Sumário
A anulação administrativa dos atos tributários de IVA e de IRC impugnados na ação arbitral implica a destruição dos respetivos efeitos jurídicos constitutivos com eficácia retroativa, retirando à lide arbitral o seu objeto. Ocorre, assim, uma situação de impossibilidade superveniente da lide, por não poder anular-se juridicamente o que não existe, com a consequente extinção da instância arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Hélder Faustino e Magda Feliciano, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 2 de maio de 2025, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., Lda., doravante “Requerente”, com o número de pessoa coletiva ... e sede na Rua ..., n. ..., ...-... ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugados com os artigos 102.º e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade, e consequente anulação, das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), referentes ao ano 2020, bem como dos correspondentes juros compensatórios e de mora, perfazendo o valor total de € 96.036,63.
Neste âmbito, junta aos autos as seguintes demonstrações de acerto de contas:
a) N.º 2024..., no valor a pagar de € 17.226,63, com data-limite de 3 de dezembro de 2024, referente às liquidações de IVA n.ºs 2024 ... e 2024 ...;
b) N.º 2024 ..., no valor a pagar de € 2.471,19, com data-limite de 3 de dezembro de 2024, referente à liquidação de juros compensatórios (de IVA) n.º 2024...;
c) N.º 2024..., no valor a pagar de € 258,39, com data-limite de 3 de dezembro de 2024, referente à liquidação de IVA n.º 2024...;
d) N.º 2024..., no valor a pagar de € 54,73, com data-limite de 3 de dezembro de 2024, referente à liquidação de juros de mora n.º 2024...;
e) N.º 2024..., no valor a pagar de € 76.025,69, com data-limite de 10 de dezembro de 2024, referente à liquidação de IRC n.º 2024... e às liquidações de juros compensatórios n.ºs 2024... e 2024... .
Como causa de pedir, a Requerente contesta a aplicação da presunção prevista no artigo 86.º do Código do IVA por diminuição de inventários de existências e a (consequente) consideração, pela AT, de que as mercadorias foram vendidas, uma vez que a discrepância tem origem em quebras, atento o facto de a atividade da Requerente ter por objeto bens alimentares perecíveis (frutas e legumes), e de a mesma doar bens que comercializa e que não estão em condições para venda, em dias certos da semana, à instituição “...”, com sede na Igreja Paroquial da ..., ... .
Assinala ainda que as quebras verificadas e margem média bruta estão em linha com o setor de atividade e que a AT não provou que os inventários não são credíveis, condição essencial para aplicação da presunção de vendas (v. acórdão de 24 de abril de 2024, do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.º 776/08.7BELRS).
Em 24 de fevereiro de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado em 21 de fevereiro foi aceite e, de seguida, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 2 de maio de 2025.
Em 4 de maio de 2025, o Tribunal Arbitral proferiu despacho de notificação da Requerida para apresentação de resposta no prazo de 30 dias.
Por requerimento de 9 de junho de 2025, a Requerida veio aos autos:
a) Comunicar a revogação total dos atos tributários controvertidos nos presentes autos, por:
i. Despacho do Subdiretor Geral (IRC), de 6 de maio de 2025; e
ii. Despacho do Subdiretor Geral (IVA), de 6 de junho de 2025; e
b) Requerer que seja julgada verificada a inutilidade superveniente da lide, por motivo imputável à Requerida, com as legais consequências.
Notificada a Requerente para se pronunciar, esta não se manifestou, tendo, de seguida, o Tribunal determinado a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e de apresentação de alegações, dada a revogação dos atos tributários e a não oposição da Requerente à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide requerida pela AT.
II. Fundamentação
1. Anulação Administrativa do Ato Tributário Impugnado - Impossibilidade Superveniente da Lide
Os atos tributários sindicados, que constituem o objeto desta ação, foram anulados administrativamente.
Nestas circunstâncias, o pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA, de IRC e de juros, relativas ao ano de 2020, ficou sem objeto, pois, com a anulação administrativa, os efeitos jurídicos de tais atos foram destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o preceituado no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, de 4 de novembro de 2013, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”.
Importa ter em conta que o conceito de “revogação” até à entrada em vigor do novo CPA, em 8 de abril de 2015, na sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, abrangia quer a revogação anulatória com fundamento em ilegalidade, quer a revogação por razões de oportunidade e mérito.
Com o novo CPA, o conceito de revogação administrativa ficou restrito a esta segunda modalidade. Conforme prevê o atual artigo 165.º do CPA, sob a epígrafe “Revogação e anulação administrativas”, a revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade (n.º 1), e a anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade (n.º 2). É neste último segmento que se inserem os atos (dos Subdiretores Gerais do IRC e do IVA) que eliminaram as liquidações adicionais de IVA, de IRC e dos juros compensatórios e de mora inerentes, referentes ao ano 2020, em discussão nos autos.
Deste modo, a revogação a que se reporta o artigo 79.º da LGT corresponde ao que hoje, à luz do CPA, se denomina de “anulação administrativa”, cujo regime consta dos artigos 163.º “Atos anuláveis e regime da anulabilidade” (anteriores artigos 135.º e 136.º); 166.º “Atos insuscetíveis de revogação ou anulação administrativas” (anterior artigo 139.º) e 168.º “Condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa” (cujo n.º 2 corresponde ao anterior artigo 141.º), todos do CPA.
À face do exposto, conclui-se que a anulação administrativa dos atos tributários controvertidos comunicada pela Requerida ao processo, em 9 de junho de 2025, dá satisfação à pretensão anulatória deduzida nesta ação, no valor de € 96.036,63, retirando à lide arbitral o seu objeto.
Termos em que se julga extinta a instância processual, com a absolvição da AT da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
2. Responsabilidade para Efeitos de Custas
De acordo com o regime geral em matéria de custas, a impossibilidade ou inutilidade da lide é imputável à Requerida, que anulou os atos tributários ilegais após a apresentação do pedido de pronúncia arbitral pela Requerente, tendo a respetiva comunicação aos autos ocorrido após o decurso do prazo de 30 dias previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, solução que se extrai do cotejo dos artigos 4.º, n.º 5 do RCPAT, 12.º, n.º 2 do RJAT, e 527.º e 536.º, n.º 3 do CPC, neste último caso por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Assim, vai a Requerida condenada nas custas do processo.
III. Decisão
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
(a) Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide;
(b) Condenar a Requerida nas custas do processo, por ter dado azo à ação.
IV. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 96.036,63, correspondente ao valor das liquidações de IVA, IRC e juros compensatórios objeto da ação arbitral e não impugnado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
Assinala-se, como referido na decisão arbitral n.º 178/2019-T, de 20 de abril de 2020, que a determinação do valor da causa atende ao momento em que a ação é proposta (v. artigo 299.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), sendo irrelevantes, como afirma Jorge Lopes de Sousa, “as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos” – v. Guia da Arbitragem Tributária, Coord.: Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, p. 153.
V. Custas
Custas no montante de € 2.754,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, 527.º, n.ºs 1 e 2 e 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a cargo da Requerida, uma vez que a inutilidade da lide lhe é imputável, tendo dado causa à ação.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de julho de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins, relatora
Hélder Faustino
Magda Feliciano