Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1094/2024-T
Data da decisão: 2025-07-28  IRC  
Valor do pedido: € 280.956,21
Tema: IRC; Código Fiscal do Investimento; Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI); criação e manutenção de postos de trabalho; penhora; juros indemnizatórios; execução fiscal
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Sumário:

I - O regime jurídico do RFAI não exige a criação líquida de postos de trabalho, mas apenas que do investimento inicial realizado resulte um aumento do número de trabalhadores ao serviço da empresa conexos com tal investimento. 

II – Os tribunais arbitrais não são competentes para apreciar pedidos de cancelamento de penhoras, dado que estas são ordenadas no contexto de processos de execução fiscal, os quais estão subtraídos à jurisdição arbitral.

III – Os juros indemnizatórios apenas são devidos quando, cumpridos os demais requisitos, tenha sido pago imposto, sendo certo que a natureza da penhora não a faz equivaler a um pagamento e, por isso, não deve reconhecer-se o direito a juros indemnizatórios sobre montantes penhorados.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Victor Calvete (Árbitro Presidente), José António Machado Pinto (Árbitro Adjunto) e João Taborda da Gama (Árbitro Adjunto e relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 17 de dezembro de 2024, acordam no seguinte:

 

I.     RELATÓRIO

1.A..., S.A., titular do NIPC ..., sediada na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Santo Tirso (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”) com os n.os 2024..., 2024..., 2024..., 2024 ... e 2024 ... e conexas demonstrações de acertos de contas e de juros compensatórios, relativas aos exercícios, respetivamente, de 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, das quais resultam um montante global a pagar de € 280.956,21, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida à devolução dos montantes penhorados (correntemente de € 289.816,18), acrescidos de juros indemnizatórios e no pagamento das custas do processo.

2.De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

3.O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 17 de dezembro de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

4.Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 3 de fevereiro de 2025.

5.Em 25 de junho de 2025 realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual foram inquiridas as várias testemunhas arroladas pela Requerente.

6.A Requerente alega, em síntese, que, tendo realizado investimentos tendentes ao incremento da capacidade de produção e vendas, cujos encargos foram deduzidos ao IRC a pagar nos termos e ao abrigo do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”) ínsito nos artigos 22.º a 26.º do Código Fiscal do Investimento (“CFI”), criou três postos de trabalho diretamente conexos com os investimentos realizados, os quais manteve até hoje, pelo que devem as liquidações de IRC acima referidas ser anuladas por violação do artigo 22.º, n.º 4, alínea f), do CFI.

7.        A Requerida entende – como defendeu em sede inspetiva – que a criação daqueles postos de trabalho não se subsume a uma situação de criação líquida de emprego, o que obsta à dedução à coleta no caso concreto, uma vez que interpreta aquela alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º, do CFI, como exigindo que apenas sejam elegíveis para este benefício os investimentos que comportem criação líquida de emprego, pugnando, por isso, pela manutenção das liquidações impugnadas.

8.       Notificadas as partes, na reunião acima referida, para apresentar alegações, vieram ambas fazê-lo, tendo a Requerente apresentado alegações escritas em 8 de julho de 2025 e a Requerida em 14 de julho de 2025.

 

II.   MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

9.        A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem como objeto social a produção e comercialização de mobiliário e outros objetos para decoração de interiores, bem como a confeção de têxteis para o lar, sendo a sua atividade principal a colchoaria – admitido por acordo.

10.    A Requerente exerce a sua atividade de produção em dois imóveis de que é proprietária – um na ... e outro na freguesia de ...– que utiliza na produção, com diversa maquinaria instalada e armazenamento de stock – admitido por acordo.

11.    Em 2017 e 2018 a Requerente procedeu à expansão das suas instalações em Sequeirô, através da construção de um novo pavilhão e aquisição de diversa maquinaria – admitido por acordo

12.    E nesses exercícios e seguintes deduziu à coleta, em sede de Mod. 22 de IRC, os montantes das aplicações relevantes calculados nos termos do artigo 23.º do CFI.

13.    Entre 2017 e 2018 a Requerente contratou a termo certo os senhores B..., C... e D...– provado pelos documentos 44 a 46 juntos com o PPA e relatórios de inspeção constantes do Processo Administrativo.

14.    Estes trabalhadores mantiveram-se ao serviço da Requerente, pelo menos, até 2024 – provado pelo documento 47 junto ao PPA.

15.    Estas três contratações foram feitas para funções diretamente conexas com a ampliação de instalações e aquisição de maquinaria e em resultado das mesmas.

16.    Os trabalhadores em causa foram contratados para as funções de operador de máquinas para as máquinas adquiridas, controlador de qualidade (revistador) e auxiliar de armazém dada a ampliação de instalações – facto não contestado pela Requerida e provado pelos documentos 44 a 46 juntos ao PPA e pelos depoimentos das 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª e 6.ª testemunhas.

17.    O número médio total de trabalhadores da Requerente no período em causa teve a seguinte evolução, conforme consta do Processo Administrativo:

2017

2018

2019

2020

2021

  1.  
  1.  
  1.  
  1.  
  1.  

 

18.    A Requerente foi notificada das liquidações aqui impugnadas mas não procedeu ao pagamento do imposto em tempo – facto não controvertido.

19.    Dessa falta de pagamento, resultou a instauração de cinco processos de execução, nunca suspensos e que prosseguiram até à penhora – facto não controvertido.

20.    A Requerida penhorou um total de € 289.816,18 à Requerente – facto não controvertido.

A.2. Factos dados como não provados

Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

21.Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

22.Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

23.Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

24. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

III. DO DIREITO

a.     Questão prévia: da incompetência do tribunal arbitral para a apreciação do pedido de condenação da Requerida na devolução das quantias penhoradas à Requerente

25.Em sede de alegações, veio a Requerida suscitar a incompetência deste tribunal para apreciar o pedido de devolução das quantias penhoradas porquanto tal pedido não se inscreve no elenco constante do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, interpretado em conjunto com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (a “Portaria de Vinculação”).

26.E, com efeito, como resulta da análise da referida norma e tem sido reiterado pela jurisprudência sumariada no acórdão arbitral proferido no processo n.º 224/2020-T, citado pela Requerida, não tem este tribunal poderes para atuar em processos de execução fiscal, que são processos com natureza judicial não expressamente indicados na lista de pretensões “arbitráveis”.

27.Com efeito, estabelece o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT o seguinte:

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”

28.Ora como é bom de ver, o ato de penhora não se inscreve em qualquer destas categorias – é independente da legalidade dos atos de liquidação ou autoliquidação e não tem qualquer relação com a fixação de matéria tributável, coletável ou de valores patrimoniais – sendo atacável, apenas, através de oposição à execução, oposição à penhora ou por via da reclamação de atos do órgão de execução fiscal ao abrigo do artigo 276.º e seguintes do CPPT.

29.Pelo que – e sem embargo de, ao abrigo do artigo 24.º do RJAT, a Requerida ter a obrigação de praticar todos os atos necessários à reposição da situação que existiria se não tivessem sido praticados os atos ilegais (matéria de que cuidaremos abaixo na presente decisão arbitral) – não há dúvida de que este tribunal é incompetente para conhecer do pedido de condenação da Requerida a “a devolver todas as quantias que penhoradas à Requerente em consequências das acima descritas liquidações”, tal como atualizado no requerimento da Requerente de 24 de junho de 2025 quanto ao valor, o que constitui exceção dilatória que implica, nesta parte, a absolvição da Requerida da instância, como decorre do disposto nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi o disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, como se fará no segmento decisório.

b.    Da anulabilidade das liquidações de imposto e juros em crise

30.O caso dos autos assenta essencialmente numa divergência jurídica e não tanto factual.

31.Com efeito, o que afasta as partes é a questão de saber se, cumpridos que estejam os demais requisitos de aplicação do RFAI – ou seja, o disposto nos artigos 22.º e seguintes do CFI –, é suficiente a criação de postos de trabalho em direta conexão com os investimentos realizados para cumprimento do disposto na alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º do CFI.

32.Ora, sendo certo que a Requerida aceita que os demais requisitos se encontram cumpridos pela Requerente, sustenta, no entanto, no seguimento de instruções internas e informações vinculativas prestadas em casos concretos, que o cumprimento daquela norma do CFI exige que se verifique criação líquida de emprego, ou seja, que nos exercícios relevantes exista um aumento efetivo do número médio de trabalhadores face aos exercícios prévios ao investimento, tendo em conta os contratos de trabalho iniciados e cessados no período em causa.

33.A este propósito, à data dos factos previa-se, na alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º, do CFI, o seguinte:

4 - Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições: […] f) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento”.

34.Daqui parece poder retirar-se ao menos, em termos literais, que para que determinada aplicação seja elegível para beneficiar do RFAI, deve dela resultar a criação de postos de trabalho diretamente conexos com o investimento efetuado.

35.No caso dos autos, provou-se sem margem para dúvida – designadamente por força dos diversos depoimentos, que mereceram credibilidade e foram uniformes nesta matéria, sem terem sido questionados, na maioria dos casos e quanto a este ponto particular, qualquer pela Requerida – que a Requerente criou postos de trabalho com o investimento aqui em causa, na medida em que precisou de mais um operador para as novas máquinas, mais uma pessoa para o controlo de qualidade por força do aumento de produção e de mais uma pessoa para ajudar na organização do ampliado armazém.

36.Estas contratações foram consequência direta do investimento realizado que está na base do dissídio, o que não foi de forma alguma contestado pela Requerida, nos autos ou em sede inspetiva.

37.Como, por outro lado, não foi contestado pela Requerente que, globalmente considerado, o número de trabalhadores não aumentou. 

38.Sucede que nada na lei refere a necessidade de se verificar um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em relação ao qual o investimento é realizado.

39.Como se fundamentou na decisão arbitral proferida no processo n.º 155/2024-T, que aqui acompanhamos de perto (designadamente por nessa decisão ter participado o aqui relator), “[…] ao contrário do que sucedeu com outros benefícios fiscais, designadamente com o benefício fiscal para criação de emprego outrora previsto no artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais na última redação aplicável, onde se exigia expressamente a necessidade de criação líquida de postos de trabalho, aferida pela diferença positiva, num dado exercício económico, entre o número de contratações elegíveis e o número de saídas de trabalhadores que, à data da respetiva admissão, se encontravam nas mesmas condições.

Ora, ao não encontrar a exigência de criação líquida de postos de trabalho qualquer correspondência no teor gramatical da alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º do CFI, a sua exigência apenas poderia resultar da convocação de outros elementos da interpretação, mormente do elemento teleológico que expressa o fundamento extrafiscal legitimador da consequente restrição ao princípio da igualdade. Sem prejuízo, ao estar em causa uma norma excepcional, a respectiva interpretação terá necessariamente de ser estrita ou declarativa, o que significa que a convocação dos demais elementos da interpretação jurídica não permite sustentar a imposição, pela via interpretativa, de requisitos ou pressupostos adicionais de aplicação do benefício fiscal que não encontrem na expressão textual da norma qualquer amparo. Isto sob pena de violação do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.”

40.Diga-se, como também se deixou sublinhado naquela decisão, que esta é a conclusão que também se extrai das normas de Direito Europeu que enquadram o benefício fiscal RFAI enquanto auxílio compatível com o mercado interno, designadamente com o Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de Junho de 2014, comummente designado por Regulamento Geral de Isenção por Categoria (“RGIC”).

41.De facto, no artigo 14.º, n.º 4 do RGIC previa-se que os custos elegíveis para efeitos dos auxílios regionais ao investimento podiam corresponder aos custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos nos termos da alínea a), aos custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos nos termos da alínea b), ou a uma combinação das alíneas a) e b), que não exceda o montante de a) ou b), consoante o que for mais elevado nos termos da alínea c).

42.E, por sua vez, determinava-se na alínea a), do n.º 9, do artigo 14.º do RGIC, que os custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego a que aludia a alínea b) do n.º 4 daquele mesmo artigo, deviam “conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período”.

43.Ora, se a alínea a), do n.º 9, do artigo 14.º do RGIC apenas remete para os custos mencionados na alínea b) do n.º 4 daquela norma, é porque o legislador europeu apenas pretendeu condicionar ao aumento líquido de postos de trabalho a elegibilidade dos auxílios concedidos com base nos custos salariais e já não com base nos custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos, como sucede no caso do RFAI.

44.O que é dizer, como na decisão que vimos acompanhando, que “não resulta quer da lei nacional quer do Direito Europeu a obrigatoriedade de o investimento realizado pela Requerente ter proporcionado uma criação líquida de emprego, exigindo-se tão só que do mesmo tenha efectiva e directamente resultado a criação e manutenção de, pelo menos, um posto de trabalho.

45.Esta é a conclusão a que tem chegado diversa jurisprudência arbitral que se pronunciou sobre o tema, designadamente nos acórdãos proferidos nos processos n.os 307/2019‑T, 488/2019-T, 546/2020-T, 500/2021-T, 508/2021-T, 156/2022-T, 544/2022-T, 155/2024-T, 652/2024-T e, recentissimamente, 1371/2024-T, proferido a 17 de junho de 2025.

46.Por todos, cita-se aqui o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 307/2019-T, em 9 de Março de 2020, particularmente claro nesta matéria e no qual se referiu, no que aqui releva, o seguinte:

Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFAI.

De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão «criação líquida de emprego», quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art.º 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho.

Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem.

Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão «criação de postos de trabalho» a «criação líquida de postos de trabalho», dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efectivo conteúdo prático.

Nessa perspectiva, a única interpretação que não se reconduza à «criação líquida de postos de trabalho», será, julga-se, a de que a «criação de postos de trabalho» pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Ou seja: o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção.

[…]

Deverá ser assim este, julga-se, o critério para aferir da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.”.

47.Se não fosse suficiente toda a jurisprudência arbitral elencada, a verdade é que a mesma é confirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo, como se retira do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0411/16.0BEPNF, em 8 de novembro de 2023, em situação de algum modo comparável à dos autos:

Antes do mais, é de notar que a AT não pôs em causa a ligação causal entre o investimento efectuado pela ora Recorrida e a criação dos empregos ocorrida em 2011 nem a sua manutenção durante o período de dedução. O que considera é que não houve criação de postos de trabalho porque esta condição só poderia considerar-se preenchida se «à data de 31 de Dezembro de 2011 se verifica[sse] um aumento líquido do número de trabalhadores relativamente à média dos doze meses precedentes», o que não ocorreu. Ou seja, a AT sustenta que não basta a criação de postos de trabalho causada pelo investimento realizado, exigindo-se ainda que o número global de trabalhadores do sujeito passivo tenha aumentado.

Dando de barato que a alegação da Impugnante (de que «no exercício de 2011, em consequência do investimento relevante realizado, teve uma criação líquida de postos de trabalho de 8 colaboradores») não tenha sido objecto de julgamento por parte do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel – que não a julgou provada nem não provada, como lhe competia (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT) – (O que, por si só, justificaria a devolução do processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto, caso a tese de AT vingasse.), a verdade é que a fundamentação em que a AT suportou a recusa da aplicação do benefício, de inexistência de criação líquida de emprego, nunca serviria o seu propósito, pois arranca de um erro na interpretação da norma em causa, como bem considerou a sentença recorrida. Por isso, permitimo-nos conhecer do recurso.

Desde logo, a letra da lei – que constitui «o ponto de partida da interpretação» (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 182, que assinala uma dupla função à letra da lei enquanto factor hermenêutico: por um lado, «uma função negativa», qual seja «a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei»; por outro lado, «uma função positiva», que se reconduz a dois efeitos, sendo o primeiro, que, «se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador» e o segundo «quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais de um significado)», «dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis».) –aponta nesse sentido. Na verdade, como bem assinalou a Juíza do Tribunal a quo, o legislador disse «investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período de dedução constante dos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º» (sublinhado nosso) e não que haja criação líquida de emprego nesse ou noutro período – expressões de sentido obviamente diverso –, apesar de ter utilizado expressamente esta segunda expressão relativamente a outros regimes de benefícios fiscais. Ora, o n.º 3 do art. 9.º CC impõe-nos presumir, não só «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas», como também que «soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

Mas ainda que se pudesse considerar que a letra da lei comportava o significado que a Recorrente lhe aponta – e, a nosso ver, não pode –, sempre teríamos de ter presente que «na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas» (Cfr. BAPTISTA MACHADO, ibidem.). Ora, criação de postos de trabalho não se confunde com criação líquida de emprego, sendo que esta última expressão tem, manifestamente, um carácter bem mais restritivo que a primeira. Tenha-se presente que se aconselha redobrado cuidado na tarefa hermenêutica uma vez que nos situamos no âmbito de benefícios fiscais, que, como é sabido, se encontram a coberto do princípio da legalidade tributária (cfr. art. 8.º da LGT e art. 103.º da Constituição da República Portuguesa), o que proíbe a sua integração por analogia (cfr. art. 11.º, n.º 4, da LGT). Para além disso, as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excepcionais (cfr. art. 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais), pelo que devem ser interpretadas nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições.

Mas não é só a letra da lei a apontar esse significado. Também a sua razão de ser (a ratio legis) – factor hermenêutico cuja consideração é imposta ao intérprete pelo n.º 1 do art. 9.º do CC (Nos termos do art. 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, antes procurando reconstituir a partir do seu texto o pensamento legislativo.) – vai no sentido de que a norma releva a criação efectiva (e ulterior manutenção durante o período da dedução) de postos de trabalho (Sendo de realçar que a AT, através da Ficha Doutrinária – Processo 2010 002853 e 2010 001800, divulgou já o entendimento de que é suficiente a criação de um posto de trabalho.), independentemente de ser positiva a relação entre o número absoluto dos trabalhadores nesse ano e no ano anterior, i.e., independentemente do efectivo aumento global do número de trabalhadores da empresa. Se não vejamos:

O RFAI 2009 integra-se no âmbito da Iniciativa para o Investimento e o Emprego, designada por Programa IIE, criado pela Lei 10/2009, de 10 de Março, programa que visou «promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social» (cfr. art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 10/2009) e no seu âmbito incluíam-se medidas de «Apoio especial à actividade económica, exportações e pequenas e médias empresas (PME)» e de «Apoio ao emprego e reforço da protecção social» [cfr. alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 3.º da Lei 10/2009).

O RFAI 2009 foi criado no âmbito do mesmo Programa como «um sistema específico de incentivos fiscais ao investimento», conforme resulta do respectivo art. 1.º do mesmo Regime e é um regime que visa, essencialmente o investimento e não o emprego (o apoio ao investimento é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados). Ou seja, o RFAI 2009 foi formulado como um incentivo ao investimento. Assim sendo, a criação de emprego é uma condição para a aplicação do benefício fiscal nele previsto, não é o seu objectivo principal, motivo por que bem se compreende que o legislador se tenha bastado com a «criação de postos de trabalho», ao invés de exigir, como noutros a criação líquida de emprego. Nesse contexto, a criação de postos de trabalho a que alude a alínea f) do n.º 3 do art. 2.º daquele regime, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, mas não o fundamento desse direito.

No mesmo sentido aponta o Regulamento (CE) n.º 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009 e que está na sua génese.

Na verdade, o referido Regulamento distingue dois tipos de apoios às PME: os apoios quantificados com base nos custos do investimento e os apoios quantificados com base nos custos relativos aos postos de trabalho directamente criados por um projecto de investimento. É para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito de criação líquida de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica.

Ora, como deixámos já dito, o RFAI 2009 foi um apoio ao investimento, calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Por isso, também a ratio legis não autoriza a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho para a interpretação a fazer da alínea f) do n.º 3 do art. 2.º do RFAI 2009, que se refere a criação de postos de trabalho.

Concluímos, pois, que a expressão criação de postos de trabalho não pode ser interpretada, como pretende a Recorrente, com o sentido de criação líquida de postos de trabalho.

No caso, a AT reconhece que foram criados 5 postos de trabalho, que não põe em causa que se devem ter como causados pelo investimento relevante, o que basta para que se considere verificado o pressuposto da criação de postos de trabalho a que se refere a alínea f) do n.º 3 do art. 2.º do RFAI 2009.”

48.Aqui chegados, dúvidas não restam de que a AT incorreu em erro de direito ao sustentar no RIT o incumprimento do – inexistente – pressuposto de criação líquida de postos de trabalho.

49.Ora, tendo sido provado nos autos, sem contestação, que como causa direta do investimento realizado – e que gerou as deduções à coleta que vieram a ser corrigidas e incorporadas nas liquidações adicionais impugnadas – a Requerente criou três postos de trabalho, que manteve por todo o período relevante,  não resta senão concluir que o investimento realizado pela Requerente preenchia todos os requisitos previstos no artigo 22.º, do CFI, para beneficiar do RFAI, porquanto ficou provado nos autos a criação de três postos de trabalho, ocupados pelos colaboradores B..., C... e D... para o exercício de funções diretamente relacionadas com o investimento feito na expansão da fábrica e armazém.

50.Em face do exposto, julga-se procedente a ilegalidade imputada pela Requerente aos atos de liquidação de imposto e juros impugnados no presente processo, inquinados que estão de vício de violação de lei – v.g., artigo 22.º, n.º 4, alínea f), do CFI – impondo-se a sua anulação no montante que resultar da integral aceitação da dedução à coleta em causa, e devendo a Requerida praticar todos os atos necessários à reposição da situação que existiria na ausência dos atos anulados, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, do RJAT.

c.     Do Direito a Juros Indemnizatórios

51.Por fim, cumpre apreciar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

52.O direito a tais juros encontra-se regulado no artigo 43.º, n.º 1 da LGT que, ao que importa, estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

53.Ora, resultou provado que os atos de liquidação contestados enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, unicamente imputável aos serviços da AT.

54.Contudo, não se alegou nem provou nos autos que a Requerente tenha pago o imposto indevidamente liquidado, mas apenas que a Requerida penhorou à Requerente o valor de € 289.816,18 (sem que se saiba se estas penhoras foram feitas por penhora de créditos, de contas bancárias, ou outras).

55.Ora, não só este tribunal, como se referiu acima, não tem poderes para praticar atos em sede de execução fiscal como, ainda que tivesse, facto é que a natureza da penhora como apreensão judicial de bens pelo órgão de execução fiscal, não a faz equivaler a um pagamento (neste sentido, v. o acórdão do TCA Norte, proferido em 14 de junho de 2017, no âmbito do processo n.º 01495/14.0BEBRG).

56.Não tendo sido pago imposto, não se encontram reunidos os requisitos de aplicação do artigo 43.º da LGT, pelo que improcede nesta parte o pedido.

IV. DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente a arguida exceção dilatória de incompetência do tribunal para conhecer do pedido de condenação na devolução à Requerente dos montantes penhorados e, em consequência, absolver a Requerida da instância quanto a tal pedido;
  2. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, e de consequente anulação, dos atos de liquidação de IRC n.º 2024..., 2024..., 2024..., 2024... e 2024... e conexas demonstrações de acertos de contas e de juros compensatórios, relativas aos exercícios, respetivamente, de 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, condenando-se a Autoridade Tributária e Aduaneira a praticar todos os atos necessários à reposição da situação que existiria na ausência das mesmas; e,
  3. julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, na medida em que não foi pago qualquer imposto pela Requerente,

condenando-se cada uma das partes no pagamento das custas do processo na proporção do respetivo decaimento, que se considera ser de 90% para a Requerida e 10% para a Requerente.

V.   VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 280.956,21 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

VI. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 5.202 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar em € 4.681,80 pela Requerida e em € 520,20 pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

Notifique-se. 

Lisboa, 28 de Julho de 2025

 

Os Árbitros,

 

(Victor Calvete)

 

 

(José António Machado Pinto)

 

 

(João Taborda da Gama)

Relator