SUMÁRIO
I. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
II. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).
III. Há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência proferido no processo n.º 093/21.7BALSB, de 29/6/2022 onde ficou consignado que: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à AT depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 e 3, da LGT.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro-presidente), Dr.ª Rita Guerra e Dr. Nuno M. Morujão (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 31-03-2025, acordam no seguinte:
I- Relatório
1.A..., com o NIPC..., adiante designada por “Requerente”, veio, ao abrigo da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 10.º do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 99.º e com o n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia arbitral sobre pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e, bem assim, das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas em 2022, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, pela quantia total de 569.891,35 € (quinhentos e sessenta e nove mil, oitocentos e noventa e um euros, e trinta e cinco cêntimos).
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 22-01-2025.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas da designação dos árbitros em 11-03-2025, não tendo arguido qualquer impedimento.
4. O Tribunal Arbitral foi constituído em 31-03-2025, sendo que em 02-04-2025 foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta e remeter cópia do processo administrativo, e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.
5. Em 12-05-2025, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo.
6. A Requerente sustenta o pedido que formula alegando, em síntese:
a) A questão decidenda nos presentes autos reconduz-se à apreciação da legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa em referência e, nessa medida, da legalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte que incidiram sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pelo Requerente em 2022.
b) Os OIC não residentes são objeto de uma discriminação contrária ao TFUE (artigo 63.º), na medida em que o regime de isenção de IRC (cf. 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, al. c), 3, al. b) e 5, 87.º, n.º 4 do CIRC), previsto no artigo 22.º, n.º 1, 3 e 10, do EBF é aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (i.e., ao abrigo da Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpõe a Diretiva 2009/65/CE), não permitindo o Estado português que os OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE, acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa.
c) Sendo de recordar que, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Direito Comunitário é aplicável na ordem interna nos termos do Direito da União, isto é, por força do primado da legislação comunitária sobre o Direito interno, conforme se infere igualmente do disposto no artigo 8.º, n.º 2, da CRP e do artigo 1.º, n.º 1, da LGT.
d) Em concreto, cumpre apurar se as liquidações de IRC por retenção na fonte em referência devem ser anuladas, por ilegais, com a inerente restituição do imposto indevidamente retido, no montante total de EUR 569.891,35, acrescido de juros indemnizatórios.
e) Na medida em que o artigo 22.º, n.º 1, 3 e 10, do EBF, faz depender a dispensa de retenção na fonte e tributação em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por um OIC da respetiva residência em território português, os OIC não residentes constituídos e a operar em condições equivalentes, ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE, encontram-se numa situação objetivamente comparável à dos OIC residentes em território português, podendo em ambos os casos os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal ser objeto de uma dupla tributação económica ou de uma tributação em cadeia.
f) Neste contexto, constata-se que as liquidações de IRC objeto dos presentes autos assentam numa situação de discriminação que viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.
g) De acordo com as regras e princípios de Direito da União Europeia que prevalecem sobre a legislação nacional, nas situações como a ora em análise, impende sobre o Estado Português a obrigação de, no âmbito do exercício da sua soberania tributária sobre os dividendos auferidos pelo Requerente, tratar os mesmos de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OIC acionista residente em situação análoga – ou seja, de não discriminar entre OIC acionistas residentes e não residentes.
h) A AT incumpriu o dever de decisão dentro do prazo legal da reclamação graciosa, tempestiva, que antecedeu os presentes autos, verificando-se portanto o indeferimento tácito.
7. A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) ofereceu Resposta, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:
a) A título prévio: Sendo a Requerente um organismo de investimento coletivo (OIC) e um sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável, deverá o peticionado ser julgado improcedente.
b) A Requerente sustenta que os dividendos auferidos, no montante de 3.799.275,63 €, foram sujeitos a tributação em Portugal, por retenção na fonte, à taxa de 15%, prevista no n.º 2 do artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação Portugal - Luxemburgo, no valor de 569.891,35 €. O valor do reembolso peticionado em 2022 corresponde à totalidade da retenção na fonte efetuada à taxa de 15%, que foi, alegadamente, entregue através das guias de Retenção na Fonte n.º ... e ..., entregues por B... SA, NIPC português ... . Porém, apresentando esta valores muito diferentes ao reclamado, torna-se impossível a confirmação do pedido.
c) Recorrendo ao Acórdão Schumacker (processo C-279/03), o direito internacional admite que, em matéria de impostos diretos, as relações entre residentes e não residentes não são comparáveis, pois apresentam diferenças objetivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar ou pessoal.
d) Nos termos do Acórdão Truck Center (C-282/07, de 22-12-2008), “(…) sujeitos passivos residentes e não residentes não se encontram numa situação objetivamente comparável”.
e) O princípio da não discriminação atende à necessidade de conferir tratamento igual ao que é igual e diferente àquilo que é diferente, na medida dessa diferença.
f) De facto, resulta da jurisprudência do TJUE que determinada norma ou prática pode ser discriminatória, entrando em conflito com o Direito Comunitário, se não for objetivamente justificada. Ora, no caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português.
g) Veja-se aliás, que nos Acórdãos Bachman (C-204/90) e Comissão/Bélgica (C-300/90), e embora essa jurisprudência tenha sido objeto de aperfeiçoamento em decisões mais recentes, um tratamento discriminatório de entidades não residentes foi permitido pela razão de interesse geral e a coerência do sistema fiscal nacional. Ainda no Acórdão Marks & Spencer (C-446/03), o TJUE concluiu que a residência pode constituir um fator justificador das normas fiscais que implicam uma diferença de tratamento entre contribuintes residentes e não residentes.
h) Aliás, o TFUE refere expressamente que «a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros (artigo 63.º, nº 1, do TFUE), não prejudica os Estados-Membros de aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido” [artigo 65º, nº 1, al. a), do TFUE]» (cf. se prolatou no Acórdão do STA, n.º 01435/12, de 20/02/2013).
i) O STA, no âmbito do processo n.º 0654/13, de 27 de Novembro referiu ainda que, “Resulta da jurisprudência comunitária que embora da legislação nacional decorra, em abstrato, uma restrição à livre circulação de capitais não consentida pelo art. 56º do Tratado da Comunidade Europeia (atual art. 63º TFUE), importa averiguar se essa restrição, consubstanciada em maior tributação de entidade não residente, será neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação”.
j) Deste modo, e como se referiu, o decreto-lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, veio proceder à reforma do regime de tributação dos OIC, ficando estes sujeitos passivos de IRC excluídos na determinação do seu lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais valias, referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, conforme prevê o n.º 3 do artigo 22.º do EBF a que acresce a isenção das derramas municipal e estadual, conforme n.º 6 da mencionada norma legal.
k) Contudo paralela a esta opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC.
l) Ou seja, optou-se por uma tributação na esfera do Imposto do Selo tendo sido aditada, à TGIS, a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.
m) Esta reforma na tributação veio apenas a incidir sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, dela ficando excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
n) Por outro lado, está também prevista a tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º, do Código do IRC e do n.º 8 do artigo 22.º do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.
o) Por isso, no presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente.
p) E ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.
q) Ou seja, a aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, não pode levar a concluir, em nossa opinião, por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois, como se viu, embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não se pode afirmar que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
r) E não sendo as situações comparáveis parece difícil de aceitar o argumento da requerente de que a legislação nacional e particularmente o artigo 22.º do EBF está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais, tendo em apreço a proibição geral de discriminação face a uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º do referido TFUE.
s) Conforme antedito, não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.
t) Em face do exposto e inexistindo qualquer ilegalidade sobre os atos impugnados, não há, lugar ao pagamento de juros indemnizatórios (cf. Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 30 de janeiro 2019, proferido no âmbito de recurso para Uniformização de Jurisprudência (Proc. 0564/18.2BALSB)).
8. Por Despacho Arbitral, de 14-05-2025, notificaram-se as partes da dispensa a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste, cf. artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.
9. As partes apresentaram alegações escritas no prazo legal, pugnando, no essencial, pelas posições inicialmente defendidas.
II- Saneamento
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, sendo beneficiárias de legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.
Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
O processo não enferma de nulidades.
Foi suscitada uma questão prévia, respeitante à legitimidade subjetiva da Requerente.
Questão prévia: da legitimidade subjetiva da Requerente
Refere a AT na sua Resposta (§ 10), ainda que não devidamente autonomizada, uma questão prévia:
“A título prévio, sempre se dirá que, sendo a Requerente um organismo de investimento coletivo (OIC) e um sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável, deverá o peticionado ser julgado improcedente”.
Essa circunstância de facto quanto à Requerente ser não residente ou não ter um estabelecimento estável em Portugal, é provada, mas não diminui a legitimidade processual do sujeito passivo, que decorre do artigo 10.º, n.º 2, do RJAT.
Termos em que improcedente a exceção quanto à ilegitimidade processual do sujeito passivo.
Não foram suscitadas questões prévias adicionais.
Cumpre apreciar e decidir.
III - Fundamentação
III.1.1- Matéria de facto
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
a) A Requerente é um OIC, com sede e direção efetiva no Grão-Ducado do Luxemburgo (cf. cópias de certificado de residência do Requerente, Doc.2).
b) A Requerente é administrado pela sociedade C..., residente no Grão-Ducado do Luxemburgo (cf. cópias de certificado de residência do Requerente, Doc.3).
c) Em 2022, a Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 3.799.275,63 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte, nos seguintes termos:
Entidade
|
Data
|
Dividendo bruto
|
Retenção na fonte
|
Dividendo líquido
|
D...
|
18-05-2022
|
843.794,93
|
126.569,24
|
717.225,69
|
D...
|
18-05-2022
|
129.660,81
|
19.449,12
|
110.211,69
|
D...
|
18-05-2022
|
68.492,83
|
10.273,93
|
58.218,90
|
D...
|
18-05-2022
|
164.013,98
|
24.602,10
|
139.411,88
|
D...
|
18-05-2022
|
1.430.751,99
|
214.612,80
|
1.216.139,19
|
D...
|
18-05-2022
|
68.942,63
|
10.341,39
|
58.601,24
|
D...
|
18-05-2022
|
999.197,46
|
149.879,62
|
849.317,84
|
D...
|
18-05-2022
|
21.702,90
|
3.255,43
|
18.447,47
|
E...
|
20-09-2022
|
8.941,92
|
1.341,29
|
7.600,63
|
E...
|
20-09-2022
|
63.776,18
|
9.566,43
|
54.209,75
|
Totais
|
3.799.275,63
|
569.891,35
|
3.229.384,28
|
(cf. artigo 5.º da Reclamação Graciosa junta aos autos em Doc. 1 e cf. Declaração da sociedade gestora do OIC, junta aos autos em Doc. 5, bem como Doc. 1 e 4 do PA junto aos autos pela Requerida, incluindo a descrição do pedido onde são referidas estas quantias).
d) As retenções na fonte de IRC em causa, no montante total de 569.891,35 €, foram efetuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.º ..., de 20-06-2022, e..., de 20-10-2022, pelo B..., pessoa coletiva com o NIF em Portugal ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC (cf. artigo 5.º da Reclamação Graciosa junta aos autos em Doc. 1 e cf. Declaração da sociedade gestora do OIC, junta aos autos em Doc. 5, bem como Doc. 1 e 4 do PA junto aos autos pela Requerida, incluindo a descrição do pedido onde são referidas estas quantias).
e) A Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência, relativo à retenção na fonte antes mencionada (cf. cópia de declaração emitida pela entidade gestora do Requerente, Doc. 6).
f) Em 20-06-2024 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as liquidações de IRC acima identificadas, referentes ao ano de 2022 (cf. Doc. 1).
g) Em síntese, a Requerente sustentou na reclamação graciosa que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.º 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), sob pena de tal consubstanciar uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, contrária ao princípio da livre circulação de capitais ínsito no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, consequentemente, ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), cf. Doc. 1.
h) Volvidos mais de quatro meses sobre a data de apresentação da referida reclamação graciosa, a Requerente não foi notificada pela Administração Tributária de decisão final em sede do correspondente procedimento, verificando-se assim uma situação de indeferimento tácito.
III.1.2- Factos não provados
Inexistem factos que se considerem não provados, com relevo para a boa decisão deste pleito, exceto o seguinte: não se demonstrou ter sido prestada garantia com hipoteca de imóveis em processo de execução fiscal atinente a esta liquidação.
III.1.3- Fundamentação da fixação da matéria de facto
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, o PPA e a Resposta junto aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III.2- Matéria de Direito
III.2.1- Quanto à legalidade dos atos tributários impugnados IRC
Na esteira de abundante jurisprudência sobre a mesma matéria, a questão essencial a decidir traduz-se em saber se as liberdades fundamentais previstas no TFUE se opõem à aplicação dos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 6, do CIRC e 22.º, nºs 1, 3 e 10, do EBF, dos quais resulta a tributação, por retenção na fonte, sobre os rendimentos de capitais pagos por uma sociedade localizada em Portugal a um OIC não residente – in casu, o Requerente –, não determinando, contudo, semelhante tributação sobre os rendimentos de capitais pagos, nas mesmas condições, a um OIC constituído e a operar em território nacional.
No essencial, cumpre verificar se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.
Seguindo de perto as decisões dos Tribunais Arbitrais do CAAD constantes dos processos nº 60/2024-T, 447/2024, 620/2024-T e 709/2024-T (presididos pelo Prof. Doutor Rui Duarte Morais), bem como processos n.º 1132-2024-T; 975-2024-T; 734/2024-T; 712/2024-T (presididos pela Conselheira Fernanda Maçãs), entre outros acórdãos no mesmo sentido, é de salientar que esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T, Mariana Vargas), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito firmada [1]:
“37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63. ° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida)”.
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
Termos em que se impõe julgar procedente o pedido arbitral, concluindo-se que os atos de retenção na fonte, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
III.2.2- Juros indemnizatórios.
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, além da jurisprudência do CAAD antes mencionada, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS, relator: Anabela Russo).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência proferido no processo n.º 093/21.7BALSB, de 29/6/2022, relator: Joaquim Condesso: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à AT depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 e 3, da LGT.
IV- Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
1) Anular, por ilegais, as liquidações (retenções na fonte, a título definitivo) que incidiram sobre os dividendos auferidos pelo Requerente, em 18/5/2022 e 20/9/2022, no montante total de 569.891,35 € (quinhentos e sessenta e nove mil, oitocentos e noventa e um euros, e trinta e cinco cêntimos) de IRC;
2) Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais, contados desde[1] o indeferimento tácito da reclamação graciosa.
3) Condenar a Requerida ao pagamento das custas processuais.
V- Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 569.891,35 € (quinhentos e sessenta e nove mil, oitocentos e noventa e um euros, e trinta e cinco cêntimos).
VI- Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 8.568,00 € (oito mil, quinhentos e sessenta e oito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de julho de 2025.
Os Árbitros,
Fernanda Maçãs.
(presidente)
Rita Guerra
(vogal)
Nuno M. Morujão
(vogal relator)
[1] De acordo com o Despacho de Retificação de 2025-07-16