Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1385/2024-T
Data da decisão: 2025-07-21  IRC  
Valor do pedido: € 71.972,95
Tema: IRC; RFAI – investimento relevante; criação de postos de trabalho.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

I – O art. 22.º, n.º 4, al. f), do Código Fiscal do Investimento deve ser interpretado no sentido de que apenas se refere aos postos de trabalho directamente criados pelo investimento relevante, não estabelecendo qualquer requisito de “criação líquida de emprego” como condição para usufruir do correspondente benefício fiscal.

II – Ofícios-Circulados e Decisões da Comissão Europeia não constituem genuínos fundamentos decisórios para alicerçar actos tributários, não podendo interferir na fundamentação legal da liquidação de um tributo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1.     A contribuinte A... Lda, NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 19 de Dezembro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2024..., no montante de € 65.241,82, referente ao ano de 2021, aditado de liquidações de Juros Compensatórios n.os 2024 ... e 2024..., nos montantes de € 522,26 e € 5.437,69, e Demonstração de Acerto de Contas n.º 2024..., da qual resultou imposto a pagar no montante de € 71.972,95, pedindo a anulação dessa liquidação e a restituição do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

6.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 28 de Fevereiro de 2025; foi-o regularmente, e é materialmente competente.

7.     Por Despacho de 28 de Fevereiro de 2025, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.

8.     A AT apresentou a sua Resposta em 7 de Abril de 2025.

9.     Por Despacho de 28 de Abril de 2025, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, sendo as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.

10.  Nenhuma das partes apresentou alegações.

11.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.

12.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

13.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     A Requerente é uma sociedade por quotas de direito português, uma “Média Empresa”, tendo por objecto social “investigação, desenvolvimento inovação na produção de compostos poliméricos para isolamento de cabos elétricosà base de PVC, Polietilenos (PE)Polipropilenos (PP) e Silicone (SIR)”, com actividade principal no CAE 22292 (Fabricação de outros artigos de plástico).

2.     A Requerente teve direito, no ano de 2021, a beneficiar de uma redução do montante de € 179.434,78, no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais ao Investimento e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), e € 65.983,62, no âmbito do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). 

3.     Em março de 2024 a Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção interno, de âmbito parcial, em sede de IRC relativo ao exercício de 2021, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2024..., para controlo dos benefícios fiscais do SIFIDE e do RFAI.

4.     Foram disponibilizados, a solicitação da AT, os seguintes elementos:

a)     Discriminação dos subsídios, no montante de € 179.434,78, deduzidos ao total da Despesa elegível para efeitos do SIFIDE; 

b)    Justificação para a diminuição dos postos de trabalho detectada na documentação, e envio de outros elementos justificativos, que demonstrem a criação líquida de postos de trabalho, no final do ano de 2021, face à média dos 12 meses anteriores ao início do investimento (dada a exigência do art. 22.º, 4, c) e f) do Código Fiscal do Investimento), visto estar documentado que o número médio de trabalhadores durante o ano 2020 foi de 83, enquanto o número de trabalhadores no final de 2021 tinha diminuído para 78.

c)     Cópia das facturas de aquisição de alguns activos (aplicações relevantes RFAI): 

·      Equipamento básico;

·      ADAPT L08, no montante de € 38.215,00; 

·      Main Shaftpn Equipped With Keys 08, no montante de € 29.920,00;

·      Stoke Gearbox for CK 150 – Caixa Redutora 08, no montante de € 54.120,00.

5.     A AT entendeu, no RIT, que “Através da análise aos elementos disponíveis e de acordo com as informações recolhidas, no exercício de 2021verificou-se a dedução indevida de € 65.983,62 à coleta de IRC, de benefícios fiscaisdesignadamente em sede do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (...)”.

6.     Porque, no entender da AT, não teria sido cumprido o critério previsto no art. 22.º, 4, c) e f) do Código Fiscal do Investimento (CFI), nomeadamente a criação de postos de trabalho no RFAI.

7.     No RIT, referem-se os esclarecimentos prestados pela Requerente quanto à criação de postos de trabalho:

“(…) o investimento do sujeito passivo, teve como objetivo o aumento da capacidade produtiva, portanto, compatível com dois assistentes de operações e um responsável para o departamento de investigação e desenvolvimento por forma a apoiar às solicitações advindas do aumento da produção. 

Nos esclarecimentos prestados pelo sujeito passivo, este acrescentou: 

objetivo do investimento realizado em 2021foi o de aumentar a capacidade produtiva da empresa para fazer face ao aumento dos pedidos dos clientes, nomeadamente nos segmentos do PVC PP/XLPE, cujos detalhes e correlação se encontram mais bem detalhados no relatório RFAIentretanto disponibilizado a V. Exas. 

Como consequência do aumento da capacidade produtiva e da elevada complexidade do sistema produtivoforam identificadas duas áreas cruciais que exigiram reforço dos Recursos Humanos da empresa, mais especificamente nas áreas: 

— do Planeamento e da Gestão de Materiaise no 

— Controlo de Produção nomeadamente na monitorização e controle dos processosparâmetros de máquinas e tecnologias envolvidas

Esta necessidade de reforço dos Recursos Humanos concretizou-se da seguinte forma:

1. NOVAS CONTRATAÇÕES - 3 COLABORADORES [TABELA II] 

a. 2 novos colaboradores para a função de assistentes de operações que colmataram a lacuna surgida na área do planeamento e controlo dos materiais produtivos.

b. Para reforçar a área do Controlo de Produçãonomeadamente na monitorização e controle dos processos, parâmetros de máquinas e tecnologias envolvidas, foi contratado um responsável de projeto para o Departamento I&D

2. CONVERSÃO DE CONTRATOS DE TRABALHO TERMO EM PERMANENTE [TABELA III]:

a. Ainda como forma de colmatar as necessidades de RH para área do Controlo de Produçãofoi decidido manter colaborador B... através da conversão do seu contrato de trabalho Termo em Permanente

Através Declaração Mensal de Remunerações (DMR), confirma-se que os funcionários acima identificados, iniciaram em 2021 e ainda figuram das DMR do sujeito passivo em 2024, pelo que, confirma-se o cumprimento da obrigação de manutenção do emprego constituído com o investimento relevante para RFAI. 

De entre as condições a satisfazer cumulativamente pelos sujeitos passivos de IRC, para que possam beneficiar do RFAI, está a obrigação de realização de "investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c)" - alínea f) do n.o 4 do artigo 22.° do CFI. 

A AT pronunciou-se quanto a este conceito através do ofício circulado n.o 20259 de 2023/06/28, Gabinete da Subdiretora-Geral da Área dos Impostos Sobre Rendimento, determinando que: 

(...), para que os sujeitos passivos possam beneficiar do RFAI, tem de se verificar a criação de postos de trabalho diretamente conexos com o investimento em causa, (...) 

E, nos termos em que se encontra definido no § 32 do artigo 2.o do RGIC, deve entender-se como "«Aumento líquido do número de trabalhadores», o aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento em causa em comparação com a média durante um determinado período de tempo, devendo os postos de trabalho suprimidos durante esse período ser, por conseguinte, deduzidos e o número de trabalhadores a tempo inteiro, a tempo parcial sazonais ser considerado segundo as respetivas frações de trabalho anual;". 

(...) a par do cumprimento das normas especificas previstas no RFAI quanto à criação de postos de trabalho proporcionados por um determinado investimento, bem como quanto à respetiva manutenção, terá, em simultâneo, de se verificar um aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento, de forma a assegurar a “criação de emprego” nos termos em que este conceito é definido no RGIC, devendo, tanto as condições relativas à criação de postos de trabalho, como as condições relativas à sua manutenção, verificar-se até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento nos termos da alínea c) do n.° 4 do artigo 22.° do CFI." 

A data da primeira fatura identificada como investimento elegível, é de 2021/01/22, portanto, os 12 meses relevantes para efeitos de verificação dos postos de trabalho criado, é janeiro de 2020 a dezembro de 2021. 

Esta informação não é possível de extrair diretamente de qualquer base dados, contudo de acordo com o anexo O do Relatório Único de 2020, o número médio de trabalhadores durante o ano foi de 83. 

De acordo com a Declaração Mensal de Remunerações (DMR), extraindo o número de trabalhadores mensalmente, no ano de 2020, obteve-se o valor de 82,25 pelo que se aceita que o número médio de trabalhadores nos 12 meses anteriores ao início do investimento terá sido de 82. 

Conforme referido, para assegurar o objetivo de criação de postos de trabalhos, no final de 2021, deveria assegurar a criação dos dois postos de trabalho criados em razão do investimento e de pelo menos 83 trabalhadores nos três anos seguintes.

Tanto de acordo com o Relatório Único, como com análise da DMR, o sujeito passivo não terá garantido o objetivo de criação de postos de trabalho no ano de 2021, ao ter apenas 78 trabalhadores na DMR (mês de dezembro) ou mesmo 80 de acordo com o Relatório Único.” 

8.     Dada a ausência, no CFI, de uma densificação do critério de criação de postos de trabalho, a AT invocou:

a.     O Ofício-Circulado n.º 20259, de 28 de Junho de 2023;

b.     Uma Decisão de 2020 da Comissão Europeia a propósito da recuperação de auxílios de Estado ilegais concedidos pelo Estado Português às sociedades da Zona Franca da Madeira (alegando a sua transversalidade).

9.     Especificamente, o RIT sustenta que:

Constituindo o RFAI uma medida excecional de fomento à empregabilidade e de incremento do rendimento per capita das regiões desfavorecidas, no quadro de direito europeu (.....) assinalado, a aferição da criação e manutenção dos postos de trabalho reclamados pela alínea f) em análise deve ser efetiva, ao nível da entidade que aufere o benefício, pelo que se afigura que a comparação há-de ser feita nos moldes preconizados pela Requerida (entenda-se AT), i.e., globalmente, pois só assim se pode afirmar que o investimento tenha sido indutor da criação de postos de trabalho, pressuposto que, segundo entendemos, deve ser incremental. Aliás, a condição que a lei impõe de criação incremental de postos de trabalho no ano do investimento (...) é medida em função do número global de trabalhadores da entidade, a 31 de dezembro, face à média dos 12 meses anteriores, (...)”. 6 Recentemente (04/12/2020), a decisão da Comissão Europeia a propósito do regime de auxílios SA.21259 (2018/C) ex-2018/NN) aplicado por Portugal e favor da Zona Franca da Madeira, trouxe esclarecimentos acerca do conceito de criação de emprego e reclama a sua transversalidade. «Assim, quanto ao conceito de “criação de emprego" que consta das OAR, a decisão da Comissão vem defender que: “(...) uma definição de postos de trabalho em ETI e UTA é a melhor forma de incluir, sem discriminação, todos os tipos de relações e contratos de trabalho” (pontos 173 e 174 da Decisão). Quanto à natureza da relação de trabalho adequada para preenchimento de um posto de trabalho criado por um investimento, já a questão tem que ser dirimida à luz da legislação interna, conforme se depreende da mesma decisão: “A Comissão continua a ser neutra no que se refere à natureza da relação de trabalho nos termos do direito nacional” (ponto 174 da Decisão). O que se percebe, pois, sendo uma questão de ordem prática, coloca-se aquando da admissão de um trabalhador em função da legislação da região (Estado Membro) e do posto de trabalho que vai preencher. Portanto, a) o investimento tem que cumprir a finalidade do incentivo, que é criar emprego no estabelecimento (OAR), sendo o conceito de criar emprego e manter emprego transversal às normas europeias e até universal, e corresponde, grosso modo, a pôr mais pessoas a trabalhar no âmbito de uma relação de trabalho, e b) a natureza da relação de trabalho associada aos postos e trabalho directamente criados pelo investimento, à luz do Código de Trabalho, é a de contrato sem termo, que é a regra geral e a situação não se enquadra nas exceções previstas nos artigos 140.o do CT

10.  Acrescentando-se ainda, no RIT, por referência à situação concreta da Requerente:

Há, portanto, uma dupla exigência ou condições de cumprimento cumulativo, i.e., o investimento tem que criar e manter emprego (aumento do número total de trabalhadores do estabelecimento), através de contratados sem termo (aumento dos contratados sem termo). E tais aumentos têm que ser aferidos em relação a uma média, conforme resulta da definição de criação de emprego contida nas OAR, seja para evitar distorções provocadas por oscilações pontuais da força de trabalho, seja para evitar que as empresas que não criem e mantenham uma actividade económica substancial em razão do investimento, beneficiem de vantagens indevidas. Os postos de trabalho criados e o nível de emprego atingido em razão dos mesmos, devem ser mantidos nos períodos seguintes (3 ou 5 anos), tendo em conta a natureza incremental deste pressuposto, que acompanha a do investimento (Formação bruta de capital fixo - FBCF), uma vez que o objetivo do incentivo não é criar emprego momentâneo, mas emprego sustentável. Ou seja, tal como não é admitido investimento de substituição, também não deve ser admitido que o investimento realizado tenha um efeito nulo no nível de emprego no estabelecimento ou mesmo um efeito negativo. Tal não se compreenderia, face aos princípios que enformam a regras atinentes aos auxílios de estado, onde se inclui o benefício fiscal RFAI.» De acordo com os elementos disponíveis, o número médio de trabalhadores nos 12 meses anteriores ao início do investimento, terá sido no mínimo de 82. De acordo com a declaração mensal de remunerações do mês de dezembro do ano de 2021, o número de trabalhadores era de 78.

11.  Para concluir o RIT:

Portanto, o sujeito passivo não garantiu o acréscimo efetivo do número global de trabalhadores, antes, diminuiu no ano de 2021, empregando no final do exercício um número inferior, ao valor médio dos 12 meses anteriores. Pelo exposto o sujeito passível não cumpriu a condição de criação líquida de emprego, imposta na alínea f) do n.o 4.o do artigo 22.o do CFI, de acordo com o conceito de “criação de emprego”, constante nas OAR (sustentada pela AT através do referido ofício-circulado n.o 20259, de 2023/06/28), logo, no exercício de 2021 não é aceite a dedutibilidade de 65.983,62 Eur de benefícios fiscais a título RFAI

12.  Liquidado o montante adicional de € 71.972,95, a Requerente pagou-o no dia 8 de Outubro de 2024, não obstante a sua discordância, por considerar ilegal a liquidação adicional.

13.  Em 19 de Dezembro de 2024 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e somente nos documentos juntos ao PPA, já que não chegou a ser junto aos autos o processo administrativo.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

5.     Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente 

III. A. 1. Sobre a invalidade de fundamentação com circulares administrativas e decisões da Comissão Europeia

 

1.     A Requerente, para impugnar o acto de liquidação, começa por sustentar que ele viola o princípio da legalidade, na medida em que ilegitimamente buscou a sua fundamentação em orientações genéricas (o Ofício-Circulado n.º 20259, de 28 de Junho de 2023) e numa decisão da Comissão Europeia (decisão a propósito do regime de auxílios SA.21259 (2018/C), ex-2018/NN) aplicado por Portugal e favor da Zona Franca da Madeira).

2.     Quanto às orientações genéricas, lembra que na jurisprudência do STA (ex., Acórdão de 21 de junho de 2017, Proc. n.º 0364/14) se tem por assente que as Circulares da AT – mesmo as interpretativas, que densificam, explicitam ou desenvolvem preceitos legais – não constituem disposições de valor legislativo, sendo, antes, regulamentos internos que só vinculam a própria AT, e só são obrigatórios, portanto, para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão que emitiu a circular. Não podem converter-se em padrões de validade dos actos que suportam – pelo que a aferição da legalidade dos actos da AT deve ser efectuada através do confronto directo com a correspondente norma legal, e não com um regulamento interno que tenha procurado interpor-se entre a norma e o acto.

3.     E lembra também que o Tribunal Constitucional tem posição sobre o problema, tendo decidido que as prescrições contidas nas Circulares da AT, independentemente da sua irradiação persuasiva na prática dos contribuintes, não constituem normas para efeito do sistema de controlo de constitucionalidade cometido ao Tribunal Constitucional; emanadas do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração, só têm observância assegurada no âmbito subjectivo da relação hierárquica; não regulam a matéria sobre que versam no confronto entre AT e contribuintes, nem constituem regra de decisão para os tribunais – sendo que a vinculação da AT, nos termos do art. 68.º, 3 e 68.º-A da LGT não alteram essa situação, não conferindo às circulares uma eficácia externa, uma força vinculativa (Acórdãos do TC n.os 583/2009, 42/14, 364/14).

4.     Por isso, sustenta a Requerente, a AT está vinculada à legalidade, a um dever de obediência à Lei (art. 266.º, 2 da CRP, art. 3.º, 1 do CPA) que não lhe consente a possibilidade de escudar-se em Circulares para se furtar ao cumprimento da lei, ou de, para efeitos de eficácia externa, tentar colocar essas Circulares no mesmo plano das fontes de Direito que está reservado às leis. Sendo que, na própria formulação do art. 3.º do CPA, que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça, mas não dispõe da liberdade de fazer o que bem entender – incluindo fixar para si própria as condições e fundamentos da sua actuação.

5.     Assim, ao fundamentar a sua decisão no Ofício-Circulado n.º 20259, de 28 de Junho de 2023, e não na legislação aplicável ao caso concreto, a AT terá violado o princípio da legalidade, pelo que a decisão impugnada está viciada por erro sobre os pressupostos de direito, devendo ser anulada por essas razões, sem embargo de outras, ao abrigo do disposto no artigo 163.o do CPA.

6.     No que respeita à decisão europeia (decisão da Comissão Europeia a propósito do regime de auxílios SA.21259 (2018/C), ex-2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira), igualmente invocada como fundamento decisório no RIT, a Requerente assinala que, não obstante os Tratados e os Regulamentos da UE, e também as Decisões do TJUE, prevalecerem sobre o direito nacional dos Estados-Membros, o mesmo não sucede com as Decisões, ou com meras Comunicações, da Comissão Europeia, que não têm a mesma força vinculativa, e podem não prevalecer sobre o direito nacional (Acórdão de 3 de Julho de 2024 do STA, Proc. n.º 033/24.1BEFUN).

 

III. A. 2. Sobre o preenchimento do requisito “criação de postos de trabalho” (art. 22.º, 4 CFI)

 

7.     A alegação de incumprimento, pela Requerente, da obrigação da criação de postos de trabalho, é, segundo esta, um entendimento errado, para mais fundamentado, como se referiu, num Ofício Circulado sem eficácia externa e sem acolhimento na lei ou na jurisprudência.

8.     A Requerente lembra que, no período de referência, celebrou contratos de trabalho com três novos colaboradores, e, ainda, converteu em permanente um dos contratos de trabalho já existente desde 2018, que era a termo.

9.     Sendo que a contratação destes trabalhadores estaria em linha com a evolução do mercado automóvel em 2021, um ano de pandemia COVID 19, no qual a procura de compostos plásticos se verificou essencialmente nos segmentos do PVC e do PP/XLPE, sendo a contratação desse número de trabalhadores, portanto, aquela que ia ao encontro das necessidades empresariais da Requerente. 

10.  Quanto à diminuição de postos de trabalho, a Requerente invocou o contexto pandémico, com queda na procura dos compostos SIR, o que exigiu da empresa um reposicionamento rápido e eficiente, nomeadamente através do ajustamento em baixa dos recursos humanos (MOD) afectos a essa área de produção.

11.  Apesar do abaixamento de recursos humanos no segmento SIR, a Requerente considera integralmente cumprido o disposto no art. 22.°, 4, f) do CFI, que estabelece que os sujeitos passivos que efectuem investimento relevante, que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo nos termos da alínea c) do mesmo artigo (no caso particular da Requerente, um prazo de 3 anos), poderão usufruir do benefício RFAI.

12.  E acrescenta que no referido artigo não existe qualquer menção a “aumento líquido”, mas apenas à criação de postos de trabalho e à sua subsequente manutenção de forma proporcional. 

13.  Pelo que a diminuição do número de postos de trabalho de um ano para o outro não deverá ser o critério para apuramento da verificação do requisito previsto na lei – visto que o art. 22.°, 4, f) do CFI apenas exige que a criação dos postos de trabalho se encontre directamente conexa com o investimento realizado pela empresa. 

14.  O que se teria verificado em concreto, visto que o aumento na procura de compostos plásticos nos segmentos do PVC e do PP/XLPE durante o ano de 2021, levou ao aumento do número de postos de trabalho nessas áreas específicas. 

15.  Ou seja, em estrito cumprimento do disposto no art. 22.°, 4, f) do CFI, a Requerente, no exercício de 2021, efectivamente realizou um investimento relevante que proporcionou não só a criação de novos postos de trabalho, como também possibilitou, pelo mesmo motivo, a conversão de contrato a termo certo em contrato permanente – isto depois de identificadas duas áreas que exigiram o reforço dos Recursos Humanos da empresa, a do Planeamento e da Gestão de Materiais, e a do Controlo de Produção, nomeadamente na monitorização e controle dos processos, parâmetros de máquinas e tecnologias envolvidas – para fazer face ao aumento da capacidade produtiva, e dada a elevada complexidade do sistema produtivo. Convertendo-se ainda o contrato de uma colaboradora, para colmatar as necessidades de recursos humanos para a área do Controlo de Produção

16.  Em suma, em contexto pandémico, no ano de 2021, uma contribuição directa e causal para a criação de postos de trabalho.

17.  Lembrando o contexto de criação do RFAI, pela Lei n.º 10/2009, a Requerente sublinha que o regime tem como objectivo primordial fomentar o investimento, sendo a criação de emprego o fundamento do direito ao benefício fiscal; mas que em lado algum surge o requisito de “criação líquida de postos de trabalho”, pelo que a diminuição do número de trabalhadores, de um ano para o outro, não significa que o requisito se encontre necessariamente incumprido.

18.  O que se exige é que a criação de novos postos de trabalho resulte diretamente do investimento realizado, determinando ainda a verificação da manutenção dos postos de trabalho durante o período mínimo de manutenção dos bens objecto de investimento. E a Requerente assevera que foi isso que aconteceu, com a entrada de 4 trabalhadores para os quadros da empresa, lá se mantendo nos 3 anos subsequentes.

19.  E que é isso que o art. 22.°, 4, f) do CFI exige, e não um acréscimo “líquido” ou “global” do número de trabalhadores de uma empresa, independentemente dos investimentos considerados.

20.  A essa conclusão, lembra a Requerente, chegou já o STA, quando estabeleceu que “no âmbito do RFAI 2009, nem a letra nem a ratio legis da alínea f) do n.o 3 do art. 2.o autorizam a interpretação da expressão aí utilizada de criação de postos de trabalho com o sentido de criação líquida de emprego” (Acórdão de 8 de novembro de 2023, Proc. n.º 0411/16.0BEPNF).

21.  E destaca, na fundamentação desse mesmo acórdão do STA:

Na verdade, (...) o legislador disse investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período de dedução (...) e não que haja criação líquida de emprego nesse ou noutro período expressões de sentido obviamente diverso -, apesar de ter utilizado expressamente esta segunda expressão relativamente a outros regimes de benefícios fiscais. Ora, o n.o 3 do art. 9.° CC impõe-nos presumir, não só que o legislador consagrou as soluções mais acertadas» como também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Mas ainda que se pudesse considerar que a letra da lei comportava o significado que a Recorrente lhe aponta (...) sempre teríamos de ter presente que na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas (...). Ora, criação de postos de trabalho não se confunde com criação líquida de emprego, sendo que esta última expressão tem, manifestamente, um carácter bem mais restritivo que a primeira. Tenha-se presente que se aconselha redobrado cuidado na tarefa hermenêutica uma vez que nos situamos no âmbito de benefícios fiscais, que, como é sabido, se encontram a coberto do princípio da legalidade tributária (cfr. art. 8.o da LGT e art. 103.o da Constituição da República Portuguesa), o que proíbe a sua integração por analogia (cfr. art. 11.o, n.o 4, da LGT). Para além disso, as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excepcionais (cfr. art. 2.o, n.o 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais), pelo que devem ser interpretadas nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições. Mas não é só a letra da lei a apontar esse significado

22.  E ainda, do mesmo acórdão do STA:

o RFAI 2009 foi formulado como um incentivo ao investimento. Assim sendo, a criação de emprego é uma condição para a aplicação do benefício fiscal nele previsto, não é o seu objectivo principal, motivo por que bem se compreende que o legislador se tenha bastado com a «criação de postos de trabalho», ao invés de exigir, como noutros a criação líquida de emprego. Nesse contexto, a criação de postos de trabalho a que alude a alínea f) do n.o 3 do art. 2.o daquele regime, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, mas não o fundamento desse direito. No mesmo sentido aponta o Regulamento (CE) n.o 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009 e que está na sua génese. Na verdade, o referido Regulamento distingue dois tipos de apoios às PME: os apoios quantificados com base nos custos do investimento e os apoios quantificados com base nos custos relativos aos postos de trabalho directamente criados por um projecto de investimento. É para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito de criação líquida de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica. Ora, como deixámos já dito, o RFAI 2009 foi um apoio ao investimento, calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados. Por isso, também a ratio legis não autoriza a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho para a interpretação a fazer da alínea f) do n.o 3 do art. 2.o do RFAI 2009, que se refere a criação de postos de trabalho. Concluímos, pois, que a expressão criação de postos de trabalho não pode ser interpretada, como pretende a Recorrente, com o sentido de criação líquida de postos de trabalho

23.  Com o mesmo entendimento, convoca a Requerente as Decisões Arbitrais proferidas nos Procs. n.os 307/2019-T, 82/2020-T, 546/2020- T, 508/2021-T, 149/2022-T, 485/2022-T, 544/2022-T, 569/2022-T, 763/2023-T: o art. 22.°, 4, f) do CFI não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o artigo 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem. Por isso não se deverá equiparar a expressão "criação de postos de trabalho" à expressão "criação líquida de postos de trabalho" – sendo que, pelo contrário, a interpretação da norma só pode querer significar que ela se refere à criação de postos de trabalho, e à sua manutenção pelo período exigido, que sejam causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter ou não tido um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço. Ou seja, a referência tem de ser necessariamente particularizada, reportando-se a cada posto de trabalho especificamente criado através do investimento, a cada trabalhador admitido por causa daquele investimento, para efeitos de preenchimento do requisito de manutenção de postos de trabalho, ou seja, para efeitos da comparação intertemporal relevante. Isto, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, que aponta no sentido de se procurar obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão, e que tenha um efectivo conteúdo prático: assim, por exemplo, se uma determinada empresa adquirir um veículo pesado de mercadorias e contratar um motorista habilitado à sua condução, para o conduzir, verificar-se-á o pressuposto da criação de postos de trabalho, estabelecido pelo art. 22.°, 4, f) do CFI.

24.  Desta jurisprudência consolidada retira a Requerente a conclusão de que ocorreu, da parte da AT, erro sobre os pressupostos de Direito quanto à interpretação do artigo em questão, inquinando a legalidade dos actos de liquidação em crise, pelo que reitera o pedido de que sejam anulados, seja devolvido o imposto indevidamente pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos dos arts. 43.º da LGT e 61.º, 2 do CPPT.

 

III. B. Posição da Requerida

 

25.  Na sua resposta, a Requerida mantém a fundamentação constante do RIT, e em especial a aplicação do Ofício-Circulado n.º 20259, de 28 de Junho de 2023, no sentido da exigência de criação “líquida” ou “global” de postos de trabalho como requisito estabelecido pelo art. 22.°, 4, f) do CFI – desde logo por força da estreita conexão com o Regulamento geral de isenção por categoria (RGIC, Regulamento (UE) n.o 651/2014), da qual a Requerida entende decorrer a necessidade de se atender às condições gerais exigíveis para que os auxílios com finalidade regional possam ser considerados como compatíveis com o mercado interno, designadamente, no que respeita ao objectivo geral de “desenvolvimento das regiões mais desfavorecidas, apoiando o investimento e a criação de emprego num contexto sustentável” – do que resultará que, a par dos postos de trabalho criados estritamente em razão do investimento relevante para efeitos de RFAI, os quais devem ser mantidos pelo período determinado, terá ainda de se verificar, em termos líquidos, uma efectiva “criação de emprego”: única forma , segundo a Requerida, para se entenderem preenchidas as condições gerais exigíveis para que os auxílios com finalidade regional possam ser considerados como compatíveis com o mercado interno.

26.  Lembra a Requerida que se trata de benefícios fiscais, derrogações à tributação-regra, o que faz ressaltar a sua natureza política, funcionalizada a objectivos extra-fiscais de relevante interesse público.

27.  Invoca a Requerida o quadro normativo do art. 107.º do TFUE, no que respeita a auxílios de Estado compatíveis com o mercado interno, e as “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014- 2020 (OAR)”, publicadas pela Comissão Europeia, lembra que o RFAI foi aprovado nos termos do Regulamento da União Europeia n.º 651/2014, da Comissão, de 16 de Junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, sendo o Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC) que estabelece os limites dentro dos quais as categorias de incentivos aí previstas, que incluem os “Auxílios estatais com finalidade regional”, podem ser atribuídas pelos Estados sem necessidade de notificação à Comissão Europeia.

28.  Assim sendo, e atendendo ao primado do Direito da União – que vincula todas as entidades públicas e os tribunais nacionais, incluindo os arbitrais –, entende a Requerida ser necessário enquadrar o requisito da criação de postos de trabalho e a sua manutenção nas OAR:

1.2 Definições

…/…

k) “Criação de emprego”, um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, após deduzir os postos de trabalho eventualmente suprimidos durante o mesmo período do número aparente de postos de trabalho criados.”

…/…

o) “Número de trabalhadores”, o número de Unidades de Trabalho Anuais (UTA), isto é, o número de assalariados a tempo inteiro durante um ano; os trabalhadores a tempo parcial ou os trabalhadores sazonais são considerados como frações de UTA

29.  Remetendo ainda para o §32 do art. 2.º do RGIC, no qual igualmente se menciona o “aumento líquido do número de trabalhadores”.

30.  A Requerida lembra ainda que, por estar vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, nos termos do art. 68.º-A da LGT, agiu dentro da estrita legalidade ao proceder à liquidação ora em crise, devendo ser absolvida da instância – além de que, em qualquer caso, mesmo que procedesse o pedido, não se coloca a questão dos juros indemnizatórios.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

São duas as questões sobre as quais não converge o entendimento das partes, e sobre as quais devemos, pois, pronunciar-nos: a) a legitimidade de recurso a circulares administrativas e a decisões da Comissão Europeia para fundamentar liquidações de impostos; b) o sentido a dar ao requisito “criação de postos de trabalho” que consta do art. 22.º, 4 do CFI (e constava antes do art. 2.º, 3, f) do RFAI 2009).

 

IV. A. 1. Sobre a fundamentação com circulares administrativas e decisões da Comissão Europeia

 

Afigura-se indesmentível que a jurisprudência do STA e do Tribunal Constitucional, citadas pela Requerente, versam especificamente sobre este ponto e excluem uma fundamentação assente em fontes infra-legais, ou mesmo não-normativas – que podem densificar preceitos legais, mas não podem subverter o sentido e limites a que a interpretação desses preceitos legais tem necessariamente de ater-se.

A legalidade dos actos da AT afere-se por confronto directo com o quadro legal correspondente, não podendo admitir-se uma interposição decisiva de orientações que, não obstante poderem vincular hierarquicamente quem emita essas orientações e quem esteja subordinado a quem tenha emitido essas orientações, não podem vincular fora desse âmbito, não têm eficácia externa, não vinculam os contribuintes e não podem ser aceites como fundamentos válidos de decisão ou de impugnação pelos tribunais.

Não sendo fontes de direito, ou sendo-o a nível infra-legal, elas não podem substituir-se ao devido cumprimento da lei, e à devida fundamentação que esclareça o modo desse cumprimento estrito. Tudo o que saia disto acarreta, sem margem para dúvidas, uma afronta ao princípio da legalidade – um princípio que, como é sabido, reveste especial melindre e vem, por isso, acompanhado de implicações particularmente rigorosas nos domínios do direito tributário.

Ter pretendido fixar a interpretação de um quadro normativo por recurso a Ofícios-Circulados e a Decisões da Comissão Europeia, apresentando-as como genuínos fundamentos decisórios para alicerçar actos tributários, representa um erro sobre os pressupostos de direito que conduz à anulação dos actos fundamentados por aqueles.

 

III. A. 2. Sobre o requisito de criação de postos de trabalho

 

Sobre o ponto da criação de postos de trabalho, e em homenagem à uniformidade da jurisprudência, aderiremos à fundamentação de duas decisões arbitrais, que no nosso entender se adequam perfeitamente à temática do presente processo, e são exaustivos na convocação dos quadros do direito da União e do direito Português aqui aplicáveis.

Comecemos pela fundamentação da decisão no Proc. nº 307/2019-T (José Pedro Carvalho, Tomás Castro Tavares e Jorge Carita), ressalvando que ela se reporta também à norma contida no art. 2º, 3, f) do RFAI 2009, que é correspondente ao artigo 22º, 4, f) do novo CFI.

 

-------------------(início de citação do Proc. 307/2019-T)

 

“Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, considera-se que a referência feita na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, deve ser entendida como reportando-se à criação de postos de trabalho causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Com efeito, o regime legal em questão foi criado pela Lei 10/2009, no âmbito da Iniciativa para o Investimento e o Emprego, designada por Programa IIE, que visou “promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social”.

No âmbito do programa IIE, incluíram-se medidas de “Apoio especial à actividade económica, exportações e pequenas e médias empresas (PME)” e de “Apoio ao emprego e reforço da protecção social” (cfr. als. d) e e) do n.º 1 do art.º 2.º da Lei 10/2009).

No quadro daquele programa, o RFAI 2009 foi criado como “um sistema específico de incentivos fiscais ao investimento”, conforme resulta do art.º 1.º do mesmo Regime.

Foi, assim, o regime em questão, expressamente e no que para o caso interessa, formulado como um incentivo ao investimento (gerador de crescimento económico) tendo em vista o reforço da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, explicando-se dessa forma a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, que radica na al. f) do n.º 3 do art.º 2.º do RFAI 2009, criado pela referida Lei 10/2009.

Neste contexto, a criação de emprego previsto na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, já que é esse um dos propósitos assumidos pelo legislador e consta expressamente da letra da lei.

Não obstante não se poderá, nem deverá, julga-se, esquecer que o regime em questão visará, à frente daquele propósito, fomentar o investimento, para além da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, sendo essencialmente um regime de apoio ao investimento, e não ao emprego.

Neste quadro, portanto, e na leitura e interpretação do regime em questão, dever-se-á sempre ter presente em primeira linha a ideia do incentivo ao investimento, sendo a criação de emprego uma condição, mas não o fundamento, do direito ao benefício fiscal.

Assim, e tendo presente igualmente as finalidades de modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, dever-se-á concluir que o regime em questão visa promover o investimento modernizador, que aumente a competividade do país, e fomente a actualização, ou a aquisição de novas, competências pelos trabalhadores.

Posto isto, sustenta a AT que, na leitura da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, se deverá lançar mão do enquadramento europeu em matéria de auxílios de Estado com finalidade regional no qual se inscreve o RFAI, constituído, nos termos do n.º 2 do art.º 1.º do CFI, pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de Junho de 2014 , que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.°e 108.° do Tratado.

Sendo, evidentemente, um elemento relevante, crê-se que, antes de mais, se deve recorrer ao Regulamento (CE) N.º 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009, que, como se viu, está na génese do RFAI integrado no CFI.

(…)

Aqui chegados será possível, crê-se, verificar que o Regulamento em questão distingue efectivamente, entre dois tipos distintos de apoios às PME, que são os apoios quantificados:

a) com base nos custos do investimento; e

b) nos custos relativos aos postos de trabalho directamente criados por um projecto de investimento.

E é para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito, e exigido o aumento líquido de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica.

O Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, segue, no que para o caso importa, a mesma lógica, referindo no preâmbulo que “A fim de não favorecer o investimento em capital em relação ao investimento nos custos da mão de obra, deve prever-se a possibilidade de quantificar os auxílios regionais ao investimento com base quer nos custos do investimento quer nos custos salariais do emprego diretamente criado por um projeto de investimento.”, e dispondo no art.º 17.º que:

“2. Os custos elegíveis devem ser um dos seguintes custos ou ambos:

a) Os custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;

b) Os custos salariais estimados do emprego diretamente criado pelo projeto de investimento, calculados para um período de dois anos.”.

No art.º 14.º também se dispõe que:

“4. Os custos elegíveis devem ser os seguintes:

a) Custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;

b) Custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos; ou

c) Uma combinação das alíneas a) e b), que não exceda o montante de a) ou b), consoante o que for mais elevado.”.

É neste contexto que o n.º 9 do mesmo art.º 14.º, citado pela AT, dispõe que:

“9. Quando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados, descritos no n.º 4, alínea b), devem ser preenchidas as seguintes condições:

a) O projeto de investimento deve conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período;

b) Cada posto de trabalho deve ser preenchido no prazo de três anos após a conclusão dos trabalhos; e

c) Cada posto de trabalho criado através do investimento deve ser mantido na zona em causa durante um período mínimo de cinco anos a contar da data em que a vaga foi preenchida, ou três anos no caso de PME.”.

Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do RFAI.

De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão “criação líquida de emprego”, quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art.º 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho.

Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem.

Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão “criação de postos de trabalho” a “criação líquida de postos de trabalho”, dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efectivo conteúdo prático.

Nessa perspectiva, a única interpretação que não se reconduza à “criação líquida de postos de trabalho”, será, julga-se, a de que a “criação de postos de trabalho” pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Ou seja: o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção.

Assim, e por exemplo, se uma determinada empresa adquirir um veículo pesado de mercadorias e contratar um motorista habilitado à sua condução, para o conduzir, verificar-se-á o pressuposto da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.

Mas uma empresa que adquira um veículo pesado de mercadorias, e já dispusesse nos seus quadros de um motorista habilitado à sua condução (que estivesse, por exemplo, afecto à condução de um veículo ligeiro de mercadorias), e contrate um colaborador para a limpeza das suas instalações, que também faça a lavagem e limpeza do veículo adquirido, não preencherá o referido pressuposto de criação de postos de trabalho, já que, embora o referido colaborador possa executar alguns serviços relacionados com o bem adquirido, não se poderá, em princípio, concluir que a sua contratação se relacione de forma causalmente adequada àquela aquisição.

Deverá ser assim este, julga-se, o critério para aferir da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 307/2019-T)

 

Passemos à fundamentação da decisão no Proc. nº 561/2022-T (Carlos Fernandes Cadilha, André Festas da Silva e Mariana Vargas)

 

-------------------(início de citação do Proc. 561/2022-T)

 

“Outra questão em discussão é a de saber se a Requerente cumpriu a condição da “criação de postos de trabalho”, nos termos da alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro (CFI), para o que é necessário primeiro determinar aquele conceito, começando pela interpretação das partes.

(…)

Para analisar esta questão teremos, desde logo, de verificar as disposições aplicáveis, relativamente ao emprego, a nível comunitário e nacional.

O n.º 32 do artigo 2.º do RGIC, no âmbito das definições genéricas, identifica que «aumento líquido do número de trabalhadores» é o “aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento em causa em comparação com a média durante um determinado período de tempo, devendo os postos de trabalho suprimidos durante esse período ser, por conseguinte, deduzidos e o número de trabalhadores a tempo inteiro, a tempo parcial e sazonais ser considerado segundo as respetivas frações de trabalho anual”.

Em idêntico sentido, segundo disposto na alínea k) do ponto 1.2 das OAR, que se refere às definições aplicáveis para efeito dessas orientações, entende-se como criação de emprego “um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, após deduzir os postos de trabalho eventualmente suprimidos durante o mesmo período do número aparente de postos de trabalho criados.

Mas é de realçar que apenas é feita menção no RGIC, no capítulo específico sobre os auxílios com finalidade regional (subsecção A, da Secção I, capítulo III), às condições relativas ao número de trabalhadores, concretamente no n.º 9 do artigo 14.º, “[q]uando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados”, descritos no n.º 4 (alíneas b) e c)), ou seja, “decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos”.

Nesse caso:

“a) O projeto de investimento deve conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período;

b) Cada posto de trabalho deve ser preenchido no prazo de três anos após a conclusão dos trabalhos; e

c) Cada posto de trabalho criado através do investimento deve ser mantido na zona em causa durante um período mínimo de cinco anos a contar da data em que a vaga foi preenchida, ou três anos no caso de PME”.

O artigo 5.º do Anexo I do RGIC define que os efetivos correspondem ao número de Unidades de Trabalho-Ano (UTA), isto é, ao número de pessoas que trabalharam na empresa em questão ou por conta dela a tempo inteiro durante todo o ano considerado, sendo que o trabalho das pessoas que não tenham trabalhado todo o ano, ou que tenham trabalhado a tempo parcial, independentemente da sua duração, ou o trabalho sazonal, é contabilizado em frações de UTA.

Os efetivos são compostos por trabalhadores, pessoas que trabalham para essa empresa, com um nexo de subordinação com ela e equiparados a trabalhadores à luz do direito nacional, proprietários-gestores e sócios que exerçam uma atividade regular na empresa e beneficiem das vantagens financeiras da mesma.

Em conclusão, no quadro normativo comunitário relevante, apenas podem ser aplicadas as “definições” relativas ao emprego, nos “auxílios regionais” (como o RFAI), quando os custos elegíveis sejam calculados por referência aos custos salariais estimados. Sendo então, só nesse caso, que o investimento deve conduzir ao aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento, preenchido nos três anos seguintes à sua conclusão e mantido pelo mesmo prazo.

Dito de outra forma, os critérios determinados em cada definição não são genéricos ou extrapoláveis e só podem ser aplicados quando sejam enquadráveis. Pelo que não podemos invocar uma obrigação, relativamente a algo que não está previsto no contexto específico em causa.

No direito interno, relativamente à criação de postos de trabalho, a disposição está exclusivamente no Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, e não na Portaria de regulamentação, sendo que, pela alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º, somente podem beneficiar dos incentivos do RFAI (que é um “auxílio regional”) os sujeitos passivos de IRC quando “Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c)” [três anos para as PME e cinco nos restantes casos].

Do ponto de vista meramente textual, é, portanto, exigida a:

i) criação de postos de trabalho,

ii) proporcionada pelo investimento e

iii) a sua manutenção por cinco anos.

Daqui resulta que, de forma literal, estamos a falar da criação de emprego em resultado do investimento relevante, devendo ambos ser mantidos pelo mesmo prazo.

Ora, como já vimos, as disposições comunitárias só determinam, por um lado, obrigações no caso de os custos elegíveis, que são a base do incentivo, terem uma componente em função da criação de emprego, concretamente dos seus encargos por dois anos (individual ou cumulativa com o investimento).

E, por outro, consideram que o emprego diretamente criado por um projeto de investimento é aquele ligado à atividade relacionada com o investimento, incluindo o emprego criado na sequência do aumento da taxa de utilização da capacidade criada pelo investimento.

Os custos de emprego não são elegíveis no RFAI. Ou seja, a criação de postos de trabalho proporcionado por investimento relevante é uma condição de candidatura e não de elegibilidade de custos.

Relativamente ao contexto contemporâneo nacional, deve ser destacado que o (revogado) artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais identificava que o apuramento do benefício se fazia com base nos encargos com a criação de emprego, admitidos por contrato de trabalho por tempo indeterminado e indicava que eram apurados em termos líquidos, tudo condições que não se verificam no RFAI.

Relativamente à condição da criação de emprego no RFAI, no sentido de a aferição dever ser feita se relacionada com o investimento e não de forma líquida na entidade, citamos a Decisão Arbitral no processo nº 307/2019, de Março de 2020.

(…)

Não tendo a Administração efetuado, em primeira linha, a prova que lhe incumbia, na medida em que basicamente parte de um mero juízo presuntivo, acaba por decidir em sentido desfavorável ao contribuinte com base na inversão do ónus da prova, exigindo que fosse este a comprovar cabalmente que ocorreu uma efetiva criação de novos postos de trabalho.

Em conclusão, considera-se demonstrado que a Requerente cumpriu a condição prevista na alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do Decreto-Lei nº 162/2014, dado que o investimento relevante proporcionou a criação de postos de trabalho e a sua manutenção por mais de três anos.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 561/2022-T)

 

Restando concluir que, nestes termos lapidarmente formulados pelas duas decisões arbitrais citadas, e dados os factos que demos como provados, se encontra cumprido, pela Requerente, o requisito da criação de postos de trabalho.

 

IV.F. Conclusão

 

Conclui-se, assim, que as liquidações impugnadas enfermam de vício por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem-se baseado no entendimento de que a Requerente não cumpriu um requisito de “criação de postos de trabalho” para beneficiar do RFAI.

Trata-se de um erro imputável aos serviços.

Pelo exposto, tem de se concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas, por vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no art. 163º, 1, do CPA, subsidiariamente aplicável nos termos dos arts. 29º, 1, d) do RJAT e 2º, c), da LGT.

 

IV.G. – Juros indemnizatórios.

 

O tribunal arbitral não é apenas competente para apreciar a legalidade de actos de liquidação de impostos, cabendo-lhe ainda algumas atribuições que se enquadram no âmbito da execução de sentença - porque constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a AT deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado, e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (art. 179º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração, ou a requerimento do particular (art. 172º do CPA).

No caso, a Requerente veio deduzir um pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, mas esse é um pedido meramente acessório, e condicionado à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de um pedido autónomo de condenação na prática de acto devido, ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral.  

Por conseguinte, o tribunal arbitral não está impedido de incluir, no dispositivo, as cominações meramente consequenciais da declaração de ilegalidade do acto tributário.

De harmonia com o disposto no art. 24º, 1, b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT.

Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas.

Tudo isso condicionado pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços, que já determinámos ter existido.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, e em aplicação do art. 24º, 1, b) e 5 do RJAT, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Os juros indemnizatórios são, pois, devidos, nos termos dos arts. 43º, 1 e 4, e 35º, 10 da LGT, 61º, 5 do CPPT, 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde o pagamento indevido do imposto, em 8 de Outubro de 2024, até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

IV.H. – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)    Anular a liquidação impugnada;

c)     Condenar a Requerida na devolução do imposto pago em excesso;

d)    Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde 8 de Outubro de 2024;

e)     Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo. 

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 71.972,95 (setenta e um mil, novecentos e setenta e dois euros e noventa e cinco cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros) a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 21 de Julho de 2025

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

 

Mariana Vargas

 

 

Miguel Matos Torres