Despacho:
Da junção de documentos pela Requerente por requerimento apresentado em 05.05.2025:
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No dia 4 de maio de 2025, foi proferido despacho nos seguintes termos:
«Dispensa-se, por falta de objeto, a reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT.
Não havendo lugar à produção de mais prova, tendo a Requerente respondido às exceções e tendo as partes deixado bem expressas, nos articulados, as suas posições sobre as questões de direito, dispensa-se a produção de alegações.
Notifica-se a Requerente para, até 31 de maio, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente. Após esta data será proferida decisão.»
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No entanto, no dia 5 de maio de 2025, foi apresentado requerimento pela Requerente, através do qual se juntavam documentos relativos a encargos alegadamente havidos com os rendimentos cuja consideração para efeitos de Derrama Municipal são objeto de apreciação nestes autos.
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Notificada por este tribunal arbitral, a Requerida nada disse quanto à junção destes documentos.
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Importa, pois, apreciar a admissibilidade da junção dos referidos documentos em momento posterior ao despacho que determinou a dispensa de alegações.
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A título subsidiário, e nos termos do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, são aplicáveis ao processo arbitral tributário as disposições do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações.
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O artigo 423.º, n.º 2, do CPC dispõe que, fora dos casos especialmente previstos na lei, os documentos só podem ser apresentados até à data da audiência final. Com as devidas adaptações ao processo arbitral, tal audiência, leia-se reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT e bem assim a formulação de alegações foram dispensadas, pelo que deverá entender-se que o termo da fase de instrução ocorreu com a prolação do despacho de 04.05.2025.
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Todavia, não pode considerar-se que, na data da entrega dos documentos (05.05.2025), a Requerente estivesse notificada do despacho proferido na véspera, à luz do disposto no artigo 248.º do CPC, sendo que as notificações eletrónicas apenas se consideram efetuadas no terceiro dia útil posterior à disponibilização na plataforma, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, se o terceiro dia não for útil.
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Consequentemente, à data da junção dos documentos (05.05.2025), ainda não havia decorrido o prazo legal para que a Requerente pudesse ser considerada notificada do despacho de 04.05.2025.
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Acresce que, à luz do princípio da livre condução do processo (arts. 16.º, al. c) e n.º 1 do artigo 19º, ambos do RJAT), do princípio do inquisitório, e da busca da verdade material, sempre seria de admitir a junção dos documentos, atendendo à sua pertinência para o esclarecimento do contexto factual que dá base à questão jurídica em apreciação, à inexistência de oposição da Requerida, à oportunidade de contraditório conferida e à ausência de prejuízo processual nessa mesma junção.
Ante o exposto, admite-se a junção dos documentos apresentados pela Requerente em 05.05.2025.
Notifique-se.
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Segue decisão.
SUMÁRIO:
A totalidade do lucro tributável é, para efeito de Derrama Municipal, imputável ao município onde se situa a sede ou direção efetiva do sujeito passivo, não existindo razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira de tal sujeição, sempre que não se demonstre a existência de estabelecimentos estáveis ou estruturas de escopo económico equivalentes (fora do território nacional) a que se deva considerar-se imputada a geração de tais rendimentos.
DECISÃO ARBITRAL
Requerente: A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n. ..., ..., ..., ...-... ...
Entidade Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por “AT” ou Requerida”
Os Árbitros Rui Duarte Morais, Luís Ricardo Farinha Sequeira e Sónia Fernandes Martins, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral coletivo constituído a 24 de dezembro de 2024, decidiram o seguinte:
I. Relatório
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.os..., ..., ..., ...-... Miraflores (“Requerente”), apresentou perante o CAAD, dirigido ao seu Ex.mo Presidente, pedido de pronúncia arbitral a 15 de outubro de 2024, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).
2. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente solicitou ao Tribunal Arbitral a declaração de ilegalidade (e concomitante anulação parcial) das autoliquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”),na componente de parte da Derrama Municipal suportada, plasmadas nas declarações periódicas Modelos 22 de IRC n.os..., de 10 de junho de 2020, no montante de 81.621,32 EUR, e..., de 17 de junho de 2021, no montante de 85.800,99 EUR, referentes aos exercícios de 2019 e 2020, constituindo tais atos tributários o objeto mediato da ação arbitral; peticionou, de igual modo, a restituição da Derrama Municipal indevidamente suportada (167.422,31 EUR) e o pagamento de juros indemnizatórios.
3. A propositura da ação arbitral teve lugar após a apresentação, perante o Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, de pedido de revisão oficiosa daqueles atos tributários a 7 de junho de 2024, a qual foi indeferida por decisão de 25 de julho de 2024 do Chefe da Divisão de Justiça Tributária daquela Unidade, constituindo esta decisão o objeto imediato da ação arbitral, tendo sobre tal decisão peticionado a sua anulação.
4. No âmbito do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pugnou, prima facie, pela preterição do artigo 18.º, n.º 1, do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“RFALEI”), porquanto da base de incidência da Derrama Municipal por si suportada nos referidos exercícios não foram expurgados os rendimentos que obteve no estrangeiro:
«Atenta a delimitação do âmbito de incidência objetiva da derrama municipal ínsito no artigo 18.º, n.º 1, da LFL, […] os rendimentos de fonte estrangeira […] auferidos – e que, por isso, também concorrem para a formação do lucro tributável do exercício – não devem ser sujeitos a derrama municipal.
No entanto, por limitação do formulário-modelo, a Requerente não conseguiu preencher a respetiva declaração Modelo 22 em conformidade, não tendo logrado nela refletir o lucro tributável consoante a proveniência (nacional ou estrangeira) dos rendimentos obtidos e, assim, excluir os rendimentos de fonte estrangeira da base de incidência da derrama municipal […].
[N]o exercício de 2019 e 2020, a Requerente auferiu rendimentos de fonte estrangeira, designadamente rendimentos de capital (dividendos ou lucros) e incrementos patrimoniais (mais-valias mobiliárias).
[T]ais rendimentos, tendo sido obtidos no estrangeiro, sem qualquer utilização dos recursos existentes em Portugal, não estão, de modo algum, conexos com atividade comercial prosseguida pela Requerente em território nacional, pelo que não se poderão considerar como decorrentes do exercício da atividade económica na área geográfica dos municípios portugueses onde a Requerente se encontra presente.
Deste modo, os rendimentos de fonte estrangeira foram indevidamente considerados na base de incidência da derrama municipal, tendo, por conseguinte, a Requerente suportado derrama em excesso» [sublinhados nossos].
5. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”).
6. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD a 17 de outubro de 2024, tendo sido notificado à Requerida a 23 de outubro de 2024.
7. Os Árbitros Signatários foram designados pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo aceitado a designação a 22 de novembro de 2024.
8. No dia 6 de dezembro de 2024, as partes foram notificadas das referidas designações, não tendo manifestado vontade de as recusar.
9. O Tribunal Arbitral foi constituído a 24 de dezembro de 2024.
10. No dia 3 de fevereiro de 2025, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
11. Na sua resposta, a Requerida invocou matéria de exceção – (i) a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria; (ii) a inidoneidade do meio processual; (iii) a inimpugnabilidade dos atos tributários e (iv) a caducidade do direito de ação – e sustentou carecer de razão a posição perfilhada pela Requerente. Para este efeito, referiu, em síntese, o seguinte:
«[A] Requerente não cumpriu o ónus da prova que lhe compete, não juntando quaisquer documentos probatórios do lucro tributável apurado naquelas operações realizadas com origem no estrangeiro […].[P]ara comprovar o lucro tributável apurado em resultado dos rendimentos obtidos com origem no estrangeiro, deveria ter apresentado documentos externos, os quais, não obstante poderem ser em número avultado, deveriam ser verificados, aleatoriamente, mediante amostragem, a definir pela AT, uma vez que só esses poderiam comprovar a bondade dos registos.
Entendemos, salvo o devido respeito por diversa opinião, que a derrama municipal recai, também, sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e os gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro.
[O] entendimento defendido pela Requerente acarreta graves dissonâncias […]. [C]onsiderando que o legislador integra no cálculo da "fração do IRC", nos termos do artigo 91.º, n.º 1, al. b), do CIRC, para efeitos de dedução à coleta, a derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro […], é porque os mesmos estão sujeitos a ela e, por outro, em caso de perdas resultantes de operações económicas realizadas no estrangeiro, teriam as mesmas de ser acrescidas ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, para efeitos de determinação da derrama municipal […].
[A]nalisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação[…].
Acresce, num segundo plano, que, no que diz respeito à derrama municipal, a AT tem entendido que aquela se classifica como um imposto dependente […].
[N]ão obstante constituir uma receita dos municípios (art.º 14.º), a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das s que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (o que é o caso) e ainda sobre o lucro tributável das s não residentes com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da derrama possui a mesma origem que o IRC, apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal […].
[O] apuramento do lucro tributável remete-nos para o estipulado no n.º 1 do art.º 17.º do CIRC.
Acresce dizer que, relativamente às pessoas coletivas e outras s com sede ou direção efetiva em território português, como é o caso da Requerente, a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e dos obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos, tal como previsto no art.º 4.º, n.º 1, daquele diploma legal.
Nenhuma exceção é feita quanto a rendimentos provenientes do estrangeiro, pelo contrário, aquela norma[artigo 17.º, n.º 1, do CIRC] inclui-os expressamente […]» [sublinhados nossos].
12. Por despacho de 24 de março de 2025, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção invocada pela Requerida na sua resposta.
13. No dia 28 de março de 2025, a Requerente agiu em conformidade, tendo refutado a aludida matéria de exceção.
14. Em 05 de maio de 2025, veio a Requerente a proceder à junção de requerimento através do qual pretende evidenciar que os rendimentos oriundos do estrangeiro foram gerados sem utilização de meios humanos ou técnicos em Portugal, por via de subcontratação de sociedade de direito espanhol para efeitos de gestão da sua carteira de investimentos, bem como quais os custos por ela suportados com tal subcontratação.
15. A Requerida, notificada de tal requerimento, nada disse.
16. Apesar do tardio de tal apresentação, o Tribunal Arbitral, atento o princípio da verdade material, admitiu a junção aos autos de tal requerimento e documentos anexos, uma vez que considera que os factos a que se referem podem ser relevantes para a boa decisão da causa, dados os diferentes enquadramentos jurídicos possíveis.
II. Saneamento
17. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 5.º, n.os 1, parte final, e 3, alínea a), 6.º, n.os 2, alínea a), 3 e 4, e 11.º do RJAT.
18. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
19. Não se verificam nulidades.
20. Foi, porém, invocada matéria de exceção pela Requerida, na qual esta pugna pela exclusão do âmbito da competência material dos tribunais arbitrais quanto à apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aí não se incluindo o procedimento de Revisão Oficiosa previsto no 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e bem assim sustenta a inimpugnabilidade do ato por intempestividade do pedido de revisão oficiosa, cujo conhecimento tem caráter prioritário, pelo que se procederá à fixação da matéria de facto relevante, com vista à subsequente apreciação destas questões prévias.
III. Matéria de Facto
21. Relativamente à matéria de facto, não impende sobre o Tribunal Arbitral o ónus de pronúncia sobre todos os factos alegados pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os que importam à boa decisão da causa e de discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
22. Deste modo, os factos pertinentes ao julgamento da causa foram selecionados e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida em função das várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito carentes de resposta (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A. Factos provados e respetiva motivação
23. O Tribunal Arbitral considera assente a seguinte factualidade:
a. A Requerente é uma sociedade anónima, sujeito passivo de IRC, residente em território nacional, cujo objeto social consiste «[n]a realização de seguros diretos e de resseguros dos ramos não vida […] e d[e] atividades complementares e acessórias relacionadas com aquelas, enquanto autorizadas pela legislação de seguros» [cfr. artigo 4.º dos Estatutos da Requerente, disponíveis em https://publicacoes.mj.pt];
b. No dia 10 de junho de 2020, a Requerente apresentou a Modelo 22 de IRC n.º ..., referente ao exercício de 2019, a qual reflete, a título de lucro tributável [campo 778 do quadro 07; campo 302 do quadro 09], IRC a recuperar [campo 362 do quadro 10] e Derrama Municipal [campo 364 do quadro 10], os montantes de 7.348.796,54 EUR, 416.117,84 EUR e 103.182,37 EUR, respetivamente [cfr. pp. 16 a 32 do processo administrativo];
c. Do lucro tributável declarado (7.348.796,54 EUR), a quantia de 5.813.187,90 EUR provém de rendimentos oriundos do estrangeiro (e.g., rendimentos de capital e mais-valias mobiliárias), [cfr. p. 79 do processo administrativo];
d. No dia 17 de junho de 2021, a Requerente apresentou a Modelo 22 de IRC n.º..., referente ao exercício de 2020, a qual reflete, a título de lucro tributável [campo 778 do quadro 07; campo 302 do quadro 09], IRC a pagar [campo 361 do quadro 10] e Derrama Municipal [campo 364 do quadro 10], os montantes de 9.237.468,24 EUR, 585.360,18 EUR e 129.591,37 EUR, respetivamente [cfr. pp. 33 a 50 do processo administrativo];
e. Do lucro tributável declarado (9.237.468,24 EUR), a quantia de 6.116.023,65 EUR provém de rendimentos oriundos do estrangeiro (e.g., rendimentos de capital e mais-valias mobiliárias), [cfr. p. 112 do processo administrativo];
f. A gestão e administração da carteira de investimentos da Requerente ora em causa foi efetuada por uma entidade gestora de investimentos sedeada em Espanha, suportando a Requerente os custos de tal prestação de serviços;
g. Nos formulários das Modelo 22 de IRC dos exercícios de 2019 e 2020 – nomeadamente, no referente ao anexo A (relativo ao apuramento da Derrama Municipal) –, respetivamente aprovados pelos Despachos n.os405/2020-XXII, de 9 de outubro de 2020, e 191/2021-XXII, de 15 de junho de 2021, ambos do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não existe um campo que permita ao sujeito passivo declarar o lucro tributável do exercício expurgado da parcela respeitante aos rendimentos de fonte estrangeira [cfr. pp. 16 a 50 do processo administrativo e, bem assim, informação disponível em https://irc.portaldasfinancas.gov.pt/mod22];
h. Por força da inclusão dos rendimentos de fonte estrangeira no lucro tributável declarado (i.e., na base de incidência da Derrama Municipal), a Requerente considerou tê-la autoliquidado indevidamente nos montantes de 81.621,32 EUR (referente ao exercício de 2019) e 85.800,99 EUR (referente ao exercício de 2020) [cfr. pp. 1 a 119 do processo administrativo];
i. Em consequência, no dia 7 de junho de 2024, a Requerente apresentou perante o Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes pedido de revisão oficiosa, em sede do qual requereu a anulação parcial, nos aludidos montantes, das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2019 e 2020 [cfr. pp. 1 a 119 do processo administrativo];
j. A título adicional, a Requerente solicitou a restituição do montante total de 167.422,31 EUR (81.621,32 EUR + 85.800,99 EUR) e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios [cfr. pp. 1 a 119 do processo administrativo];
k. Por despacho de 25 de julho de 2024, do Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, notificado a 31 de julho de 2024, a Requerente viu indeferido o pedido de revisão oficiosa que apresentara [cfr. pp. 133 a 146 do processo administrativo];
l. No dia 15 de outubro de 2024, por dissentir da posição perfilhada pela Unidade dos Grandes Contribuintes, a Requerente propôs a ação arbitral na origem dos presentes autos;
m. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou a declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2019 e 2020, no montante total de 167.422,31 EUR, assim como o reembolso deste quantitativo acrescido de juros indemnizatórios;
n. Em concreto, a Requerente sustentou a errónea quantificação da base tributável da Derrama Municipal (atenta a inclusão no seu cômputo dos rendimentos de fonte estrangeira), tendo, concomitantemente, invocado a preterição do regime previsto no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI;
o. No dia 3 de fevereiro de 2025, a Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo;
p. Na sua resposta, adicionalmente à invocação de matéria de exceção, a Requerida pugnou pela conformidade à lei da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IRC e, consequentemente, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
B. Motivação
24. O Tribunal Arbitral formou a sua convicção após ter analisado (i) o acervo documental carreado para os autos pela Requerente; (ii) a resposta da Requerida e (iii) o processo administrativo instrutor.
25. Neste contexto, por consubstanciar uma inadmissível fundamentação a posteriori, o Tribunal Arbitral não considerou a posição perfilhada pela Requerida nos artigos 145.º a 156.º e 208.º a 212.º da sua resposta, concernente à ausência de demonstração por parte da Requerente dos gastos que concorreram para a parcela do lucro tributável proveniente do estrangeiro. Com efeito, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é omissa quanto a esta matéria, não tendo a mesma alicerçado – ainda que superficial ou incidentalmente – aquela prolação. No âmbito do procedimento de revisão oficiosa, o montante da Derrama Municipal (indevidamente) liquidado pela Requerente não se afigurou, em momento algum, controvertido entre as partes.
C. Factos não provados
26. Com eventual relevo para a decisão dos autos não se provou:
a. A existência de qualquer estrutura de meios da Requerente, localizada fora do território nacional, a que possam ou devam ser alocados os recursos a que se reportam os rendimentos cuja inclusão na base tributável da Derrama Municipal aqui se apreciam.
27. Inexistem outros factos com relevância para a boa decisão da causa que não tenham sido dados como provados.
IV. Matéria de Direito:
I) Das Exceções invocadas pela Requerida:
28. No âmbito da resposta apresentada, a Requerida pugnou pela sua absolvição da instância com fundamento na alegada verificação da exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria.
29. Em contraditório, pronunciou-se a Requerente, na qual e em suma, pugnou pela improcedência de tal exceção por incompetência em razão da matéria.
30. Com o fito de suportar a sua posição, a Requerida invocou, em síntese, o seguinte:
«[O] legislador optou por restringir o conhecimento na jurisdição arbitral às pretensões que, sendo relativa à declaração de ilegalidade de atos de liquidação, tenham sido precedidas de reclamação […].
Dos elementos interpretativos referidos [cfr. artigo 9.º do Código Civil], não se alcança outra solução interpretativa para a situação sub judice que não a de que a Requerida apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de liquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de Reclamação Graciosa» (cfr. artigos 19.º e 33.º da resposta).
31. Se é verdade que a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à jurisdição arbitral em caso de recurso prévio à revisão oficiosa – e não à reclamação graciosa – foi no passado discutida, é igualmente certo que esta questão se encontra hoje dirimida, estando pacificada no sentido de os tribunais arbitrais terem competência para conhecer de litígios nessas circunstâncias.
32. A título exemplificativo, elencam-se as decisões arbitrais infra, incidentes sobre decisões de indeferimento (expresso e tácito) de pedidos de revisão oficiosa:
¾ Decisão arbitral de 5 de maio de 2021, proferida no âmbito do processo n.º 8/2020-T;
¾ Decisão arbitral de 24 de junho de 2021, proferida no âmbito do processo n.º 500/2020-T;
¾ Decisão arbitral de 10 de agosto de 2021, proferida no âmbito do processo n.º 485/2020-T;
¾ Decisão arbitral de 30 de setembro de 2021, proferida no âmbito do processo n.º 597/2020-T;
¾ Decisão arbitral de 25 de fevereiro de 2022, proferida no âmbito do processo n.º 617/2021-T;
¾ Decisão arbitral de 13 de fevereiro de 2023, proferida no âmbito do processo n.º 369/2022-T.
33. Precisamente sobre a exceção em referência, o Tribunal Central Administrativo Sul tem sustentado o seguinte: «O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa [cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)] […]» [sublinhados nossos] – cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26 de maio de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB.
34. A este propósito, a Requerida invocou na sua resposta que a interpretação acima transcrita pretere princípios constitucionais de diversa ordem: «É constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito, da Separação de Poderes e da Legalidade, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da Requerida à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno […]» (cfr. artigo 55.º da resposta).
35. Sobre esta matéria pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul a 27 de abril de 2017, no âmbito do processo n.º 08599/15, tendo concluído pela não preterição de qualquer princípio ínsito na Lei Fundamental: «[T]ambém não assiste razão à Impugnante quando entende que o art. 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011[…] viola os princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (art. 20.º do CRP) e da legalidade (artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo 226.º, n.º 2, da CRP no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2, da LGT […].
Não se encontra constitucionalmente garantido, com base no artigo 20.º da CRP e em termos gerais, um direito ao duplo grau de jurisdição, e nessa medida, não se vislumbra em que medida é que este preceito constitucional poderá ter sido violado neste caso, pois o facto de se ter interpretado a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011 num determinado sentido não afasta o entendimento de que o direito ao recurso não é um direito absoluto. Por outro lado, também não se verifica a invocada violação do princípio da legalidade (artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP) e ainda o artigo 226.º, n.º 2 da CRP no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT […]. Com efeito, não é pelo facto de estarmos perante um normativo de uma portaria de vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que não se poderá proceder à interpretação das normas dele constantes, por outras palavras, não ofende o princípio da legalidade tributária a interpretação de normativo da portaria de vinculação».
36. E, bem assim, o Tribunal Constitucional, enfatizando o seguinte: «[A] norma objeto do pedido de fiscalização é a que resulta da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, no sentido de considerar os casos em que ocorreu um “pedido de revisão oficiosa” equivalente aos pedidos “precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. A recorrente invoca que a referida interpretação violava os “princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação de poderes (cfr. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade (cfr. 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo 266.º, n.º 2, da CRP, no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2, da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT)” […]. Ora, como é referido na decisão a quo, “ao contrário do que alega a Impugnante não se trata de ampliar a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, mas antes de interpretar uma norma da portaria que exclui essa vinculação”, pelo que “não se verificando uma exclusão expressa, não se poderá dizer que estamos perante uma ampliação da vinculação, mas tão-somente perante interpretação de norma de exclusão de vinculação (…)” (cfr. p. 36 do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27 de abril de 2017, fls. 136) […]. Conclui-se, assim, pela não inconstitucionalidade da norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu “recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD» – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 11 de maio de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 244/2018.
37. Alicerçando-se na jurisprudência tributária dominante – refletida nas decisões jurisdicionais supra –, o Tribunal Arbitral entende que as decisões de indeferimento [expresso (como na situação sob contenda) ou tácito] de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação de imposto podem ser sujeitos ao crivo da jurisdição tributária arbitral, improcedendo, por isso, a exceção de incompetência, em razão da matéria, invocada pela Requerida.
38. Por outro lado, a Requerida sustentou ser a ação arbitral um meio de reação inidóneo contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por (alegadamente) não ter sido emitida uma pronúncia de mérito sobre a pretensão da Requerente, atento o fundamento que subjacente ao referido indeferimento (a intempestividade do pedido de revisão oficiosa).
39. Com o propósito de sustentar a sua posição, a Requerida invocou, em síntese, o seguinte: «A decisão que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa foi uma decisão de indeferimento, com fundamento em intempestividade, não tendo havido qualquer pronúncia da AT quanto ao mérito do mesmo […]. [Q]ualquer análise de mérito que se lhe aponte é uma análise meramente superficial e teve unicamente como objetivo determinar se havia alguma situação de erro imputável aos serviços ou de injustiça grave ou notória na autoliquidação que obrigasse a AT a aceitar o pedido efetuado, num caso no prazo de 4 anos e noutro caso, de 3 anos […]» (cfr. artigos 61.º e 68.º da resposta).
40. O Tribunal Arbitral dissente da posição perfilhada pela Requerida. Nos artigos 25.º a 47.º da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, a Requerida pronunciou-se – inclusive esmiuçadamente – sobre o mérito da pretensão aduzida pela Requerente, tendo exposto os motivos pelos quais considera serem os atos tributários contestados totalmente conformes à lei – in casu, ao artigo 18.º do RFALEI.
41. Tendo havido uma verdadeira pronúncia de mérito por parte da Requerida, o meio processual escolhido pela Requerente (a presente ação arbitral) afigura-se idóneo, improcedendo, por isso, a matéria de exceção invocada pela Requerida.
42. O Tribunal Arbitral considera também carecer de fundamento a demais matéria de exceção invocada pela Entidade Requerida – (i) a inimpugnabilidade dos atos tributários contestados e (ii) a caducidade do direito de ação.
43. Neste contexto, entende pacificamente a jurisprudência e a doutrina que, findo o prazo de reclamação graciosa – in casu, de dois anos (cfr. artigo 131.º, n.º 1, do CPPT) –, as autoliquidações de imposto não se consolidam, sem mais, na ordem jurídica.
44. O sujeito passivo tem a faculdade de “lançar mão” do meio procedimental previsto no artigo 78.º da LGT – i.e., do pedido de revisão oficiosa –, podendo alicerçá-lo em distintos fundamentos – (i) em erro imputável aos serviços, na aceção do n.º 1, in fine; (ii) em injustiça grave ou notória, na aceção do n.º 4; e (iii) em duplicação de coleta, na aceção do n.º 6 – desde que respeitado o respetivo prazo procedimental [de quatro anos, nas situações elencadas em (i) e (iii); de três anos, na situação elencada em (ii)].
45. Atente-se, a título de exemplo, à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de 5 e 12 de novembro de 2003, 2 de fevereiro de 2005 e 12 de julho de 2006, respetivamente proferida no âmbito dos processos n.os01462/03, 01237/03, 01171/04 e 0402/06.
46. No presente caso, conforme resulta da matéria de facto assente, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IRC dos exercícios de 2019 e 2020 – respetivamente submetidas a 10 de junho de 2020 e 17 de junho de 2021 – a 7 de junho de 2024, com fundamento em erro imputável aos serviços (quanto aos exercícios de 2019 e 2020) e injustiça grave ou notória (quanto ao exercício de 2020). Tendo, na sequência da prolação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa a 25 de julho de 2024, apresentado o pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos a 15 de outubro de 2024, pelo que, não se verifica qualquer intempestividade conducente à caducidade do direito de ação [os pedidos de revisão oficiosa poderiam ter sido apresentados até às datas-limite de 10 de junho de 2024 (quanto ao exercício de 2019, com fundamento erro imputável aos serviços), 31 de dezembro de 2024 (quanto ao exercício de 2020, com fundamento em injustiça grave ou notória) e 17 de junho de 2025 (quanto ao exercício de 2020, com fundamento em erro imputável aos serviços) e a ação arbitral proposta até ao dia 29 de outubro de 2025] nem a impossibilidade de contestar os atos tributários sob contenda.
47. Questão diferente é a de saber se os requisitos substantivos para o acionamento do pedido de revisão oficiosa estão preenchidos – i.e., se, no caso sub judice, a factualidade é subsumível a uma situação de erro imputável aos serviços (cfr. artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT) ou de injustiça grave ou notória (cfr. artigo 78.º, n.º 4, da LGT).
48. A este respeito, no caso em apreço, a estrutura dos Anexos A da Modelo 22 de IRC dos exercícios de 2019 e 2020, aprovados pelos Despachos n.º 405/2020-XXII (9.10.2020) e n.º 191/2021-XXII (15.6.2021), não disponibilizava qualquer campo ou instrução que permitisse ao sujeito passivo declarar o lucro tributável expurgado da componente relativa a rendimentos obtidos no estrangeiro (i.e., rendimentos isentos nos termos do artigo 81.º do CIRC ou das convenções para evitar a dupla tributação), cfr ponto f. da matéria de facto provada.
49. Este silêncio normativo-operacional do formulário constitui, em si mesmo, uma conduta omissiva dos serviços da Requerida que impede o correto cumprimento da lei, forçando os sujeitos passivos, por ausência de alternativa técnica, a autoliquidar imposto sobre uma componente desse lucro tributável que eventualmente estes entendem como não tributáveis para efeitos de Derrama Municipal, sob pena de rejeição da declaração ou bloqueio do sistema.
50. Esta situação é, no entendimento deste tribunal arbitral, juridicamente qualificável como “erro imputável aos serviços”, porquanto o erro não resulta de um juízo jurídico ou opção deliberada do contribuinte, mas da impossibilidade técnica de declarar corretamente o lucro tributável, por ausência de campos próprios no formulário oficial, cuja definição compete exclusivamente à AT.
51. E ainda porque os sujeitos passivos encontram-se vinculados à estrutura do modelo oficial, sob pena de incorrerem em incumprimento fiscal ou invalidade formal da declaração (cf. al. o) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT e artigo 120.º do CIRC).
52. A aprovação e manutenção dos formulários é uma atividade típica dos serviços da AT, sob tutela do membro do Governo responsável pela área das finanças (cfr. artigo 59.º, n.º 1 da LGT), sendo-lhes imputável qualquer defeito que impeça ou induza em erro os contribuintes no cumprimento declarativo.
53. Como salienta Paulo Marques[1], na autoliquidação o contribuinte atua como longa manus da administração tributária, substituindo-a tecnicamente no ato de liquidação. Por isso, não é incoerente considerar imputável aos serviços o erro que derive de vícios formais ou materiais, como instruções ou formulários oficiais deficientes, ainda que o ato material de liquidação tenha sido praticado pelo sujeito passivo.
54. No mesmo sentido, Jorge Lopes de Sousa[2] observa que é admissível reconhecer erro imputável aos serviços quando a autoliquidação foi efetuada com base em elementos disponibilizados pela administração tributária ou no formato por ela imposto, como sucede com os formulários oficiais.
55. À luz do exposto, deve concluir-se que a estrutura dos formulários Modelo 22 de IRC para os exercícios de 2019 e 2020, ao omitir campo essencial para correta autoliquidação do imposto expurgada dos rendimentos estrangeiros, constitui um erro material e funcional imputável à AT, nos termos do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, não podendo assim o invocado erro declarativo pela Requerida sustentado ser assacável à Requerente.
56. A autoliquidação apresentada pela Requerente, embora formalmente submetida por esta, resulta de uma situação de indução ou impossibilidade criada pelos serviços da AT, o que consubstancia um erro não imputável ao sujeito passivo, mas sim imputável aos serviços da administração tributária.
57. Assim, estão reunidos os pressupostos legais para a revisão oficiosa da autoliquidação, dentro do prazo de quatro anos previsto na segunda parte do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, sendo in casu destituída de fundamento a invocada intempestividade da dedução do meio administrativo – revisão oficiosa – cuja decisão de rejeição liminar está na base destes autos arbitrais.
58. Em face do tudo quanto se deixa supra enunciado, não poderá deixar de se considerar improcedentes as exceções pela Requerida erigidas.
II) Objeto da Pronúncia Arbitral:
59. O thema decidendum da presente ação arbitral consiste em aferir da conformidade à lei – in casu, ao regime ínsito no artigo 18.º do RFALEI – das mencionadas autoliquidações de IRC, relativas aos exercícios de 2019 e 2020, no que à Derrama Municipal concerne, nos montantes de 81.621,32 EUR e 85.800,99 EUR, respetivamente e bem assim da ilegalidade da decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa que sobre estas recaiu.
III) Da invocada ilegalidade das liquidações de IRC (e da respetiva decisão de revisão oficiosa) no que à Derrama Municipal concerne:
60. O artigo 18.º, n.º 1, da LFL, dispunha nos períodos a que respeita a Derrama, o seguinte:
«Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território».
61. Por sua vez, o n.º 2 dispunha que:
«Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional».
62. Sendo que, o já identificado normativo, no seu n.º 13 do mesmo, referia que:
«Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade».
63. Ou seja, a Derrama Municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas” e não da coleta, encontrando-se as regras para a determinação do lucro tributável plasmadas no CIRC.
64. Por sua vez, o lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC, que exerçam a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período, apurado com base na contabilidade e objeto das correções previstas no CIRC; e na determinação desse lucro tributável são incluídos os rendimentos de fonte estrangeira.
65. A natureza acessória da Derrama Municipal, arquitetada como um adicional ao IRC – imposto da administração central – justificou, nos alvores da sua vigência, uma legislação mais concisa e ancorada em preceitos de incidência e liquidação do referido IRC.
66. Por outro lado, a legitimidade para instituir o presente imposto – Derrama Municipal - é atribuída aos municípios, na medida em que lhes cabe, anualmente, a decisão quanto à efetiva aplicação da tributação relativamente aos sujeitos passivos domiciliados ou estabelecidos na respetiva circunscrição territorial.
67. Trata-se, pois, de um poder tributário que incide sobre a própria existência concreta do imposto — sobre a correspondente ablação patrimonial — e que, não obstante o princípio da legalidade fiscal, na sua vertente formal de reserva absoluta da Assembleia da República, é reconhecido às autarquias locais.
68. Parte da doutrina entende, aliás, que se está perante um verdadeiro costume constitucional que mitiga a rigidez do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ao admitir que a soberania fiscal, embora em moldes limitados, também é exercida pelas assembleias municipais no domínio dos impostos locais — como sucede com a derrama municipal.
69. Não obstante, tal perspetiva não colide com a consagração constitucional da competência originária da Assembleia da República para a criação de impostos, porquanto o princípio da autotributação permanece igualmente salvaguardado quando os órgãos autárquicos locais — democraticamente eleitos por sufrágio direto, à semelhança do Parlamento — exercem poderes fiscais sobre tributos intrinsecamente ligados ao respetivo território.
70. Embora, do ponto de vista constitucional, todo e qualquer imposto deva incidir sobre manifestações de capacidade contributiva — sendo esse o caso da derrama, ao incidir sobre o lucro tributável das sociedades —, aos impostos de natureza municipal é reconhecida, adicionalmente, uma ratio específica, o denominado princípio do benefício.
71. A Derrama Municipal traduz-se na ideia de contrapartida pelas condições que os municípios proporcionam ao desenvolvimento da atividade económica no seu território, pelo que a imposição fiscal deste imposto visa, assim, compensar financeiramente os encargos que as autarquias suportam pela presença de sociedades comerciais no respetivo espaço geográfico, nomeadamente ao nível das infraestruturas, da sua manutenção e da prestação de serviços públicos locais.
72. Esta particular configuração assume especial relevância no caso sub judice, como se apreciará adiante.
73. A problemática que ora cumpre apreciar e dilucidar respeita à sujeição ou não a Derrama Municipal dos rendimentos obtidos no estrangeiro por uma entidade com sede em território nacional, ou seja, localizada num município português.
74. Em concreto, a questão central consiste em aferir se o município em que se encontra domiciliada a sociedade Requerente contribuinte dispõe de legitimidade para tributar tais rendimentos ao abrigo da Derrama Municipal.
75. Assim, no caso em apreço não se está perante qualquer dissenso relativamente a rendimentos da Requerente gerados em território nacional, uma vez que quanto a estes se verifica o elemento de conexão territorial que legitima a competência tributária do município em que aquela se localiza, antes o ponto de dissídio entre as partes se funde na repartição da matéria coletável quando a atividade do sujeito passivo se distribui por vários municípios, ou — como aqui sucede — envolve jurisdições fiscais estrangeiras.
76. Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), resulta de forma clara que a legitimidade para a tributação em sede de Derrama Municipal está correlacionada com os rendimentos gerados na área geográfica do município, assentando tal ligação no princípio do benefício, uma vez que a Derrama visa compensar os encargos assumidos pelos municípios com a disponibilização de infraestruturas e serviços públicos locais às empresas aí estabelecidas.
77. Assim, é o grau de presença económica no território municipal que legitima o exercício, pelas respetivas assembleias municipais, do poder de autotributação reconhecido constitucionalmente.
78. Importa, por conseguinte, esclarecer o que se entende por “rendimentos gerados” na área do município.
79. Em nosso entender, o critério relevante deverá ser o da localização da fonte económica do rendimento — ou seja, o local onde se desenvolve a atividade geradora do rendimento — e não e tão somente o perscrutar sobre qual a localização da fonte financeira, como o local de pagamento ou domicílio do devedor desses mesmos rendimentos.
80. Assim, o simples facto de os rendimentos serem “oriundos do estrangeiro” (porquanto pagos por entidade aí localizada) não é, por si só, suficiente para os excluir do âmbito da Derrama Municipal, antes imprescindível sendo para efeitos de tal exclusão que os rendimentos resultem de uma atividade económica efetivamente exercida no estrangeiro pelo sujeito passivo.
81. Isto é, apenas nos casos em que a atividade geradora do rendimento possa ser localizada fora do território nacional — e não meramente a localização do devedor e do respetivo pagamento por este efetuado ao respetivo credor do rendimento — é que será de excluir a incidência da Derrama relativamente a tais rendimentos.
82. Um critério objetivo e seguro para tal exclusão será a existência, no estrangeiro, de um estabelecimento estável da empresa portuguesa, através do qual se exerça uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola,
83. Nestes casos, estará inequivocamente afastada a relação de benefício com o município português da sede, inexistindo qualquer prestação de serviços públicos ou disponibilização de infraestruturas locais que fundamente a tributação.
84. Sobre esta temática, importa ter presente o sentido da interpretação do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, 13.01.2021:
«Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (…)».
85. Muito recentemente e em idêntica linha interpretativa, com superior clareza, se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, por decisão de 04.02.2025, no processo n.º 0560/22.5BEALM:
«Na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira e, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado, ou seja, para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, sendo que o artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 03-09 é claro ao determinar que “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo […]”.
III - Na situação dos autos, em nenhum momento se fala em estabelecimentos estáveis ou representações que poderiam implicar uma outra leitura da realidade em apreço e a lei não aponta qualquer elemento no sentido de se poder dizer que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direcção efectiva da que paga ou coloca à disposição os rendimentos, de modo que, a conclusão firmada na sentença recorrida no sentido da existência de rendimentos obtidos pela Impugnante fora do território nacional é inapta a produzir o efeito de anulação dos actos de autoliquidação no domínio indicado, na medida em que a alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica.
IV - Assim, a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direcção efectiva do sujeito passivo, não existindo qualquer razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira».
86. Também ao nível da doutrina, tal entendimento é defendido, com acuidade, por José Carlos Abreu[3] na sua obra A Tributação dos Estabelecimentos Estáveis, onde o autor sustenta que os lucros obtidos através de estabelecimentos estáveis localizados no estrangeiro devem ser expurgados do lucro tributável para efeitos de derrama.
87. Ante o entendimento jurisprudencial supra vertido relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro sem intermediação de um estabelecimento estável, dada a ausência de um suficiente elemento de conexão tributário, impor-se-á aplicar o disposto no n.º 13 do artigo 18.º da Lei das Finanças Locais, o qual estabelece uma presunção legal segundo a qual tais rendimentos se consideram obtidos no município onde se encontra a sede do sujeito passivo.
88. Tal presunção reflete, em regra, a realidade económica, na medida em que esses rendimentos — muitas vezes de natureza passiva, como os rendimentos de capitais — são normalmente gerados por decisões de investimento, no âmbito de gestão financeira e outras atividades acessórias que têm lugar na sede da empresa, em território nacional, sendo aí que são suportados os custos operacionais e administrativos associados à geração de tais rendimentos, o que justifica a atribuição da legitimidade tributária ao município onde tais recursos empresariais se localizam.
89. Nestes termos, a Derrama Municipal apenas deverá incidir sobre rendimentos de fonte estrangeira quando não seja possível imputá-los a uma atividade empresarial exercida fora de Portugal por meio de estabelecimento estável, mantendo-se nesses casos o nexo relevante com o município onde a empresa se encontra estabelecida.
90. Tendo em consideração o entendimento que vem de se supra alinhar quanto à questão a decidir, importa transpor o mesmo para o caso dos vertentes autos.
91. Analisado o teor do PPA deduzido pela Requerente, resulta efetivamente invocado que os rendimentos oriundos do estrangeiro não tiveram por base quaisquer recursos existentes em Portugal (vide pontos 24º e 27º daquele processado) e a que se reportam os pontos c. e e. da matéria de facto dada como provada.
92. Pese embora tal invocação, certo é que a Requerente não logrou ser consequente relativamente a tal asserção, ou seja, em momento algum até esta instância, inclusive, explicitou e muito menos, demonstrou, como lhe competia, nos termos do n.º 1 do artigo 74º da LGT, onde se localizavam os recursos que estão na base da geração de tais rendimentos provenientes do estrangeiro, atendo-se tão somente na afirmação (meramente conclusiva) segundo a qual tais rendimentos não tinham conexão a recursos existentes em território nacional.
93. Ora, neste conspecto, é o PPA submetido espúrio da alegação sobre a existência de uma qualquer estrutura de recursos localizada fora do território nacional, independentemente da feição que a mesma pudesse assumir (estabelecimento estável, sucursal ou outra) a que devesse ser imputada a geração de tais rendimentos – mais valias mobiliárias e rendimentos de capitais - oriundos do estrangeiro.
94. Perante tal omissão, também de demonstração quanto à densificação sobre qual a fonte económica de tais rendimentos e estando-se perante os comummente denominados «rendimentos passivos», os quais, por via de regra, não carecem, pelo menos, imprescindivelmente, de uma estrutura diretamente alocada à geração de tais rendimentos.
95. Destarte, não poderemos deixar de concluir pela aplicabilidade do disposto no n.º 13 do art.º 18.º da Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais:
«Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade».
96. Em face da inexistência de quaisquer rendimentos imputáveis a um estabelecimento estável ou qualquer estrutura de meios económicos de finalidade equivalente a que se devam imputar a geração dos rendimentos oriundos do estrangeiro ora em apreço, não padecem os atos tributários de autoliquidação, em sede de Derrama Municipal, de qualquer mácula legal, devendo assim manter-se vigentes na ordem jurídico-tributária e bem assim a subsequente decisão de indeferimento da Revisão Oficiosa, a qual concluiu pela legalidade dos mesmos.
97. O facto de a carteira de investimentos ora em causa ser administrada por uma sociedade gestora, com sede em Espanha, para o efeito contratada pela Requerente, em nada altera o que ficou dito porquanto:
¾ A existência de um prestador de serviços, sito no estrangeiro, que procede à administração de uma carteira de títulos alheia não configura a existência de um estabelecimento estável, nesse país, da entidade a quem tais serviços são prestados, por evidente não preenchimento dos requisitos constantes quer do art. 5º do CIRC, quer do art. 5º da CDT Portugal/ Espanha,
¾ Uma coisa é o local onde são geridos os investimentos que dão origem ao rendimento tributável, outra é o local onde são produzidos, onde situa a sua fonte económica, tal como atrás referido. Ora, a documentação posteriormente junta pela Requerente em nada contribui para localizar em Espanha, ou noutro país, a origem dos rendimentos em causa.
98. Por último, peticionou a Requerente o direito à restituição da Derrama Municipal, no montante total de 167.422,31 EUR, nos termos do artigo 100.º da LGT) (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT), e, bem assim, do seu direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT (igualmente, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).
99. Em face da solução dada à questão da sujeição a Derrama Municipal dos rendimentos oriundos do estrangeiro vinda de evidenciar, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões, as quais, de um juízo de ilegalidade dos atos tributários mediatamente impugnados, absolutamente dependiam.
V) Decisão:
Por tudo quanto se expôs, decide-se:
a) Julgar totalmente improcedentes as exceções pela Requerida erigidas;
b) Julgar improcedente o pedido de anulação parcial dos atos tributários de autoliquidação de IRC de 2019 e 2020, na componente respeitante a Derrama Municipal, supra identificadas e bem assim da decisão de indeferimento da Revisão Oficiosa que sobre tais atos recaiu, assim se absolvendo a Requerida dos respetivos pedidos;
c) Prejudicado o conhecimento sobre a questão da restituição da Derrama Municipal peticionada e bem assim do pedido de juros indemnizatórios formulado;
d) Condenar a Requerente ao pagamento das custas, face ao decaimento obtido com a presente decisão, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
IV) Valor da causa
e) Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“Regulamento de Custas”), fixa-se o valor do processo (da causa) em 167.422,31 EUR (cento e sessenta e sete mil, quatrocentos e vinte e dois euros e trinta e um cêntimos).
V) Custas arbitrais
f) Condena-se a Requerente nas custas do processo, as quais perfazem 3.672 EUR (três mil, seiscentos e sessenta e dois euros), em consonância com os artigos 527.º, n.º 1, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e, bem assim, com os artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.os 1 e 5, do Regulamento de Custas e Tabela I anexa a este.
***
07 de julho de 2025
Os Árbitros
Rui Duarte Morais
Luís Sequeira (Relator)
Sónia Fernandes Martins
(Com declaração de voto vencido)
Declaração de voto de vencido
Voto vencido relativamente à solução jurídica perfilhada pelo Tribunal Arbitral quanto à questão decidenda objeto dos presentes autos (conducente à improcedência da ação arbitral), nos seguintes termos:
1. «A derrama [municipal] constitui um imposto adicional ao IRC, devido pelas pessoas coletivas que exerçam atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, e que, em virtude da LFL de 2007, passou a incidir já não sobre a coleta do IRC, mas sobre o lucro tributável destes sujeitos passivos […]» – cfr. VASQUES, Sérgio, Manual de Direito Fiscal, setembro de 2015, Almedina, pp. 196 e 197.
2. Nos termos do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“RFALEI”):
«Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5/prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território» [n.º 1].
«Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50.000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional» [n.º 2].
«Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade» [n.º 13].
«Entende-se por massa salarial o valor dos gastos relativos a despesas efetuadas com o pessoal e reconhecidos no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários» [n.º 14].
«Os sujeitos passivos abrangidos pelo n.º 2 indicam na declaração periódica de rendimentos a massa salarial correspondente a cada município e efetuam o apuramento da derrama que seja devida» [n.º 15].
«Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente no município onde estiver localizada a direção efetiva» [n.º 21].
3. Em meu entender, o referido preceito legal determina no seu n.º 1 as incidências objetiva e subjetiva deste tributo. A título objetivo, prevê incidir derrama municipal sobre o lucro tributável sujeito e não isento de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) equivalente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do(s) município(s). A título subjetivo, prevê serem sujeitos passivos do tributo (i) os residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e (ii) os não residentes com estabelecimento estável em Portugal.
4. Os números subsequentes devem assim ser balizados por este n.º 1, o qual define as “traves-mestras” do âmbito de aplicação da derrama municipal, devendo por isso ser interpretados à sua luz, tendo-o necessariamente como pressuposto.
5. Uma vez determinadas as incidências – quer objetiva quer subjetiva – do tributo nos termos do referido n.º 1, importa então atentar nas especificidades de cada situação.
6. Assim, se um sujeito passivo tiver as suas sede e direção efetiva em municípios distintos, é considerado residente no município da última, por força do n.º 21.
7. Por outro lado, havendo uma pluralidade de estabelecimentos estáveis/representações locais em território nacional, mostra-se aplicável o n.º 2, sendo a base de incidência da derrama (prevista no n.º 1) apurada por município tendo por referência os correspetivos gastos com a massa salarial. Não havendo essa pluralidade, afigura-se, antes, aplicável o n.º 13.
8. Do exposto resulta não concorrerem os rendimentos de fonte estrangeira para o apuramento da base de incidência objetiva da derrama municipal, sendo os rendimentos de fonte doméstica tributados em sede deste tributo no município onde são gerados.
9. Quer o elemento literal da norma ínsita no n.º 1 – «[…] lançar uma derrama […] sobre o lucro tributável […] que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua [do município] área geográfica» – quer a ratio legisinerente à criação da derrama municipal – assente marcadamente no princípio do benefício, à semelhante do que sucede com os demais impostos locais [Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), nos termos dos artigos 14.º, alínea a), e 18.º, n.º 1, do RFALEI; Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”), nos termos do artigo 14.º, alínea b), do RFALEI; e Imposto Único de Circulação (“IUC”), nos termos do artigo 14.º, alínea d), do RFALEI] – legitimam tal posição, não consentindo a adoção de entendimento díspar.
10. Com efeito, face à letra do referido número, entendo que o legislador não fez coincidir na íntegra as bases de incidência objetiva do IRC e da derrama municipal, tendo restringido esta última «à proporção do rendimento gerado» na área geográfica do(s) município(s), e, por essa via, excluído do seu âmbito de aplicação a perceção de rendimentos estrangeiros, uma vez que estes derivam do Estado da fonte, não proveem do Estado da residência (i.e., de municípios portugueses).
11. Em sentido consonante pronuncia-se Saldanha Sanches:
«[T]rata-se claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam apenas da lei (sujeito ativo, margem de taxas), ou obedecem à intervenção da Autarquia Local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objetiva comum. Mesmo com este objeto comum, admite-se a possibilidade de adaptação dos critérios de imputação do rendimento coletável do sujeito passivo (em atenção às características especiais deste) ao município […]. Existem, portanto, relações jurídico-fiscais claramente autónomas entre a derrama e o IRC» [sublinhado meu] – cfr. SANCHES, José Luís Saldanha, A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/-38_7_jlss_derrama-E-RECURSOS_f38.pdf.
12. E, bem assim, Gustavo Courinha:
«Acresce a este um outro argumento, que respeita à natureza autónoma da derrama e distinta do IRC e que conduz, não raramente, ao apuramento de coletas distintas num e noutro imposto. Com efeito, a derrama possui, de há vários anos, uma natureza indiscutivelmente independente da do IRC, com ele apenas partilhando (e, ainda assim, apenas parcialmente) a base de incidência, traduzida no lucro tributável e não na matéria coletável (como se prevê no IRC)» [sublinhado meu] – cfr. declaração de voto de vencido constante do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de novembro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 0255/17.1BESNT.
13. Tal igualmente o impõe a ratio legis que presidiu à criação (e continuidade) do regime jurídico deste imposto local, marcadamente arreigada aos princípios do benefício – i.e., à contrapartida que o sujeito passivo extraí do município por nele localizar a fonte geradora do seu rendimento – e da justiça na repartição dos encargos.
14. Relativamente a tais princípios, é a própria Entidade Requerida a admitir que «tem razão a Requerente quanto à lógica comutativa ou de contrapartida subjacente à figura da derrama municipal, que se torna mais evidente quando se prevê que o valor apurado por uma sociedade comercial deve ser “distribuído” por tantos municípios quanto aqueles em que a sociedade atua no território nacional, ou seja, em conformidade com a “fonte” dos rendimentos, o que se impõe atentos os princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos» (cfr. artigo 173.º da resposta da Entidade Requerida).
15. No que à presente matéria concerne, colocando também a “pedra de toque” nos referidos princípios, a doutrina tem sustentado:
«[A] derrama […] forma, em conjunto com o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e o Imposto Único de Circulação (IUC), o núcleo dos poderes fiscais das Autarquias Locais, enquanto sujeito ativo da relação tributária – sendo, por isso, impostos municipais. Todos eles têm um evidente traço comum que mais não é do que a ligação dos respetivos factos tributários ao território de cada ente local, por isso se justificando o direito dos municípios a dispor, por lei, da qualidade de sujeito ativo da relação fiscal e a fazer suas tais receitas» [sublinhado e negrito meus] – cfr. SANCHES, José Luís Saldanha, A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/38_7_jlss_derrama-ERECURSOS_f38.pdf.
«As receitas tributárias que cabem às autarquias locais são definidas pelo Título II da Lei das Finanças Locais, empregando técnica semelhante à de leis anteriores.
Em primeiro lugar, cabe ao município a receita […] do Imposto Municipal sobre Imóveis que incida sobre os prédios […] que neles estejam localizados […].
A solução acolhida […] assenta na conexão especialmente forte que o património imobiliário mantém com o território e na noção de que uma parte importante da atividade municipal se centra ainda nos hard-services de gestão dos espaços e equipamentos públicos […].
Em segundo lugar, cabe aos municípios a receita integral do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis incidente sobre a transmissão dos prédios rústicos ou urbanos que neles estejam localizados […]. A afetação deste imposto aos municípios fundar-se-á nas mesmas razões que levou à municipalização da antiga contribuição predial, ainda que o legislador as não explicite […].
Em terceiro lugar, cabe aos municípios a receita integral da derrama que deliberem lançar […]. [A] derrama constitui um adicional ao IRC, de lançamento facultativo pelos municípios, e nesta matéria [a lei] limita-se a dar continuidade a uma tradição intemporal das finanças concelhias portuguesas, a de facultar aos municípios o lançamento de adicionais sobre os impostos cobrados pela administração central […]. Com efeito, em virtude da LFL de 1998, o lançamento da derrama deixou de caber em exclusivo ao município em que se verifique a liquidação do IRC […] para passar a caber a todos os municípios em que uma empresa possua estabelecimento estável ou representação local. Nos casos em que uma empresa possua atividade plurilocalizada, com estabelecimento estável em mais de um município, […] o lucro tributável há-de ser imputado aos municípios na proporção da massa salarial associada a cada estabelecimento. A escolha do estabelecimento estável como elemento de conexão e da massa salarial como critério de imputação dos lucros visa corrigir as assimetrias na partilha da derrama, aproximando a receita tributária do local de formação efetiva do rendimento.
A massa salarial associada pela empresa ao estabelecimento estável existente em cada concelho é tomada […] como um indicador aproximado do lucro que por este é gerado, presumindo-se assim que o lucro tributável originado por um estabelecimento estável é tanto maior quanto maior o gasto com a mão-de-obra que lhe esteja afeta. Trata-se, com certeza, de uma solução mais justa que a de reservar ao município da sede a tributação de todo o lucro tributável […].
Em quarto lugar, cabe aos municípios uma parcela da receita do Imposto Único de Circulação (IUC) incidente sobre os veículos cujo proprietário seja residente no seu território […].
Com isto sumariam-se as receitas tributárias [provenientes de impostos] da titularidade das autarquias locais[…] que podemos [denominar de] tributos locais […]» [sublinhados meus] – cfr. VASQUES, Sérgio, Manual de Direito Fiscal, setembro de 2015, Almedina, pp. 189 a 193.
«A escolha do estabelecimento estável como elemento de conexão e da massa salarial como critério de imputação dos lucros visa corrigir as assimetrias na partilha da derrama, aproximando a receita tributária do local de formação efetiva do rendimento […].
A massa salarial associada pela empresa ao estabelecimento estável existente em cada concelho é tomada[…] como um indicador aproximado do lucro que por este é gerado, presumindo-se assim que o lucro tributável originado por um estabelecimento estável é tanto maior quanto maior o gasto com a mão-de-obra que lhe esteja afeta» [sublinhado meu] – cfr. VASQUES, Sérgio, O sistema de tributação local e a derrama, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/38_5_sv-derrama-f38.pdf.
«Se olharmos para a receita própria dos municípios portugueses, verificaremos que uma parte significativa da mesma assenta em tributos (impostos e taxas) […]. Claro está que existem justificações teóricas para que assim seja e que fundamentalmente assentam na teoria de que os tributos locais devem assentar primordialmente no chamado princípio do benefício, como razão de ser da respetiva oneração tributária. Tal vale por dizer que há um conjunto mais ou menos significativo de utilidades que são prestadas pelos municípios aos seus residentes […], como infraestruturas, redes viárias, esgotos, saneamento, escolas, etc., em que as taxas cobradas só por si não serão suficientes para delas obter a receita necessária à prestação de tais utilidades. Assim, justificar-se-á um imposto assente no tal princípio do benefício» [sublinhado meu] – cfr. MATIAS, Vasco Valdez, A derrama e os investimentos municipais, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/-38_6_vvaldez_derrama_f38.pdf.
16. Referindo, desta feita por referência à responsabilização político-financeira dos municípios, o seguinte:
[A derrama – a par, por exemplo, do IMI, do IMT e do IUC – constitui] «um mecanismo de diferenciação territorial da carga fiscal, em conformidade com as teses do fiscal federalism, de modo que os contribuintes possam responsabilizar os autarcas pelas opções financeiras que estes fazem e “votar com os pés”, escolhendo o seu local de residência de acordo com a respetiva carga fiscal» – cfr. VASQUES, Sérgio, Manual de Direito Fiscal, setembro de 2015, Almedina, p. 198.
«[Q]ualquer aumento das competências tributárias das autarquias legitimado na Constituição representa o sempre desejável aumento dos mecanismos de responsabilização político-financeira dos municípios perante o conjunto formado pelos munícipes de uma certa área. Os munícipes poderão, com o aumento dos poderes tributários próprios dos municípios, decidir se deverão ter mais bens públicos e mais impostos, ou menos bens públicos e menos impostos – e isto constitui um elemento essencial da vertente democrática da autonomia local» – cfr. SANCHES, José Luís Saldanha, A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/38_7_jlss_derrama-ERECURSOS_f38.pdf.
17. Em jeito de síntese, Saldanha Sanches enfatiza:
«Enquanto imposto municipal que utiliza uma base de incidência emprestada, a derrama exige a fixação de critérios de imputação do lucro tributável a cada um dos municípios que tenham uma conexão objetiva com os factos tributários deste imposto.
Tais critérios são, por isso, uma exigência de justiça e de correta repartição das receitas tributárias – incidindo a derrama municipal sobre a “proporção do rendimento gerado na sua área geográfica” (anteriormente sobre o “rendimento gerado na respetiva circunscrição”). Tais critérios correspondem, também, a uma correta aplicação do princípio do benefício, uma vez que a atividade económica situada num certo município pode acarretar para este custos consideráveis, que a derrama vai compensar. Os elementos de conexão que determinam essa proporção são imprescindíveis à correta alocação dos factos tributários e quantificação da receita municipal […]» [sublinhados e negrito meus] – cfr. SANCHES, José Luís Saldanha, A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios, Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, abril-junho 2009, Instituto Superior de Gestão, disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021-/03/38_7_jlss_derrama-E-RECURSOS_f38.pdf.
18. Não se olvidam, contudo, as correntes doutrinárias que põem em causa o princípio do benefício como legitimador da tributação em sede de impostos, sobretudo no Estado da fonte. Neste âmbito, vide PEREIRA, Paula Rosado, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, novembro de 2011, Almedina, pp. 76 a 78.
19. Porém, importa não perder de vista que a derrama municipal (tal como a conhecemos) tem aproximadamente vinte anos, não tendo o seu regime, ao longo do tempo, sofrido alterações de monta. Neste contexto, não é possível ignorar o critério-regra de alocação escolhido pelo legislador – assente na massa salarial de cada município português – e o facto de o mesmo ser um reflexo inegável do princípio (tradicional) do benefício. O regime da derrama municipal está assim fortemente arreigado a este princípio.
20. «O princípio do benefício tem sido tradicionalmente invocado para defender a tributação na fonte […]. Como argumento fundamental, refere-se que é graças ao enquadramento político, legal e económico do Estado da fonte e aos bens e serviços públicos aí disponíveis que se torna possível efetuar investimentos nesse Estado e obter o correspondente rendimento. O benefício retirado pelos investidores de tal enquadramento e a utilização dos aludidos bens e serviços públicos justificam a tributação no Estado da fonte dos rendimentos aí obtidos» – cfr. PEREIRA, Paula Rosado, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, novembro de 2011, Almedina, p. 76.
21. Qualquer interpretação – pretensamente atualista do regime – esbarraria com a letra da lei e com a ratio que, até modificação legislativa em sentido contrário, continua a enformá-la.
22. Constato assim que quer o elemento literal («[…] lançar uma derrama […] sobre o lucro tributável […] que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua [do município] área geográfica») quer os elementos histórico e teleológico (norteados pelos princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos públicos) da norma ínsita no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI não consentem a inclusão de rendimentos de fonte estrangeira na base de incidência objetiva da derrama municipal.
23. Por força da sua natureza especial, o artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI tem precedência (devendo, por isso, prevalecer) sobre o regime geral – i.e., sobre o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”) – quando com o mesmo conflitue, como sucede no concernente à base de incidência objetiva da derrama municipal, a qual é mais restrita que a base de incidência objetiva do IRC stricto sensu. Com efeito, neste contexto, impõe-se a aplicação do brocardo “lex specialis derogat legi generali”.
24. Pelo que, em minha opinião, carece de razão de ser a aplicação global das normas contidas no CIRC em matéria de incidência da derrama municipal (cfr. artigo 191.º da resposta da Entidade Requerida), ignorando-se, por essa via, o disposto no artigo 18.º, n.º 1, do RFALEI.
25. Aqui chegados, importa atentar na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a qual preconiza:
«O legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede […].
[N]o pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do país e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada. Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais […].
[S]ó podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo […]» [sublinhados meus] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT (0924/17).
26. Contrariamente à posição perfilhada na decisão arbitral, entendo haver similitude entre as duas situações – i.e., entre a situação que subjaz aos presentes autos e a situação na origem do aresto supra – (não obstante os rendimentos da segunda provirem de estabelecimentos estáveis situados no estrangeiro e os da primeira não), por, em meu entender, o argumentário avançado fazer antever (indiciar) que o sentido decisório propalado por aqueles Colendos Juízes Conselheiros não seria diferente na ausência dos referidos estabelecimentos estáveis no estrangeiro (i.e., em situação idêntica à dos presentes autos, em que os rendimentos, apesar de advirem do estrangeiro, não são imputáveis a estabelecimento estável nele situado).
27. Com vista a firmar a minha convicção, ative-me essencialmente nas seguintes passagens do acórdão:
«O legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede […].
[N]o pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do país e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário […]» [sublinhados meus].
28. Na esteira desta jurisprudência, considero que os rendimentos de fonte estrangeira, por não serem gerados/obtidos na área geográfica de um município português, estão excluídos do âmbito de aplicação da derrama municipal, sendo esta a solução que melhor se coaduna com os princípios da justiça e da igualdade:
«Só esta forma de entender e operar permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e, por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas. Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva), e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, o estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo)» [sublinhados meus] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT (0924/17).
29. Discordo assim da posição perfilhada na decisão arbitral, no sentido de a fonte económica do rendimento localizar-se em território nacional. O investimento que subjazeu à perceção dos rendimentos em apreço – mais-valias mobiliárias e rendimentos de capitais – foi seguramente efetuado no estrangeiro [seja, por exemplo, pela aquisição (e posterior alienação) de valores mobiliários em entidades residentes no estrangeiro; seja, por exemplo, pela aquisição de participações sociais em tais entidades]. Por outro lado, perante a natureza dos rendimentos em apreço (natureza passiva), a sua perceção não adveio propriamente da prossecução de uma atividade (em território nacional), mas da realização de investimentos (no estrangeiro).
30. Por outro lado, em minha opinião, e contrariamente à posição perfilhada pela Entidade Requerida (cfr. artigo 228.º da sua resposta), chamar à colação o disposto no artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, referente ao crédito por dupla tributação jurídica internacional, mostra-se falacioso.
31. Com efeito, não há evidência de nos Estados da fonte dos rendimentos estrangeiros percecionados pela Requerente nos exercícios de 2019 e 2020 terem vigorado regimes congéneres ao da derrama municipal portuguesa. Pelo que, desconhece-se – e a informação carreada para os autos pelas partes não permite descortinar – se a Requerente efetivamente suportou imposto estrangeiro similar à derrama municipal nacional. Se, porventura, não o suportou, não haverá sequer que equacionar a aplicação do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, claudicando o pressuposto conducente à sua aplicação (verificação de uma situação de dupla tributação jurídica internacional).
32. Não obstante, no cenário de se entender que, para efeitos do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, o imposto sobre o rendimento estrangeiro deve ser visto em sentido lato (i.e., com abstração das suas figuras compósitas: imposto stricto sensu, eventuais derramas, outras figuras que partilhem da mesma natureza), não choca que a coleta de IRC português – ou melhor, «a fração do IRC» na terminologia do referido preceito legal – abarque a derrama municipal, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de novembro de 2021 e 4 de maio de 2022, respetivamente proferidos no âmbito dos processos n.os 0255/17.1BESNT e 0848/16.4BEPNF, e Acórdão do Tribunal Constitucional de 11 de novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 603/2020). Sendo certo que, em última instância, o que releva é a neutralização em Portugal (i.e., no Estado da residência) da tributação sofrida no estrangeiro pela Requerente.
33. Em sentido consonante, Tiago Martins de Oliveira refere:
«[R]esulta do direito tributário internacional, nomeadamente do direito internacional convencional, uma equiparação entre as derramas e o IRC tout court, tratando ambas as realidades como imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. De facto, e apesar de estas realidades surgirem em diferentes alíneas do artigo 2.º das CDT celebradas por Portugal com outros Estados Contratantes, para efeitos daquilo que é a eliminação da dupla tributação prevista no artigo 23.º-B acima mencionado, estas realidades são tratadas de forma indiferenciada como imposto sobre os rendimentos. Assim, poderá afirmar-se que o imposto sobre o rendimento pago noutro Estado Contratante por um residente para efeitos fiscais em Portugal, poderá ser deduzido quer ao IRC tout court quer às derramas a que este se encontre sujeito em Portugal» – cfr. OLIVEIRA, Tiago José Martins de, A Derrama Municipal enquanto Coleta de IRC, Universidade do Porto (Faculdade de Direito), setembro de 2017, p.36, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/110780/2/251983.pdf.
34. Por outro lado, na situação em apreço, dos elementos probatórios juntos aos autos é possível inferir que o imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro (desencadeador de dupla tributação jurídica internacional) ascendeu a 5.748,01 EUR (no exercício de 2019) e 9.262,59 EUR (no exercício de 2020), sendo as coletas de IRC stricto sensu(i.e., expurgadas da derrama municipal) dos exercícios em referência aptas a neutralizar por completo tal tributação, “mirrando”, na prática, a discussão em torno do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do CIRC.
35. Perante o exposto, em consonância com a posição manifestada pela Requerente (e ao arrepio do entendimento perfilhado pela Entidade Requerida), entendo ser o argumentário sufragado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT (0924/17), inteiramente de acolher no âmbito dos presentes autos.
36. Neste contexto, não ignoro o recente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de abril de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 0560/22.5BEALM, de cujo conteúdo resulta:
«A derrama municipal continua a caraterizar-se como um imposto acessório, na medida em que apenas é devida quando seja exigível, em concreto, a prestação tributária principal, subsistindo nessa mesma medida uma relação de dependência entre o imposto municipal e o imposto estadual, tendo passado a incidir não sobre a coleta (isto é, sobre o imposto de IRC já liquidado), mas sobre o lucro tributável (isto é, sobre o rendimento que constitui a base do imposto), passando, desse modo, a dever entender-se, do ponto de vista jurídico-financeiro, como um adicionamento ao IRC em vez de um adicional, situação que convoca as regras para a determinação do lucro tributável previstas no CIRC [artigos 17.º, n.º 1, 3.º e 4.º, n.º 1, do CIRC] […].Deste modo, num primeiro momento, a análise destes preceitos implica a consideração, na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado […]. Com efeito, em relação aos rendimentos obtidos no estrangeiro, como se viu, o artigo 18.º, n.º 13, da Lei n.º 73/2013, de 03-09, é claro ao determinar que, “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo (…)” […]. Na situação dos autos, em nenhum momento se fala em estabelecimentos estáveis ou representações que poderiam implicar uma outra leitura da realidade em apreço. Além disso, a lei não aponta qualquer elemento no sentido de se poder dizer que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direção efetiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos […]. [A] alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica […]. [E]m função dos elementos descritos e de acordo com a norma aplicável (artigo 18.º, n.º 13, da Lei n.º 73/2013, de 03-09), tem de concluir-se que a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sede ou direção efetiva do sujeito passivo, não existindo qualquer razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira. Diga-se ainda que, admitir a exclusão dos rendimentos de fonte estrangeira para efeitos de derrama municipal, implicava tratar de modo diferente as entidades que desenvolvem uma atividade exclusivamente no território nacional e as que desenvolvem atividade também fora desse território, em benefício destas, pois que, no caso de uma entidade com sede num determinado município nacional, mas cuja atividade seja desenvolvida em todo o território nacional, deverá o respetivo lucro tributável, para efeitos de derrama municipal, ser imputável ao município onde se situa a sua sede ou direção efetiva, conforme decorre do disposto nos n.os 1 e 13 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 03-09, não tendo qualquer sentido, nem fundamento legal, fazer uma distribuição dos rendimentos pelos diversos municípios onde os rendimentos foram pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo, a menos que em algum (ou alguns) o sujeito passivo tenha estabelecimento estável ou representação local (e o sujeito passivo tenha matéria coletável superior a €50 000) a que devam ser imputados os rendimentos gerados na respetiva circunscrição territorial, sendo então aplicável o disposto no descrito artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 73/2013, de 03-09, matéria que tem de ser replicada quando os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional. Se assim não fosse, no caso de duas entidades com sede no mesmo município e com o mesmo lucro tributável, mas em que os rendimentos de uma resultassem exclusivamente de atividade desenvolvida em território nacional e os rendimentos da outra fossem parcialmente obtidos com atividade desenvolvida também fora do país, esta pagaria menos derrama municipal do que a primeira, uma vez que os rendimentos pagos fora do território nacional seriam excluídos, situação que colocaria em crise os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, uma vez que duas entidades com idêntica capacidade contributiva seriam tributadas de modo diferente em sede de derrama municipal sem qualquer justificação. Tal equivale a afirmar o princípio de que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo. Finalmente, com referência ao facto de uma potencial dupla tributação jurídica, no caso de os rendimentos em causa terem sido tributados no país da fonte, importa notar que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, de 11-11-2020, Proc. n.º 172/20, decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, na redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, segundo a qual a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da “fração do IRC”, aí prevista, para efeitos de eliminação da dupla tributação internacional, independentemente de os rendimentos serem obtidos em países com os quais Portugal tenha celebrado uma convenção para eliminar a dupla tributação”. Por outro lado, no Ac. deste Supremo Tribunal de 04-05-2022, proc. n.º 0848/16.4BEPNF, foi entendido que a derrama municipal (tal como a derrama estadual) integra o cálculo da "fração do IRC” referida no artigo 91.º, n.º 1, al. b), do CIRC, devendo ser considerada para efeitos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional […]. Deste modo, resulta claro que a derrama municipal só poderá estar abrangida por uma Convenção de Dupla Tributação e o crédito por dupla tributação internacional só poderá ser deduzido à fração do IRC que inclua a derrama municipal se, na base de cálculo da derrama municipal, estiveram também incluídos os rendimentos de fonte estrangeira. Em suma, o probatório fixado nos autos interpretado no sentido exposto na decisão recorrida, por referência a rendimentos obtidos no estrangeiro, não preenche a previsão legal com referência ao exposto no art.º 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2013, de 03-09, sendo que nada emerge dos autos em termos de colocar em crise o princípio de que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo, situação que, naturalmente, determina a procedência deste recurso […]».
37. Porém, não concordo com – não podendo, por isso, aderir ao – sentido decisório perfilhado pelo Supremo Tribunal Administrativo neste último aresto pela seguinte ordem de motivos:
¾ Perante a já abordada relação de especialidade entre o artigo 18.º do RFALEI e o regime ínsito no CIRC, este tem de ceder perante aquele num cenário de conflito normativo, conforme sucede no presente caso, como impõe o brocardo “lex specialis derogat legi generali”.
¾ O n.º 13 do artigo 18.º do RFALEI mostra-se aplicável por contraposição ao n.º 2 do mesmo preceito legal. Em conformidade, este aplica-se quando haja uma pluralidade de estabelecimentos estáveis/representações locais no território nacional e aquele na ausência dessa pluralidade. Assim, na situação sub judice não se afigura aplicável o n.º 13, mas antes o n.º 2, e tão-somente quanto aos rendimentos de fonte doméstica, atento o disposto no n.º 1.
¾ O expurgo dos rendimentos de fonte estrangeira da base de incidência da derrama municipal não é suscetível de bulir com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva. Com efeito, situações distintas (perceção de rendimentos de fonte portuguesa derivada de município(s) português(es) vs. perceção de rendimentos de fonte estrangeira não proveniente de município nacional) merecem tratamentos díspares (tributação em sede de derrama municipal vs. não tributação em sede de derrama municipal), em prol, designadamente, dos princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos públicos. Por outro lado, a não aplicação do regime da derrama municipal aos rendimentos de fonte estrangeira não afasta a tributação destes, a qual terá lugar no Estado da fonte, pelo que o princípio da capacidade contributiva não saí beliscado.
Não obstante, no que respeita ao princípio da capacidade contributiva no contexto do Direito Fiscal Internacional, importa atentar nas seguintes palavras de Paula Rosado Pereira:
«[A]s regras previstas no MC OCDE para os vários tipos de rendimento […] não tomam em consideração o princípio da capacidade contributiva. A atribuição do poder de tributar ao Estado da fonte ou ao Estado da residência […] não depende da existência de capacidade contributiva do sujeito passivo em questão […]. Face ao exposto, consideramos que a tributação de acordo com a capacidade contributiva não corresponde a um valor essencial do DFI, nem tem, em si mesma, um efeito direto determinante ao nível dos respetivos princípios operativos e regras jurídicas – pelo que não se afigura pertinente a inclusão do princípio da capacidade contributiva entre os princípios fundamentais de DFI» – cfr. PEREIRA, Paula Rosado, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, novembro de 2011, Almedina, pp. 80 e 81.
¾ Pelas razões aduzidas nos pontos 25 a 29 supra não choca que a «fração de IRC» inclua a derrama municipal, na esteira dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de novembro de 2021 e 4 de maio de 2022, proferidos no âmbito dos processos n.os 0255/17.1BESNT e 0848/16.4BEPNF, e do Acórdão do Tribunal Constitucional de 11 de novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 603/2020, não sendo tal colidente com o expurgo dos rendimentos de fonte estrangeira da sua base de incidência objetiva.
38. Adicionalmente, considero como não decisivo o sentido decisório perfilhado no referido acórdão, na medida em que:
¾ Tal aresto não foi proferido pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário, pelo que não constitui jurisprudência uniforme;
¾ Desconhece-se a posição da maioria dos juízes em exercício de funções na Secção de Contencioso Tributário quanto à matéria em apreço.
39. Deste modo (e igualmente atentos os elementos probatórios constantes dos autos), prefigurar-se-iam razões suficientemente atendíveis para fundar um juízo de ilegalidade sobre as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2019 e 2020 e, bem assim, sobre a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
40. Em sentido consonante pronuncia-se a jurisprudência arbitral. A título de exemplo, as recentes Decisões arbitrais de 25, 24 e 16 de janeiro de 2025, respetivamente proferidas no âmbito dos processos arbitrais n.os 917/2024-T, 1111/2024-T e 969/2024-T.
41. Aqui chegados, importa verificar se a referida ilegalidade constituiria um erro imputável aos serviços nos termos do artigo 78.º, n.º 1, in fine, da Lei Geral Tributária (“LGT”).
42. No que respeita à comissão de «erro imputável aos serviços», a jurisprudência dos tribunais superiores refere:
«O […] conceito [de erro imputável aos serviços] compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e […] essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afetada pelo erro» [sublinhado meu] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de março de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 01019/14.
«[E]mbora o conceito de “erro imputável aos serviços” aludido na 2.ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetada pelo erro» [sublinhado meu] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de maio de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 0407/15.
«Para a questão se subsumir no artigo 78.º, n.º 1, da LGT importa, desde logo, que o contribuinte não tenha contribuído, por qualquer forma, para a emissão do ato de liquidação, ou seja, não pode existir uma conduta, seja ela ativa ou omissiva [do contribuinte], que tenha determinado a emissão do ato de liquidação, nos moldes em que o foi» [sublinhado meu] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 328/05.3BEALM.
43. Por seu turno, em jeito de síntese, a doutrina sobre a matéria salienta:
«[A] Administração Tributária poderá proceder à revisão oficiosa dos atos tributários no prazo de 4 (quatro) anos após a liquidação […] quando se verificar um erro imputável aos serviços, ou seja, um lapso, um erro material ou de facto, bem como um erro de direito, não se exigindo a demonstração da culpa dos funcionários» – cfr., a título exemplificativo, NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Contencioso Tributário, Volume I (Procedimento, Princípios e Garantias), 2017, Almedina, p. 599.
44. Na situação em apreço, as Modelos 22 de IRC dos exercícios de 2019 e 2020 foram preenchidas pela Requerente em conformidade com os formulários disponibilizados pela Entidade Requerida, os quais não contêm um campo que tivesse permitido àquela declarar o lucro tributável dos exercícios expurgado da parcela respeitante aos rendimentos de fonte estrangeira, o que determinou a errónea liquidação da derrama municipal.
45. Pelo que, o erro cometido não se afiguraria, de modo algum, imputável a comportamento da Requerente, tendo tido única e exclusivamente origem na referida impossibilidade declarativa.
46. No sentido de uma tal impossibilidade declarativa consubstanciar a comissão de erro imputável aos serviços, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT, pronuncia-se a jurisprudência arbitral:
«A ilegalidade das autoliquidações é totalmente imputável à AT, requerida, face ao que foi supra dado como provado relativamente à estrutura da declaração Modelo 22 de IRC no sistema informático da AT, organização que é, naturalmente, da total responsabilidade desta, que não permitia à Requerente efetuar a autoliquidação nos termos que aqui se julgaram serem os legais» – cfr. Decisão arbitral de 14 de agosto de 2017, proferida no âmbito do processo n.º 672/2016-T.
«Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas [...]. Nestas circunstâncias, não podendo a Requerente efetuar a liquidação de acordo com o Direito por tal não ser permitido pelo sistema informático da Requerida, não pode deixar de se considerar ocorrer erro imputável aos serviços [...]. Na verdade,considerando-se ocorrer erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas, por igualdade ou maioria de razão, não poderá deixar de se considerar haver erro imputável aos serviços quando o próprio sistema informático da Requerida impõe a apresentação da declaração nos termos em que a mesma foi efetuada» [sublinhado meu] – cfr. Decisão arbitral de 13 de junho de 2017, proferida no âmbito do processo n.º 669/2017-T.
47. Em sentido idêntico, mas especificamente concernente ao apuramento da derrama municipal, atente-se na Decisão Arbitral de 24 de fevereiro de 2025, proferida no âmbito do processo arbitral n.º 1130/2024-T.
48. Perante o exposto, entendo que a ilegalidade em referência adviria da comissão de erro imputável aos serviços da Entidade Requerida, na aceção do artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT. Pelo que, seriam anuláveis os atos tributários (autoliquidações de IRC, referentes aos exercícios de 2019 e 2020, nos montantes de 81.621,32 EUR e 85.800,99 EUR) e em matéria tributária (decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de 25 de julho de 2024) objeto dos presentes autos, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).
49. Não tomarei conhecimento da questão aventada pela Requerente no âmbito do pedido de revisão oficiosa – referente à existência, no que respeita ao exercício de 2020, de uma situação de injustiça grave ou notória na aceção do artigo 78.º, n.º 4, da LGT – por considerar ter o seu conhecimento ficado prejudicado pela solução jurídica que perfilhei no âmbito da presente declaração de voto [cfr. artigos 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (“CPC”), ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAMT”)].
50. Por último, entendo que, tendo já decorrido o hiato temporal de um ano (a contar da apresentação do pedido de revisão oficiosa – i.e., a contar de 7 de junho de 2024), a Requerente teria direito à perceção de juros indemnizatórios, sobre o montante de 167.422,31 EUR, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
Lisboa, 07 de julho de 2025
Sónia Fernandes Martins
[1] Revisão do Ato Tributário – Comentário ao Art. 78.º da LGT, e-Pública, 2020;
[2] Comentário à LGT, Vol. III, 6.ª ed., Almedina, artigo 78.º;
[3] José Carlos Abreu, A Tributação dos Estabelecimentos Estáveis, Vida Económica, 2012, pág.148