Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 110/2025-T
Data da decisão: 2025-07-07  IRS  
Valor do pedido: € 269.840,63
Tema: IRS - artigo 5.º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30-11-1988 (regime transitório da categoria G).
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Sumário:

I- Não dispondo o direito tributário de norma própria sobre esta matéria, ao abrigo do disposto no art. 11º da Lei Geral Tributária, teremos que nos socorrer das normas de Direito Sucessório constantes no Código Civil – art. 2119º e art. 2031º;

II - A Impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter ocorrido em momento posterior (…).

III Sendo o falecimento do autor da herança anterior a 1 de janeiro de 1989, há que aplicar do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30-11-1988 (regime transitório da categoria G).

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIF ..., residente na Rua ..., nº ..., Serpa, veio, nos termos legais requerer a constituição de tribunal arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I-               RELATÓRIO

 

a)    O Pedido

 

A Requerente peticiona:

-a anulação da liquidação de IRS nº2023..., relativa ao ano de 2022, no montante global de 269.860,43 euros.

- a anulação decisão de indeferimento tácito do Pedido de Revisão Oficiosa nº ...2024... .

- a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

b)    O litígio

 

Está em causa a aplicação do disposto no artº 5 (regime transitório da categoria G) do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30-11-1988, que aprovou o CIRS, o qual considera não sujeitos a imposto os ganhos (mais-valias) que não eram sujeitos a Imposto de Mais Valias, relativamente à primeira alienação onerosa de bens adquiridos antes da entrada em vigor do novo diploma.[1]

A Requerente conclui pela verificação dessa situação de não sujeição.

A Requerida sustenta, no essencial, que a análise da aplicação ao caso da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro, fica prejudicada, por não ser possível afastar a tributação dos ganhos decorrentes da afetação / transferência dos imóveis (ou de algum deles) entre a esfera pessoal e empresarial, que tornaria os ganhos sujeitos a tributação no âmbito da categoria B e, eventualmente, categoria G.

c)     Tramitação processual

 O pedido foi aceite em 30/01/2025.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição. 

O tribunal arbitral ficou constituído em 07/04/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Por despacho de 26 de junho de 2025 foram prescindidas a realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs. 

 

d) Saneamento 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito

 

II – PROVA

II.1 - Factos provados

 

 

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

a) Em 30.06.2023, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos, para efeitos de IRS, relativa ao ano de 2022, tendo preenchido, entre outros, o Anexo G (mais-valias) no qual declarou as seguintes alienações onerosas de imóveis: 

- (campo 4001) Real. 2022-12 1.720.941,70 / Aquis. 1991-01 247.902,55 – Imóvel ...-R-... 

- (campo 4002) Real. 2022-12 25.000,00 / Aquis. 1991-01 106.155,75 – Imóvel ...-U-... 

- (campo 4003) Real. 2022-12 25.000,00 / Aquis. 2011-01 15.350,00 – Imóvel ...-U-...- (campo 4004) Real. 2022-12 25.000,00 / Aquis. 2011-01 1.102,00 – Imóvel ...-U-....

 

b) Tal declaração originou a liquidação ora impugnada.

c) Os referidos imóveis integravam a herança aberta por morte da mãe da Requerente, ocorrida em 26 de agosto de 1988.

d) Em 14 de Novembro de 1991, os três filhos da falecida (a Requerente e seus dois irmãos) outorgaram a partilha notarial desta herança indivisa, na qual ficou consignado que os imóveis acima referidos eram adjudicados à ora Requerente.

e) Em 14 de Dezembro de 2022, a Requerente vendeu os referidos imóveis pelo valor total de 2.150.000,00 euros, correspondendo ao prédio rústico o preço de 1.772.000,00 euros, e a cada um dos três prédios urbanos o preço de 126.000,00 euros.

f) O imposto decorrente da liquidação ora impugnada  foi integralmente pago.

g) Em 15.11.2023, a Requerente apresentou uma declaração de substituição, que se encontra no estado “Não Liquidável”, na qual acrescentou o Anexo G1, tendo preenchido o quadro 5 (alienação de imóveis excluídos ou isentos de tributação) com referência aos imóveis identificados em a). 

h) Esta declaração de substituição foi convolada em procedimento de reclamação graciosa.

i) A qual foi indeferida com base na seguinte fundamentação:

“A Reclamante está registada para o exercício da atividade de “Agricultura e produção animal combinadas (…) O total de realização declarado foi de 1.795.941,70€, no entanto os prédios foram vendidos por 2.150.000,00€.” Uma vez que 1/3 dos imóveis foi adquirido pela Reclamante por óbito de sua mãe ocorrido em 1988-08-26, “em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS poderia ser declarado no anexo G1 (alienação de imóveis excluídos de tributação), desde que a mais-valia não tenha que ser tributada no âmbito da categoria B”, sem prejuízo do n.º 4 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88. Os outros 2/3 “foram adquiridos através da escritura de partilhas celebrada em 1991.11.14, sendo atribuído o valor patrimonial aos referidos imóveis (…) pelo que, sendo tributados no âmbito da categoria G, os valores de aquisição a considerar seriam sempre os valores patrimoniais àquela data, proporcionais à quota-parte adquirida…” Foram juntas três faturas, verificando-se contudo que “duas últimas faturas contêm classificação contabilística e que o respetivo IVA terá sido deduzido no campo 20 da respetiva declaração periódica (imobilizado) no período 2011 09T. Os elementos contabilísticos apresentados pela Reclamante também indiciam que os imoveis alienados em 2022 faziam parte do ativo fixo tangível da atividade exercida, embora não evidencie no anexo C da declaração Modelo 3 de IRS. (…)

 Conclusão Tratando-se da venda de imóveis que eventualmente poderão estar afetos à atividade agrícola exercida, a mais-valia teria de ser tributada no âmbito da categoria B. No caso de não estarem afetos à referida atividade o valor de aquisição a considerar teria de ser o valor patrimonial à data da aquisição e como despesas e encargos, de acordo com os documentos apresentados, apenas poderia considerar-se o valor relativo à mediação imobiliária desde que esta não esteja contabilizada na atividade da categoria B”. Esta decisão não originou qualquer liquidação, 

j) Em 21.12.2023, a Reclamante entregou uma nova declaração de substituição, alterando alguns dos valores antes declarados, a qual se encontra igualmente no estado “não liquidável”).

l) Em 22.07.2024, a Requerente apresentou pedido de revisão da liquidação que ora impugna, invocando que a tributação dos ganhos gerado com a venda dos imóveis herdados antes de 01.01.1989, por óbito de sua mãe a 26.08.1988, não é legalmente devida, defendendo que a escritura de partilhas efetuada em 1991 não tem efeito constitutivo.

m) Tal pedido de revisão não foi objeto de decisão, decorrido que foi o prazo legal.

 

Os factos dados como provados constam do PA.[2]

 

 

III -O Direito

 

1-    O tema a decidir

 

Afirma a AT na sua resposta:

Note-se que o tema central aqui é a prova da afetação / transferência dos imóveis (ou de algum deles) entre a esfera pessoal e empresarial, como se disse por diversas vezes. Facto que antecede, e de que depende, a questão da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei 442- A/88. Facto que a Requerente sabia que tinha de esclarecer, atento o teor da decisão proferida em sede de Reclamação Graciosa.

e

Em qualquer dos casos, fica a cargo do contribuinte provar que os bens alienados foram por si adquiridos em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, “através de qualquer meio de prova legalmente aceite. E também a prova de que tais imóveis não constituam elementos do ativo imobilizado das empresas ou de bens ou valores por elas mantidos como reserva ou para fruição. 

 

Existe aqui alguma “confusão” que cumpre esclarecer.

Primeiro, o pedido formulado neste processo é o de anulação de uma liquidação de IRS. A causa de pedir é o facto de na base de incidência do imposto que lhe deu origem terem sido consideradas mais-valias imobiliárias que, no entender da Requerente, não estariam sujeitas a imposto.

 Segundo, o pedido de revisão oficiosa (cujo cabimento – aptidão procedimental para lograr o fim pretendido, a anulação da liquidação em causa – não foi questionado pela Requerida) é um procedimento distinto do procedimento de reclamação graciosa que, no caso, também teve lugar. E é este pedido de revisão oficiosa a via que permitiu à Requerente o posterior recurso a esta jurisdição arbitral (e não a anterior reclamação graciosa, que não foi invovada para tal fim).

O mesmo é dizer que a fundamentação que - certo ou errado não importa aqui analisar – conduziu ao indeferimento da reclamação graciosa não pode assumir qualquer relevo no presente processo, diferentemente do que pretende a Requerida.

Mais, num contencioso de anulação, como é essencialmente o processo de impugnação tributária, não pode o tribunal definir, por sua iniciativa, qual o enquadramento jurídico de determinada situação factual. Cabe-lhe, sim, sendo o caso, apreciar da correção da qualificação subjacente à liquidação impugnada, à luz dos vícios apontados pela Requerente.

 

Em resumo, está manifestamente fora do âmbito deste processo saber se os rendimentos em causa deveriam ter sido qualificados como rendimentos empresariais, inseríveis na categoria B (e não mais-valias imobiliárias) por força do chamado “princípio da atração” desta categoria.

O que releva é que a liquidação impugnada estes rendimentos foram havidos como mais-valias imobiliárias. É apenas neste quadro que cumpre apreciar da sua sujeição a imposto[3].

 

2-    O momento da aquisição de bens por herança

 

Dispõe o art. 2119º do Código Civil, sob a epígrafe "Retroatividade da Partilha": Feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos.

 

O sentido da norma afigura-se inquestionável. Dela resulta que a partilha hereditária tem natureza meramente declarativa, limitando-se a determinar quais os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança, até então indivisa, não constituindo um facto aquisitivo. A partilha tem somente uma natureza modificativa, pois que o herdeiro, por efeito dela, passa a ter um direito, em titularidade singular, sobre bens determinados, em lugar de um direito em concurso com os demais co-herdeiros sobre uma universalidade (a herança).

Esta é a opinião -  ao que cremos unânime - da doutrina e jurisprudência civilísticas, à qual, naturalmente, este tribunal adere.

 

3-    A relevância fiscal deste entendimento

 

Temos agora que procurar saber se o entendimento civilístico é transponível para o direito fiscal.

Citamos, por todos, o sumário ao ac. do STA de 07-03-2018, proc. 0917/17

I- Não dispondo o direito tributário de norma própria sobre esta matéria, ao abrigo do disposto no art. 11º da Lei Geral Tributária, teremos que nos socorrer das normas de Direito Sucessório constantes no Código Civil – art. 2119º e art. 2031º;

II - A Impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter ocorrido em momento posterior (…)

 

Restará dizer que este entendimento é jurisprudência pacífica do STA, como comprova a existência de numerosos acórdãos, alguns mais recentes, no mesmo sentido, dos quais, aliás, a Requerente apresenta cuidadosa resenha.

É inequívoco, assim, que a jurisprudência é uniforme no sentido defendido pela Requerente, sendo aplicável o regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88  aos ganhos obtidos com a alienação onerosa de bens objeto de partilha de herança, desde que o momento da morte do autor da herança tenha ocorrido antes da entrada em vigor do CIRS[4].

O que, diga-se por último, a Requerida nem sequer questiona na sua resposta, a qual, como vimos, se centra noutro argumento, já refutado por este tribunal, o de que não foram juntos elementos que permitam aferir as datas e valores de aquisição e/ou realização, bem como a eventual afetação à atividade exercida pela Requerente e a transferência para o património particular, de forma a determinar os momentos, datas e valores que devem servir de base à liquidação de IRS do ano da alienação.

 

IV - JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Considerando que:

- ficou o provado que a Requerente pagou o imposto resultante da liquidação impugnada.

- existe erro imputável aos serviços pelo menos desde 15.11.2023, data em que a Requerente apresentou uma declaração de substituição da qual fez constar a não sujeição a IRS das mais valias obtidas com a alineação dos prédios em causa (pelas razões que este tribunal arbitral agora validou)

Estão verificados os pressupostos do direito ao recebimento de juros indemnizatórios, tal qual prevê o art. 43º, n.º1, da LGT.

Porém, tendo a Requerente utilizado como via de acesso ao processo de impugnação o pedido de revisão oficiosa, há que observar o disposto na al. c) do º 3 de tal normativo: quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

Sendo que tal pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 22.07.2024 só um ano após se iniciará a contagem de tais juros.

 

V- DECISÃO

 

Termos em que: 

a)     se julga procedente o pedido de anulação da liquidação impugnada.

b)    se reconhece o direito da Requerente a receber juros indemnizatórios, a calcular em execução de sentença, atento o atrás referido quanto ao início da sua contagem.

 

Valor: € 269.840,63.

Custas, no montante de € 4.896,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

7 de julho de 2025.

 

Os árbitros

 

Rui Duarte Morais (relator)


 

Susana Constantino de Carvalho Furtado

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

(com declaração de voto)

 

 

Declaração de voto. Voto a presente Decisão Arbitral não obstante, em circunstâncias normais, a sequência de sucessivos meios procedimentais impugnatórios deduzidos pela requerente (reclamação graciosa e revisão oficiosa) levar-me-ia a concluir pela verificação da exceção dilatória (de conhecimento oficioso) do caso decidido administrativo, que inviabilizaria a revisitação, no procedimento de revisão oficiosa, de questão já definitivamente decidida, na ordem jurídico-administrativa, no precedente procedimento de reclamação graciosa. No caso em espécie, porém, essa repetição de objetos procedimentais não ocorre, na medida em que as pretensões deduzidas naqueles dois meios procedimentais são distintas. Na reclamação graciosa (resultante da convolação oficiosa da declaração de substituição apresentada pela requerente) pretendia-se eximir de tributação, ao abrigo do regime transitório da categoria G, apenas os rendimentos de mais-valias resultantes da alienação da parte dos imóveis correspondente ao quinhão hereditário da requerente. Já no subsequente pedido de instauração oficiosa de procedimento de revisão a pretensão deduzida foi de exclusão de tributação da totalidade da mais-valia realizada na operação de alienação do conjunto dos imóveis. Inexiste, assim, identidade de pedido e de causa de pedir em ambos os meios procedimentais, circunstância que, na minha opinião, permite concluir pela não verificação da exceção dilatória de caso decidido administrativo.

 

CAAD, 07/07/2025

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

 

 

 

 

 



[1] Artigo 5.º - Regime transitório da categoria G – aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30-11-1988:

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código. 

 

[2] A AT, na sua resposta, afirma não aceitar como provados a data do óbito e a escritura de partilhas.

Porém, entre outros locais, tais factos foram expressamente aceites pela AT na decisão da reclamação graciosa. Transcrevemos: Assim, com base no Processo n°.1239O de liquidação do Imposto Sobre as Sucessões e Doações instaurado por óbito de Alda dos Reis Valle Feria (mãe), ocorrido em 26/08/1988 e da Escritura Pública de Partilha, Livro 45-B folha 127 de 14/11/1991, é meu entender proceder à alteração dos valores para os indicados no anexo G e G1 em anexo.

[3] Embora irrelevante para o presente processo, sempre se dirá ser algo estranho que a AT tenha entendido que os rendimentos em causa tinham natureza empresarial e tenha esgrimido tal argumento para indeferir a reclamação graciosa, mas, depois, se tenha abstido de proceder à liquidação adicional cuja necessidade resultaria de tal entendimento.

[4] A divergência jurisprudencial que acontecia antes do acórdão uniformizador de 24-02-2021, proc. n.º 05/09.6, referia-se a casos em. na partilha a um herdeiro foram atribuídos imóveis em valor que excedia o seu quinhão hereditário (havendo, então, lugar ao pagamento de tornas). O que não é o aso dos presentes autos.