Sumário:
A anulação do ato tributário pela própria AT, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória dos Requerentes, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 14 de fevereiro de 2025, A..., NIF..., B..., NIF..., ambos residentes na Rua ..., ... Almada, e C..., NIF..., residente na..., n.º..., ...-... Almada, (doravante, Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à (i)legalidade dos atos de liquidação de IRS n.º 2024... e n.º 2024..., ambos referentes ao ano de 2022.
Os Requerentes juntaram prova documental, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 18 de fevereiro de 2025.
3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 8 de abril de 2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 30 de abril de 2025.
4. Na sequência de despacho arbitral, datado de 30 de abril de 2025, foi a Requerida notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT.
5. Em 4 de junho de 2025, a Requerida apresentou um requerimento comunicando “a revogação dos atos impugnados nos autos”, tendo instruído esse mesmo requerimento com a Informação n.º 238/25 da DSIRS, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, documento do qual consta o despacho, datado de 02.06.2025, proferido pelo Subdiretor-Geral da AT, por delegação de competências, com o seguinte teor: “Revogo os atos contestados.”
6. Em 9 de junho de 2025, devidamente notificados para o efeito, os Requerentes pronunciaram-se relativamente àquele requerimento apresentado pela Requerida, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos e dos quais importa respigar o seguinte segmento: “vêm declarar nada ter a opor à extinção da instância.”
II. Saneamento
7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo (cf. artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Admite-se a coligação de autores e a cumulação de pedidos, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
8. Pelas razões adiante aduzidas e desenvolvidas, não há que elencar os factos relevantes para a apreciação do mérito da causa; com efeito, como veremos, o vertido no Relatório afigura-se bastante para alicerçar o que adiante se decidirá.
III.2. De Direito
9. Os Requerentes vieram solicitar a constituição de tribunal arbitral para apreciar a (i)legalidade dos atos de liquidação de IRS n.º 2024 ... e n.º 2024 ..., ambos referentes ao ano de 2022.
Como acima referido (cf. ponto 5. do Relatório), por despacho do Subdiretor-Geral da AT, datado de 02.06.2025, os atos objeto do pedido de pronúncia arbitral foram revogados, com fundamento no aduzido na Informação n.º 238/25 da DSIRS, que aqui se dá por inteiramente reproduzida.
10. No concernente à natureza jurídica daquele ato praticado pelo Subdiretor-Geral da AT, importa referir que o atual Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação, ou seja, a revogação ab-rogatória ou extintiva e a revogação anulatória.
Como decorre do vertido no artigo 165.º do CPA, a revogação “é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade” cf. n.º 1), sendo a anulação administrativa “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade” (cf. n.º 2). A revogação, por regra, “apenas produz efeitos para o futuro” (cf. artigo 171.º, n.º 1, do CPA), enquanto a anulação administrativa, salvo disposição especial, “produz efeitos retroativos” (cf. artigo 171.º, n.º 3, do CPA) e “produz efeitos repristinatórios” (cf. artigo 171.º, n.º 4, do CPA).
No caso sub judice, a AT entendeu revogar os atos tributários impugnados com fundamento em considerações de legalidade e não de mera discricionariedade, pelo que, apesar de adotar a terminologia anteriormente aplicável, praticou, segundo a atual terminologia, um ato de anulação administrativa, tendo determinado, no rigor dos termos, a anulação dos atos tributários impugnados.
11. No respeitante às consequências processuais de tal anulação administrativa, importa ter em consideração o artigo 64.º do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, particularmente o disposto nos seus n.ºs 1 e 2:
“1 – Quando, na pendência do processo, o ato impugnado seja objeto de anulação administrativa acompanhada ou sucedida de nova regulação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades, sendo aproveitada a prova produzida e dispondo o autor da faculdade de oferecer novos meios de prova.
2 – O requerimento a que se refere o número anterior deve ser apresentado no prazo de impugnação do ato anulatório e antes do trânsito em julgado da decisão que julgue extinta a instância.
(…)”
Nesta norma está prevista a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição, contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em agir.
No caso sub judice, afigura-se evidente que não é essa a situação que se verifica. Com efeito, a AT anulou os atos tributários controvertidos sem que tenha instituído uma qualquer nova regulação da situação jurídica, tendo-se, pois, limitado a conformar-se com o reconhecimento da ilegalidade dos atos tributários anteriormente praticados. Ora, como decorre do estatuído no citado n.º 2 do artigo 64.º do CPTA, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex viartigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Efetivamente, “a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do acto administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual” (decisão arbitral do processo n.º 215/2018-T; no mesmo sentido, a decisão arbitral do processo n.º 358/2024-T), conducente à extinção da instância e que, por isso, obsta a uma pronúncia arbitral de mérito.
12. A finalizar, importa referir que a AT procedeu à anulação dos atos tributários controvertidos quando este Tribunal Arbitral singular se encontrava já constituído – mais concretamente, após a notificação para apresentar Resposta e juntar o processo administrativo –, pelo que o prosseguimento do processo só à Requerida pode ser imputável; consequentemente, as custas do processo devem ser totalmente imputadas à Requerida (cf. artigo 536.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, com todas as legais consequências;
b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 4.664,76 (quatro mil seiscentos e sessenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 612,00 (seiscentos e doze euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, 20 de junho de 2025.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)