SUMÁRIO
O n.º 1, parte final, e o n.º 3 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretados conjugadamente no sentido ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo (OICs) que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, violam o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Árbitro-Presidente), Dr. Augusto Vieira (Árbitro Vogal-Relator) e Professora Doutora Maria do Rosário Anjos (Árbitro-Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
1. Relatório e Saneador
A..., organismo de investimento colectivo (“OIC”) constituído e a operar no Reino da Bélgica sob supervisão da Autorité des Services et Marchés Financiers, contribuinte fiscal belga n.º... e português n.º ..., com sede em Rue..., Bélgica (doravante “o Requerente”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa por si apresentada a 17 de Maio de 2024 (autuada com o n.º ...2024...), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 57.º, n.ºs 1 e 5, e 95.º, n.º 2, alínea d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 97.º, n.º 1, alínea a), 99.º, alínea a), e 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do referido indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024...e, bem assim, das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) a ele subjacentes, por retenção na fonte ocorridas em 2022, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português.
O Requerente termina pedindo que o Tribunal Arbitral:
i) “Declare a ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte em referência, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do CPA;
ii) Ao abrigo do artigo 100.º da LGT, ordene a restituição das importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de EUR 95 736,58;
iii) Com a anulação dos actos tributários em crise, determine o pagamento de juros indemnizatórios, os termos do artigo 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, a computar sobre o montante total de EUR 95 736,58 desde a data das retenções na fonte em referência; e
iv) Na medida da procedência dos pedidos anteriores, condene a Administração Tributária nas custas do processo arbitral, tudo com as demais consequências legais”.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT em 21/10/2024.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 11/12/2024, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 02/01/2025.
Por Despacho Arbitral de 02/01/2025, nos termos do previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, foi notificada a AT para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando dever ser remetido ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo.
A Requerida apresentou, em 03/02/2025 a sua Resposta e, na mesma data, remeteu cópia do Processo Administrativo e 5 documentos.
Por despacho do Tribunal de 24/02/2025 foi o Requerente convidado a pronunciar-se sobre o alegado pela AT nos artigos 6.º a 8.º e 54.º do PPA o que fez por requerimento de 10/03/2025, juntando o Documento n.º 1 – certificado de residência fiscal do Requerente.
Por despacho arbitral de 26/05/2025, considerando a inexistência de prova testemunhal por produzir e as questões por decidir, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações escritas.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo e foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o Tribunal é competente.
O processo não enferma de nulidades. As partes não suscitaram exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) O Requerente é um OIC, com sede e direcção efectiva no Reino da Bélgica, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 3 août 2012 relative à certaines formes de gestion collective de portefeuilles d’investissement e, bem assim, do Arrêté royal du 7 décembre 2007 relatif aux organismes de placement collectif à nombre variable de parts institutionnels, que transpõem para a ordem jurídica belga a Directiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC – conforme artigo 3.º do PPA, documentos 1 (junto em 10/03(2025), 2, 3 e 4 em anexo ao PPA e publicações disponíveis no sítio oficial na internet do Le Moniteur Belge, em http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/loi/2012/08/03/2012003296/justel e em http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/arrete/2007/12/07/2007003552/justel.
B) O Requerente é administrado por B..., entidade igualmente com residência no Reino da Bélgica, na Rue ..., ..., Bélgica, e é residente para efeitos fiscais no Reino da Bélgica, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e o Reino da Bélgica – conforme artigos 5.º e 6.º do PPA, e documentos 2 e 3 em anexo ao PPA.
C) Em 2022, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 638.243,88, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, conforme quadro seguinte:
ENTIDADE
|
DATA
|
DIVIDENDOS BRUTOS
|
RETENÇÃO NA FONTE
|
DIVIDENDOS LÍQUIDOS
|
C...
|
28-Abri-2022
|
8.246,19
|
1.236,93
|
7.009,26
|
C...
|
28-Abri-2022
|
14.060,00
|
2.109,00
|
11.880,70
|
C...
|
28-Abri-2022
|
14.082,23
|
2.112,33
|
11.899,49
|
C...
|
28-Abri-2022
|
311.792,28
|
46.768,84
|
265.023,44
|
D... SGPS
|
09-Mai-2022
|
181.802,55
|
27.270,38
|
154.532,17
|
E...
|
10-Mai-2022
|
2.500,00
|
375,00
|
2.112,50
|
E...
|
10-Mai-2022
|
2.950,75
|
442,61
|
2.493,39
|
F...
|
13-Mai-2022
|
58.400,00
|
8.760,00
|
49.640,00
|
G...
|
18-Mai-2022
|
4.913,32
|
737,00
|
4.151,75
|
G...
|
18-Mai-2022
|
7.547,78
|
1.132,17
|
6.377,87
|
E...
|
20-Set-2022
|
2.600,00
|
390,00
|
2.197,00
|
E...
|
20-Set-2022
|
3.068,78
|
460,32
|
2.593,12
|
F...
|
21-Dez-2022
|
26.280,00
|
3.942,00
|
22.338,00
|
TOTAL: 638.243,88 95.736,58 542.248,69
- conforme artigo 7.º do PPA, e documentos 5 e 6 em anexo ao PPA.
D) As retenções na fonte de IRC em causa – no montante de € 95.736,58 – foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.ºs ..., ..., ... e..., pelo H..., NIPC..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários – conforme artigo 8.º do PPA, artigos 4.º a 6.º da Resposta ao PPA, e documentos 5 e 6 em anexo ao PPA.
E) O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto dos presentes autos, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Bélgica, seja ao abrigo da lei interna do Reino da Bélgica – conforme artigo 9.º do PPA e documento 7 em anexo ao PPA.
F) Em 17/05/2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de IRC acima identificadas – conforme artigo 10.º do PPA e documento 1 em anexo ao PPA.
G) Na data da entrega do PPA no CAAD, o referido procedimento de reclamação graciosa estava pendente junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob o n.º ...2024... – conforme artigo 12.º do PPA.
H) Em 17/10/2024, o Requerente apresentou no CAAD o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no SGP do CAAD.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC aplicável ex viartigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
É pacífico na doutrina e jurisprudência que: “Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objectivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental) a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respectivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos ou existirem documentos que apontam em sentidos contraditórios” (cf. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, p. 321 e, entre outros, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05/03/2020, processo n.º 19/17.2BCLSB).
Efetivamente, sem prejuízo da posição assumida pela Requerida a propósito de alguns dos factos carreados para os autos pelo Requerente, considera este Tribunal Arbitral que a prova documental apresentada tem valor objetivo e a respetiva informação se tem por verdadeira.
Em concreto, os documentos 5 e 6 juntos pelo Requerente aos autos, que correspondem a declaração emitida pela entidade obrigada efetuar as referidas retenções na fonte como os comprovativos de débito dos dividendos, identificam o Requerente como destinatário dos dividendos em apreço no processo sub judice.
O mesmo se diga quanto à prova documental sobre a inexistência de crédito de imposto (documento 7), sendo que, é necessariamente do conhecimento técnico da AT qual o regime fiscal que existe na Bélgica quanto aos rendimentos aqui em causa, até por força da existência de um ADT entre Portugal e o Reino da Bélgica.
Os registos do Modelo 30 juntos pela AT com a Resposta ao PPA, bem como o quadro resumo, confirmam o alegado pela Requerente.
3. Posição das Partes
No essencial, o Requerente alega que a retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos por si obtidos no território nacional no ano de 2022 viola o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), isto porque, organismos de investimento colectivo (“OIC”) residentes fiscais em Portugal estão isentos de tributação sobre dividendos, nos termos do regime previsto no artigo 22.º do EBF.
Por seu turno, a AT entende que OICs não residentes fiscais em Portugal, como sucede no caso do Requerente, não se encontram numa situação comparável à dos OICs constituídos / residentes fiscais em Portugal. Alega a AT que a legislação portuguesa, concede isenções a OICs constituídos / residentes fiscais em Portugal, mas sujeita esses mesmos OICs a outras formas de tributação, como o Imposto do Selo ou tributação autónoma. Ou seja, a diferença de tratamento entre OICs residentes e OICs não residentes em Portugal não configura uma discriminação proibida pelo artigo 63.º do TFUE, uma vez que ambos estão sujeitos a regimes fiscais diferentes.
A AT coloca algumas reservas:
1. Quanto às guias de pagamento do imposto – refere que “apresentam valores muito superiores em relação aos peticionados pelo que não é possível verificar os valores”;
2. Quanto à declaração emitida pelo agente pagador em Portugal nos períodos relevantes – refere que “as declarações apresentadas, que integram o documento 5 do ppa, ... encontram-se emitidas pelo H... com sede em paris e redigidas na língua inglesa e nem sequer identificam a Requerente enquanto alegada beneficiária dos rendimentos”.
3. Que “o documento n.º 2 junto com o PPA não se trata dum certificado de residência fiscal, mas sim dum pedido/requerimento apresentado junto das autoridades fiscais da Bélgica, pelo que não faz prova da residência fiscal da Requerente nesse Estado”
4. Que “a Requerente não esclareceu/provou (apenas alegou) se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera da própria Requerente ou dos investidores”.
Vejamos, em primeiro lugar, as reservas colocadas pela AT:
1. O facto de as guias apresentarem valores superiores configura-se irrelevante para o julgamento da matéria de facto, pois a própria AT nos artigos 4.º e 5.º da Resposta ao PPA, e através dos documentos juntos, confirma que os valores pedidos pela Requerente coincidem com os que foram pagos ao Estado e comunicados no Modelo 30 do IR.
2. O conteúdo do documento 5 em anexo ao PPA não é impugnado (nem invocada a sua falsidade) pela AT nem é alegado que o facto de estar em língua inglesa impossibilita a sua compreensão, pelo que nos termos dos artigos 365.º-1 e 376.º-2 do CC, o Tribunal considerou provados os factos que referem nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT.
3. Que o documento 2 junto com o PPA não é um certificado de residência fiscal mas sim um pedido – o Requerente juntou em 10/03/2025 a prova da sua residência fiscal na Bélgica.
4. Prova do não ter ocorrido crédito de imposto – como se referiu a propósito da fundamentação da fixação da matéria de facto, quanto à prova documental sobre a inexistência de crédito de imposto ela decorre do documento 7 junto com o PPA, sendo que, a matéria é necessariamente do conhecimento técnico da AT qual o regime fiscal que existe na Bélgica quanto aos rendimentos aqui em causa, até por força da existência de um ADT entre Portugal e o Reino da Bélgica.
De acordo com o standard da prova aplicável, perante um documento particular passado em pais estrangeiro, cujo conteúdo e autoria não é impugnada, nem alegada a sua falsidade, nos termos dos artigos 365.º-1 e 376.º-2 do CC, o Tribunal considerou provados os factos que aludem nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT.
4. Matéria de direito
O caso sub judice visa, essencialmente, apreciar a compatibilidade com o princípio da liberdade de circulação de capitais, consagrado no artigo 63.º do TFUE, do regime especial de tributação aplicável aos OICs que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, determinando a exclusão desse regime jurídico dos OICs que operem em Portugal e que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de Estado terceiro.
A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão AllianzGI-Fonds AEVN do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), datado de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, em que se concluiu que:
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
Diversos Tribunais Arbitrais constituídos no CAAD reiteraram a referida jurisprudência do TJUE. Note-se, de resto, que o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE (Acórdão de 28/09/2023, Processo n.º 093/19):
“A interpretação do artº. 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia”.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no âmbito do proc. n.º 66/2024).
A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime de isenção nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados.
Assim, voltando ao caso sub judice, a legislação portuguesa, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado e ao mesmo tempo permitir que os OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiem, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE. Tal conclusão é, pois, igualmente, aplicável quando estão em causa OICs - como sucede in casu - constituídos de acordo com a legislação de países terceiros.
Consequentemente, tem de se concluir que os actos de retenção na fonte, bem como o presumido indeferimento da reclamação graciosa que o manteve, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
5. Restituição das importâncias indevidamente retidas e juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda o reembolso das importâncias indevidamente retidas e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
Nos termos da al. b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Isto está, pois, em perfeita sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ademais, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União Europeia tem como consequência não só direito ao reembolso do imposto pago mas também o direito ao pagamento de juros (vide, o Acórdão Mariana Irimie, Proc. C-565/11):
“21. Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22. Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23. A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)”.
É certo, porém, que, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos. No caso Português o direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1.São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2.Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3.São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a)Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b)Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c)Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d)Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4.A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5.No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”.
É verdade que, in casu, estamos perante actos de retenção na fonte e, como tal, não praticados directamente pela AT. No entanto, tal facto, de modo algum, afasta a imputabilidade do erro à AT, isto porque, conforme entendimento preconizado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão proferido no Proc. n.º 93/21.7BALSB de 29-06-2022):
“Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da LGT “.
O supra referido Acórdão do STA é bastante claro ao concluir que, para efeitos da fixação do termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios deve considerar-se a data em que a reclamação graciosa se considera tácitamente indeferida:
“De acordo com o probatório da decisão arbitral recorrida, no que diz respeito aos actos tributários que foram objecto de reclamação graciosa (cfr. actos de liquidação de imposto de selo emitidos nos períodos de Fevereiro de 2017 a Dezembro de 2018 - al.J) da matéria de facto supra exarada), foi tal reclamação deduzida em 20 de Março de 2019, mais sendo objecto de indeferimento expresso em 6 de Setembro de 2019 (cfr.al.K) da matéria de facto supra exarada).
Neste segmento da instância recursiva, deve chamar-se à colação a doutrina defendida pelo acórdão fundamento, oriundo do Tribunal Central Administrativo Sul, a qual já foi sufragada por diversos acórdãos deste Tribunal e Secção (cfr.v.g.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/01/2017, rec.890/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/05/2018, rec.250/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/04/2021, rec. 360/11.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/10/2021, rec.3009/12.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/12/2021, rec.1098/16.5BELRS), e que nos diz: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
Mais se deve recordar que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C.Civil (cfr.artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.).
Revertendo ao caso dos autos, tendo sido deduzida, a reclamação graciosa, em 20 de Março de 2019, operou o indeferimento tácito da mesma em 22 de Julho de 2019, uma segunda-feira (cfr. artº.279, als. b), c) e e), do C.Civil).
Portanto, a mencionada data de 22 de Julho de 2019 deve ter-se como "dies a quo" do cômputo dos juros indemnizatórios no caso concreto, em consequência do que, também nesta parcela, deve ser revogada a decisão arbitral que fixou o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios nas datas do pagamento do imposto”.
Tratando-se de jurisprudência uniformizada, a mesma deve, pois, ser acatada.
No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 17/05/2024 (vide, al. F) da matéria de facto supraexarada), pelo que a presunção de indeferimento tácito se formou em 17-09-2024, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT, decorrido o prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do mesmo artigo.
Assim, face à jurisprudência uniformizada do STA que se invoca, é de concluir que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde 18-09-2024 (inclusive).
6. Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos de liquidação de IRC, através de actos de retenção na fonte, no valor total de € 95.736,58, bem como a decisão de indeferimento presumido da reclamação graciosa contra eles deduzida;
b) Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 95.736,58, e condenar a Administração Tributária a reembolsar este montante ao Requerente;
c) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária no seu pagamento desde 18/09/2024 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
7. Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 95.736,58, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
CAAD, 2 de Julho de 2025.
Presidente do Tribunal Arbitral,
Rita Correia da Cunha
(com declaração de voto em anexo)
O Árbitro Vogal,
Augusto Vieira
O Árbitro Vogal,
Maria do Rosário Anjos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não obstante acompanhar o sentido da decisão da maioria dos árbitros (procedência do pedido de pronúncia arbitral), parece-me ser de referir a questão da neutralização do efeitos restritivos à liberdade de circulação de capitais decorrentes da imposição da retenção na fonte em apreço, e não posso acompanhar a posição relativa aos juros indemnizatórios devidos ao Requerente, por entender que a mesma é desconforme ao Direito da União Europeia.
Vejamos:
1) A questão da neutralização
A questão da neutralização do tratamento discriminatório de dividendos no Estado da fonte (in casu, Portugal), através da atribuição de um crédito de imposto no Estado da residência do sujeito passivo que aufere os dividends (in casu, Bélgica), levanta-se quando as partes discutem se as retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados pelo Requerente deu lugar a um crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de respetiva residência (Bélgica).
Esta questão tem sido discutida em vários Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) relativos à tributação de dividendos e consiste em saber se o Estado da fonte do rendimento pode manter uma retenção na fonte sobre dividendos (aparentemente) discriminatória (ao invés de eliminar a dupla tributação económica), se a tributação do detentor das participações sociais no seu Estado de residência for “neutralizada” através de um crédito de imposto atribuído ao abrigo de uma CEDT.
Note-se que o TJUE tem sido consistente em rejeitar a neutralização do tratamento discriminatório no Estado da fonte do rendimento através da atribuição unilateral de uma vantagem no Estado da residência do sujeito passivo que aufere o rendimento (i.e., uma vantagem conferida pela legislação nacional do Estado da residência, por oposição a uma vantagem conferida ao abrigo de uma CEDT), rejeitando, assim, a noção de que o tratamento discriminatório no Estado da fonte do rendimento depende de uma análise integrada da situação global do contribuinte - ou seja, de uma análise que combine a tributação resultante da legislação nacional do Estado da fonte do rendimento e do Estado da residência do sujeito passivo. Este entendimento radica no princípio de que os Estados-Membros não podem exercer a sua soberania fiscal de forma a impor uma tributação discriminatória contrária às regras do Direito da União Europeia.
Contudo, o TJUE tem vindo a reiterar que, para aferir o tratamento discriminatório no Estado da fonte do rendimento, é necessário analisar a situação do contribuinte à luz não só da legislação nacional do Estado da fonte do rendimento, mas também da CEDT celebrada entre o Estado da fonte do rendimento e o Estado da residência do sujeito passivo, dado que os preceitos da CEDT em apreço integram o sistema fiscal do Estado da fonte dos rendimentos, e devem ser considerados para determinar se este exerceu a sua soberania fiscal em conformidade com as regras do Direito da União Europeia. Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do TJUE de 7 de outubro de 2005, processo C-379/05 (Amurta v. Inspecteur van de Belastingdienst):
“78. Deste modo, o Reino dos Países Baixos não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado Membro, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.
79. Em contrapartida, não se pode excluir que um Estado Membro consiga garantir o cumprimento das suas obrigações resultantes do Tratado, celebrando uma convenção destinada a evitar a dupla tributação com outro Estado Membro (v., neste sentido, acórdão Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
80. Na medida em que o regime fiscal resultante de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tomá lo em consideração a fim de dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao juiz nacional (v., neste sentido, acórdão de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C 265/04, Colect., p. I 923, n.° 51; e acórdãos, já referidos, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, n.° 71, Denkavit Internationaal e Denkavit France, n.° 45, assim como Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, n.° 54).
(…)
83. Assim, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração a CDT no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais salientada no n.° 28 do presente acórdão, no âmbito da resposta à primeira questão
84. Há assim que responder à segunda questão que um Estado Membro não pode invocar a existência de um crédito integral de imposto, concedido unilateralmente por outro Estado Membro a uma sociedade beneficiária estabelecida neste último Estado Membro, a fim de se eximir à obrigação de evitar a dupla tributação económica dos dividendos resultantes do exercício do seu poder de tributação, numa situação em que o primeiro Estado Membro evita a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos às sociedades beneficiárias estabelecidas no seu território. Quando um Estado Membro invoca uma convenção celebrada com outro Estado Membro, destinada a evitar a dupla tributação, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração essa convenção no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais”. (sublinhado nosso)
A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da fonte através da atribuição de um crédito de imposto no Estado da residência ao abrigo de uma CDT foi também especificamente discutida no Acórdão do TJUE de 14 de dezembro de 2006, processo C 170/05 (Denkavit Internationaal BV v. Ministre de l’Économie):
“42 Com as suas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a resposta à primeira questão pode ser diferente por, ao abrigo da convenção franco neerlandesa, a sociedade mãe residente nos Países Baixos poder, em princípio, imputar no imposto por si devido neste Estado o imposto cobrado em França e, portanto, a retenção na fonte provir simplesmente da repartição das competências fiscais entre os referidos Estados Membros, a qual não pode ser criticada à luz dos artigos 43.° CE e 48.° CE, mesmo que a sociedade mãe residente nos Países Baixos esteja impossibilitada de proceder à imputação prevista pela referida convenção.
43 A este respeito, há que começar por recordar que, na falta de medidas de harmonização comunitária ou de convenções celebradas entre todos os Estados Membros nos termos do artigo 293.°, segundo travessão, CE, os Estados Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais celebradas para prevenir a dupla tributação, os factores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (v., neste sentido, acórdãos Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 57, e de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C 265/04, Colect., p. I 923, n.° 49).
44 Porém, há também que referir que, no que toca ao exercício do poder tributário assim repartido, os Estados-Membros não podem eximir-se ao respeito das regras comunitárias, tendo em conta o princípio recordado no n.° 19 do presente acórdão (acórdão Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 58). Mais especificamente, esta repartição da competência fiscal não permite que os Estados Membros introduzam uma discriminação contrária às regras comunitárias (acórdão Bouanich, já referido, n.° 50).
45 No caso em apreço, uma vez que o regime fiscal resultante da convenção franco neerlandesa faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tê lo em consideração, de modo a dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Setembro de 2004, Manninen, C 319/02, Colect., p. I 7477, n.° 21, Bouanich, já referido, n.° 51, e Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
46 No que respeita ao tratamento fiscal resultante da convenção franco neerlandesa, há que recordar que uma sociedade não residente, como a Denkavit Internationaal, está em princípio autorizada, ao abrigo desta convenção, a imputar no imposto por si devido nos Países Baixos a retenção na fonte de 5% cobrada sobre os dividendos de origem francesa. Esta imputação não pode, todavia, exceder o montante do imposto neerlandês normalmente devido sobre estes dividendos. Ora, é pacífico que as sociedades mãe neerlandesas estão isentas pelo Reino dos Países Baixos do imposto sobre os dividendos de origem estrangeira, e portanto de origem francesa, pelo que não é concedida qualquer redução pela retenção na fonte francesa.
47 Assim, há que concluir que a aplicação conjugada da convenção franco neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento referida no quadro da resposta à primeira questão.
48 Com efeito, em aplicação da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente, uma sociedade-mãe estabelecida nos Países Baixos, que recebe dividendos de uma filial estabelecida em França, está sujeita a tributação através de retenção na fonte, limitada, é certo, pela referida convenção, a 5% do montante dos dividendos em questão, ao passo que uma sociedade-mãe estabelecida em França, como foi referido no n.° 4 do presente acórdão, está quase totalmente isenta dessa tributação.
49 Seja qual for a sua amplitude, a diferença de tratamento fiscal que resulta da aplicação desta convenção e desta legislação constitui uma discriminação em detrimento das sociedades mãe, em razão da localização da respectiva sede, incompatível com a liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado.
50 Com efeito, mesmo uma restrição à liberdade de estabelecimento, com pequeno impacto ou de menor importância, é proibida pelo artigo 43.° CE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/França, já referido, n.° 21; de 15 de Fevereiro de 2000, Comissão/França, C 34/98, Colect., p. I 995, n.° 49; e de 11 de Março de 2004, De Lasteyrie du Saillant, C 9/02, Colect., p. I 2409, n.° 43).
51 A este respeito, o Governo francês alega que, segundo os princípios consagrados pelo direito fiscal internacional e como também decorre da convenção franco neerlandesa, é ao Estado de residência do contribuinte, e não ao da fonte dos rendimentos tributados, que incumbe corrigir os efeitos de uma dupla tributação.
52 Esta argumentação não pode ser acolhida, dado que não é pertinente no presente contexto.
53 Com efeito, a República Francesa não pode invocar a convenção franco neerlandesa, a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado (v., neste sentido, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, já referido, n.° 26).
54 Ora, a aplicação conjugada da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite evitar a tributação em cadeia a que está sujeita, diversamente de uma sociedade mãe residente, uma sociedade mãe não residente, nem, portanto, neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento salientada no quadro da resposta à primeira questão submetida, como se concluiu nos n.os 46 a 48 do presente acórdão.
55 Com efeito, enquanto as sociedades mãe residentes beneficiam de um regime fiscal que lhes permite evitar uma tributação em cadeia, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, as sociedades mãe não residentes estão, pelo contrário, sujeitas a este tipo de tributação dos dividendos distribuídos pelas suas filiais estabelecidas em França.”(sublinhado nosso)
Não obstante alguma inconsistência na aplicação do conceito de neutralização que se discute, vários Acórdãos demonstram que o TJUE tem decidido, de forma consistente, que as CEDTs devem ser consideradas para determinar a existência de um tratamento discriminatório: Acórdão do TJUE de 19 de novembro 2009, processo C-540/07 (Commission v. Italy), Acórdão do TJUE de 3 de junho 2010, processo C-487/08 (Commission v. Spain), Acórdão do TJUE de 17 de setembro de 2015, processos C-10/14, C-14/14 and C-17/14 (Miljoen).
Ora, tal como observado pelo Requerente, a CEDT entre Portugal e Bélgica autoriza um sujeito passivo residente na Bélgica, que auferiu dividendos sujeitos a retenção na fonte em Portugal, a imputar ao imposto por si devido na Bélgica o montante retido na fonte em Portugal, não podendo esta imputação exceder o montante do imposto belga normalmente devido sobre os mesmos dividendos (cf. Artigo 22.º, n.º 2, da CEDT). In casu, para verificar se esta CEDT permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais em apreço, é necessário apurar se ao Requerente foi impossível imputar o montante retido na fonte em Portugal a título de dividendos ao imposto por si devido na Bélgica.
Dado que a CEDT Portugal/Bélgica prevê um crédito de imposto ordinário (cf. Artigo 22.º, n.º 2, da CEDT) e que o Requerente (SICAV Belga) está isento, na Bélgica, de imposto sobre os dividendos de origem estrangeira, e portanto de origem portuguesa, não lhe foi efetivamente (de facto) concedida qualquer redução pela retenção na fonte portuguesa. Na minha convicção, estes factos foram alegados e provados pelo Requerente por referência às normas aplicáveis, não sendo, no meu entender, de relevar o efeito o Documento 7 junto ao PPA (ou seja, um documento particular emitido pela entidade gestora do Requerente em que se pode ler que o fundo Requerente não conseguiu deduzir um crédito fiscal na Bélgica com referência aos dividendos recebidos de sociedades portuguesas, nem ao abrigo da CEDT Portugal/Bélgica), como aliás fez a maioria do Tribunal Arbitral.
Pelo exposto, conclui-se que o efeito do tratamento discriminatório resultante do Direito interno português não foi efetivamente neutralizado por um crédito de imposto concedido ao Requerente no seu Estado de residência (Bélgica). Note-se, por último, que, na medida em que a tributação dos investidores é irrelevante para efeitos da tributação dos OICs residentes em Portugal, a tributação dos investidores em OICs não residentes é também irrelevante (neste sentido, veja-se por exemplo o Acórdão do TJUE de 12 de maio de 2012, processos n.ºs 338/11 to C-347/11, Santander Asset Management SGIIC Santander, parágrafo 39).
2) Os juros indemnizatórios
Não há dúvida que a decisão da maioria do Tribunal Arbitral segue a jurisprudência do STA relativa aos juros indemnizatórios devidos, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sobre o montante retido na fonte que um sujeito passivo tenta reaver através de reclamação graciosa. Parece-me, no entanto, que importa seguir a mais recente jurisprudência do TJUE relativa aos juros devidos sobre montantes de imposto pagos em violação do Direito da União Europeia (designadamente, no que diz respeito ao princípio da efetividade).
Note-se que o TJUE tem entendido que a cobrança de impostos em violação do Direito da União tem como consequência não só o direito ao reembolso mas também o direito a juros, conforme é sustentado no seu Acórdão de 18-04-2013, proferido no processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), no qual se refere, designadamente, o seguinte:
“21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado‑Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft e o., C‑397/98 e C‑410/98, Colet., p. I‑1727, n.os 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, Colet., p. I‑11753, n.° 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.° 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C‑113/10, C‑147/10 e C‑234/10, n.° 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados‑Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.° 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.° 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida)”
Nestes termos, não há dúvida de que compete ao Estado Português regular as condições em que tais juros devem ser pagos, e de que o disposto no artigo 43.º da LGT respeita o princípio da equivalência referido pelo TJUE (na medida em que as mesmas regras se aplicam a reclamações baseadas em disposições de direito interno e a reclamações fundadas numa violação do direito da União Europeia).
Quanto ao princípio da efetividade, em face da jurisprudência do TJUE, o regime constante do artigo 43.º, n.º 1, da LGT (na interpretação subscrita pelo STA e seguida na decisão da maioria do Tribunal Arbitral) levanta duas questões: por um lado, o pagamento de juros indemnizatórios depende de não se verificar erro imputável aos serviços da AT; por outro lado, o prazo de contagem dos juros inicia 4 meses após a apresentação da reclamação graciosa (momento em que esta se presume indeferida).
Ora, o TJUE já veio estabelecer que os juros devidos sobre montantes de imposto pagos em violação do direito da União Europeia contam desde o dia do pagamento até ao dia do reembolso (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafos 40-41; Acórdão de 18 de abril de 22, processos C-415/20, C-419/20 e C-427/20, Gräfendorfer, Reyher and Flexi Montagetechnik, parágrafos 75-77). Acresce que tais juros são devidos independentemente de culpa, servindo para compensar o contribuinte “pela indisponibilidade da quantia de dinheiro de que a pessoa em causa foi indevidamente privada” (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafo 38). Se, em termos gerais, o TJUE admite que os Estados-Membros podem limitar a atribuição de juros indemnizatórios, também exige que tais limitações sejam justificadas e proporcionais ao seu objetivo, em face do princípio da efetividade (cf. Acórdão de 8 de junho de 2023, processo C-322/22, E. v Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu, parágrafo 39).
Pelo exposto, entendo que, in casu, por estar em causa uma violação do Direito da União Europeia, os juros indemnizatórios devidos ao Requerente nos termos do artigo 43.º da LGT deveriam começar a contar da data em que foram efetuadas as retenções na fonte impugnadas.
Rita Correia da Cunha