Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1040/2024-T
Data da decisão: 2025-07-01  IVA  
Valor do pedido: € 1.936.805,58
Tema: IVA. Locação financeira. Pro rata. Direito à dedução.
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SUMÁRIO: 

1. Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária apenas pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando esteja demonstrado casuisticamente que a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação.

2. O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Diretiva.

3. Termos em que a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do "coeficiente de imputação específico" indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP), da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, e da igualdade ( artigo 13.º da CRP), não tendo o legislador feito uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Fernanda Maças (árbitro-presidente), Profª. Doutora Clotilde Palma e Drª. Sofia Ricardo Borges (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I-RELATÓRIO

1.A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, sociedade com sede em ..., ..., ...-..., ..., com o número de identificação de pessoa coletiva e de contribuinte..., vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a Constituição do Tribunal Arbitral  tendo por objeto a decisão de indeferimento, proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Serviço Central da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, que recaiu sobre a Reclamação Graciosa apresentada contra o ato de Autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referente aos períodos de dezembro de 2021 e de 2022, bem como, os atos de autoliquidação propriamente ditos.

 

2. Por despacho, de 25 de novembro de 2024, na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros indicados pelas Partes (a Prof.ª Doutora Clotilde Palma pela Requerente e a  Drª. Sofia Ricardo Borges, pela Requerida), o Presidente do Conselho Deontológico designou árbitro presidente a Exma. Senhora Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. Que aceitou o encargo.

O Tribunal Arbitral foi constituído 13 de dezembro de 2024 para apreciar e decidir o objeto do processo.

 

3- A fundamentar o pedido alega, entre o mais, a Requerente:

a)     A AT, através do Ofício-Circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30 janeiro de 2009, estabelece: “No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente atividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução” (cfr. ponto 5 do Ofício Circulado), concluindo que “considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a «distorções significativas na tributação», os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades” (cfr. ponto 8 do Ofício-Circulado); 

b)    O aludido Ofício-Circulado prevê ainda que “Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.” (cfr. ponto 9 do Ofício-Circulado);

c)     A Requerente defende que existiu um erro nas autoliquidações do IVA, pois considera que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2021 e de 2022, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (i.e., por via do método de dedução do pro rata), incorporando no cálculo o valor da “amortização financeira” das rendas de Leasing e ALD, do que resultaria o apuramento, com referência ao ano de 2021, de uma percentagem de 77%, e não de 16%, e para o ano de 2022, de uma percentagem de 84%, e não de 21%, o que teria implicado um valor de dedução adicional no total de € 1.936.805,58, apurado nos termos do quadro da p. 7 do Pedido arbitral, que se dá por reproduzido; 

d)    As operações de locação financeira realizadas pela Requerente implicam a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens, nos casos de contratos de ALD e de Leasing; 

e)     Esses recursos comuns ou de utilização mista referem-se aos serviços centrais da Requerente, pois a mesma não dispõe de balcões de atendimento ao público, nem de departamentos internos dedicados exclusivamente aos produtos de Leasing e ALD. Nessa medida, os recursos são utilizados simultaneamente em todas as atividades por si desenvolvidas, assim como, e de forma indiscriminada, na gestão, entrega e disponibilização dos veículos e na gestão dos próprios contratos de locação financeira/ALD); 

f)     A Requerente utiliza, primordialmente, o método do pro rata para efeitos de determinação do imposto incorrido nos recursos de utilização mista que é dedutível (calculado de acordo com o coeficiente de imputação específico do mencionado Ofício-Circulado), sendo o mesmo apurado e objeto de regularização na declaração referente ao último período de imposto do ano; 

g)    Concretamente e no âmbito dos contratos de ALD celebrados, quer com clientes empresariais, quer com clientes individuais e consumidores finais, são várias as responsabilidades que impendem sobre a Requerente, em relação à disponibilização e gestão dos bens objeto de aluguer, como por exemplo as seguintes: ‒ Autorização da realização de modificações no veículo; ‒ Em caso da identificação de qualquer defeito ou deterioração no momento da receção e durante todo o período de garantia, a Requerente efetuará a gestão destas situações e diligenciará para que as reparações sejam efetuadas pelo fornecedor ou representante; ‒ Encargo com os custos relativos à receção e entrega do veículo ao seu cliente; ‒ Verificação das condições do veículo no término do contrato, designadamente, seja realizada por si ou pelo fornecedor, uma inspeção aos veículos para verificação do cumprimento dos próprios contratos; Em caso de denúncia do contrato ou não exercício da opção de compra pelo cliente, a Requerente incorre em custos relacionados com a determinação do local para a receção do veículo, armazenamento, assim como nos processos de venda dos bens no mercado; ‒ Seguro de responsabilidade civil destinado a salvaguardar a posição da Requerente caso o locatário incumpra a obrigação contratual/legal de manter válido e eficaz um seguro de responsabilidade civil;

h)    No que concerne aos contratos de Locação, recaem sobre a Requerente responsabilidades idênticas às acima referidas, relativas à disponibilização e gestão dos bens objeto de locação financeira, designadamente as de receber e de gerir os bens cuja opção de compra não é exercida;

i)      Para o exercício das atividades de ALD e de Leasing, são desde logo identificados determinados custos comuns que a Requerente suporta na sua atividade, como um todo, tais como, custos administrativos, rendas, telecomunicações ou informática;

j)      Existem depois vários recursos, humanos e materiais, já acima referidos e que, embora não sejam quantificáveis, estão exclusivamente afetos à disponibilização e gestão dos bens dados em locação financeira e ALD, como, por exemplo e desde logo, os que respeitam à interação com os fornecedores dos bens (importadores, concessionários), no âmbito da entrega dos mesmos aos clientes, bem como necessidade de realização de registos contabilísticos relacionados, nomeadamente, com as situações em que o cliente não exerce a opção de compra, para assegurar que a viatura não permanece muito tempo como “stock para venda”, com a contabilização de todos os pagamentos de IUC’s ou, ainda, a contabilização das faturas de venda e o tratamento contabilístico e fiscal e fluxo financeiro dos respetivos pagamentos, que se prolonga ao longo da duração do contrato, o que não ocorre  nos contratos de crédito;

k)    A Requerente não possui um departamento que seja responsável pela gestão dos contratos de Leasing e de ALD, sendo utilizados os recursos humanos comuns a toda a empresa, apesar de esporadicamente ter alguns funcionários afetos especificamente a essas duas atividades;

l)      Na prática, as operações de locação financeira são realizadas com recurso a vários departamentos centrais (de contabilidade, marketing, risco de crédito, jurídico, recuperação de crédito/bens, remarketing, entre outros);

m)   Inerente aos contratos de ALD e de Leasing, existe igualmente a necessidade de análise e gestão de toda a documentação associada à propriedade dos bens, o que implica, entre outros procedimentos, a validação e o pagamento de impostos (IUC), de multas ou de outras importâncias que estejam associadas a essa propriedade, bem como, a respetiva imputação de tais montantes aos locatários (quando aplicável), competindo à Requerente responder a notificações emitidas pelas autoridades competentes, no âmbito de contraordenações rodoviárias, procedendo, por essa via, à identificação do locatário, designadamente, para evitar a instauração contra si, na qualidade de proprietário dos bens, de processos judiciais para cobrança de montantes em dívida, ou ainda gerir processos de sinistro, designadamente quando se verifique a apreensão dos documentos dos veículos de que é proprietária;

n)    Existem igualmente custos com a contratação de prestadores externos, responsáveis pela recuperação de dívida dos clientes, no caso de incumprimento (incluindo serviços de advogados), mas também nos casos em que haja necessidade de reboque dos veículos;

o)    A Requerente tem também de recorrer a uma empresa que é responsável pelas peritagens aos veículos que vão ser novamente colocados no mercado, suportando o respetivo custo com essa peritagem, o qual não é cobrado a qualquer cliente;

p)    Os custos e as tarefas acima identificadas, embora comuns e não quantificáveis, são específicos dos contratos de ALD e de Locação e não são executados nas situações de financiamento automóvel, através de contratos de crédito, assim como os recursos humanos e materiais específicos para tratar do processo de recondicionamento das viaturas, tendo em vista a sua recolocação no mercado;

q)    Ou seja, no que respeita a viaturas de contratos de leasing ou ALD, que são devolvidos à Requerente no fim do contrato, existe a necessidade de alocar recursos humanos e materiais específicos para tratar do processo de recondicionamento dos mesmos, tendo em vista a sua recolocação no mercado, o que não sucede com os veículos objeto de contratos de crédito (cuja propriedade não é da Requerente);

r)     Esses recursos comuns e todas as estruturas envolvidas nas atividades de Leasing e de ALD afetam indistintamenteos recursos da Requerente, quer os relacionados com a disponibilização e gestão dos bens locados, quer os relacionados com a gestão e financiamento dos contratos, pelo que a Requerente não consegue quantificar os recursos humanos e materiais exclusivamente afetos às atividades de Leasing e de ALD, razão pela qual não é possível utilizar o método da afetação real previsto no artigo 23.º, n.º2, do Código do IVA. Com base em critérios objetivos, o único método legalmente admissível é o método do pro rata de dedução (previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA), o qual tem de, legalmente, incluir na respetiva fração os montantes referentes às amortizações financeiras (capital) incluídas nas rendas de locação financeira;

s)     Alega a Requerente que a interpretação da Requerida é desconforme com as normas de Direito da União Europeia e de Direito Nacional, porquanto não só o método do pro rata é aquele que o sistema de IVA português, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do respetivo Código, escolheu como o método de dedução, por excelência, relativamente aos recursos comuns, como a aplicação concreta deste método passa pela aplicação de uma fórmula de cálculo imperativamente definida pelo legislador, nacional e comunitário, quer quanto ao tipo de operações a considerar, quer quanto ao correspondente valor tributável;

t)      Embora o pro rata de dedução, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, seja o método de eleição para a dedução do IVA dos recursos comuns, o seu afastamento é possível em duas circunstâncias, uma especial e outra excecional, previstas no n.o 2 e no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA: i) Por opção do sujeito passivo em aplicar o método da afetação real; ii) Por imposição da AT, a qual poderá apenas ocorrer se (i) o sujeito passivo exercer atividades económicas distintas ou (ii) a aplicação do método do pro rata conduzir a distorções significativas na tributação;

u)    O Ofício-Circulado em causa procede à aplicação dos rácios aí previstos, de forma geral e indiscriminada, isto é, a todo e qualquer contribuinte, sendo que a lei parece claramente exigir que seja analisada a situação concreta de cada contribuinte, ponderadas, por exemplo, as vicissitudes e especificidades do seu negócio – cfr. n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA;

v)    Conclui-se que a AT não poderia impor tal método da afetação real pois, por um lado, não estão em causa atividades distintas, e, por outro, não se vislumbram distorções significativas na tributação, que viabilizem a adoção do método da afetação real e, muito menos, de um critério baseado no volume de negócios (cindindo a componente de capital da componente de juro);

w)   Quanto à não conformidade do Ofício circulado n.º 30108 com a legislação nacional, alega a Requerente que qualquer imposição de um método de cálculo para apuramento do IVA dedutível em entidades com restrições no direito à dedução, deverá ser efetuada por Lei da Assembleia da República, de forma a respeitar o Princípio da Legalidade, ou a Reserva de Lei, conforme consagrado no n.º 2 do artigo 103.º, no n.º 5 do artigo 112.º e na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º;

x)    As orientações administrativas – entre as quais se inclui o Ofício-Circulado em causa - apenas vinculam os órgãos da AT de hierarquia inferior ao autor das mesmas e, mesmo assim, apenas quando não contrariem preceitos legais vigentes, não sendo vinculativas, nem para os contribuintes, nem para os tribunais;

y)    No que se refere à jurisprudência do TJUE a Requerente menciona a seu favor em especial a vertida no processo C-153/17 (Volkswagen Financial Services)[1], o qual voltou, em 2018, a analisar “se o artigo 168.º e o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às prestações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não são repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, a parte tributável da operação, mas sim no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, a parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, [se] os Estados‑Membros podem aplicar um método de repartição que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega” (ponto 27). E, nesse âmbito, o TJUE declarou que os “artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios” (nosso negrito);

z)     E, em conclusão, considerou o TJUE que “(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. parágrafo 59 do referido acórdão – sublinhado nosso);

aa)  A Requerente salienta que, quanto ao ónus da prova,  o caso Volkswagen, é menos exigente, bastando a demonstração de que os custos gerais são, em certa medida, efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos (não sendo, então, exigível que tais custos gerais constituam a maioria dos custos gerais) – i.e., existindo (alguns) custos gerais realizados para a disponibilização dos veículos objeto de contratos de locação financeira, estes (custos gerais) devem ser considerados como um elemento constitutivo do preço da disponibilização do veículo, não podendo os Estados-Membros aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do método do pro rata;

bb) Por último, importa esclarecer, “que esta jurisprudência (do Banco Mais) apenas é aplicável a bancos que, a par da actividade bancária geral, isenta de IVA, desenvolvem também operações tributadas em IVA de locação financeira e ALD, de muito menor dimensão que a actividade isenta; 

cc)  A não aplicação dessa jurisprudência do TJUE a instituições financeiras que não desenvolvem atividade bancária geral foi esclarecida, com a autoridade do Pleno, pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 30-09-2020, processo n.º 026/20.8BALSB: (...) a doutrina que emana do Acórdão proferido pelo TJUE a 10 de Julho de 2014 no processo n.º C-183/13 (Acórdão Banco Mais) vale para os Bancos, que exercem operações de locação financeira concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, mas não para outras entidades, como as Instituições Financeiras de Crédito cuja actividade específica é o Leasing.(…);

dd) Não desenvolvendo a Requerente uma atividade bancária geral – apenas realiza operações financeiras relacionadas com a disponibilização de veículos automóveis das marcas do Grupo – não lhe será, em qualquer caso, aplicável o entendimento do TJUE na Banco Mais (conforme jurisprudência arbitral e do STA já referida supra), devendo, então, ser de considerar o entendimento versado no acórdão Volkswagen Financial Services;

ee)  Quanto à jurisprudência nacional, a Requerente cita a seu favor  exemplos os recentes de acórdãos proferidos nos processos arbitrais n.º 755/2023-T, n.º 568/2023-T, n.º 532/2023-T (respeitante ao IVA dos recursos mistos de 2020 da aqui Requerente) e n.º 494/2023-T, os quais foram veiculados posteriormente à jurisprudência uniformizadora do STA, e que vêm na sequência de processos mais antigos, igualmente decididos a favor dos contribuintes, como o sejam os processos arbitrais n.º 576/2021-T, n.º 844/2021-T, n.º 76/2022-T ou n.º 259/2022-T, 594/2023-T e 532/2023-T;

ff)   Concluindo, a Requerente invoca, com todas as consequências e para todos os efeitos legais, a ilegalidade e a inconstitucionalidade dos atos de autoliquidação sub judice, nos seguintes termos: a. Inconstitucionalidade material atenta a desconformidade do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, na interpretação que permite à AT impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, com o disposto nos artigos 103, n.º 2, 112.º, n.º 5, 3 165.º n.º 1, alínea i), da CRP; b. Inconstitucionalidade atenta a imposição, por via de circular administrativa e não de diploma legislativo, do método de dedução previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 no âmbito do Direito Nacional, o que viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º 2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT];c. Inconstitucionalidade material atenta a desconformidade das normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP); d. Ilegalidade por vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade [atento o disposto nos artigos 103, n.º 2, 112.º, n.º 5, 3 165.º n.º 1, alínea i), da CRP], decorrente da ilegalidade da imposição, pela AT, das regras dos n.ºs 8 e 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, vício esse que justifica a anulação das autoliquidações, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que as confirmou; e. Ilegalidade por vício de erro sobre os pressupostos de facto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;

 

4- A Requerida, na Resposta, argumentou, em síntese:

a)     A Requerida começou por se defender por impugnação em relação à matéria de facto alegando que a mera enumeração, por parte da Requerente, de “exemplos” de tarefas, desprovida de qualquer concretização mínima, não pode provar que hajam verdadeiramente sido alegados – e muito menos demonstrados – tais “exemplos” e “tipologias” abstratas de atividades e, salvo melhor opinião, inviabiliza o efetivo exercício do contraditório por parte da Requerida;

b)    Não existe qualquer erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA em causa, baseadas no Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, consubstanciado num erro no apuramento no pro rata de dedução;

c)     Efetivamente, tal ofício veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (actual AT) que visou "( ...) divulgar a correta interpretação a dar ao artigo 23º, do Código do IVA, no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (. ..)".  Da sua leitura, conclui-se que o apuramento da percentagem de dedução “específica” definitiva para os anos de 2021 e 2022 foi efetuado, pela Requerente, em perfeita concordância com os termos aí previstos, que se transcrevem: "7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no nº4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a "distorções significativas na tributação", os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.". 9. Na aplicação do método da afetação real, termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso. a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.";

d)    Isto é, a percentagem de dedução, inicialmente apurada, não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, mas sim da aplicação do método de afetação real, através da utilização de um critério de imputação objetivo, tendo em conta os valores envolvidos nas operações praticadas no âmbito das atividades de Leasing ou de ALD; 

e)     O contrato de locação financeira é uma forma de proporcionar crédito bancário, pelo que o seu objeto não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora, do uso do bem, isto é, a locadora obriga-se a prestar um serviço, traduzido   na disponibilidade do bem em causa, recebendo em contrapartida, uma prestação,sem prejuízo, de nele se poder prever a opção de compra, no final do contrato, a favor do locatário, por um valorresidual fixado por acordo das partes;

f)     Tais operações de locação (leasing e ALD) consubstanciam uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a atividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída, essencialmente, por juros e outros encargos incluídos nas rendas;

g)    A componente dos encargos, patentes nas rendas, a par das comissões praticadas pelo Banco e, bem assim, as responsabilidades legais previstas no artigo 14.º do DL 149/95, que imputam a total responsabilidade das despesas e gastos ao cliente locatário, sublinham que não existem quaisquer despesas sobre as quais o Banco faz incidir IVA que fiquem por remunerar; 

h)    A renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é do que o reembolso da quantia “emprestada”, acrescida de juros e eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador;

i)      Todos os gastos, incluindo os comuns, que a Requerente discrimina ao longo da sua p.i., são suportados pelos clientes locatários, seja por via contratual, comissões ou por via de outros encargos incorporados na renda;

j)      As rendas são influenciadas pelos gastos gerais, isto é, estes gastos gerais inerentes à carga administrativa da locação financeira encontram-se refletidos nas próprias rendas, sobre as quais o Banco faz incidir o respetivo IVA e que cobra junto do cliente locatário; 

k)    Assim, a parte da amortização financeira incluída na renda não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, uma vez que aquela mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem;

l)      Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo; 

m)   A inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente do capital das rendas provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, gerando deduções acrescidas para o sujeito passivo;

n)    O coeficiente de imputação específico tem enquadramento nos n.ºs 2 e 3 do art.º 23 do CIVA, sendo essa a base legal do Ofício-Circulado em causa, inexistindo, portanto, qualquer violação do princípio da legalidade;

o)    Existe abundante jurisprudência europeia (Banco Mais e Volkswagen) e nacional sobre esta temática que contraria os argumentos da Requerente, devendo considerar-se, na senda de diversos acórdãos uniformizadores de jurisprudência, que esta matéria se encontra estabilizada em termos jurisprudenciais;

p)    O acórdão Banco Mais, em particular, confirma a posição que tem vindo a ser assumida pela AT relativamente a esta matéria, inexistindo dúvidas de que a situação em apreço se enquadra nos casos a que se refere o mencionado acórdão;

q)    A componente de capital das rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução, uma vez que não constitui rendimento da atividade do sujeito passivo, sendo que a sua consideração provocaria distorções significativas na tributação e desvirtuaria o próprio mecanismo do pro rata e todo o sistema de dedução do IVA, ao reconhecer como dedutíveis custos que não contribuíram para a realização de operações tributadas;

r)     Em virtude da jurisprudência uniforme do STA, o CAAD tem vindo a alterar as suas decisões em favor dos argumentos da AT;

s)     Quanto ao ónus da distorção significativa da tributação, é jurisprudência constante do STA que, tratando-se de autoliquidação, é ao sujeito passivo que cabe a prova dos factos constitutivos do direito à dedução;

t)      Em suma, neste tipo de contratos (de locação financeira), os riscos, encargos e responsabilidades em geral relativas ao bem correm por conta do locatário, não obstante não ser ele o proprietário, ficando o locador liberto das obrigações regra dos proprietários, nem correndo por conta deste o risco do perecimento do bem;

u)    A realização de determinados custos ou vícios – reparações, despesas de transporte, seguro, montagem, devolução do bem ao locador, etc. – ficam a cargo do locatário, pelo que os custos em que o locador incorre para a disponibilização dos veículos aos locatários, enquanto proprietário, circunscrevem-se ao essencial da aquisição do veículo;

v)    O principal consumo dos recursos ocorre após a disponibilização da viatura; as restantes despesas encontram-se relacionadas com o financiamento e gestão (seguros, pagamento de IUC, infrações rodoviárias, portagens, coimas, etc.); 

w)   A interpretação da ora Requerida é a que melhor materializa o princípio da neutralidade e o princípio da igualdade de tratamento a que o Acórdão Banco Mais dá corpo, numa situação similar à dos presentes autos, e de um concorrente da Requerida;

x)    Esta tese foi já sobejamente acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo em inúmeros Acórdãos, de que se destacam os mais recentes, disponíveis em www.dgsi.pt, que uniformizaram jurisprudência a este respeito: 101/19; 84/19; 87/20; 32/20; 63/20 e o 113/20, 74/21.0BALSB, 75/21.9BALSB, 89/21.9BALSB, 118/21.6BALSB, 66/21.0BALSB, 48/20.9BALSB, 38/20.1BALSB, entre o mais.

 

5- O SP notificado para indicar os factos sobre os quais havia requerido o depoimento testemunhal veio solicitar o aproveitamento de prova produzida no processo n.º 76/2022-T, o que foi rejeitado, em exercício de contraditório pela Requerida.   

6- No seguimento do requerimento do SP, de 6 de março, no dia 8 de março de 2025, por despacho do tribunal, para efeitos da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, procedeu-se ao seu reagendamento para o dia 2 de abril de 2025 às 10 horas, dando sem efeito o despacho anterior.

7-No dia 02-04-2025, pelas 10 horas, teve lugar, na sede do CAAD - Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT tendo sido ouvidas as testemunhas, em conformidade com o consignado na respetiva ata, que se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos. Nessa reunião, no uso da palavra, a representante da Requerente declarou pretender ditar para a ata o seguinte requerimento: "Pretende juntar as páginas em falta relativas ao documento n.º 3 do pedido de pronúncia arbitral e os testemunhos produzidos pelas testemunhas C... e K... no âmbito do processo n.º 76/2022-Т." O Tribunal deferiu o requerido, depois de ouvida a Requerida. Nessa Reunião foram as partes notificadas para produzirem alegações sucessivas no prazo de 15 dias e, em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º2, do RJAT foi designado o dia 16 de junho de 2025 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

 

8-O Tribunal, em 1 de maio de 2025, emitiu despacho com o seguinte conteúdo:

Ouvida a Requerida defere-se o pedido do SP de 4 de Abril, quanto à consideração  nos presentes autos do depoimento de B..., constante do processo n.º 76/2022, em substituição do testemunho de C... .

Mais se defere o pedido da Requerida no sentido do SP proceder ao expurgo dos depoimentos prestados no processo n.º 76/2022-T, que não são relevantes nos autos, a saber : os relativos a D..., E..., F..., G..., H..., e I... . 

Devem os autos prosseguir para alegações. 

Do presente despacho, notifiquem-se as partes.

 

9- As partes produziram alegações  

 

II- SANEADOR

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e é competente.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não são suscitados obstáculos à apreciação do mérito da causa.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III-FUNDAMENTOS

 

III-1- Matéria de facto 

 

§1.º Factos dados como provados

a)     A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto‐Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, que oferece aos seus clientes, empresariais e particulares, um conjunto de serviços e produtos financeiros especialmente destinados ao financiamento e à locação de veículos automóveis do Grupo N... . Em contraposição com outras instituições de crédito, a Requerente não desenvolve uma atividade bancária geral (não assumindo, por isso, a natureza de verdadeiro banco);

b)    A Requerente desenvolve a sua atividade na sua sede no ..., em ..., e através de intermediários de crédito em vários concessionários espalhados pelo país, que a representam nos atos de apresentação de propostas de financiamento, negociação e celebração de contratos, escolha e entrega física de veículos (cfr. depoimento testemunhal, entre outros, de J...);

c)     A Requerente caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto", uma vez que exerce atividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da atividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, 5.ª procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma; 

d)    A Requerente adotou, de boa-fé e cautelarmente, aquando do cálculo das percentagens de dedução definitivas dos anos de 2021 e 2022, plasmadas nas declarações periódicas de IVA apresentadas por referência a dezembro desses anos, o procedimento previsto neste Ofício-Circulado, tendo apurado um coeficiente de imputação específico de 17% para 2021 e de 21% para 2022, nos termos aí definidos, o qual não teve em consideração, nem no numerador, nem no denominador da fração, a “componente de amortização de capital” associada às rendas de locação financeira;

e)     A Requerente, invocando existir um erro nas autoliquidações do IVA referentes a dezembro de 2021 e de 2022, em 21/02/2024, procedeu à apresentação de uma reclamação graciosa, por entender que deveriam ter sido aplicadas as percentagens de dedução, resultantes do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, de 77% e de 84%, para os anos de 2021 e 2022, respetivamente, o que determinaria uma dedução adicional de IVA no montante de € 1.936.805,58;

f)     As operações de locação financeira em causa implicam a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens, nos casos de contratos de ALD e de Leasing  (cfr. depoimento testemunhal de B..., K... e I...);

g)    A Requerente juntou aos autos um documento que detalha as tarefas envolvidas nas atividades de leasing e de ALD, com a identificação dos custos mistos e dos custos diretos, (cfr. doc  3 do pedido arbitral);  

h)    A Requerente não dispõe de balcões de atendimento ao público, nem de departamentos internos dedicados exclusivamente aos produtos de Leasing e ALD, pelo que os recursos são utilizados simultaneamente em todas as atividades por si desenvolvidas, assim como, e de forma indiscriminada, na gestão, entrega e disponibilização dos veículos e na gestão dos próprios contratos de locação financeira/ALD);

i)      Todos os departamentos da Requerente – departamento de legal, compliance e collections, departamento de operações, departamento comercial, negócio de truck & bus, departamento de contabilidade e departamento de remarketing – trabalham indistintamente para a atividade tributada e para a atividade isenta de IVA (cfr. depoimento testemunhalentre outros, de J..., L..., M... e I...);

j)      A propriedade dos veículos implica um consumo significativo de recursos comuns,  em atividades anteriores à entrega dos veículos e as  posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira e de ALD, que são de maior dimensão e consumem mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos ( cfr. depoimento testemunhal designadamente das testemunhas J..., K..., B... e I...);

k)    De entre os recursos comuns destacam-se os administrativos, rendas, telecomunicações e informática (cfr. doc n.º 3 junto com o Pedido e depoimento testemunhal designadamente de J... e I...); 

l)      Concretamente e no âmbito dos contratos de ALD celebrados (cf. doc. n.º 4 junto aos autos), quer com clientes empresariais, quer com clientes individuais e consumidores finais, sobre a Requerente impendem as responsabilidades  seguintes em relação à disponibilização e gestão dos bens objeto de aluguer: i)Autorização da realização de modificações no veículo ii) Em caso da identificação de qualquer defeito ou deterioração no momento da receção e durante todo o período de garantia, a Requerente efetuará a gestão destas situações e diligenciará para que as reparações sejam efetuadas pelo fornecedor ou representante; iii) Encargo com os custos relativos à receção e entrega do veículo ao seu cliente; iv)Verificação das condições do veículo no término do contrato, designadamente, seja realizada por si ou pelo fornecedor, uma inspeção aos veículos para verificação do cumprimento dos próprios contratos; v) Em caso de denúncia do contrato ou não exercício da opção de compra pelo cliente, a Requerente incorre em custos relacionados com a determinação do local para a receção do veículo e seu armazenamento até serem alienados; vi) Seguro de responsabilidade civil destinado a salvaguardar a posição da Requerente caso o locatário incumpra a obrigação contratual/legal de manter válido e eficaz um seguro de responsabilidade civil (cfr. Depoimento testemunhal, entre outros, de D...,  B..., L..., J..., K...,  I... e E...);

m)   A Requerente também aloca recursos para a análise e gestão de toda a documentação associada à propriedade dos bens, designadamente no que se refere a procedimentos de validação e o pagamento de IUC, de multas e de contraordenações, bem como a respetiva imputação de tais montantes aos locatários, quando aplicável (cfr. depoimento testemunhal, entre outros, de J...,  K..., G... e I...);

n)    Os veículos não são adquiridos pelos locatários no fim do contrato ou quando os contratos são incumpridos, a Requerente utiliza, igualmente, um conjunto significativo de recursos comuns para a gestão dos processos de recolha dos mesmos, para a recuperação da dívida e do bem, e para o processo de venda no mercado (cfr. depoimento das testemunhas K..., J..., E... e D...);

o)    A Requerente responde a notificações emitidas pelas várias entidades públicas no âmbito de contraordenações rodoviárias, procedendo à identificação dos locatários e gestão de processos de sinistro, designadamente quando se verifique a apreensão dos documentos dos veículos de que é proprietária (cfr. facto provado designadamente pelos depoimentos de J..., K... e E...);

p)    Existem também custos com a contratação de prestadores externos responsáveis pela recuperação de dívida dos clientes (por ex., serviços jurídicos) ou com o reboque das viaturas (cfr. depoimentos das testemunhas designadamente de L..., K... e K...);

q)    A Requerente suporta ainda custos incorridos com serviços profissionais de outras sociedades do Grupo N... (em particular, da O...) - (cfr. depoimentos entre outros das testemunhas K..., I..., J... e E..., e doc. 3 do pedido arbitral);  

r)     Os custos e as tarefas mencionadas, embora comuns, são específicos dos contratos de ALD e de locação, mas não são executados nas situações de financiamento automóvel por via de contratos de crédito (cfr. depoimento testemunhal de E..., J... e K...);

s)     A Requerente não cobra algumas das comissões previstas no seu preçário, quer por razões comerciais (por ex., no caso de clientes de frotas automóveis), quer por impossibilidade prática de o fazer (por ex., em caso de incumprimento contratual e dívida), suportando igualmente na sua esfera outros custos, como sejam a identificação de locatários em processos de contraordenação rodoviária (cfr. depoimentos de J..., K..., D..., E... e L...);

t)      Os  recursos comuns e todas as estruturas envolvidas nas atividades de Leasing e de ALD afetam indistintamente os recursos da Requerente, quer os relacionados com a disponibilização e gestão dos bens locados, quer os relacionados com a gestão e financiamento dos contratos, pelo que a Requerente não consegue quantificar os recursos humanos e materiais exclusivamente afetos às atividades de Leasing e de ALD, razão pela qual não é possível utilizar o método da afetação real previsto no artigo 23.º, n.º2, do Código do IVA, com base em critérios objetivos ( (cfr. doc 3, junto com o pedido e depoimento, entre outros, da testemunha I...);

u)    Sobre a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente recaiu a Decisão de Indeferimento, nos termos do qual a AT considerou que não existiu qualquer erro nas autoliquidações e, nessa medida, no preenchimento das declarações periódicas de IVA em questão, entendendo que o procedimento então adotado pela Requerente, no que concerne à liquidação e dedução do IVA, fundamentado no Ofício-Circulado n.º 30.108, se afigurava correto (Cf. Doc. n.º 1 acima junto).

 

§2.º Factos dados como não provados

Não se provou a exata medida da utilização dos custos gerais incorridos, os quais não são possíveis de alocar ou quantificar a cada tarefa/ação, tendo em conta as variadas tarefas em que se desdobra o leasing (i.e., não é exequível quantificar qual o IVA incorrido com referência à gestão dos contratos e financiamento e o IVA incorrido com referência à disponibilização dos bens). Na verdade, da prova produzida resultam os tipos de atividades desenvolvidas pela Requerente e até que a maior parte desses custos gerais existem na segunda parte do contrato, mas não a quantificação da utilização de recursos de utilização mista afetos a qualquer delas.

Resulta igualmente dos presentes autos não ter a AT provado a existência de distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, que justifiquem a aplicação de um método alternativo de dedução, nem tal resulta demonstrado ou concretizado pela AT no supra referido Ofício-Circulado n.º 30108. De facto, no referido Ofício não se esclarece porque é que a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, não é justificada a existência de distorções significativas na tributação em consequência do recurso ao pro rata. A AT apenas alegou de forma vaga distorções significativas, sendo que recai sobre si o ónus da prova, uma vez que estamos a falar de um requisito legal pressuposto da tributação dos atos de liquidação ora impugnados.

 

§3.º Fundamentação da matéria de facto 

A matéria de facto, para além da que se encontra aceite entre as partes, foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base em prova documental, i.e., na documentação junta pela Requerente, bem como pela junção do processo administrativo, efetuada pela Requerida, e, ainda, pela prova testemunhal realizada em audiência de julgamento, bem como pela que resulta do aproveitamento da prova produzida na Decisão arbitral, processo n.º 76/2022-T (testemunhos produzidos por K... e B...). As testemunhas prestaram depoimento revelando pleno conhecimento dos factos e de forma assertiva e credível. 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas partes, devendo, por isso, selecionar a matéria factual com relevância direta para a decisão. De salienar que quanto ao ónus da prova dos serviços que assumem a natureza de recursos mistos ou comuns o Tribunal seguiu a jurisprudência do TJUE, vazada no caso Volkswagen Financial Services, a qual, em termos gerais, se basta que tais custos sejam em certa medida efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos, não se exigindo prova cabal que assim tenha sido, uma vez que, como custos gerais  que são, dificialmente se consegue a sua imputação em concreto.   

O Tribunal Arbitral apreciou livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

 

III-2- FUNDAMENTAÇÃO

 

III-2-1 – DO DIREITO

 

Nos presentes autos está em causa determinar se a dedução de IVA de custos gerais da atividade da Requerente, os quais são comuns à atividade de leasing e de ALD (tributada) e à atividade de concessão de crédito (isenta), e que pela sua natureza não permitem a aplicação de um critério rigoroso de afetação real, deve ser calculada nos termos da norma prevista no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (pro rata geral), ou nos termos do disposto no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30.01.2009 (coeficiente de imputação específico), por aplicação da última parte do n.º 2 do referido artigo 23.º, conjugada com a alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo.

Segundo a Requerente, o entendimento propugnado pela AT enferma de ilegalidades e inconstitucionalidades diversas, a saber:

a.   Inconstitucionalidade material atenta a desconformidade do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, na interpretação que permite à AT impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, com o disposto nos artigos 103, n.º 2, 112.º, n.º 5, 3 165.º n.º 1, alínea i), da CRP;

b.   Inconstitucionalidade atenta a imposição, por via de circular administrativa e não de diploma legislativo, do método de dedução previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 no âmbito do Direito Nacional, o que viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º 2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT];

c.   Inconstitucionalidade material atenta a desconformidade das normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP); 

d.   Ilegalidade por vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade [atento o disposto nos artigos 103, n.º 2, 112.º, n.º 5, 3 165.º n.º 1, alínea i), da CRP], decorrente da ilegalidade da imposição, pela AT, das regras dos n.ºs 8 e 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, vício esse que justifica a anulação das autoliquidações, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que as confirmou;

e.   Ilegalidade por vício de erro sobre os pressupostos de facto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.

 

Realce-se que o entendimento seguido pela Requente tem sido aplicado de forma reiterada pela jurisprudência arbitral, da qual se destacam, a título exemplificativo e apenas identificando as mais recentes, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 693/2024-T, 755/2023-T, 568/2023-T, 494/2023-T, 398/2022-T e 648/2022-T. De destacar os processos arbitrais apresentados pela ora Requerente para dedução de IVA referente aos anos de 2018/2019 (processo n.º 76/2022-T) e de 2020 (processo n.º 532/2023-T).

Por ter em comum o mesmo árbitro presidente seguiremos de perto a jurisprudência consignada nas Decisões arbitrais proferidas designadamente nos processos 648/2022-T e 398/22022-T.   

 

§1.º Quanto à jurisprudência nacional e Europeia

 Na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 398/2022-T, podemos ler :

“16. O Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que desenvolve actividades de locação financeira, que conferem direito à dedução, e outras actividades financeiras, que não conferem tal direito. 

“As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º).

“Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Directiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que "os Estados-Membros podem: c) autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços". 

“No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Fazenda Pública contra Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE declarou: "O artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar". 

“Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que "os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros". 

“Posteriormente, no acórdão de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17 (Commissioners for Her Majesty's Revenue and Customs contra Volkswagen Financial Services (UK) Ltd), o TJUE, corrigindo a interpretação que entendeu que se podia fazer do decidido no acórdão Banco Mais, esclareceu que "não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C-183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega".

“Em consequência, o TJUE declarou neste processo: "Os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios".

“O método de cálculo do pro rata indicado pela Administração Tributária no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 não tem em conta o valor do veículo, pelo que contraria manifestamente o decidido pelo TJUE, neste acórdão do processo C-153/17, sendo consequentemente ilegal, por violação do Direito da União. 

“Por outro lado, como se refere no mesmo acórdão, este entendimento é aplicável "mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização" (n.º 59), como sucede no caso em análise. 

“Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a actividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA. 

“Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fracção, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fracção (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA). 

“De qualquer forma, no citado acórdão 10 de Julho de 2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Fazenda Pública contra Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas se admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar». 

“Como resulta desta parte final, na perspectiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

“No entanto, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que só se pode concluir pela ilegalidade, com um apuramento casuístico da utilização real dos bens e serviços de uso misto, quando sobre a matéria de facto se formule um juízo sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

“É, essencialmente, esta jurisprudência que o Supremo Tribunal Administrativo terá tendencialmente estabilizado com o Acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021 (Francisco Rothes), proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 18-11-2021, no qual se uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: "Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação". Esta posição foi reiterada no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 22/9/2021 (José Gomes Correia), processo 0145/20.0BALSB.

“Recentemente no Acórdão de 23/3/2022 do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA (Gustavo Lopes Courinha) emitido no processo 066/21.0BASLSB, foi igualmente esclarecido que "cabe ao sujeito passivo de IVA alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de leasing e ALD, único ónus da prova que se impõe conhecer no caso".

 

No caso dos autos, resulta dos factos dados como provados que a propriedade dos veículos implica um consumo significativo de recursos comuns, em atividades anteriores à entrega dos veículos e as posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só ocorrem nos contratos de locação financeira e de ALD, que são de maior dimensão e consomem mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos.

São identificados determinados custos comuns que a Requerente suporta na sua atividade (geral), como custos administrativos, rendas, telecomunicações e informática, etc.

Todos os departamentos da Requerente – departamento de legal, compliance e collections, departamento de operações, departamento comercial, negócio de truck & bus, departamento de contabilidade e departamento de remarketing – trabalham indistintamente para a atividade tributada e para a atividade isenta de IVA.

Os custos comuns incorridos pela Requerente para o exercício da sua atividade são também os derivados de serviços de profissionais de outras sociedades do Grupo N... en (em particular, da O...), que prestam serviços vários à Requerente;   

No que se refere, em particular, aos contratos de leasing e de ALD, são várias as responsabilidades que impendem sobre a Requerente no que respeita à disponibilização e gestão dos veículos, destacando-se em particular:

a.     Autorização da realização de modificações no veículo;

b.     Gestão de situações em que seja identificado algum defeito ou deterioração no momento da receção e durante todo o período de garantia, e diligências várias para que as reparações sejam efetuadas pelo fornecedor ou representante;

c.     Encargo com os custos relativos à receção e entrega do veículo ao seu cliente;

d.     Verificação/inspeção das condições do veículo no término do contrato;

e.     Custos relacionados com a determinação do local para a receção do veículo e seu armazenamento até serem alienados, em casos de denúncia do contrato ou não exercício da opção de compra pelo cliente; 

f.      Seguro de responsabilidade civil destinado a salvaguardar a posição da Requerente em caso de incumprimento pelo locatário;

g.     Receção e guarda dos veículos em caso de denúncia do contrato ou não exercício da opção de compra pelo cliente.

 

Igualmente inerentes aos contratos de leasing e de ALD identificou também a Requerente a necessidade de análise e gestão de toda a documentação associada à propriedade dos bens, o que implica, entre outros procedimentos, a validação e o pagamento de IUC, de multas e de contraordenações, bem como a respetiva imputação de tais montantes aos locatários, quando aplicável.

Também compete à Requerente responder a notificações emitidas pelas várias entidades públicas no âmbito de contraordenações rodoviárias, procedendo à identificação dos locatários (para evitar a instauração contra si, proprietária dos bens, de processos judiciais para cobrança de dívidas) e gestão de processos de sinistro, designadamente quando se verifique a apreensão dos documentos dos veículos de que é proprietária.

Todas estas atividades ocorrem apenas nos contratos de locação financeira de veículos, porque o veículo é propriedade da Requerente e é disponibilizado ao cliente durante o período de duração do contrato, pelo que são atividades geradas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento ou gestão dos contratos. 

Estes recursos comuns e todas as estruturas envolvidas nas atividades de leasing e de ALD são indistintamente usados pela Requerente nas várias fases dos processos de financiamento automóvel, afigurando-se impossível a quantificação dos recursos humanos e materiais exclusivamente afetos à atividade tributada da Requerente.

Em suma, apurou-se que, além da atividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização aos clientes, é significativa a atividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela sua disponibilização, atividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes. 

Termos em que, tal como se concluiu na Decisão Arbitral atrás mencionada:

 “Assim, na linha do ponto 57 do acórdão do TJUE proferido no processo C-153/17, é de concluir que o método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que não tem em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não se pode considerar que reflicta objectivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.”  

“Por conseguinte, este método não é susceptível, no caso concreto em análise, de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” 

“Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exacta, que as actividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis actividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos. 

“Isto é, utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão do TJUE C-183/13 Fazenda Pública contra Banco Mais, é convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes. 

 

“Por isso, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa, que têm como pressuposto de facto que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira seria sobretudo determinada pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes e não pelas actividades conexas com a disponibilização dos veículos, enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto. 

“Essas autoliquidação e decisão da reclamação graciosa enfermam ainda de erro sobre os pressupostos de direito, ao terem subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como foi, de forma genérica, sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.”  

 

§2.º Quanto à inconstitucionalidade da interpretação efetuada pela AT à norma prevista no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, enquanto norma habilitante a aplicar, ou a impor à Requerente a aplicação de um coeficiente de dedução diverso do pro rata geral

 

A este propósito pode ler-se na Decisão arbitral que vimos seguindo:

“17. Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. 

“Na verdade, entre os métodos para efectuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Directiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular. 

Coloca-se, por isso, a questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (atinentes ao princípio da legalidade tributária), é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, o que é uma questão distinta da de saber se o Estado Português, por via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE.   

“Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circulado referido, não é uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correcção ou incorrecção da sua aplicação. 

“Esta questão de inconstitucionalidade não é, assim, a de saber se, à face do Direito da União Europeia, do CIVA e do Ofício-Circulado n.º 30108, a Administração Tributária podia impor ao Sujeito Passivo o método previsto no ponto 9 deste Ofício-Circulado, mas sim a de saber se aquele artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional se interpretado como permitindo à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP. 

“As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objectiva. Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, uma vez que estabelecem o an e o quantum do IVA a pagar pelo contribuinte.   

Como bem refere ANA PAULA DOURADO, O princípio da legalidade fiscal. Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Coimbra, Almedina, 2007, p. 110: "a «incidência» tem que ser interpretada em sentido amplo, porque se a legalidade fiscal tem funções garantistas, e se os impostos, mesmo que entendidos como deveres fundamentais, são limites imanentes ao direito de propriedade individual, então o alcance das funções da legalidade fiscal diz respeito a todos os elementos que contribuem para o cálculo do montante de imposto a pagar, ou à definição do an e do quantum dos impostos. Eles constituem afinal a própria essência da relação obrigacional fiscal, ou até se quisermos do conceito de imposto, uma vez que este se traduz, em concreto, pelo montante a pagar por um determinado sujeito passivo".

“Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do  artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009,  segundo a qual, a Administração Tributária  poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.  Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP”.

 

§ 3.º Quanto à “ não conformidade do Ofício-Circulado n.º 30108 com a legislação nacional, ao impor através de norma administrativa de um método de execução não previsto legislativamente . 

 

A este propósito pode ler-se na Decisão arbitral que vimos seguindo: 

“18. Não tendo o método de exercício do direito à dedução resultante do Ofício-Circulado n.º 30108 sido previsto em diploma de natureza legislativa, não pode a Administração Tributária determinar a sua aplicação, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

“Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que "os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins".

Conformem referem JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 798-798: "Teoricamente o princípio da legalidade analisa-se em duas dimensões fundamentais: (a) princípio da legalidade negativa da administração, expresso através do princípio da prevalência da lei; (b) princípio da legalidade positiva da administração, traduzido no princípio da precedência de lei".

“Por isso, não tendo suporte legislativo a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, é ilegal a imposição pela Autoridade Tributária da sua utilização pela Requerente.

“Mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativa nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa "o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos" (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da “Assembleia da República (artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP).

“Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas, circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os Tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através de despachos genéricos, circulares ou instruções (artigo 203.º da CRP).

”Na verdade, como escreve JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 198-199:

"Um problema que aqui se coloca é o de saber qual o relevo das chamadas orientações administrativas, tradicionalmente apresentadas nas mais diversas formas como instruções, circulares, ofícios-circulados, despachos normativos, regulamentos, pareceres, etc. e que são muito frequentes no direito fiscal. Trata-se de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.

Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de actuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares)".

“É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que "a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias", não resultando das mesmas qualquer vinculação para os particulares ou para este Tribunal Arbitral. 

“Consequentemente, a autoliquidação efectuada pela Requerente aplicando as regras dos n.ºs 8 e 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, impostas pela Administração Tributária, enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, decorrente da ilegalidade da imposição dessas regras, vício esse que justifica a anulação da autoliquidação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a confirmou.”

 

Também no caso em análise se pode concluir que a aplicação de um método de dedução que o sistema tributário não contempla viola o princípio da legalidade.

 

§4.º Quanto à falta de prova de distorções significativas da tributação  

 Como resulta igualmente nos presentes autos a AT não provou a existência de distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, que justifiquem a aplicação de um método alternativo de dedução, nem tal resulta demonstrado ou concretizado pela AT no supra referido Ofício-circulado n.º 30108. Como ficou dito o ónus de prova recai sobre si, uma vez que estamos a falar de um pressuposto legal da tributação das liquidações  impugnadas.

Acresce que, pelo contrário, como melhor se verá, é a própria interpretação seguida pela Requerida que conduz a distorções significativas.    

Seguindo, também aqui a Decisão arbitral mencionada temos :  

“19. De qualquer forma, a aceitar-se a possibilidade de a Administração Tributária impor o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado 30108, ele só é aplicável, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, "quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação".

“A Administração Tributária defende que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o Direito da União Europeia e as normas de Direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

“A Requerente defende que não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-Circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

“Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as "distorções significativas na tributação" que resultam da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram.

“A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que a "aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas" é também conclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca. 

“De qualquer forma, o procedimento que a Administração Tributária impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS, "A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs «promíscuos» dos operadores de locação financeira: as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de julho de 2014 (Proc. C-183/13)" na Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, ano 10º, nº1, pp. 27-56 (46-47), relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:

"Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adoptar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objectivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afectação real – o objectivo de efectuar a dedução de “com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito. 

Em financiamentos cujo reembolso é efectuado em prestações  periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».

Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.

Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada com quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.

A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de actividade cujas operações conferem direito à dedução.

A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afectação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objectivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação".   

“Assim, não se pode considerar demonstrado que, na situação em apreço, a determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar "distorções significativas da tributação", havendo, antes, a certeza de que essas distorções resultam do método imposto pela Administração Tributária. 

“Pelo exposto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto.”

 

§5.º Quanto à alegada violação do princípio da igualdade

 

Seguindo mais uma vez a Decisão Arbitral proferida no proc 398/2024-T temos:

  ”20. As distorções da tributação que resultam da aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 são amplificadas em termos incompatíveis com o princípio  constitucional da igualdade,  pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, adoptada pelo Pleno no acórdão de  30-09-2020, processo n.º 26/20.8BALSB, em que entendeu que a jurisprudência do Acórdão Banco Mais, apenas é aplicável quando o sujeito passivo é um banco, e já não quando é uma sociedade financeira de crédito que utilize para as suas operações tributadas recursos de utilização mista não quantificáveis. 

“Na verdade, nas situações em que não seja possível a afectação real, não se aplicando o "coeficiente de imputação específico" quando o sujeito passivo é uma sociedade financeira, será aplicável ao cálculo do pro rata o regime do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, incluindo-se no numerador da fracção o valor total das rendas [que é na totalidade tributado, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do CIVA], enquanto se o sujeito passivo for um banco apenas será incluída no numerador a parte das rendas que corresponde aos juros. Além das distorções de tributação que resultam da não inclusão do valor total das rendas na fracção quando o sujeito passivo é um banco, a aplicação do método referido apenas aos bancos é incompaginável com o princípio da igualdade, pois duas situações idênticas de sujeitos passivos mistos que realizem concomitantemente operações de locação financeira e operações isentas teriam uma tributação em IVA (derivada da restrição do direito à dedução) consideravelmente distinta.

“A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 detecta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afectos à locação financeira quando é efectuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique à actividade de locação financeira.  

“Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa actividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Em última análise, à luz da referida jurisprudência, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante.   Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro que, além dessa actividade tributada, desenvolve também actividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de negócios daquela actividade. 

“Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.”(…)”.

 

Transpondo para o caso dos autos o que ficou consignado na decisão arbitral que vimos seguindo, também aqui se recusa, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º da CRP, a aplicação dos n.ºs 2, 3, alínea b) e 4 do artigo 23.º do CIVA na interpretação que deles se faz no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108.

 

A imposição de utilização do "coeficiente de imputação específico" indicado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do CIVA, e da alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.

Consequentemente, as autoliquidações de imposto sobre o Valor Acrescentado referente aos períodos de Dezembro de 2021 e de 2022, enfermam de vício de violação de lei, na parte correspondente à errada aplicação do método de cálculo do pro rata de dedução, o que justifica a sua anulação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

III-3- Restituição do Imposto indevidamente pado e juros indemnizatórios 

 

Resulta da prova produzida que a Requerente, seguindo as instruções a da Requerida, aplicando no cálculo do pro rata a percentagem de 16% e não de 77%, com referência ao ano de 2021 e de 21% em vez  de 84%, com referência o ano de 2022, pagou a mais € 1.936. 805,58.

A Requerente, como consequência da anulação das autoliquidações ora impugnadas, tem direito a reembolso da quantia paga em excesso e também direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, da LGT, já que a anulação da autoliquidação se baseia em erro imputável aos serviços, pois a Requerente seguiu, no seu preenchimento, "as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas".             

Termos em que a Requerente tem direito ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais. 

 

 

VI – DECISÃO

 

Nestes termos, acordam os Árbitros que compõem este Tribunal Arbitral em:

a) Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por ser incompatível com os 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, a aplicação do artigo 23.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CIVA, na interpretação que consta do ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009;

b) Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), a aplicação das normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, na interpretação de que permitem a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;

c) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da decisão de indeferimento, que recaiu sobre reclamação graciosa relativa às autoliquidações de IVA referentes aos períodos de dezembro de 2021 e 2022;  

d) Anular as referidas autoliquidações, na parte em que foi deduzido IVA em montante inferior ao que resulta do cálculo do pro rata nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, por  de erro sobre os pressupostos de facto e de direito;

f) Julgar procedentes os pedidos de restituição da quantia paga em excesso, no valor total de  € 1.936. 805,58, valor acrescido de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.

 

 

VII- VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de € 1.936. 805,58 (valor indicado e não contestado).

 

Notifiquem-se as partes.

Notifique-se o Ministério Público

 

Lisboa, 1 de julho de 2025

 

A Árbitra Presidente e Relatora

 

 Fernanda Maçãs

 

As Árbitras Vogais

 

 

Professora Doutora Clotilde Celorico Palma

 

 

 

Dra. Sofia Ricardo Borges (Vencida, conforme declaração anexa)

 

 

Voto de vencida

 

Tendo em conta a instrução da causa, e o Direito aplicável, demarcamo-nos, em absoluto, da decisão proferida nos autos em referência. Seja no seu sentido seja na sua fundamentação, quer de facto quer de Direito. Pelas razões que, em síntese, seguem.

 

*

Nota prévia: 

Suscitam-se-nos nos autos interrogações várias. 

Porque não juntou a Req.te como o Acto(s) objecto do pedido, na submissão do PPA, os actos tributários que impugna - as autoliquidações? Mas sim a notificação do indeferimento da RG? 

Porque não juntou aos autos documentos comprovativos dos custos mistos que alega ter tido? Porque não juntou facturas que os provem, nem qualquer documentação contabilística? 

Porque não procurou provar (sequer alegou) os cálculos que terá feito para apurar os valores que peticiona? 

Porque não indicou para este efeito (já que o fez para tentar provar custos) testemunhas capazes de depor sobre o cálculo/apuramento desses valores? 

Porque não submeteu as autoliquidações seguindo o seu entendimento quanto a apuramento do montante de IVA incorrido em recursos mistos que será dedutível? 

E porque o não vem fazendo, ano após ano (como do PPA se retira)? Optando reiteradamente por submeter autoliquidações que depois reputa de inconstitucionais? 

Fechada por agora a nota, avançamos.

*

 

A questão principal objecto do processo consistia em saber se nas autoliquidações de IVA de Dez. de 2021 e Dez. de 2022 da Req.te há vício de violação de lei com fundamento em - daquele IVA em que incorreu na aquisição de recursos mistos - ter direito a deduzir mais do que deduziu.

 

A actividade económica da Req.te, Sucursal de Instituição Financeira com sede na UE, abrange operações que não conferem e outras que conferem direito a dedução.  A resposta à questão supra passa por saber em que medida (aproximada) os recursos (inputs) que adquire e usa indiferenciadamente numas e noutras dessas operações são por si utilizados na realização das que conferem direito a dedução. 

Porque só nessa medida (no IVA correspondente a essa medida aproximada de utilização) lhe assistirá direito à dedução (no caso, direito à dedução adicional que vem invocar) de IVA incorrido em recursos mistos.  

Do apuramento daquilo que se entende ser essa medida (aproximada) de utilização - através do cálculo (prévio) de uma proporção - se ocupou o legislador nacional no art.º 23.º do CIVA.

Cabia decidir, nos autos, se as autoliquidações em crise eram ou não legais.

E, a concluir-se ter havido erro, de facto e/ou de Direito, cabia anulá-las (no referente a IVA, incorrido em recursos mistos, dedutível).

 

O facto essencial constitutivo do direito incidia, a nosso ver, sobre a utilização de recursos mistos pela Req.te nas operações de leasing e ALD ser sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos (e não pelo financiamento e pela gestão desses contratos).

 

No Acórdão, a factualidade dada por provada não adere à realidade. 

O probatório assenta em generalidades, e não tem suporte em qualquer prova, como veremos. 

Não resultou provado um único concreto custo misto determinado pela entrega das viaturas.

Os custos que a Req.te identifica (desde logo nos seus articulados) - na concepção amplíssima a que apela de “disponibilização das viaturas”- são, em regra, custos com recursos que utiliza exclusivamente nas suas operações de leasing e ALD. Que não nas demais. Por outro lado, nesses custos, o que a Req.te identifica são custos que tem na vida do contrato, uma vez já disponibilizado o veículo ao locatário, na “segunda parte do contrato”.

Os custos de que a Req.te faz prova são custos em que incorre especificamente para os fins das operações de leasing e ALD. Mais não se provaram concretos custos mistos incorridos cujo grau de utilização numas versus nas outras operações (as que conferem vs as que não conferem direito a dedução - leasing e ALD vs crédito geral automóvel) não fosse possível determinar com base em critérios objectivos.

Mais ainda. Compulsados os autos, não se vislumbra (nem o Acórdão revela) como foi calculado o pro rata de dedução, o critério pelo qual foi apurada essa proporção – nem como, por aí, depois, foi alcançada a parte do IVA total incorrido em recursos mistos que, segundo a Req.te, seria dedutível a mais do que o por si declarado nas autoliquidações. E que estará na base do direito que invoca a um crédito de imposto superior (em € 1.936.805,58) ao que declarou. O Acórdão baseia-se num critério de cálculo que não existe provado nos autos. E assim condena a entidade Requerida no pagamento de c. dois milhões de euros (mais juros indemnizatórios). Que qualifica (quantifica) como “quantia paga em excesso”.

*

Dito isto:

 

I. Quanto ao(s) acto(s) tributário(s) objecto do Pedido 

Os actos tributários - que em contencioso anulatório constituem necessariamente o objecto do Pedido - são os actos tributários stricto sensu. Para o RJAT o legislador transportou, com potencial relevo para os autos, tão só, o processo de impugnação judicial de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Cfr. art.º 2.º/1, al. a) do RJAT.  Assim, dos actos tributários stricto sensu.

O objecto do pedido são as autoliquidações. Não o acto tributário de 2.º grau (indeferimento da Reclamação Graciosa). Contrariamente ao que parece a Req.te pretender fazer crer, este não tem a virtualidade de constituir verdadeiramente o acto objecto dos autos. O que se vem peticionar nesta sede, arbitral tributária, é a anulação/declaração de ilegalidade do(s) acto(s) de (auto)liquidação. E o acto de 2.º grau serve, precisamente, o propósito de abrir a via para a apreciação da legalidade daquele. A redacção do art.º 2.º do RJAT é clara a respeito, ao expressamente identificar as pretensões para as quais os Tribunais Arbitrais têm competência, e aí apenas se incluindo os actos de 1.º grau. O indeferimento não é, pois, o acto em crise. Cuja anulação se vem, afinal, peticionar com base na al. a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT. 

A autoliquidação - acto tributário objecto dos autos - é um acto do SP, da sua autoria, pelo qual este declara, à entidade pública Req.da, operações, implicando operações de qualificação e de quantificação (para as quais terá documentação de suporte). A autoliquidação, além do mais, beneficia de uma presunção de veracidade (art.º 75.º, n.º 1 da LGT). E a impugnação da autoliquidação depende, só em certos casos, de interposição prévia de Reclamação Graciosa.

A Req.te vem, pois, peticionar a anulação das suas autoliquidações. (Com maior desenvolvimento a respeito pode ver-se o que escrevemos em Decisões Arbitrais no Proc. 614/2024-T, pp. 18, 27-28, ou no Proc. 244/2024-T, pp. 22, 30-31).

 

II. Quanto ao julgamento da matéria de facto

A realidade de um facto relevante para a decisão carece de ser provada por meios de prova que permitam ao Julgador formar a sua convicção quanto à alegação de facto, se corresponde, ou não, à realidade. Para tanto, a prova produzida deve ser objecto de valoração pelo Julgador. I.e., este deve formar juízos sobre os factos relevantes, juízos de razoabilidade e racionalidade e, assim, julgar os factos provados,    ou não provados. Juízos que deverão formar-se atendendo às regras da experiência comum, e em função do meio de prova em questão e da prova produzida. Para tanto procedendo a uma análise, crítica, da prova. O princípio da livre apreciação da prova pressupõe haver prova dos factos, e tem que ser fundamentado em razões assentes em concretos meios de prova constantes da instrução da causa. Por sua vez, a motivação clara e consistente da matéria de facto é essencial à justa composição do litígio. E a decisão de facto fundada em prova testemunhal impõe exigências de fudamentação acrescidas.

Quanto a ónus da prova rege o art.º 74.º, n.º1, da LGT: “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.   

 

No Acórdão, a decisão da matéria de facto padece de erro manifesto:

(i) Dá por provados factos baseando-se em generalidades e abstracções, sem suporte em provaV., por ex., o constante da al. j), ou da al. t) (aliás, dos depoimentos o que resulta é o oposto, e do “doc 3”, nesta última, igualmente resulta o oposto, cfr infra), ou da al. a) in fine;

(ii) Não inclui factos que resultaram provados e que deveriam, quanto a nós, integrar o probatório: a) Entre outros bens/serviços que o Req.te adquire e que utiliza apenas na realização das operações de leasing e ALD estão as viaturas, e o Req.te deduz integralmente o IVA que suporta na sua aquisição, por afectação real; b) Nas prestações de serviços outsourcing que o Req.te adquire é possível distinguir o que respeita apenas às operações de leasing e ALD; c) A entrega das viaturas aos Clientes é feita directamente pelos fornecedores das mesmas, no stand automóvel ou outro local alheio às instalações do Req.te, após autorização deste; d) As operações de leasing e ALD representaram, em 2021 e 2022, respectivamente, c. 36% e 38% do total da actividade da Req.te; e) Do total de IVA que suportou na aquisição de bens e serviços que utilizou na realização de ambos os tipos de operações que pratica (crédito geral automóvel/leasing e ALD) a Req.te afirma ter considerado dedutível, nas autoliquidações, 16% e 21%, em 2021 e 2022, respectivamente; f) Para apurar o montante de IVA (incorrido em bens e serviços que utilizou na realização de ambos os tipos de operações que pratica) a deduzir por que pugna, a Req.te considera a generalidade dos bens e serviços que adquire como sendo de utilização indistinta na realização de ambos os tipos de operações (crédito geral/leasing e ALD) incluindo aí também os que só utiliza nas operações de leasing e ALD; g) Por via do referido na al. anterior a Req.te defende ter um valor de IVA (incorrido em bens de utilização mista) a deduzir na proporção de 77% e de 84%, em 2021 e 2022, respectivamente, do total de IVA em que terá incorrido em bens de utilização mista, e conclui ter declarado nas suas autoliquidações um crédito de imposto inferior em € 1.936.805,58 ao correcto;

(iii) Nos factos não provados não inclui, como deveria: Que a Req.te incorre em custos mistos determinados pela entrega dos veículos aos Clientes.

(iv) Usa conceitos e valorações extraídos da terminologia do TJUE e do STA neste contexto, sem concretizar o seu significado com factos - valorações jurídicas capazes de determinar, por si, a decisão da causa (v., em especial, al.s f), g), h), j), l), e t)), e incorpora uma significado dos mesmos que não adere àquele com que o TJUE e o STA os usam;

(v) A fundamentação contraria o disposto no art.º 607.º, n.º 4, do CPC: diz que há prova, mas não indica o meio de prova em concreto: “…a convicção (…) foi formada com base em prova documental, i.e., na documentação junta pela Requerente, bem como pela junção do processo administrativo (…) e, ainda, pela prova testemunhal (…). As testemunhas prestaram depoimento revelando pleno conhecimento dos factos e de forma assertiva e credível.” É tudo o que se lê quanto à formação da convicção do Julgador. Não há razão de ciência e as testemunhas são funcionárias da Req.te. Fala-se em documentação e não se diz que documentos. Não há análise crítica da prova, não houve, minimamente, escrutíneo das provas. O que inculca a ideia de haver uma concepção apriorística do processo, que não orna a justiça.

 

Vejamos melhor. Afigura-se-nos que é de ir um pouco mais além, expôr as razões da nossa divergência quanto à decisão da matéria de facto que fez vencimento, no confronto com o que efectivamente se passou na instrução da causa. E que não reflecte.

 

Quanto aos documentos, referem-se a custos na vida do contrato, posteriores à entrega das viaturas; ademais, segregáveis: cfr. facturas (FCs) de serviços jurídicos, em cujo descritivo se lê: “Honorários ... Conforme mapa em anexo” (anexo que não se junta, v. doc 7); as FCs ref a registos e CTT (v. doc 9, anexo final e, em complemento, o depoimento da test. Solicitador, que disse que as FCs têm sempre anexo a especificar); o mesmo decorre do próprio doc 3 - cfr. descrição de custos aí (por ex. em “Custos gerais com recursos de utilização mista” constam custos com IUCs, registo automóvel, peritagens, etc. – que são exclusivos de leasing e ALD, e/ou segregáveis, e a legenda (“Nota”) desse doc. 3, na folha de rosto, denota a conceptualização sem adesão à realidade praticada pela Req.te para efeitos da dedução por que pugna. Aí se lê:“...uma vez que os recursos são incorridos simultaneamente para a realização de ambas as atividades (i.e., gestão dos veículos e gestão dos contratos de locação financeira/ALD), não nos é possível efetuar o apuramento, de forma segregada, do montante dos recursos de utilização mista (custos gerais) que estão afetos à gestão dos veículos e dos que estão afetos à gestão dos contratos de locação/ALD ...”. Confundido (ou lançando a confusão sobre) o que não é confundível, como se de duas actividades (!) (e duas formas de “gestão” por parte da Req.te?!) se cuidasse (e v. como o TJUE, tratando a matéria, utiliza o conceito de gestão: “gestão dos contratos”, tão só). Este escrito, identificado no PPA como doc 3 – o único a que o probatório faz apelo –, consiste em folhas não numeradas, sem data, autoria ou assinatura, não integrante da contabilidade organizada, assim não beneficiando de presunção de veracidade, contendo informações-afirmações (v. “Nota” acima), daí podendo resultar, quando muito, prova em desfavor da Req.te (v. art.º 376.º do CC). Inidóneo, pois, seja pela sua forma, seja pelo seu conteúdo, para fundamentar/provar os custos mistos invocados.   

No mais, os documentos provam custos que são específicos de leasing e ALD.

 

Quanto à prova testemunhal, a test. responsável pela Contabilidade e Dept. financeiro, disse que a actividade leasing e ALD representou 36% em 2021, e 38% em 2022 (percentagens apuradas por ref. a n.º de viaturas, e que se apuradas por ref. a contratos seriam até inferiores, esclareceu). Ora. Não é crível, pelas regras da lógica e da experiência, que nas operações da Req.te que representaram c. 36% e 38% do total da sua actividade (2021/2022) tenha sido consumida a quantidade substancial dos recursos mistos (77% e 84% do total, como defende). Ademais, não há nos documentos carreados qualquer prova de que tal tenha sucedido (nem o subjectivismo das testemunhas bastaria para fazer prova do que vem alegado). Muito pelo contrário. Resulta dos autos é que a Req.te utiliza recursos que denomina de gerais e que, se o quisesse ter feito, poderia, mediante critérios objectivos, ter segregado e/ou aferido o grau de utilização nas operações tributadas e considerado separadamente para efeitos de apuramento de IVA dedutível. Recursos afectos apenas a leasing e ALD, que não teria que carrear afinal para o cálculo que terá feito (como, aliás, do Ofício da Req.da também decorre). Nas operações de leasing e ALD, com efeito, a Req.te faz uso de recursos que são especificamente afectos a essas operações, como nos serviços que adquire em outsourcing. Ora, se paga uma prestação de serviços, por ex. ao concessionário…, de duas uma: (i) ou consegue segregar o que nessa prestação é próprio do leasing e ALD (como sucede, cfr. depoimento I..., responsável pelo Dept. Contab., grav. P4, 03:15m-03:40m: “exemplo de negociação de crédito, actividade de sales, vendas, consegue-se fazer essa diferenciação, portanto a negociação de crédito, e a negociação de ALD e leasing”) - e podia (devia) fazer afectação real…v. art.º 23.º/2 CIVA; (ii) ou bem que o não conseguia (admita-se poder haver casos)… e resultou provado que a actividade preponderante é a de crédito geral… logo, pelas regras da lógica e da experiência, nessas FCs apenas poderia haver de próprio de leasing e ALD uma pequena parte (e não as proporções por que pugna, de 77% e 84%).

E mesmo que se pudesse entender, como a Req.te alega, que as operações de leasing e ALD consumissem muitos recursos de utilização indistinta - o que nem do escrito junto como doc 3 resultava -, o que sempre teria que vir provado em concreto, a utilização dos recursos não tem lugar com vista à entrega das viaturas, não foram identificados, nem provados, quaisquer concretos recursos mistos determinados pela entrega das viaturas - cfr., além do mais, grav. da Aud., P4,03:50m-06:40m (a responsável pelo Dept. Contab. referindo-se a custos de transporte, que depois esclareceu afinal ocorrerem no fim de vida do contrato; e confirmou, entre o mais, “a viatura é entregue no concessionário”).

As testemunhas descreveram procedimentos e tarefas em que intervêm, e que ocorrem ou na fase de negociação para contratação (a test. D...), ou na vida dos contratos, após entregues as viaturas aos Clientes. A 1.ª test., J... (head of legal), esclareceu serem a Sucursal em Portugal de um Banco Alemão, enfatizou o nível de custos em leasing e ALD na fase de contencioso, descreveu o que é aí tratado (na vida e final de vida do contrato), disse “tenho um registo pensado para cada contrato especificamente” (grav., P1, 32:43m e ss), reportou-se sempre a tarefas na vida do contrato, já entregues as viaturas (grav, P1, entre o mais 49:50-50:10m); quanto à relação da Req.te com escritório de Advogados: “no âmbito do contencioso temos um contrato de prestação de serviços, e os escritórios são remunerados por processo e por recuperação de crédito” (grav., P1, 26:10m) (sinalizando possível segregação); a 2.ª test., G... (Solicitador, responsável por registo automóvel na “... ...”), explicou que a sua intervenção só tem início após lhe ser entregue o contrato já em vigor, e esclareceu, quanto às FCs que emitem à Req.te: “temos um ficheiro em anexo onde estão lá as matrículas todas”, “sim, quem quiser perceber a factura, consegue saber quais são as matrículas que estão ali envolvidas” (grav., P2, 06:15m); a 3.ª test., L... (Gestão de Carteira, Dept. Operações) referindo-se ao software e ao registo histórico das intervenções que fazem ao longo da vida do contrato disse “temos um sistema onde se faz a gestão do contrato”, e confirmou ser possível segregar as intervenções da sua equipa numa e na outra área da actividade (crédito simples/leasing e ALD) (grav. P2, 23:30m); a 4.ª test.,  D...(Dept. Comercial) expôs que a sua equipa intervém desde o início da negociação e na fase contratual, e que tem “milhares de contratos em gestão”; quanto à entrega das viaturas: “tudo o que fazemos nesse processo é o momento em que eu dou uma autorização de entrega, está tudo ok da nossa parte para que as outras duas partes, o Cliente e o fornecedor da viatura, se coordenem na entrega” (grav., P3, 07:25m), “existe o fornecedor da viatura, até pode ser o próprio importador que entrega os carros” (grav., P2, 49:30m); a 5.ª test.,  I...(responsável pelo Dept Contab. e Financeiro) confirmou conhecer o doc 3, tê-lo revisto, e tendo-lhe sido pedido para esclarecer custos daí constantes disse “a O... prestava serviços de outsourcing ao P..., portanto eram todos os custos associados a essa prestação de serviços relacionados sobretudo com a actividade de ALD e de leasing, portanto este é um deles”, “todos os custos de certa forma não é fácil fazer a afectação real, então nós consideramos como sendo recursos mistos nessas actividades”; questionada se o seu Dept. teria trabalhadores afectos a uma área e outros a outra: “dentro da área financeira está dividido por áreas, e “obviamente que temos a nossa lista de tarefas e há tarefas que são específicas só para a actividade de ALD, eventualmente consegue-se segregar”; quanto ainda a tarefas em ALD e leasing: “tudo isso é feito manualmente, são tarefas específicas relacionadas com esse negócio” (grav., P3, 25:00-30:35m); ainda quanto a contratos leasing e ALD versus de crédito geral: “sim, temos contas diferentes, registos contabilísticos diferentes”, “quando reconciliamos as contas de crédito está tudo no mesmo ficheiro, os mesmos ficheiros que têm lá toda a informação, ainda que detalhadamente conseguimos perceber se é um contrato de crédito, se é de leasing, de ALD” (grav. P3, 32:00m, 33:45m-33:55m); questionada de novo quanto à possibilidade de segregação dos custos: “no caso das reconciliações que só se aplicam ao ALD e ao leasing, como no caso dos IUCs, sim é possível, nesse caso é diferenciado, como também a facturação das viaturas em remarketing, aí também só se aplica ao caso de ALD e leasing (...)” (grav., P3, 34:00-36:00m); questionada sobre o cálculo do valor que apuram agora para efeitos de pro rata, não soube responder: “o cálculo do pro rata contratamos consultor externo, esse recálculo é feito por consultores fiscais externos” (grav., P3, 38:15m); em termos da actividade total do Banco, e do peso das operações leasing e ALD, disse que era de 36% em 2021, e de 38% em 2022, e que tal está comprovado contabilisticamente (grav. P3, 57:20m); quanto a custos com serviços de outsourcing: “consegue-se fazer essa diferenciação, a negociação de crédito e a negociação de ALD e leasing” (grav., P4, 03:00 até 03:44m); tendo-lhe sido pedido 2.ª vez para identificar os custos com recursos de utilização mista em leasing e ALD, de novo os referiu e novamente sem nunca identificar custos com a entrega das viaturas (início do contrato); questionada concretamente sobre esses, se identificava alguns, não conseguiu identificar (só “no final, a retoma da viatura, aí pode haver custos associados”) (grav., P4, 05:15-06:00m); a 6.ª e última,  E... (Dept. remarketing, venda de viaturas usadas), descreveu tarefas da sua equipa (O...) e expôs ocorrerem “em final de contrato” (grav., P4, 08:55m e ss).

Em tudo isto os depoimentos se aproximam: elevado consumo de recursos - não necessariamente mistos/não necessariamente não segregáveis - por as operações de leasing e ALD gerarem obrigações específicas...; mas sempre no financiamento e na gestão dos contratos, não na entrega da viatura - não determinados pela disponibilização das viaturas.

 

O Acórdão baseia-se em depoimentos testemunhais (sem prejuízo do supra).

Exigia-se, por necessário, exame crítico da prova. A prova testemunhal é a mais falível de todas as provas, e só pode assumir maior relevância quando for a única a que possa recorrer-se. 

Estamos em IVA. Custos, com IVA. Facturados, portanto. A Req.te não trouxe aos autos, nem deles constam, documentos comprovativos do que alega e que pretendia provar. E lembrando que em IVA o direito a dedução também depende de o imposto constar de facturas passadas na forma legal - cfr. art.ºs 19.º, n.º 2 e 36.º do CIVA.

O Acórdão secundou as alegações não consubstanciadas em que a Req.te se fundamentou. 

Não há documentos, nem depoimentos, que sustentem o probatório (v supra). E fica patente, logo no probatório, a distorção, seja dos conceitos (v. “disponibilização das viaturas” e “gestão dos contratos”) utilizados pelo TJUE e pelo STA na matéria, seja do que são custos reconduzíveis ao cálculo do art.º 23.º do CIVA.

 

Resulta da prova carreada que em leasing e ALD é sobretudo no financiamento e gestão dos contratos que a Req.te utiliza recursos. E que, mesmo quanto a esses, teria sido possível segregar boa parte do que considerou mistos e sem possibilidade de afectação real. Mais não consta do probatório o critério nem o cálculo seja das proporções, seja do montante de IVA em que terá incorrido na aquisição do que considerou recursos mistos, e da sua parte dedutível.

Manifestamente não existe prova a sustentar a decisão da matéria de facto. E a fundamentação da decisão da matéria de facto também não infere esta conclusão.  Lembrando que não só a falta de especificação dos factos provados e não provados, mas também a falta de exame crítico da prova configura causa de nulidade da sentença (v., entre o mais, art.º 125.º, n.º 1 do CPPT; v. Jorge Lopes de Sousa, CPPT ..., Vol. II, Áreas Ed, p. 358).

 

Relativamente ao ónus da prova foi aditado ao Acórdão o seguinte parágrafo: 

De salientar que quanto ao ónus da prova dos serviços que assumem a natureza de recursos mistos ou comuns o Tribunal seguiu a jurisprudência do TJUE, vazada no caso Volkswagen Financial Services, a qual, em termos gerais, se basta que tais custos sejam em certa medida efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos, não se exigindo prova cabal que assim tenha sido, uma vez que, como custos gerais  que são, dificialmente se consegue a sua imputação em concreto”. 

Desde logo, o Acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd, Proc. C-153/17 não se aplica.

Há erro de julgamento da matéria de facto por errónea interpretação e aplicação do ónus da prova. Revela-se que o diapasão seguido foi o que deve ser seguido pelos Tribunais do Reino Unido. Que não é – cfr. interpretação da DIVA pelo TJUE, confirmada pelo STA - o que deve ser seguido pelos Tribunais Portugueses. Aliás, é também por aí o TJUE recorrer a uma ficção jurídica que, para ali, é diferente o que a respeito se exige (tudo cfr infra melhor desenvolvido);

 

E revela-se défice na selecção dos factos e instrução da causa. O ónus da prova não é este, e mesmo se (indevidamente) se o quisesse aplicar, o probatório não dá a conhecer minimamente quais são os custos, tudo é genérico. E diz-se: “(...) basta que tais custos sejam em certa medida efetuados tendo em vista...”. Porém, quais custos? Que medida? Destinados a que finalidade? Diz-se “dificilmente se consegue a sua imputação em concreto” por isso “não se exigindo prova cabal”, mas que prova foi feita? Nada em concreto ficou provado. Também não diz com que custos afinal se bastou a maioria que fez vencimento. E é inconcebível que, no nosso Ordenamento Jurídico (OJ), em que ambas as partes da renda em leasing e ALD estão sujeitas e não isentas de IVA (e, portanto, os custos mistos a montante são elementos constitutivos do preço das operações, tributáveis, a jusante... ao invés do que sucede no OJ do Reino Unido), não fosse exigível a prova dos custos incorridos, que no Sistema Português não fosse necessária alegação e prova da medida dos custos... nem sequer por prova indiciária. A alegada dificuldade... mesmo se fosse uma dificuldade extrema da prova do facto, que não é (vimos, supra), designadamente do custo misto incorrido, não inverte o ónus da prova, nem dispensa os elementos mínimos de princípio de prova ou prova indirecta... que permitisse alcançar a conclusão a que no Acórdão se chegou. Sendo certo que mesmo a extrema dificuldade de prova do facto não permite inverter o critério legal de repartição do ónus da prova (v. A. Varela, J. M. Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., pp. 451-452). A dificuldade de prova dos factos não é legalmente relevada para efeitos de determinar a inversão do ónus da prova, sem prejuízo de, por força do princípio constitucional da proibição da indefesa, não serem constitucionalmente admissíveis situações de imposição de ónus probatório que se reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito (v. J. Lopes de Sousa, CPPT…, Vol. III, Áreas Ed, p. 234). Não estamos perante uma situação de impossibilidade prática de prova. O Acórdão viola ostensivamente a regra do ónus da prova, o critério de decisão aplicável, cfr. art.ºs 342.º, n.º1 do CC e 74.º, n.º1 da LGT, a Req.te não fez prova dos factos constitutivos do direito que invoca.

 

Uma decisão factual genérica não pode sustentar a decisão de Direito, muito menos com a questão do ónus da prova vista. Acrescendo, sem prejuízo do supra, que nem constitui solução plausível da questão de Direito aquela que convoca… pois que é “solução” recusada pela Jurisprudência uniformizadora do nosso STA (cfrinfra). 

 

III. Quanto ao mérito

 

A artigo do CIVA de cuja aplicação sobretudo se cuida nos autos é o 23.º - “Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista” - Cap. V, “Liquidação e pagamento do imposto”. No cerne dos autos está o conceito de “bens de utilização mista”, aplicável a SPs de IVA que praticam operações sujeitas e não isentas (dão direito a dedução) e, também, operações isentas (não dão direito a dedução) - “SPs Mistos”. Bens de utilização mista para efeitos de IVA, diz-nos o art.º 23.º, são bens/serviços adquiridos por estes SPs e por si utilizados na realização dos dois tipos de operações: nas que conferem, mas também nas que não conferem direito a dedução (n.º 1). Para o art.º 23.º existe: “actividade”, i.e., actividade económica cfr. art.º 2.º do CIVA; e, dentro dela, “operações” de dois tipos, a saber, as que dão e as que não dão direito a dedução cfr. art.º 20.º. Nos autos: actividade económica da Req.te – a das Instituições Financeiras de Crédito, e, aí, dois tipos de operações - leasing e ALD, e as outras. Em cada um dos tipos de operações, depois, há tarefas/procedimentos da Req.te. Utilizando recursos (inputs). Nas operações de leasing e ALD se incluindo tarefas/procedimentos com/para a disponibilização das viaturas, e com/para financiamento e gestão desses contratos. 

E só o IVA incorrido na aquisição dos recursos que utilize nas tarefas/procedimentos nas operações de leasing e ALD poderá conferir direito a dedução (pois só estas são tributadas). Dentro destes recursos, os que a Req.te utilizar exclusivamente nestas operações não suscitam dificuldades (rectius, o IVA em que aí incorre não suscita dificuldades; é dedutível sem se entrar no cálculo do art.º 23.º). 

Nos autos, só estão em questão os recursos/bens “de utilização mista” (art.º 23.º). 

A medida aproximada (a apurar via art.º 23.º) da sua utilização nas operações de leasing e ALD. Assim, a legalidade (ou não) dessa medida (traduzida em IVA) declarada nas autoliquidações.

 

A Req.te invoca o direito a deduzir - dentro do IVA total em que terá incorrido na aquisição de bens de utilização mista - um valor a mais de IVA que aquele que declarou ter a deduzir. 

Em questão estão certos recursos que utiliza nas operações que dão direito a dedução: os que utiliza nestas mas também nas outras operações. Só estes. Não os que utiliza apenas nestas (como é o caso do recurso viatura, a compra da viatura; o IVA incorrido na compra da viatura a Req.te deduz por imputação directa, cfr art.º 20.º). Ora, os que estão em questão (bens de utilização mista, art.º 23.º), de duas uma: ou consegue, ainda assim, segregar/apurar o grau de utilização numas/nas outras “com base em critérios objectivos”, e pode proceder a dedução (de todos, ou de alguns) por afectação real (art.º 23.º, n.º 2). Ou, finalmente, caso assim não lhe seja possível, ou mesmo se, sendo-o, não o entender fazer, é que irá apurar a medida da dedução (de IVA em bens de utilização mista) via art.º 23.º, n.º 1, al. b). E, neste passo, poderá a AT intervir, impondo condições especiais, fazendo cessar o procedimento, ou, ainda, impondo-o (v. art.º 23.º, n.º 2, in fine, e n.º 3).

 

Para apurar a medida do IVA incorrido em bens de utilização mista que pode deduzir-se, o legislador - assente que é que só os recursos adquiridos (o IVA aí incorrido) para os fins das operações sujeitas e não isentas é que relevam para efeitos de direito à dedução - determinou uma fórmula para o apuramento da parte do IVA nesses recursos, quando adquiridos, que pode ser dedutível. E o legislador não manda aferir se o SP Misto utiliza mais recursos mistos numas ou mais nas outras operações. Não. Manda fazer uma proporção, apurar uma percentagem: a percentagem do montante anual (volume de negócios) das operações que conferem direito a dedução. Apurada a qual (percentagem) há que partir-se para outro apuramento, o do montante de IVA dedutível dentro do (também necessariamente apurado antes) IVA total incorrido em bens de utilização mista. É precisamente por não ser viável a imputação directa desses bens/serviços às operações que conferem direito a dedução...que se vai para a fórmula ... a que o legislador recorreu (art.º 23.º) (e, mesmo aí, vimos o que sucede, cfr. n.ºs 2 e 3). Método aproximativo. Métodos (no plural) de dedução, diz o legislador na epígrafe do art.º 23.º do CIVA.

 

O próprio conceito de bens de utilização mista não é um conceito normativo auto-suficiente. Não basta afirmar-se que um recurso é de utilização mista, para que tal sirva de critério. A norma carece de concretude. Como o acto administrativo lhe dará, decidindo no caso individual e concreto o que efectivamente é bem de utilização mista, e o que não o é, por aí apurando depois também as necessárias quantificações.

A Req.te não logrou demonstrar qual o critério que utilizou na repartição dos custos. E o que resultou demonstrado foi que faz um tratamento indiferenciado (levando para o cálculo que fará ao abrigo da al. b), do n.º 1, do art.º 23.º) de custos alegadamente (e não comprovadamente) incorridos em bens que utilizará indistintamente em operações que dão direito a dedução e em operações que o não dão. Confrontada inclusive com o doc 3, a responsável pelo Dep.to de Contabilidade não soube responder, disse “não é fácil” segregar (o que é diferente de não ser possível, diga-se), e reiteradamente identificou custos que afirmou serem exclusivos de leasing e ALD, e ainda assim estarem a ser considerados...; mais disse serem do conhecimento de Consultora externa, não do seu, os cálculos e apuramentos em questão. 

Acresce que a Req.te alega, na defesa do direito a deduzir a mais por que pugna, que deverá ser-lhe aplicado o método do pro rata da al. b) do n.º 1 do art.º 23.º tal como previsto no n.º 4 do mesmo artigo (sem exclusão da parte das rendas correspondente a amortização de capital). Mas em momento algum alega, ou se propõe provar, o concreto cálculo da proporção que o legislador ali determina apurar. 

 

No Acórdão, por um lado, levou-se em consideração, para decidir quanto a IVA em recursos mistos que será dedutível, IVA incorrido em bens/serviços que a Req.te afinal utiliza exclusivamente em tarefas/procedimentos nas operações de leasing e ALD. E decidiu-se deferir o pedido da Req.te, de um alegado direito a dedução, a mais, de c. dois milhões de euros, por IVA alegadamente incorrido em bens alegadamente de utilização mista, que alegadamente terá utilizado nas operações de leasing e ALD e nas de crédito geral indistintamente (“não tendo sido possível a aplicação de um critério de afetação real com base em critérios objetivos (nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA) (…)”- alegações da Req.te). 

O Acórdão decidiu aderindo a alegações da Req.te cuja veracidade é insusceptível de comprovação com depoimentos testemunhais e sem recurso a documentos. Lembrando também que não houve uma liquidação adicional ou uma liquidação oficiosa, e que aquilo de que se cuida nos autos é de autoliquidações. No Acórdão não se concretizou, no caso individual e concreto, quais são os custos que estarão a ser considerados, o critério subjacente à repartição, nem o cálculo das percentagens de dedução a que a Req.te alega ter direito. Inexiste um critério racional externo e fundamentado que permita ao Julgador interpretar desde logo a ratio económica dos custos. Sem um critério jurídico-económico que se identifique ter servido de racional para a repartição de custos, qualquer repartição (e consequentemente qualquer quantificação de IVA a deduzir) é puramente especulativa, subjectiva, ao não aderir a factos concretos. Elementos racionais e concretizados. O Direito Fiscal tem que ter uma base económica, e esses elementos não foram considerados.  

 

Feita a aproximação, vejamos melhor, por tópicos, as razões porque nos afastamos do Acórdão, também no Direito.

 

III. 1. Da linguagem utilizada pela Req.te, e no Acórdão 

Na base das suas alegações a Req.te usa conceitos que na sua literalidade são as mesmas palavras utilizadas pelo TJUE, e pelo STA em conformidade, mas que usa com um significado que não é o mesmo: fala em recursos comuns “quer para a gestão dos contratos de financiamento quer para a disponibilização e gestão dos bens locados”, que “os recursos são utilizados simultaneamente em todas as atividades por si desenvolvidas, assim como, e de forma indiscriminada, na gestão, entrega e disponibilização dos veículos e na gestão dos próprios contratos (...) [r]azão pela qual não é possível efectuar o apuramento, de forma segregada, do montante dos recursos de utilização mista (...) que estão afetos à  gestão/disponibilização dos veículos e  dos que estão afetos à gestão dos contratos de locação financeira/ALD”. (sublinhados nossos) E a isso adere (acriticamente) o Acórdão.

 

Sucede que na Jurisprudência do TJUE onde por excelência a matéria vem tratada (aplicação dos Art.ºs 173.º e 174.º da DIVA [actual Directiva, a Sétima] ao caso dos SP Mistos que praticam operações de crédito isentas e operações de crédito leasing e/ou ALD) os conceitos foram utilizados, no contexto dos respectivos Acórdãos, com um significado e uma intenção. A saber, para fazer o confronto nas rendas de leasing e ALD entre a parte que os Clientes pagam que constitui amortização de capital, e a que constitui juros. Como aí o Alto Tribunal deixa dito, os montantes relativos àquela primeira parte servem para compensar a aquisição/disponibilização das viaturas, enquanto a outra, a parte das rendas correspondente aos juros, constitui a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos em que o locador financeiro incorre. 

 

Dúvidas houvesse, v. no Ac. Banco Mais (C-183/13):  Par. 14, “a totalidade das rendas”, e aí dentro “a parte das rendas que compensava a aquisição dos veículos”; Par. 20, “Nestas condições, há que considerar que a questão submetida visa, em substância, saber (...) se o art.º (...) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro (...) obrigue (...) a incluir, no numerador e no denominador (...), apenas a parte das rendas (...) que corresponde aos juros”; e, na sequência, Par. 33, “há que observar que (...) na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos”, após o que conclui, Par. 34, “Ora, nestas condições, o cálculo (...) que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata (...) menos preciso do que o resultante do método (...) baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador”. (sublinhados nossos)

 

A “disponibilização dos veículos” foi usada pelo TJUE significando o colocar dos veículos à disposição dos locatários, a sua entrega aos locatários. Ademais, a leitura das versões do Ac. publicadas noutras línguas também é clarificadora, se necessário fosse: “the provision of the vehicles” versus “the financing and management of those contracts”; “la mise à disposition des véhicules” vs “par le financement et la gestion de ces contrats”; “la puesta a disposición de los vehículos” vs “la financiación y a la gestión de los contratos”; “dalla messa a disposizione degli autoveicoli” vs “dal finanziamento e dalla gestione dei contratti”; “die Bereitstellung der Fahrzeuge” vs “der Finanzierung und der Verwaltung der Verträge”,… Convoque-se a tradução do Inglês, “provision” (“provision of the vehicles”): provisão, fornecimento; “provide”: prover, fornecer. E pense-se no contexto. A expressão “disponibilização das viaturas” tem, neste contexto, o significado que vimos. Entrega das viaturas aos locatários (simbolizada pela entrega das chaves). Assim, custos tendo em vista ou determinados pela “disponibilização das viaturas” são, essencialmente, a compra da viatura. Do mesmo significado, dos conceitos, também não se afasta o Alto Tribunal no seu Ac. que a Req.te insiste em convocar, Volkswagen FS (UK) (C-153/17). V. aí, entre o mais: “adquire o veículo ao distribuidor e coloca-o à disposição do cliente”; “por um lado, a disponibilização de um veículo (...) por outro, a concessão de um crédito”; “parte correspondente ao reembolso do preço de aquisição dos veículos” versus “parte dos pagamentos correspondente aos juros”. 

 

No Acórdão (secundando a Req.te), as palavras e expressões foram usadas com outra dimensão semântica, privadas do seu sentido original, contexto e intenção do TJUE ao utilizá-las. Ademais, na posição que fez vencimento sai esvaziado de conteúdo o conceito do TJUE de “gestão dos contratos” (levado que foi o respectivo conteúdo para um novo conceito, o de “gestão dos bens locados”; até acompanhado de outro novo, o de “actividade de disponibilização dos bens locados”). O Acórdão incorpora um mix entre os conceitos do TJUE na sua Jurisprudência, distorcendo, com isso, o significado das palavras e das expressões ali contidas. Confunde, alterando-os, os conceitos que utilizou o TJUE precisamente para responder à questão prejudicial que lhe foi colocada, pelo nosso STA, de saber se sim ou não o DUE deveria ser interpretado como se opondo a que um EM obrigue um SP Misto que desenvolve a sua actividade em circunstâncias semelhantes às da Req.te (operações financeiras isentas sem direito a dedução,  e operações financeiras leasing e ALD tributadas,) a incluir nos numerador e denominador da fracção do pro rata só a parte das rendas correspondente a juros. 

E, por essa via, defere-se o Pedido. 

 

actividade económica da Req.te é de Instituição Financeira de Crédito.

Contrariamente ao que parece a mesma pretender fazer crer, a Req.te não fornece nem gere veículos (a chave é entregue aos locatários, que gerem a utilização das viaturas...). 

A Req.te não fornece um automóvel. Presta um serviço financeiro.

E a Req.te só passa a ser proprietária das viaturas por causa e com vista ao financiamento.

O locador financeiro fica liberto das obrigações regra do proprietário no regime geral da locação (cfr DL n.º 149/95, de 24.06), como assente na Doutrina e na Jurisprudência; com maior desenvolvimento v. nossos votos de vencida nos Proc.s n.ºs 383/2019-T e 408/2019-T, CAAD. Não colhe a tese da Req.te (e que subjaz ao Acórdão) de que os custos mistos “são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens”. Na locação financeira (lf), em substância, o locador transfere para o locatário todos os riscos e vantagens inerentes à detenção do activo, independentemente de o título de propriedade poder ou não, num momento posterior, vir a ser transferido. Até as Normas contabilísticas o esclarecem: ainda que a propriedade legal do bem se mantenha na esfera da entidade locadora, na locação financeira o bem deve ser reconhecido como um activo no balanço do locatário (v. NCRF 9). 

 

Não adere à realidade o iter cognitivo do Acórdão relevando alegados custos (alegadamente) mistos – mas exclusivos de leasing e ALD (!) – e que derivariam de a Req.te ser a proprietária dos veículos. A verdade é que se tivessem sido provados os custos que a Req.te vem descrever alongadamente e alega ter incorrido como custos comuns/mistos, eles sempre se reconduziriam ao conceito do TJUE de “gestão dos contratos”. Assim, custos incorridos na “segunda parte do contrato”. V. a título de exemplo, a descrição genérica de custos que consta do probatório do Acórdão na al. l) e, depois, na fundamentação de Direito. Confirmava-se por aqui, na verdade, a correcção - e a conformidade ao Direito da UE - da não inclusão da parte das rendas correspondente a amortização de capital na fracção do art.º 23.º.

 

III. 2. Da Jurisprudência do TJUE, contrariada no Acórdão

Na Jurisprudência do TJUE já referida, contrariamente ao que consta do Acórdão, não há qualquer inversão/correcção pelo TJUE do entendimento que firmou no Ac. Banco Mais (como teria sucedido por força do Ac. Volkswagen FS (UK), parece (!)). 

Também aqui o Acórdão não faz jus à realidade (desenvolvendo ademais a respeito um raciocínio perverso em matéria de IVA... ao referir a parte das rendas no Reino Unido correspondente à amortização do capital não ser tributada nesse Ordenamento Jurídico... e daí retirar, mal, consequências para o nosso caso). 

Subjacente ao Ac. Volkswagen FS (UK) estão premissas distintas. O que leva o TJUE, naquele, a recorrer a uma ficção jurídica. Como bem se explica naquele Acórdão, Volkswagen (UK), era ali patente não terem sido utilizados outros recursos para a entrega das viaturas, à parte a compra das mesmas. E esse era o problema: só essa parte é, no Reino Unido, sujeita a IVA; e os custos tinham sido incorridos em tarefas/procedimentos de financiamento e gestão dos contratos... e esta (parte da) operação “hire-purchase”, no Reino Unido, é isenta de IVA. E ao ser isenta de IVA - nesse Ordenamento Jurídico - a (parte da) operação à qual os inputs incorridos a montante efectivamente se destinaram (e aí se reflectiram como elementos componentes do preço), o que ao SP Misto iria suceder, pelas regras e funcionamento do IVA, era que, apesar de incorrer em IVA na aquisição de recursos mistos a montante para as suas operações hire-purchase, nenhum direito a deduzir lhe iria assistir (porque eles são elementos constitutivos do preço da operação, e o preço da operação, que é onde são repercutidos, traduz-se na parte da renda correspondente a juros, a qual é isenta e, por isso, não confere direito a dedução). Então, determinou o Alto Tribunal, nas “operações de locação financeira como as que estão em causa no processo principal” (hire-purchase) deve interpretar-se o DUE no sentido de que os custos gerais em questão, apesar de não repercutidos na parte da renda correspondente a amortização de capital (e já que só se isso sucedesse é que assistiria ao SP, pelo Sistema do IVA, direito a dedução... pois que só essa parte da operação é tributada) deverão ser considerados - “para efeitos de IVA” , disse o TJUE - como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização. O TJUE ficcionou, para efeitos de IVA apenas, que aqueles custos foram (quando não o foram) utilizados para os fins da disponibilização das viaturas. Ficção jurídica… construir uma realidade legal pela criação de situações que não existem; na situação, considerar como verdadeiro para fins de IVA que os recursos em questão foram determinados pela disponibilização das viaturas. Naquele, outro, contexto. Que não o do nosso Ordenamento Jurídico (de que o TJUE se ocupou a respeito desta matéria não nesse, mas sim no Ac. Banco Mais)[2]O Acórdão contrariou ostensivamente, também assim, a Jurisprudência do TJUE aplicável ao caso, e vertida no Ac. Banco Mais. 

 

Por outro lado, no Ac. Banco Mais o TJUE veio também confirmar que o art.º 23.º, n.º 2 do CIVA corresponde à transposição para o nosso Direito interno do disposto no Art.º17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, al. c), da Sexta Directiva (v. Par.s 17-19 do Ac Banco Mais). Também nisto o Acórdão vai contra a Jurisprudência do Alto Tribunal. (Também a este respeito pode ver-se o que escrevemos em votos de vencida nos Proc.s já referidos).

 

Por outro lado, ainda, o único ónus da prova era da Req.te. Tratando-se de autoliquidações, não de uma qualquer liquidação pela Req.da. Ademais, tratando-se de um invocado direito a dedução. V., entre o mais, o art.º 74.º, n.º 1 da LGT (supra). E - desde logo - como é também assente na Jurisprudência do TJUE em matéria de direito a dedução em IVA. V., ainda, o Acórdão do STA, do Pleno, de 23.03.2022, proc 066/21.0BALSB, determinando que para poder afastar a exclusão da parte da renda correspondente a amortização de capital é o SP quem terá que provar que nessas operações “no seu caso concreto, a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de leasing e ALD, único ónus da prova que se impõe conhecer no caso”.

Não colhe, assim, o vertido no Acórdão, no sentido de que a Req.da deveria ter feito prova de distorções significativas da tributação. Além do referido já, e do mais infra, sendo os actos tributários em crise autoliquidações, os elementos, os factos em que o acto em crise assenta são os declarados à entidade Req.da pela própria Req.te. Que beneficiam de uma presunção de adesão à realidade. 

Sem prejuízo do que fica dito, dê-se sumaríssima nota de que na situação dos SPs Mistos que praticam operações de crédito isentas e também de leasing e ALD, a aplicação do método do pro rata puro (art.º 23.º, n.º 1 b) e n.º 4) provoca, sim, distorções significativas na tributação. Na aplicação do método previsto no n.º 1, al. b), do art.º 23.º, se se incluir na fracção para apuramento da percentagem um quantitativo (a componente das rendas que corresponde à devolução do capital) que não é elemento constitutivo do preço da operação (prestação de serviços leasing ou ALD), e nem integra o volume de negócios desse SP, a tributação (via montante do IVA incorrido em bens de utilização mista dedutível) resulta, necessariamente, significativamente distorcida. Em termos tentativamente muito simples: o método em questão, método da percentagem de dedução, na sua versão pura, aquela que vem no n.º 4 do art.º 23.º complementando o constante do n.º 1, al. b), opera pelo apurar da proporção que, no todo da actividade económica do SP Misto, representa a actividade que confere direito a dedução. Apurar, no montante total do volume de negócios (v. também Art.º 174.º da DIVA) do SP Misto em causa, “a percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução” (art.º 23.º, n.º 1, al. b)). Ora, se o montante aí em questão (na parte das rendas que é amortização do capital) não constitui preço da operação, desde logo nele não poderiam ter sido repercutidos (não foram) inputs constitutivos do preço da mesma. E v. o art.º 1.º, 2., segundo parágrafo, da DIVA – “(...) dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”. O direito à dedução do IVA que onere a aquisição de inputs a montante pressupõe, além do mais, que os custos assim incorridos sejam parte dos elementos constitutivos do preço da operação tributada e com direito a dedução, a jusante. E da mesma maneira assim será quando de custos gerais/mistosdesse SP se trate, deverão ser parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas, e com direito a dedução, a jusante, para que haja direito a dedução. Ora, o preço da operação, nas operações de crédito em leasing e ALD, não está nessa parte da renda, mas sim na outra, a componente juros. Mais, e em coerência, essa variável não integra o volume de negócios do SP, como bem se compreende, já que se traduz na devolução do capital emprestado, a devolução (em partes) do preço pago pela viatura (pago com IVA, pelo SP Misto locador, a seu tempo, IVA esse que deduziu, integralmente, por imputação directa). V., a respeito, as Normas contabilísticas (NCRF 9), e o Regulamento das Concentrações Comunitárias. 

Se no (invocado pela Req.te) método pro rata puro a base para apurar o montante de IVA a deduzir é calculada tendo por referência o que integra o volume de negócios do SP, fácil é de ver que, no caso dos SP Mistos Instituições Financeiras, que, como a Req.te, pratiquem os dois tipos de operações do art.º 23.º (que conferem/que não conferem...) esse método carece de adaptação e não pode incluir na fracção a quantia total das rendas – já que aí se inclui, também, a componente devolução de capital. A devolução (os montantes) de capital nas operações leasing e ALD, como, ademais, nas operações de crédito geral desses SP Mistos, não é parte do volume de negócios. Aliás, é assim que também não vai para a fracção do pro rata (denominador) a devolução (os montantes) do capital das operações de crédito geral. Que não são volume de negócios. E é também assim que se evidencia que a aplicação de um pro rata puro que incluísse na fracção (numerador e denominador) a totalidade das quantias pagas pelos Clientes ao SP Misto nas rendas das operações leasing e ALD - ao mesmo tempo não incluindo a componente capital nas operações de crédito geral (que é o que se passa, e nos autos nem se menciona) - provocaria distorções significativas na tributação. Desde logo, a percentagem que dessa forma se apuraria, pela fracção, não ia corresponder à real proporção que as operações que conferem direito a dedução representam no volume de negócios do SP. Distorcia-se necessariamente a percentagem, “percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução”, que o legislador pretende apurar (al. b), n.º 1, art.º 23.º). Distorção no sentido de a proporção das operações que na actividade do SP conferem direito a dedução resultar claramente maior que a sua real proporção no volume de negócios do SP. Com a consequente distorção, para mais, da percentagem do IVA incorrido em inputs mistos que vai ser considerado dedutível. Indevidamente dedutível. Distorção no Sistema Comum do IVA.

Lembrando que a Req.te não carreou nos autos quaisquer documentos e/ou registos contabilísticos - não obstante estarmos em IVA. E também nada alegou a respeito de custos que pudesse ajudar a clarificar a repartição por que pugna no confronto com outros impostos que enformam a sua actividade económica – desde logo IRC e custos na sua actividade principal. O que também coloca em evidência a ausência de substanciação da tese por que pugna. E a que o Acórdãoadere.

 

A própria grandeza de valores que a Req.te defende ter direito a deduzir - um valor de IVA em que teria incorrido ao adquirir inputs mistos constitutivos do preço das operações de leasing e ALD a jusante - também de algum modo poderá aproximar tal distorção. Para prestar tais serviços (leasing e ALD) incorrerá (assim se poderá concluir) em custos substancialmente superiores àquilo que por essas suas prestações de serviços recebe (rendimento), também neste contexto a ordem de valores a reiteradamente reembolsar do Estado, ano após ano (é a Req.te que dá nota de que já nas suas autoliquidações em anos anteriores assim ocorreu). Relembrando que o direito à dedução tem, entre outras, a condição a de os inputs incorridos o terem sido para os fins de uma actividade sujeita e não isenta. Mais que a actividade preponderande da Req.te é, como resulta da instrução da causa, sujeita mas isenta e sem direito a dedução.

 

O TJUE, apreciando, a este respeito, em reenvio de situação de SP Misto Instituição Financeira no OJ Português, veio confirmar que, em tais situações, se se incluir na fracção do pro rata “os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos” (Par.s 33-34 Ac. Banco Mais) alcança-se um pro rata de dedução menos preciso, quando o consumo dos bens de utilização mista nas operações leasing e ALD tiver sido sobretudo determinado pelo financiamento e gestão desses contratos. O que, também observou o TJUE, sucede na maioria dos casos. Mais uma vez, o Acórdão contraria Jurisprudência do TJUE.[3]

 

A Jurisprudência do TJUE vem sendo reflectida pelo nosso STA em sucessivos Acórdãos, incluindo em Uniformização de Jurisprudência. Como até já antes em outros Acórdãos daquele Tribunal Superior era, aliás, o sentido decisório seguido. A par do supra, de 23.03.2022, Proc 066/21.0BALSB, v., entre ouros, os Acórdãos do STA nos Proc. 101/19; 84/19; 87/20; 32/20; 63/20 e o 113/20, 74/21.0BALSB, 75/21.9BALSB, 89/21.9BALSB, 118/21.6BALSB, 48/20.9BALSB, 38/20.1BALSB.

 

A Req.te não cumpriu com o seu ónus da prova. 

O Tribunal Arbitral não pode julgar com base na equidade, e dar guarida a pretensões que configuram o pretender alcançar, por via judicial, o que o Sistema Uniforme no IVA não concede – deduzir inputs que os SP utilizam nas suas operações sujeitas mas isentas. 

Como também não pode o Tribunal desvincular-se da interpretação que o TJUE faz das normas da DIVA na sua Jurisprudência. E nem da Jurisprudência reiterada, uniforme e constante do STA nesta matéria, com tudo o que aí se contém. 

 

III. 3. Quanto a alegadas inconstitucionalidades e decisório do Acórdão 

a) Das Inconstitucionalidades

O Acórdão decidiu recusar a aplicação do art.º 23.º com fundamento em inconstitucionalidade, nos n.ºs 2, 3 e 4) por violação dos art.ºs 112.º, n.º 5, 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, al. i), 266.º, n.º 1 da CRP “na interpretação que consta do ponto 9 do Ofício Circulado”, e nos n.ºs 2 e 3, al. b) por violação do art.º 13.º “na interpretação de que permite a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado”. Porém não vêm violados princípios consagrados na CRP, nem suas normas. O Ofício é Doutrina Administrativa. Não tem eficácia externa, mas sim interna, vincula a Administração, pelo que não feriria o art.º 112.º, n.º 5; não está em causa criação de impostos ou matéria de reserva de lei da AR, pelo que nem haveria violação dos art.ºs 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i), foi a AR que legislou, em transposição da Directiva, no sentido de a AT poder impor condições especiais, tudo como já supra; nem há nisso desenvolvimento de normas de incidência, estamos em sede de procedimento de liquidação e pagamento do imposto (Cap. V do CIVA), funcionamento do método subtractivo indirecto, aspectos adjectivos, e a emissão de Doutrina Administrativa traduz prossecução de interesse público, em cumprimento também do art.º 266.º, n.º 1 da CRP, protegendo direitos e interesses dos cidadãos; o Princípio da igualdade, sai violado, pelo contrário, caso não se retire da fracção do pro rata a componente da renda capital, como supra vimos, distorcendo-se (para mais) a proporção das operações que dão direito a dedução, colocando SPMistos em posição de vantagem face aos outros, que praticam operações isentas (isenção incompleta) e por isso não lhes é dado deduzir o IVA em que incorrem nos seus inputs seja em que medida for (e não beneficiam, esses, de distorções a seu favor via cálculos distorcidos de pro rata). Sobre Doutrina Administrativa, o teor do Ofício, e sobre a conformidade deste à Constituição e à lei, remetemos para o que deixámos escrito em votos nos já referidos Proc. n.ºs 383/2019-T e n.º 408/2019-T, e n.º 76/2022-T, CAAD. 

 

Mas mais. Nem cabia conhecer de inconstitucionalidades.

Inexiste nexo incindível (sequer nexo) entre as supostas questões de inconstitucionalidade e a questão principal objecto do processo:

A Req.te submeteu autoliquidações. Não estava obrigada a seguir o Ofício, mas tê-lo-á seguido. E vem defender que as autoliquidações são inconstitucionais. 

Vem alegar que a autoliquidação é inconstitucional porque seguiu o Ofício. 

É a própria Req.te que suscita inconstitucionalidade da autoliquidação que submeteu.

Mas não foi a AT que liquidou. Nem liquidou, nem impôs a aplicação do Ofício.

Se a Req.te pretendia que a AT se pronunciasse casuisticamente (como o Acórdão diz deveria ter sucedido) então bastar-lhe-ia ter apresentado a autoliquidação segundo o entendimento que tem por correcto, e aguardar, a ser o caso, uma liquidação correctiva ou adicional.

E nesse caso, sim, estaríamos em sede de art.º 87.º do CIVA, com a consequente aplicação do critério decisório e ónus da prova (art.º 74.º da LGT) a correr pelo lado da Req.da.

 

Não há nexo causal entre o acto voluntariamente praticado pela Req.te e a(s) norma(s) da Constituição alegadamente violadas. A Req.te não está vinculada a declarar daquela maneira, se com ela não concorda. Quem está vinculada à sua Orientação é a AT.

 

Foi a Req.te que optou por este caminho. Se o fez terá sido por considerar preferível. É a própria que está a dar azo, conscientemente, a uma situação jurídica que apresenta como desconforme à Constituição. A dar azo ao pretenso vício de violação de lei que vem aos autos invocar.

Pede a anulação das suas autoliquidações por violação de normas Constitucionais. 

Ao agir assim provoca (a vingar a sua posição, como no Acórdão) a anulação do seu acto.  

Afigura-se-nos manifestamente abusiva e contrária ao Direito a manipulação da autoliquidação no intuito de obter uma vantagem fiscal, abusivo que seja o próprio que dá azo a um pretenso vício que o venha invocar em benefício próprio. Tal como configurada a lide, só por si, causa estranheza ter sido a própria Req.te, que autoliquidou o imposto, quem de seguida vem arguir a inconstitucionalidade do Ofício/da autoliquidação. Aliás, como também consta dos autos, ano após ano assim o vindo a fazer.

Não há nexo causal. A Req.te não estava vinculada ao Ofício. Invoca o Ofício que considera inconstitucional e aplica-o para com isso provocar uma suposta ilegalidade.  A Req.te tem que aplicar a norma, e não o Ofício, se o considera inconstitucional e que lhe é desfavorável. 

A Req.te já parte de uma falácia. Não estava obrigada a seguir o Ofício. Donde, exercício abusivo, disfuncional, de posições jurídicas, em contrariedade ao sistema na sua globalidade (v. art.º 334.º do CC).

E nem se diga que o acto da Req.da é o indeferimento da reclamação graciosa. Desde logo, e além do que já se disse acima (acto objecto do pedido é a autoliquidação) a Req.te nem tinha que interpor reclamação graciosa, cfr. art.º 131.º, n.º 3 do CPPT, tal é a respeito inócuo.

 

b) Da quantificação e condenação em pagamento

Decide-se anular as liquidações “na parte em que foi deduzido IVA em montante inferior ao que resulta do cálculo...”. E não há qualquer apuramento, cálculo ou critério de quantificação (vimos) ... daquilo que vem alegado como montante “pago em excesso” (deduzido a menos). Alegado. Tanto foi o suficiente para se condenar no pagamento. Melhor seria, dir-se-ia, o SP vir pedir ao Tribunal Arbitral, ao invés de dois, dez milhões de euros. A consequência seria a mesma, há que concluir-se, condenar na quantia que viesse alegada para o efeito. Com o devido respeito, tanto basta (!) para a maioria que fez vencimento.

A Req.te defende que deverá ser-lhe aplicado o método do pro rata da al. b) do n.º 1 do art.º 23.º tal como constante do n.º 4 do mesmo artigo. E o Acórdão adere. Sem haver qualquer base, cálculo, substanciação factual.

O Acórdão não especificou os fundamentos de facto (e de Direito) que justificam a decisão, v. entre o mais, art.º 28.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

Aquilo que o Tribunal fez foi desaplicar o art.º 23.º, por inconstitucionalidades que declarou.

Faltava, depois, aplicá-lo. 

Desde logo, não tinha os elementos de facto para o fazer, sem prejuízo do mais que se dirá.

O art.º 23.º do CIVA, no método do pro rata puro (n.º 1, al. b) e n.º 4) aquilo que fornece é uma fórmula para apurar-se a percentagem correspondente ao montante anual das operações que dão direito a dedução no volume de negócios.

Depois, bem se vê, será necessário um segundo cálculo, um segundo apuramento... alcançada aquela percentagem (percentagens que, nos autos, vêm alegadas sem qualquer sustentação). 

Uma vez alcançada a percentagem (cálculo que nem o Tribunal podia fazer ou apreciar, atente-se desde logo no probatório e inexistente substanciação a respeito) haverá que aplicá-la à totalidade de IVA que tenha sido incorrido em bens de utilização mista. Vimos, também este cálculo se revela impossível nos autos. Esta base, e seu apuramento, sobre a qual depois haveria, só então, que aplicar a tal (alegada mas não apurada/confirmada) percentagem, também era desconhecida nos autos, vimos acima.

Ou seja, ainda que aqui se chegasse (como nem podia ter sucedido, por tudo o que vimos; só aqui se chegaria depois de, desde logo, se ter provado, o que não sucedeu, o SP utilizar os inputs mistos na actividade tributada sobretudo para os fins da disponibilização das viaturas), mesmo aí então o Tribunal tinha que validar/passar por duas contas (1.ª, percentagem, incluindo rendas capital, 2.ª, montante total do IVA incorrido em recursos verdadeiramente mistos). Para só então apurar a percentagem (o montante), desse, a deduzir. Só depois conseguiria validar o montante a deduzir que o SP se arroga. Validar com base em provas – factos. Não existem. Mesmo que porventura o Tribunal tivesse querido fazê-lo. Quais são os fundamentos de facto que justificam o valor de X a deduzir? (Note-se, aliás, que o que resultou da instrução quanto à percentagem que a actividade tributada tem no volume de negócios da Req.te foi inferior, substancialmente, às percentagens a deduzir que a Req.te se arroga, e que o Tribunal defere... em total arrepio do método que estaria a aplicar). Ademais, quanto a nós, pelo facto essencial não provado (v probatório) o Tribunal seria conduzido a uma decisão em sentido oposto àquele que decidiu. Ao não o fazer, viola, sim, o Direito da UE tal como interpretado pelo TJUE. E tal como interpretado pelo nosso STA. Lembrando que os Tribunais Nacionais são por excelência os órgãos de aplicação do DUE. Este sai violado, em IVA. Receitas, também, da União Europeia, como se sabe. 

 

Mas mais

O Tribunal não tem competência senão para determinar a anulação do acto tributário, de 1.º grau, e as consequências dessa anulação. Contencioso de mera anulação. O processo de impugnação traduz o exercício de uma “jurisdição restrita”, contencioso de mera legalidade, visando a anulação dos actos tributários (ou a declaração da sua nulidade ou inexistência) - v. art.ºs 99.º e 124.º do CPPT, ainda que com a abrangência, que se reconhece na competência dos Tribunais que neste contexto decidem, de condenar nas consequências dessa mesma anulação. Não é o que se passa no caso. O Tribunal condenou para lá do que seriam as consequências da anulação das autoliquidações em crise (v. também art.ºs 2.º e 28.º, 1, c) do RJAT), excedendo a sua competência. O Tribunal - contencioso de mera anulação - não tem poderes para reformar ou substituir o acto.

 

Por outro lado

Ao assim proceder, extravasando a sua competência o Tribunal invadiu a esfera do poder executivo. Afrontou o núcleo essencial da função administrativa-tributária. 

Não pode o Tribunal substituir-se à Administração, e quantificar montantes a deduzir. Proceder à quantificação. 

Acto tributário via poder judicial?

Com as necessárias adaptações pode ver-se o Acórdão do STA de 03/08/2017, proc. 0298/13.

 

*

Vêm violados, além do mais, o Princípio do Primado do DUE (art.º 8.º da CRP), o Princípio da interpretação uniforme do DUE, via também a desaplicação da Jurisprudência do TJUE que vimos, prolatada em reenvio prejudicial.

Permitiu-se a distorção do Sistema Uniforme do IVA, em que as isenções incompletas não dão direito a dedução – o que o método do art.º 23.º em questão se destina a proteger também. Olvidando-se, além de tudo o mais, que o direito a dedução em IVA tem requisitos formais, e substanciais, que cabia respeitar. 

 

Não se trata de uma questão sujeita à convicção do Tribunal.

Mas sim de factos essenciais que têm que ser carreados para prova. 

Não se provaram os factos essenciais constitutivos do direito invocado. 

O PPA era manifestamente improcedente.

 

Aos 1 de Julho de 2025

O Árbitro,

 

(Sofia Ricardo Borges)

 

 



[1] Decisão proferida no âmbito do processo C-153/17, de 18 de outubro de 2018, disponível para consulta em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=206893&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=6241015.

[2] Com maior desenvolvimento também neste ponto v. nossos votos de vencida nos Proc.s n.º 383/2019-T e 408/2019-T, CAAD.

[3] Sobre a fracção, funcionamento do método e conexos pode ver-se o que escrevemos com desenvolvimento em votos de vencida nos Processos n.º 383/2019-T e n.º 408/2019-T, e também no Proc.º n.º 76/2022-T, CAAD.