para ‘B’, nem uma viagem com destino diverso para fins empresariais (p. ex. ida a conferência, deslocação a cliente distante, etc.).

 

O que há é a disponibilização de espaço numa garagem ou num parque, contíguo ao escritório, para facilitar o acesso diário ou ocasional às instalações da empresa.

 

Este custo de comodidade associado ao imóvel onde se exerce a actividade não equivale a custear deslocações de negócio em si mesmo - tal como, analogamente, uma empresa que possua parque privativo no seu edifício não considera “deslocação de negócios” o acto de os funcionários ali estacionarem ao chegarem ao trabalho.

 

Depois, sublinha-se que os lugares são utilizados indiscriminadamente também por clientes e fornecedores, conforme provado.

 

Ora, clientes e fornecedores são terceiros relativamente à Requerente/entidade patronal, não podendo nunca integrar o conceito de “pessoal do sujeito passivo”. 

 

Daí que a fracção do uso do estacionamento correspondente a esses terceiros escapa totalmente à previsão da alínea c), a qual só abrange despesas do sujeito passivo e do seu pessoal.

 

Seria conceptualmente errado qualificar como “despesa de transporte do pessoal” um custo suportado para proporcionar estacionamento a um cliente que vem à sede da Requerente para uma reunião.

 

Nessa medida, pelo menos proporcionalmente, uma parte significativa destas despesas respeita à relação comercial com clientes e parceiros - o que, se quisermos, até aproxima mais o gasto de estacionamento de uma despesa comercial ou de prestação de serviços aos clientes (a título gratuito) do que de um transporte de empregados.

 

Ainda que se pudesse questionar se facultar estacionamento ao cliente configura despesa de representação (no sentido de cortesia), tal questão nem se coloca no âmbito do artigo 21.º, n.º 1, al. c), que não abrange despesas de hospitalidade a clientes (essas seriam, quando muito, enquadráveis na al. d), se se tratasse de refeição, alojamento ou divertimento).

 

De qualquer modo, a parcela relativa a clientes/fornecedores consubstancia puro custo empresarial para facilitar a actividade, plenamente dedutível nos termos gerais.

 

Resta analisar a parte do custo que beneficia os membros da Equipa de Gestão e de Produção da Requerente, ou seja, os seus sócios, advogados e demais colaboradores.

 

À primeira vista, poderia pensar-se que pagar estacionamento aos trabalhadores configura uma benesse pessoal, desconectada do exercício profissional - interpretação, de resto, que a Requerida perfilha.

 

Não obstante, este Tribunal concorda com a análise já efectuada em decisões anteriores, pelos tribunais arbitrais e judiciais supracitados: o contexto e a finalidade deste estacionamento retiram-lhe a natureza de “despesa de transporte ou viagem” no sentido visado pela norma de exclusão.

 

Vejamos: os trabalhadores da Requerente não estão aqui a efectuar uma “viagem de negócios” pela empresa; estão simplesmente a deslocar-se diariamente para o seu local de trabalho fixo, ali permanecendo no exercício das suas funções.

 

A Requerente, por sua opção, decidiu suportar o encargo de lhes facultar lugares de parqueamento no edifício, possivelmente para garantir pontualidade, comodidade ou segurança, bem conhecidas que são as dificuldades de estacionamento numa zona central de Lisboa.

 

Trata-se de uma medida de gestão de recursos humanos e logística empresarial, intrínseca ao modo de funcionamento do escritório.

 

Este dispêndio não diverge, na sua essência, de outros custos laborais ou operacionais: compare-se, por exemplo, com disponibilizar cantina, cacifos ou vestiários aos funcionários - benefícios que servem ao conforto privado destes, mas que são colocados à disposição pelo empregador visando o bom andamento do trabalho.

 

O IVA suportado nesses gastos (refeições na cantina, manutenção de vestiários, etc.) é dedutível, salvo se uma norma expressa o excluir (como sucede, por exemplo, com despesas de alimentação, excluídas pela al. d) do artigo 21.º).

 

No caso do estacionamento, não há norma expressa, excepto a invocada al. c); logo, só seria possível negar a dedução se for inequívoco que tal despesa se insere no conceito de “transporte ou viagem de negócios”.

 

A redacção do artigo 21.º, n.º 1, al. c) sugere que o legislador pensou em viagens de serviço, deslocações em trabalho, com carácter transitório e itinerante (daí referir “portagens” inclusivé). 

 

Não parece razoável incluir aí a situação estática de um carro parado na garagem da sede ou do escritório durante o horário de expediente.

 

Reforçando a interpretação deste Tribunal, o Acórdão do TCA - Sul, tirado no de 05-112020, processo n.º 2500/10.5BELRS, ensinou que o estacionamento na sede constitui “despesas afectas à exploração”, não reconduzíveis a viagens de negócios.

 

E bem assim o corroborou a decisão arbitral do CAAD, no processo n.º 97/2022-T, ao concluir que o estacionamento não constitui uma despesa de deslocação em representação da empresa, mas sim de viabilização do local de actividade.

 

É certo que, numa óptica económica, ao pagar o estacionamento aos colaboradores a Requerente está a suportar um custo que de outra forma recairia sobre eles (caso tivessem de pagar parque público ou transportes).

 

Poderia objectar-se que isso configura, de facto, um benefício privado.

 

Contudo, esse raciocínio levaria a extremos claramente contrários ao espírito neutral do IVA: por exemplo, se a empresa instalar chuveiros para empregados ciclistas tomarem banho (despesas com água e luz), também estaria a subsidiar uma necessidade privada? Ou se disponibilizar café gratuitamente, seria “alimentação do pessoal” (não dedutível)? 

 

Visivelmente, há uma zona cinzenta onde o que é fornecido ao trabalhador serve simultaneamente o interesse dele e o da entidade patronal.

 

O critério decisivo, como referido no acórdão Fillibeck e na Informação Vinculativa da AT n.º 1486/2011,[19] é averiguar se a prestação é necessária ou útil ao exercício da actividade da empresa ou se é puramente facultativa e sem relação com as necessidades operacionais.

 

No caso sub judice, a Requerente demonstrou cabalmente que a existência de estacionamento no próprio edifício onde desenvolve a actividade ou muito próximo dele é algo inerente ao desenvolvimento da actividade nos escritórios e relevante para a boa condução da sua actividade (advocacia), que envolve atendimento regular de clientes e trabalho presencial de equipas profissionais.

 

Não se trata aqui de pagar deslocações recreativas ou extravagantes aos funcionários, mas sim de proporcionar condições logísticas adequadas no local de trabalho.

 

Assim, ainda que haja um benefício colateral para o colaborador (poupa tempo ou dinheiro no estacionamento), esse benefício surge como acessório em relação às necessidades da empresa, para usar as palavras do TJUE em Fillibeck.

 

Por conseguinte, julgamos que, material e finalisticamente, a despesa em causa nos autos não corresponde ao tipo de gastos que o legislador pretendeu excluir do direito à dedução na al. c) do artigo 21.º, do Código do IVA.

Incluir esta situação no âmbito da exclusão significaria tratar uma despesa de mera infra-estrutura empresarial como se fora uma viagem de negócios ou um luxo concedido ao trabalhador, o que configuraria, no entendimento deste Tribunal, uma extensão indevida da norma de exclusão.

 

Tal extensão não é permitida nem pela hermenêutica restritiva que essas disposições exigem, nem pela Directiva IVA (cláusula de standstill), a qual não abrange despesas indispensáveis à actividade, mesmo que delas resulte algum conforto para o trabalhador, desde que o objectivo principal seja profissional.

 

Ainda a este propósito, remetemos para a cautela expressa pela própria AT na Informação Vinculativa n.º 1486/2011: caso se apurasse que determinados lugares de estacionamento foram atribuídos exclusivamente a certos funcionários ou membros da direcção, para uso pessoal além do contexto profissional, então nessa medida deveria limitar-se o direito à dedução proporcionalmente a esses lugares afectos a fins particulares.

 

Porém, tal cenário não foi comprovado nos presentes autos.

 

Não consta que a Requerente disponha de lugares privativos para uso extralaboral de administradores ou algo semelhante.

 

Todos os indícios e toda a prova produzida apontam para um uso empresarial corrente e indiscriminado do parque: os advogados estacionam quando vêm trabalhar, os clientes estacionam quando vêm à reunião, etc.

 

Não se trata de disponibilizar parque para fins pessoais fora do horário de trabalho (se assim fosse, poderia exigir-se liquidação de imposto por via de tributação do benefício).

 

Deste modo, inexistindo evidência de desvio para fins alheios à empresa, não há razão para fraccionar ou recusar a dedução do IVA suportado, o qual permanece ligado à totalidade da actividade económica tributada da Requerente.

 

Por fim, o Tribunal remete ainda para a fundamentação constante da recentíssima Decisão Arbitral - CAAD, de 27-06-2025, processo n.º 1142/2024-T,[20] no qual também foi relator o do presente processo.

 

Em conclusão, afigura-se juridicamente correcto concluir que a despesa com a locação dos lugares de estacionamento em causa possui carácter intrinsecamente profissional, constituindo encargo geral da Requerente na manutenção do seu estabelecimento e na prossecução da actividade de advocacia, e não uma despesa de transporte ou viagem de negócios do sujeito passivo ou do seu pessoal.

 

Por isso, não cai no âmbito da exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA, pelo que o IVA que a onerou deve ser considerado dedutível, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do mencionado Código.

 

A isto acresce que a interpretação sufragada por este Tribunal em nada lesa os princípios subjacentes ao ordenamento do IVA: a empresa apenas recuperará o imposto incidente sobre um custo que efectivamente suportou no interesse da sua actividade tributada (preservando-se a neutralidade), e não há aqui qualquer brecha de evasão ou abuso.

 

Ao invés, negar a dedução implicaria onerar a Requerente com um custo fiscal residual (IVA não deduzido) sobre uma despesa absolutamente relacionada com a sua actividade tributada - resultado contrário ao princípio estrutural do IVA e não justificável por nenhuma excepção válida.

 

E esta é também a solução que melhor acautela a aplicação do princípio da neutralidade do imposto - princípio fundamental na economia do IVA.

 

Portanto, a não-dedutibilidade do imposto contido nas facturas relativas ao estacionamento e suportado pela Requerente enferma de erro sobre os pressupostos de direito, por incorrecta subsunção dos factos à norma de exclusão do artigo 21.º, n.º 1, al. c), do Código do CIVA, não devendo subsistir.

 

Em consequência, o Tribunal irá reconhecer a final o direito da Requerente à dedução do IVA suportado nessas facturas de estacionamento e, como tal, à restituição do montante indevidamente suportado.

 

C.4.6 Condenação da Requerida em juros indemnizatórios.

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente afirma que «não procedeu à dedução do IVA suportado referente aos lugares de estacionamento mencionados» e que «seguindo o entendimento da Autoridade Tributária - de que as despesas com lugares de estacionamento atribuídos a funcionários, colaboradores, titulares de cargos de direcção ou outros (tais como os advogados e solicitadores, enquanto prestadores de serviços), estavam excluídas do direito à dedução, por aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA (cf. Informação Vinculativa da DGCI, referente ao Processo n.º 1486, despacho do substituto legal do director-geral, de 28.01.2011) -, declarou o IVA suportado com o arrendamento dos lugares de estacionamento e não procedeu à sua dedução» - artigos 14.º e 15.º, da p.i.

 

E requer o pagamento de juros indemnizatórios já que por ela foi «suportado e não deduzido o IVA em face de uma interpretação errónea da Autoridade Tributária quanto à aplicação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA» - artigo 43.º, da p.i.

 

O artigo 43.º, nos seus nrs. 1 e 2, da LGT, estabelece que:

 

1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

O direito a juros indemnizatórios, reclamado pela Requerente, enquadrar-se-á naquele n.º 2?

 

A Requerente afirma que não exerceu o seu direito à dedução, em cumprimento de um «entendimento» da AT sobre a dedutibilidade do IVA suportado quanto aos estacionamentos anteriormente analisados.

 

Sendo que tal «entendimento» da AT é expressamente identificado pela Requerente como sendo a «Informação Vinculativa da DGCI, referente ao Processo n.º 1486, despacho do substituto legal do director-geral, de 28.01.2011».

 

O artigo 43.º, n.º 2, da LGT, tem como âmbito as orientações genéricas e a Requerente funda o direito que invoca numa informação vinculativa.

 

As informações vinculativas e as orientações genéricas não se confundem, constituem dois instrumentos distintos e apresentam características e efeitos jurídicos diferenciados.

 

As informações vinculativas, previstas no artigo 68.º, da LGT, são emitidas pela administração tributária em resposta a consultas individuais formuladas pelos sujeitos passivos sobre a aplicação de normas tributárias a situações concretas e determinadas.

 

O carácter vinculativo destas informações significa que a administração tributária fica obrigada a aplicar a interpretação nelas contida, não podendo posteriormente adoptar entendimento diverso relativamente ao contribuinte concreto e à situação concreta que foi objecto da consulta, salvo nas situações excepcionais previstas na lei, como a alteração da legislação aplicável ou a declaração de ilegalidade por tribunal competente.

 

Já as orientações genéricas, previstas no artigo 68.º-A da LGT, constituem instruções de serviço - alguma doutrina atribui-lhes mesmo natureza regulamentar - emitidas pela administração tributária com o objectivo de uniformizar a interpretação e a aplicação das normas tributárias.

 

Ao contrário das informações vinculativas, as orientações genéricas não conferem direitos subjectivos aos contribuintes, não tendo carácter vinculativo relativamente aos mesmos, embora devam ser respeitadas pelos serviços no exercício das suas funções.

 

A distinção fundamental entre estes dois institutos reside precisamente no seu alcance subjectivo e objectivo, bem como nos respectivos efeitos jurídicos.

 

Enquanto as informações vinculativas se destinam a resolver questões concretas e individuais suscitadas por contribuintes específicos, produzindo efeitos vinculativos para a administração relativamente a essas situações particulares e apenas ao contribuinte consulente, as orientações genéricas têm natureza geral e abstracta, constituindo directrizes interpretativas dirigidas aos serviços. 

 

Veja-se, por todos, o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, de 21-05-2020, processo n.º 194/12.2BELRS, [21] - em especial, quanto a esta temática, o ponto 2.2.3.

 

Deste modo, não é possível ao Tribunal aceitar que a condenação da Requerida em juros indemnizatórios possa fazer-se com fundamento no artigo 43.º, n.º 2, da LGT.

 

É verdade que, a partir do conteúdo de uma informação vinculativa, é possível aos particulares extraírem certas regras e critérios e, em face disso, conformarem os seus comportamentos fiscais em função de tais regras e critérios.

 

Mas isso não transmuta de modo algum uma informação vinculativa numa instrução genérica, pois a informação vinculativa tem como exclusivos destinatários o concreto consulente e a AT, sendo desprovida de generalidade e abstracção - características fundamentais das orientações genéricas.

 

Porém - e apesar disso - poderá o pedido de condenação da Requerida em juros indemnizatórios proceder nos termos e ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT?

 

A Requerente pediu a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios por o valor do imposto a pagar ter sido superior ao que seria devido, caso tivesse exercido adequadamente o direito à dedução do imposto nas declarações periódicas de IVA.

 

O artigo 24.º, n.º 5, do RJAMT, estabelece que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário».

 

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, estabelece o direito do particular a juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que resultou pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Ficou provado que, nas declarações periódicas de IVA que apresentou e nas autoliquidações a que procedeu, a Requerente não exerceu o direito à dedução, tendo, por esse facto, sido apurado imposto superior ao legalmente devido.

 

E também já se decidiu que a conformação da Requerente com o que constava da «Informação Vinculativa da DGCI, referente ao Processo n.º 1486, despacho do substituto legal do director-geral, de 28.01.2011» foi uma mera opção de gestão fiscal daquela.

 

Assim, tendo o imposto a que se referem estes autos sido apurado pela Requerente e, em consequência, resultado de erro na autoliquidação a esta imputável, entende este Tribunal inexistir erro imputável aos serviços quanto ao excesso de imposto resultante das referidas autoliquidações.

 

Contudo, também é certo que a partir do momento em que foi apresentada a reclamação graciosa, tendo por objecto as autoliquidações impugnadas, a AT ficou a conhecer os motivos pelos quais seria de anular parcialmente aquelas.

 

Nos termos do artigo 57.º, n.º 1 da LGT, «os prazos máximos de decisão dos procedimentos administrativos tributários são de 4 meses, salvo quando prazo diferente resulte da lei». 

 

Conforme dispõe o n.º 3 do mesmo artigo, «decorrido o prazo máximo legal para decisão sem que esta tenha sido proferida, considera-se haver indeferimento tácito». 

 

E, por sua vez, o n.º 5 estatui que «o indeferimento tácito previsto nos números anteriores constitui decisão impugnável nos termos da lei».

 

Aplicando este regime ao caso dos autos, sendo a reclamação graciosa apresentada em 11-03-2024, e não tendo a AT proferido qualquer decisão expressa até 11-07-2024, formou-se nessa data o indeferimento tácito da reclamação graciosa, por decurso do prazo de quatro meses legalmente fixado.

Deste modo, com o indeferimento - ainda que tácito - da reclamação graciosa, a manutenção das liquidações na ordem jurídica passou a ser imputável à AT, constituindo-se esta, a partir desse momento, na obrigação de indemnização prevista no artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

Como bem refere JORGE LOPES DE SOUSA:[22]

 

Nas situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte […], bem como naqueles em que o acto é praticado pela Administração Tributária com base em informações erradas prestadas pelo contribuinte e há lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos […].

 

Nestes termos, a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde o dia 12-07-2024, inclusivé, até à data da emissão da respectiva nota de crédito, o que irá decretar-se a final.

 

 

D - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de anulação parcial do IVA autoliquidado, no valor de € 131.706,36.

 

b)    Determinar o reembolso à Requerente do imposto anulado, no valor de € 131.706,36.

 

c)     Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, contados desde o dia 12-07-2024, inclusivé, até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

 

 

E - VALOR DA CAUSA:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 131.706,36, correspondente ao valor das liquidações impugnadas a anular parcialmente, objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 131.706,36.

 

 

F - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, a cargo da Requerida, que decaiu na totalidade.

 

Notifique.

 

Lisboa, em 28 de Julho de 2025.

 

Os Árbitros,

 

 

(Regina de Almeida Monteiro -Presidente)

 

 

 

(José Coutinho Pires – Adjunto)

 

 

(Martins Alfaro - Adjunto e Relator)

 

 

Declaração de voto

 

Não acompanho a decisão relativamente aos factos dados como provados quanto ao uso dos lugares de estacionamento situados nos edifícios onde a Requerente tem os seus escritórios, pois, no meu entender, não ficou provado o caráter exclusivamente empresarial da utilização desses lugares de estacionamento.

A Requerente não provou que tinha implementado um sistema de controlo das entradas e saídas das viaturas dos parques de estacionamento, não tendo procedido à identificação das matrículas das viaturas, dos horários de entrada e saída, dos seus condutores portadores da autorização de acesso aos lugares de estacionamento. 

Sem a implementação de um sistema de controlo, não é possível considerar que os lugares de estacionamento sejam utilizados exclusivamente por trabalhadores e clientes da Requerente, e apenas durante o respetivo horário de trabalho. Assim, entendo que não ficou provado o carácter exclusivo - ou mesmo parcialmente empresarial - dessas despesas.

Não concordo com a justificação constante da decisão arbitral: “Também o enunciado de que “é natural e provável” que uma sociedade de advogados de grande dimensão disponibilize os seus lugares de parque aos advogados, colaboradores e clientes, corresponde a uma máxima de experiência comum: resulta do conhecimento que, em geral, no curso normal das coisas, organizações - e não apenas as sociedades de advogados - com muitos funcionários e visitantes - tendem a reservar vagas privadas para uso interno e de clientes. Trata-se de uma ilação baseada naquilo que usualmente ocorre em situações análogas, apoiada na lógica e na experiência quotidiana”. 

Ainda que nas zonas onde a Requerente tem localizados os seus escritórios seja facto notório a escassez de lugares de estacionamento, também é facto notório que se trata de áreas bem servidas por transportes públicos - designadamente autocarros em Lisboa e Faro. No centro de Lisboa, em particular, existem nas proximidades dos escritórios da Requerente estações de metro, várias carreiras de autocarro e lugares de estacionamento na via pública disponíveis mediante pagamento.

Também é facto notório que o exercício da atividade de advocacia não depende da disponibilidade de transporte em veículo automóvel próprio, desde o local de residência até ao local de trabalho, por parte dos advogados, colaboradores, funcionários ou clientes da Requerente. 

Considero que este Tribunal Arbitral deverá reconhecer que as despesas em causa não possuem caráter exclusivamente - ou mesmo parcialmente - empresarial, o que determina a sua não dedutibilidade em sede de IVA, conduzindo à consequente improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA).

Independentemente das justificações invocadas quanto à apreciação da prova, entendo que as regras de repartição do ónus da prova no âmbito do procedimento e processo tributário impõem que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária e dos contribuintes recaia sobre quem os invoque, nos termos do artigo 74.º da Lei Geral Tributária.

Ou seja, o princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito tem o dever de prová-lo (cfr. artigo 342.º do Código Civil e artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária).

 

Lisboa, 28 de julho de 2025

 

Regina de Almeida Monteiro

 

 

 



[1] Os quais foram facultados apenas pela Requerente, tendo-se a Requerida limitado a negar o facto e sem apresentar qualquer contraprova.

[18] Com efeito, não se vê que outro uso, segundos critérios de normalidade, poderia ser-lhes atribuído, atenta a específica actividade desenvolvida pela Requerente.

[22] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 6.ª ed., 2011, Lisboa, pág. 537.