Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 580/2014-T
Data da decisão: 2014-12-16  Selo  
Valor do pedido: € 12.341,90
Tema: IS – Verba 28.1 TGIS - Propriedade Vertical
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

a)                 Objeto do litígio:

1.    A – Sociedade Imobiliária, SA, com o NIF …, com sede na Rua …, Lisboa, apresentou no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral singular, ao artigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), contendo, em cumulação, pedidos de declaração de ilegalidade e consequente eliminação da ordem jurídica das liquidações de Imposto de Selo – verba 28.1 da TGIS, com o valor global de € 12 341,90, relativas ao ano de 2012 e a quinze divisões de utilização independente, destinadas a habitação, do prédio urbano sito na Estrada … e Rua …, inscrito na matriz, à data das liquidações, sob o artigo … da freguesia de …, de que era proprietária à data de 31 de dezembro de 2012;

2.    Acessoriamente, é ainda requerida a apreciação do erro da AT na emissão das liquidações impugnadas, e deduzido pedido condicional de pagamento de juros indemnizatórios sobre as quantias que venham a ser pagas até à data da prolação da decisão arbitral;

3.    O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 29 de julho de 2014, tendo a AT sido automaticamente notificada do mesmo, em 30 de julho de 2014;

4.    A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 2, alínea a), do RJAT, foi a signatária designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral, encargo que aceitou nos termos legalmente previstos.

 

b)                 Matéria de facto:

Em síntese, a Requerente sustenta a sua pretensão nos seguintes factos:

a)    A requerente era, em 31 de dezembro de 2012, proprietária do prédio urbano sito na Estrada … e Rua …, inscrito na matriz, à data das liquidações, sob o artigo … da freguesia de …;

b)   O referido prédio tinha, no ano de 2012, uma utilização mista, sendo composto por dezoito andares ou divisões de utilização independente, quinze das quais destinadas a habitação e não se encontrava, então, constituído em propriedade horizontal;

c)    O valor patrimonial tributário (VPT) das diversas divisões de utilização independente foi apurado separadamente, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (adiante, CIMI), não atingindo qualquer das partes ou divisões destinadas a habitação o VPT valor de € 1 000 000,00, embora o somatório dos seus VPT perfaça o valor global de € 1 234 190,00, que a AT considerou ser o valor total sujeito a imposto;

d)   As notas de liquidações de Imposto de Selo objeto do pedido de pronúncia arbitral (com os n.ºs 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 …; 2014 … e 2014 …) foram emitidas em 26 de janeiro de 2014, para pagamento numa única prestação durante o mês de abril do mesmo ano, contendo os seguintes elementos de identificação:

Descrição do prédio

Verba TGIS

Valor Patrimonial (€)

Quota-Parte

Valor isento

Taxa

(%)

Coleta (€)

...-1 DRT

28.1

83 440,00

1/1

0,00

1,00

834,40

...-1 ESQ

28.1

83 440,00

1/1

0,00

1,00

834,40

...-2 DRT

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-2 ESQ

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-3 DRT

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-3 ESQ

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-4 DRT

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-4 ESQ

28.1

84 840,00

1/1

0,00

1,00

848,40

...-5 DRT

28.1

85 690,00

1/1

0,00

1,00

856,90

...-5 ESQ

28.1

85 690,00

1/1

0,00

1,00

856,90

...-6 DRT

28.1

85 690,00

1/1

0,00

1,00

856,90

...- 7 DRT

28.1

85 690,00

1/1

0,00

1,00

856,90

...-7 ESQ

28.1

85 690,00

1/1

0,00

1,00

856,90

...-8 DRT

28.1

64 910,00

1/1

0,00

1,00

649,10

...-8 ESQ

28.1

64 910,00

1/1

0,00

1,00

649,10

e)    À data do pedido, o imposto não tinha sido pago pela Requerente, encontrando-se na fase de cobrança coerciva, em execuções fiscais que se encontram apensadas e das quais foi requerida a suspensão, mediante a penhora de bem da executada.

 

Factos Provados: A convicção do Tribunal, quanto aos factos enunciados supra, que se consideram provados, deriva da análise crítica do requerimento arbitral e dos documentos a ele anexos, bem como da resposta prestada pela AT, que aos mesmos faz referência, admitindo-os por acordo.

 

Factos não provados: Não existem factos relevantes para a decisão que devam considerar-se não provados.

 

 

II – SANEAMENTO:

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído no CAAD, no dia 2 de outubro de 2014, e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

A cumulação de pedidos é permitida pelo artigo 3º, nº 1, do RJAT, dado que a sua procedência depende, no caso concreto, essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, por se tratar de várias liquidações respeitantes ao mesmo imposto e prédio.

Notificada para contestar, nos termos do artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou atempadamente a sua resposta, na qual propugna pela improcedência do pedido e pela manutenção dos atos tributários objeto do pedido arbitral, requerendo a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, da inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, bem como de alegações escritas, por considerar que a posição das partes “está ampla e claramente definida”, para tanto bastando a prova documental apresentada conjuntamente com a petição inicial.

Não foram invocadas exceções e o pedido é tempestivo.

Por despacho arbitral de 10 de novembro de 2014, de que as partes foram notificadas no dia seguinte, foi decidida a dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, e determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas, designando-se o dia 16 de dezembro de 2014 para a prolação da decisão arbitral.

As partes não apresentaram alegações.

 

III – FUNDAMENTAÇÃO:

Fixada a matéria de facto supra, cumpre decidir.

Determina o n.º 1 do artigo 124.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que “Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação”, segundo a ordem estabelecida pelo seu n.º 2, alíneas a) e b).

Ora, em primeiro lugar, vem a Requerente invocar que “As liquidações impugnadas enfermam de nulidade decorrente de inconstitucionalidade da norma [da verba 28, da TGIS), ou da interpretação da norma invocada, (…) ” – ponto 10, da P. I.

No entanto, em regra, os vícios do ato tributário são fundamento da sua anulabilidade, apenas sendo nulos os atos tributários a que, enquanto atos administrativos, “falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, conforme a previsão do n.º 1, do artigo 133.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), designadamente os enumerados nas alíneas a) a i) do seu n.º 2.

Não especificando a Requerente a causa da invocada nulidade das liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral, poder-se-á concluir, por exclusão de partes, que tal causa seja a prevista na alínea d) do n.º 2, do mencionado artigo 133.º, do CPA, ou seja, a ofensa do “conteúdo essencial de um direito fundamental”, como é o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º, da Constituição da República Portuguesa, que, “revestindo (…) em vários dos seus componentes uma natureza negativa ou de defesa, (…) possui natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias» [1].

Contudo, apesar de uma liquidação ilegal de imposto constituir uma ofensa ao direito de propriedade, “nem todas as liquidações ilegais se podem considerar feridas de nulidade, já que a lei expressamente prevê para elas a sanção da anulabilidade, como se depreende do facto de prever um prazo para a sua impugnação[2], estabelecido pelo artigo 102.º, do CPPT e, no processo arbitral tributário, pelo artigo 10.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT.

Todavia, “Não é qualquer ofensa de um direito fundamental que a alínea d) do n.º 2 do art. 133.º do Código de Procedimento Administrativo, mas apenas a ofensa do seu conteúdo essencial. Uma ofensa deste tipo só ocorrerá quando perante ela o direito fundamental afetado fique sem expressão prática apreciável, o que não é o caso de uma liquidação ilegal, que apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários”[3].

Como, aliás, reconhece a Requerente ao afirmar, no artigo 61.º, da P. I., que “ (…) as liquidações impugnadas, ou enfermam de erro de facto, ou de erro de direito, ou de inconstitucionalidade material decorrente da já referida violação dos princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e proibição de retroatividade da lei fiscal, todos geradores da sua invalidade e anulação” (sic) – negrito no original e sublinhado nosso.

Conclui-se, portanto, que a eventual aplicação de norma inconstitucional não gera nulidade do ato tributário, mas tão só a sua anulabilidade.

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

As questões trazidas aos autos, com relevância para a solução do litígio, são as de saber se, num prédio urbano não submetido ao regime da propriedade horizontal a sujeição a imposto de selo, nos termos da verba n.º 28 da TGIS, é determinada pelo Valor Patrimonial Tributário (VPT) que corresponde a cada uma das partes do prédio, economicamente independentes e com afetação habitacional, como defende a Requerente ou se, pelo contrário, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia ao somatório de todos os VPT dos andares ou divisões de utilização independente e com afetação habitacional que o compõem, como sustenta a AT e se qualquer das interpretações em confronto é inconstitucional, por violação, entre outros, dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal.

A posição da Requerente é, em síntese, a seguinte:

·      “O prédio (…) tem uma utilização mista (…) destinando-se os cada um dos seguintes “andar ou divisão com utilização independente” a seguir identificados, a um destino não habitacional: RC; LJB, todas destinadas a comércio”;

·      “(…) ainda que (…) tenha um VPT global superior a 1M€, nenhum dos andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, a que foi atribuído VPT autónomo pela Autoridade Tributária (…)  nos termos do disposto no artº 7º nº 2 /b) do CIMI, e qualquer que seja o seu destino - habitacional ou outro -, tem um VPT que exceda o valor de 1M€”;

·      “As alterações ao Código do Imposto do Selo (CIS) realizadas por intermédio da Lei 55-A/2012”, consistiram: (i) no aditamento aditada à Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao CIS, uma nova verba nº 28, que define também a taxa e contém remessa expressa para o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI ou IMI)(..); (ii) na remissão “para o CIMI [de] toda a restante matéria decorrente da nova Verba 28 (…); (iii) na aplicação subsidiária do CIMI em todas as matérias relacionadas com a nova verba 28 da Tabela Geral não reguladas no CIS (artº 67º/2)”;

·      A emissão das liquidações impugnadas consubstancia uma “tributação arbitrária, sem fundamento percetível ou racional, que permita descortinar qual o motivo pelo qual se pretendem tributar realidades substantivamente idênticas, como imóveis destinados a habitação coletiva que não estão sujeitos ao regime de propriedade horizontal, em que a cada fogo a AT atribui um VPT autónomo, sempre inferior a 1M€, versus a mesma realidade, em que cada fogo do prédio está já sujeito ao regime de propriedade horizontal”;

·      “(…) enfermam de erro de facto, por terem considerado que os prédios mistos (sic) da impugnante, em que nenhum dos “andares suscetíveis de utilização independente” que compõem o prédio em “propriedade total” e cujo valor individual em sede de VPT é inferior a 1M€, se subsumiam erradamente à espécie edifícios ou construções licenciados ou destinados a fins “habitacionais, comerciais, industriais” mencionados no artº 6º nº 1, a) e b) e nº 2 do CIMI, a que se refere o número 28 e 28.1 da Tabela Geral anexa ao CIS, ex vi do artº 67º/2 do CIS, ambos aditados pelos arts. 3º e 4º da Lei 55-A/2012, violando também, e para além das suscitadas inconstitucionalidades, todas as normas citadas” – negrito no original;

·      “Como constitui jurisprudência unânime desse Centro de Arbitragem, maxime nas razões explanadas no citado Acórdão Arbitral proferido no Processo 50-T/2013, de 29/10/2013, (…), a interpretação proposta pela AT para tributar os prédios de habitação coletiva ([m]istos ou não), compostos de vários fogos que não estão em regime de propriedade horizontal enferma também de erro de direito” – negrito no original.

·      A categoria de destinados a habitação com VPT superior a 1 M€ que o legislador elegeu na Lei 55-A/2012, para definir quais os imóveis abrangidos pela nova norma de incidência prédios urbanos da Verba nº 28 da Tabela Geral anexa ao CIS, corresponde, assim, a cada um dos fogos (unidades autónomas suscetíveis de utilização independente) e por isso dotadas de VPT autónomo, em prédios urbanos destinados a habitação, entendidos como construção existente e destinada a esse fim e não qualquer uma outra sua categoria”- negrito e sublinhado no original;

·      “Atento o princípio da tipicidade específica, só podem ser abrangidos pela norma de incidência da Verba nº 28 da Tabela Geral anexa ao CIS, cada um dos fogos (unidades autónomas suscetíveis de utilização independente) e por isso dotadas de VPT autónomo prédios urbanos do tipo “construção que pode servir para fins de habitação”, sob pena de inconstitucionalidade material daquela norma por violação do princípio da legalidade tributária (art. 106º, hoje, art. 103º, nº 2, CR), nas suas dimensões de princípio da “tipicidade” e, em particular, da “determinabilidade” (corolário da ideia de Estado de direito - art. 2º CRP) da norma de “incidência” tributária [cfr. art. 168º, hoje, art. 165º, nº 1, alínea i), CRP)” - negrito e sublinhado no original;

·      “As liquidações impugnadas enfermam de óbvia falta de fundamentação, em violação do disposto nos art. 36º e ss. do CPPT , no art. 77.º/6 da LGT, 125º do CPA e no art. 268º, n.º 3 da CRP, pois não é percetível para um destinatário normal o motivo pelo qual se tributa a totalidade do prédio, decomposto para efeitos de liquidação, em tantas liquidações quantas as unidades suscetíveis de utilização independente, cujo valor é inferior a um milhão de euros” e “de falta de audiência prévia da impugnante em momento anterior à sua prática, determinante da sua ilegalidade (artº 60º/1/a) da LGT)”.

Por seu turno, a posição da AT, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, é, sinteticamente, a que se segue (embora por lapso manifesto seja feita referência a 16 divisões de utilização independente, destinadas a habitação, quando, na realidade, são apenas 15):

·      “ (…) o valor patrimonial dos andares/partes com afetação habitacional tido em conta nas liquidações foi o correspondente a € 1.234.190.00 e ao ano de 2012.)” e “Foi sobre este valor de t; 1.234.190.00. que a A.T. liquidou, nos termos dos artigos 6°, nº 1, alínea f), subalínea i), o imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral, na redação dada pelo art. 4° da Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, à taxa de 1 por cento”;

·      “ (…) A situação dos prédios da requerente subsume-se, linearmente, o que quer dizer, literalmente, na previsão da verba em causa (…);

·      “Da noção de prédio do artigo 2.º do CIMI, só as frações autónomas de prédio em regime de propriedade horizontal são havidas como prédios - n.º 4 do citado artigo 2.º do CIMI. Logo,” “ Encontrando-se os prédios de que é proprietária, em regime de propriedade total, não possui frações autónomas, às quais a lei fiscal atribui a qualificação de prédio”;

·      “Assim, a ora requerente, para efeitos de IMI e também de imposto selo, por força da redação da referida verba, não é proprietária de 18 frações autónomas, mas de um único prédio”;

·      “o que a ora requerente pretende é que a AT considere, para efeitos de liquidação do presente imposto, que exista analogia entre o regime da propriedade total e o da propriedade horizontal, já que não deve existir discriminação no tratamento jurídico-fiscal destes dois regimes de propriedade, por ser ilegal”;

·      “Ora, pretender que o intérprete e aplicador da lei fiscal, aplique, por analogia, ao regime da propriedade total, o regime da propriedade horizontal é que é abusivo e ilegal, como iremos, detalhadamente, ver”;

·      “E o intérprete da lei fiscal não pode equiparar estes regimes, em consonância com a regra segundo a qual, os conceitos dos outros ramos de direito têm o sentido no direito tributário que lhes é dado nesses ramos de direito, ou nas palavras do artigo 11.°, n.º 2 da LGT, sobre a interpretação da lei fiscal: «Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei»”;

·      “Por outro lado, ainda tendo em conta, que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis, conforme artigo 11.°, n.º 1 da LGT que remete, assim, para o Código Civil, o seu artigo 10.º sobre a aplicação da analogia, determina que esta só será aplicável em caso de lacunas da lei”;

·      “Ora a lei fiscal não comporta qualquer lacuna! Determina o CIMI, para o qual a citada verba remete, que no regime da propriedade horizontal as frações constituem prédios. Não estando o prédio submetido a este regime, juridicamente as frações são partes suscetíveis de utilização independente, sem que haja partes comuns”;

·      “Não podemos, pois, aceitar que se considere, que para efeitos da verba 28.1 da Tabela Geral anexa ao CIS, que as partes suscetíveis de utilização independente tenham o mesmo regime fiscal das frações autónomas do regime da propriedade horizontal”;

·      “A unidade do prédio urbano em propriedade vertical composto por vários andares ou divisões não é (…) afetada pelo facto de todos ou parte desses andares ou divisões serem suscetíveis de utilização económica independente”. “Tal prédio não deixa, pelo facto de ser um apenas, não sendo, assim, as suas partes distintas juridicamente equiparadas às frações autónomas em regime de propriedade horizontal”;

·      “O facto de o IMI ter sido apurado em função do valor patrimonial tributário de cada parte de prédio com utilização económica independente não afeta igualmente a aplicação da verba 28.º, n.º 1, da Tabela Geral”;

·      “É o que resulta de o facto determinante da aplicação dessa verba da Tabela Geral ser o valor patrimonial total do prédio e não separadamente o de cada uma das suas parcelas”, pois “Outra interpretação violaria, isso sim, a letra e o espírito da verba 28.1. da Tabela Geral e o princípio da legalidade dos elementos essenciais do imposto previsto no artigo 103°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP)”;

·      “Um tipo de incidência de acordo com o qual o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos de que depende a aplicação da verba 28.1. da Tabela Geral é o valor patrimonial de cada andar ou divisão suscetível de utilização independente e não o valor patrimonial tributário global do prédio urbano com afetação habitacional não tem seguramente qualquer expressão na lei”;

·      “É, assim, inconstitucional, por ofensiva do princípio da legalidade tributária, a interpretação da verba 28.1. da Tabela Geral, no sentido de o valor patrimonial de que depende a sua incidência ser apurado globalmente e não andar a andar ou andar ou divisão a divisão”;

·      “Nesta senda, não logra vingar o pedido da requerente de que seja aplicado, por analogia ao seu prédio o regime da propriedade horizontal, considerando-se que cada uma das frações suscetíveis de utilização independente constitua um prédio, pois isso não seria interpretar as normas do CIMI, e por consequência do CIS, isso seria subverter todo o regime aí instituído, com as violações dos princípios supra referidos”.

Descritas as posições das partes, começar-se-á por notar que a AT tem razão ao referir que um prédio constituído em propriedade horizontal é uma realidade jurídico-tributária distinta de um prédio urbano em “propriedade total” e que não pode cada uma das divisões suscetíveis de utilização independente do prédio urbano em “propriedade total” ser havida como prédio.

Efetivamente, a tanto obrigam as regras da interpretação, que tem o texto como partida, cabendo-lhe a função negativa de eliminar qualquer sentido que não tenha qualquer apoio na letra da lei[4].

Desde logo, porque o n.º 4 do artigo 2.º do CIMI, estabelece a ficção legal de que cada uma das frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal consubstancia um prédio, enquanto uma parte de utilização independente, de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ser apenas isso mesmo – uma parte de um prédio e não um prédio, como, aliás, a AT reconhece ao afirmar na sua resposta que “só as frações autónomas de prédio em regime de propriedade horizontal são havidas como prédios”.

 

Tanto bastaria para concluir que, tendo o legislador fixado qualificações tributárias distintas para realidades juridicamente diferenciadas (prédios e partes de prédios), não será legítimo que o aplicador da norma, em nome das “necessárias adaptações” a que se refere o artigo 23º, n.º 7 do Código do Imposto de Selo (CIS), crie uma nova norma de incidência daquele imposto, matéria submetida ao princípio da legalidade tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual os elementos essenciais dos impostos – a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes – são estabelecidos por lei da Assembleia da República.

Ora, a verba 28 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei nº 55-A/2012 de 29 de outubro, veio determinar, na sua redação originária, aplicável ao caso em apreço, a incidência objetiva do imposto de selo sobre prédios urbanos de afetação habitacional, cujo valor patrimonial tributário, para efeitos de IMI, seja igual ou superior a € 1 000 000,00 (e não, como entende a AT, sobre partes de prédios ou sobre o VPT global de um prédio não constituído em propriedade horizontal, correspondente ao somatório dos VPT das partes que o integram), ao estabelecer que o imposto de selo incide sobre:

 «28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.»

 

Também aqui o elemento literal da norma há-de ser o ponto de partida para a sua interpretação e, “na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato) de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento[5].

 

Que a atuação da AT exorbita da norma de incidência da verba 28, da TGIS, parece evidente, ao não respeitar o VPT para efeitos de IMI, que, para os prédios não constituídos em propriedade horizontal é individualizado relativamente a cada uma das partes ou divisões de utilização independente que os compõem, não sendo efetuada qualquer liquidação de imposto sobre o somatório dos VPT atribuídos às partes. Daí que, para efeitos de IMI, não seja atribuída relevância ao VPT global.

 

Argumenta no entanto a AT, que, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do CIMI, “«[…] cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes»”.

Acontece, porém, que nem sempre o CIMI faz corresponder o todo à soma das partes. Como, aliás, decorre da sistemática do mesmo n.º 2 do artigo 7.º do CIMI, cujas alíneas a) e b) apenas têm aplicação na determinação do valor patrimonial tributário “dos prédios urbanos com partes enquadráveis em mais de uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior”.

De acordo com o n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, os prédios urbanos dividem-se em a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros.

Da conjugação das normas do n.º 2 do artigo 7.º e do artigo 6.º, n.º 1, ambos do CIMI, decorre que, se um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal integrar exclusivamente partes ou divisões de afetação habitacional, o valor do prédio não equivale à soma das suas partes. O mesmo que é dizer-se que cada uma das partes é autónoma e que, independentemente do VPT que lhe tenha sido atribuído, fica excluída da incidência do imposto de selo previsto na verba 28, da TGIS.

Aqui chegados, caberá questionar da sujeição a imposto de uma parte ou divisão de utilização independente, com afetação habitacional, de um prédio não constituído em propriedade horizontal, em que se integrem partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em outra das classificações do n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, por exemplo, divisões destinadas a comércio indústria ou serviços.

Ora, a resposta há-de ser negativa, não obstante a previsão da alínea b) do n.º 2, do artigo 7.º, do CIMI, segundo a qual o valor do prédio é a soma dos valores das suas partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em mais do que uma das classificações do n.º 1, do artigo 6.º, do mesmo Código.

 

É que aqui, repare-se, não se estão a cotejar duas realidades juridicamente distintas, como são as partes ou divisões de utilização independente de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal com as frações autónomas de prédios submetidos àquele regime, que, para efeitos de IMI, são elas próprias prédios.

Aqui, o que está em confronto são realidades em tudo idênticas, ou seja, partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional, integradas em prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal.

E a resposta à questão há-de ser negativa, pois nada justificaria que o legislador pretendesse tributar partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado por outras partes ou divisões de utilização independente destinadas a outros fins e não tributasse partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado exclusivamente por partes ou divisões de utilização independente, destinadas a habitação. Caso o legislador pretendesse tratar de forma desigual realidades em tudo idênticas, teria de se concluir por uma flagrante violação do princípio da igualdade.

Não se afigurando ser essa a intenção legislativa, não se poderá aceitar que a AT formule uma norma de incidência ex novo, diversa da que foi criada pelo legislador, pretendendo tributar o “VPT global”, correspondente ao somatório das partes que compõem os prédios em “propriedade total”, ainda que económica e funcionalmente independentes e, como tal, separadamente inscritas na matriz, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário (cfr. o n.º 3 do artigo 12.º, do CIMI), pois a lei é clara ao sujeitar a imposto de selo da verba 28, da TGIS, os prédios urbanos de afetação habitacional, cujo VPT, para efeitos de IMI, seja superior a € 1 000 000,00.

Diferente seria o caso de uma parte ou divisão de utilização independente e afetação habitacional, inserida em prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, mas com um VPT, para efeitos de IMI, igual ou superior a € 1 000 000,00, atendendo à ratio legis da norma de incidência.

Efetivamente, tal como refere a Requerente na P. I., citando a decisão arbitral proferida no processo n.º 50/2013-T, “A ratio legis subjacente à regra da verba 28 da TGIS, introduzida pela Lei nº 55-A/2012 de 29 de outubro, em obediência ao disposto no artigo 9º do Código Civil, segundo o qual a interpretação da norma jurídica não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos e dos restantes elementos de interpretação o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

O legislador ao introduzir esta inovação legislativa considerou como elemento determinante da capacidade contributiva os prédios urbanos, com afetação habitacional, de elevado valor, mais rigorosamente, de valor igual ou superior a € 1 000 000,00, sobre os quais passou a incidir uma taxa especial de imposto de selo, pretendendo introduzir um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de luxo com afetação habitacional. O critério foi de aplicação da nova taxa aos prédios urbanos com afetação habitacional, cujo VPT seja igual ou superior a € 1000 000,00.

Tal lógica parece fazer sentido quando aplicada a “habitação”, seja ela “casa”, “fração autónoma” ou “parte de prédio com utilização independente” “unidade autónoma”, porque se supõe uma capacidade contributiva acima da média e, nessa medida, se justifica a necessidade de realização de um esforço contributivo adicional, pouco sentido faria passar a desconsiderar os apuramentos "unidade a unidade" quando só através do somatório dos VPTs das mesmas, porque detidas pelo mesmo indivíduo, é que se superaria o milhão de euros.

Tal conclui-se da análise da discussão da proposta de Lei n.º 96/XII na Assembleia da República, disponível para consulta no Diário da Assembleia da República, I série, nº 9/XII/2, de 11 de outubro de 2012.”.

Temos pois que, para além do elemento gramatical da interpretação da norma de incidência contida na verba 28, da TGIS, também o seu elemento racional ou teleológico, a ratio legis ou fim visado pelo legislador ao elaborar aquela norma, aponta no sentido de a tributação incidir sobre prédios urbanos de afetação habitacional com VPT, para efeitos de IMI, superior a € 1 000 000,00 e não sobre partes de prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, ainda que aquelas partes sejam suscetíveis de utilização independente e se destinem a habitação.

Em face dos motivos expostos, fica prejudicado o conhecimento das questões relativas à alegada inconstitucionalidade das interpretações dadas pela Requerente e pela Requerida à norma da verba 28.1, da TGIS, por violação, entre outros, dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal, uma vez que esta norma não comporta a interpretação que dela fez, no caso, a AT, ao emitir as liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral.

Fica igualmente prejudicado o conhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, por não haver no processo qualquer indicação de ter sido efetuado o pagamento das liquidações de Imposto de Selo – Verba 28, da TGIS, objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

IV – DECISÃO

Com base nos fundamentos expostos e, nos termos do artigo 2º do RJAT, decide-se:

− Declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto de Selo impugnadas, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;

− Não condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios, por não ter sido efetuado o pagamento das liquidações de Imposto de Selo – Verba 28, da TGIS, objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 12 341,90 (doze mil, trezentos e quarenta e um euros e noventa cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918.00, a cargo da AT.

Lisboa, 16 de dezembro de 2014.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1991. 

 



[1] Cfr. CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pág.332.

[2] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado” – 5.ª Edição, Volume I, Lisboa, Áreas Editores, 2006, págs. 881 e ss.

[3] Cfr. o Autor e Obra citados na nota anterior, idem.

[4] Neste sentido, cfr. MACHADO, J. Baptista, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 182 a 185.

[5] Cfr. o Autor citado, ob. e loc. cit.