SUMÁRIO:
Ao circunscrever o regime de tributação de dividendos constante no artigo 22.º, do EBF, aos Organismos de Investimento Colectivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, isto é, ao sujeitar a retenção na fonte os dividendos pagos aos Organismos de Investimento Colectivo não residentes e ao reservar aos Organismos de Investimento Colectivo residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, o artigo 22.º, do EBF, procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos Organismos de Investimento Colectivo não residentes incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º, do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Mariana Vargas e Ricardo Rodrigues Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., Organismo de Investimento Colectivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português..., com sede em..., Frankfurt am Main, Alemanha (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), incidentes sobre o pagamento de dividendos, referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, bem como da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa previamente apresentado.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”) em 11 de Novembro de 2024.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. As partes foram notificadas dessa designação em 2 de Janeiro de 2025, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 21 de Janeiro de 2025.
6. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo em 25 de Fevereiro de 2025, tendo-se defendido por excepção e por impugnação e pugnado pela sua absolvição da instância e do pedido.
7. Em 27 de Fevereiro de 2025, foi proferido despacho no qual se concedia ao Requerente o prazo de 10 dias para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
8. Em 13 de Março de 2025, o Requerente apresentou requerimento no qual respondeu à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
9. Em 27 de Março de 2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e a notificar as partes para, querendo, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias.
10. O Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações escritas, respectivamente, nos dias 16 de Abril de 2025 e 20 de Maio de 2025.
II. POSIÇÕES DAS PARTES
§1 - Posição do Requerente
11. Os fundamentos apresentados pelo Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
i. O Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no processo que correu termos sob o n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), pronunciou-se, de acordo com a pretensão do Requerente no processo, sobre o regime português de tributação de dividendos auferidos por Organismo de Investimento Colectivo (“OIC”);
ii. Desta decisão do TJUE decorre a procedência deste pedido, uma vez que a questão material controvertida se mostra integralmente resolvida por aquela instância comunitária;
iii. A matéria de facto e de direito subjacente ao referido processo decidido pelo TJUE é em tudo idêntica ao objecto dos presentes autos;
iv. O regime previsto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4, e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC a uma taxa de 25% – enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), a dividendos auferidos por OIC residentes – não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco da decisão do TJUE;
v. Perante a decisão do TJUE no processo referido, deve o regime que resulta dos normativos acima citados ser afastado, por força do princípio do primado, consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) sendo forçoso concluir que não podem manter-se os actos tributários de retenção na fonte de IRC ora sindicados, porque manifestamente ilegais;
vi. Há diversa jurisprudência arbitral que se tem vindo a pronunciar nesse sentido;
vii. O regime interno que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente – como o Requerente – (enquanto prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estejam isentos dessa retenção) é claramente incompatível com o Direito da União Europeia, pelo que se impõe a anulação dos referidos actos de retenção na fonte de IRC objecto destes autos;
viii. Ao abrigo do artigo 22.º, do EBF, os OIC constituídos de acordo com a legislação nacional estavam, à data dos factos tributários, isentos de IRC sobre dividendos obtidos;
ix. Nos termos do Regime Geral dos OIC, a constituição de um fundo de investimento de acordo com a ordem jurídica nacional implica a sua residência em Portugal, estando, assim, vedada a possibilidade de um OIC residente noutro Estado-Membro da União Europeia beneficiar da norma de isenção prevista no artigo 22.º, do EBF;
x. Nos casos de distribuição de dividendos por parte de sociedades residentes em Portugal a OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa, os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25%, tal como preceituado nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4, e 87.º, n.º 4, também do Código do IRC, não beneficiando do regime previsto no artigo 22.º, do EBF;
xi. Por seu turno, nos casos de dividendos distribuídos a OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa, tais rendimentos estão isentos de imposto, ao abrigo do regime previsto (à data dos factos e ainda actualmente) no artigo 22.º, do EBF.
xii. Existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa, entre os OIC residentes e os OIC não residentes, na tributação de dividendos de fonte portuguesa;
xiii. Há diferente tratamento fiscal que é conferido aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão isentos de imposto – e aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão sujeitos a retenção na fonte liberatória de IRC a uma taxa de 25%;
xiv. Um tratamento desfavorável por um Estado-Membro dos dividendos pagos a entidades não residentes em face do tratamento favorável reservado aos dividendos pagos às entidades aí residentes é susceptível de dissuadir as entidades não residentes de realizarem investimentos nesse Estado-Membro e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”);
xv. Para se concluir se uma legislação nacional é discriminatória à luz do princípio da liberdade de circulação de capitais, impõe-se aferir se essa legislação diz respeito a (i) situações objectivamente comparáveis e (ii) se não se pode justificar por qualquer razão imperiosa de interesse geral;
xvi. A partir do momento em que um Estado-Membro estende a sua soberania tributária a contribuintes não residentes, sujeitando, de modo unilateral ou por via convencional, a imposto sobre o rendimento, não só os contribuintes residentes, mas também os contribuintes não residentes, relativamente a dividendos que recebam de uma sociedade residente, a situação dos contribuintes não residentes é comparável à situação dos contribuintes residentes;
xvii. No que respeita à justificação da existência de legislação interna restritiva, nomeadamente para assegurar a coerência do regime fiscal, entendeu o TJUE no referido processo AllianzGI-Fonds AEVN que haveria de averiguar se existia alguma vantagem fiscal susceptível de compensar o tratamento desfavorável concedido a determinados contribuintes;
xviii. No que em particular diz respeito ao caso idêntico ao dos autos, o TJUE expressamente negou a justificação pela coerência fiscal por inexistência do referido nexo directo, com fundamento no facto de estarem em causa tributos diferentes e contribuintes diferentes;
xix. É entendimento pacífico e unânime que o Direito da União Europeia prevalece sobre o direito ordinário nacional, quer esteja em causa legislação adoptada anteriormente, quer estejam em causa actos legislativos, entre outros;
xx. A consequência jurídica do princípio do primado do Direito da União Europeia é a não aplicação, em caso de conflito entre leis, das disposições internas contrárias à disposição comunitária bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária;
xxi. O dever de anulação dos actos tributários ora sindicados decorre directamente do reconhecimento expresso por parte do TJUE do carácter ilegal do regime fiscal em vigor até à presente data; e
xxii. Tendo o regime interno que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente (enquanto se prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estão isentos dessa retenção), como é o caso do Requerente, sido expressamente e sem reservas julgado incompatível com o Direito da União Europeia, pelo TJUE, no passado dia 17 de Março de 2022, impõe-se a anulação dos actos de retenção na fonte sindicados, por força do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP.
12. O Requerente invocou, ainda, em resumo, em sede de resposta às excepções aduzidas pela Requerida, o seguinte:
i. A Requerida suscita a excepção da inimpugnabilidade dos actos de retenção na fonte, servindo-se de uma posição claramente isolada, vertida numa decisão arbitral e em alguns votos de vencido, já que esta questão tem sido unanimemente decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) em casos em tudo semelhantes;
ii. Em termos jurisprudenciais, tem sido aceite, com relevante unanimidade, que o pedido de revisão oficiosa pode ser despoletado, no prazo de quatro anos, pelo próprio contribuinte e com fundamento em qualquer ilegalidade;
iii. A revisão oficiosa do acto de retenção na fonte pode ser solicitada pelo contribuinte, com base em erro de direito imputável aos serviços, para além do prazo previsto no artigo 131.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e, em concreto, no prazo de quatro anos a contar da data do acto tributário, i.e., a contar da data da retenção;
iv. Estando em causa uma retenção na fonte a título definitivo pelo substituto tributário, o erro sobre os pressupostos de direito dessa retenção na fonte é susceptível de configurar erro imputável aos serviços para efeitos da apresentação, no prazo de 4 anos, de pedido de revisão oficiosa dos actos tributários, conforme expressamente decidido pelo STA;
v. É jurisprudência unânime e reiterada que a circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do acto de liquidação, não obsta a que seja pedida a respectiva revisão oficiosa e seja impugnado contenciosamente o eventual acto de indeferimento desta;
vi. Pelo que não pode a excepção invocada proceder;
vii. A excepção de incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral, é manifestamente improcedente;
viii. Inexistem dúvidas quanto à competência material do Tribunal Arbitral para conhecer da ilegalidade de actos tributários em causa;
ix. É pacífico o entendimento de que um acto de indeferimento expresso ou tácito de um pedido de revisão oficiosa, que verse sobre a legalidade do tributo que o consubstancia, é um acto passível de apreciação pelo Tribunal Arbitral, sendo inúmeras as decisões jurisprudenciais neste sentido; e
x. Tendo o presente pedido de pronúncia arbitral sido precedido de recurso à via administrativa, não sobram dúvidas sobre a competência material deste Tribunal Arbitral.
§2 - Posição da Requerida
13. Por seu turno, a Requerida contestou a posição do Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:
i. O pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente, para efeito de poder ser considerado como correspondendo à impugnação administrativa a que se refere o artigo 132.º, n.º 3, do CPPT, relativamente aos actos de retenção na fonte realizados, pelo que se verifica a inimpugnabilidade desses actos tributários por falta de precedência de impugnação administrativa dentro do prazo legalmente previsto;
ii. O Requerente – na qualidade de substituído tributário – pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efectuadas pelo substituto tributário sem que tenha desencadeado procedimento de reclamação graciosa nos termos do artigo 132.º, do CPPT;
iii. Situação esta que está fora da vinculação da Requerida à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD;
iv. O procedimento administrativo de revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa prevista no artigo 132.º, do CPPT, ainda para mais quando o recurso ao mesmo é feito para além do prazo de 2 anos previsto no n.º 1 de tal artigo;
v. Não tendo o pedido de anulação das retenções na fonte sido precedido, em prazo, de reclamação graciosa necessária, o Tribunal Arbitral carece de competência para apreciar sobre a (i)legalidade das mesmas, ainda que o Requerente tenha apresentado um pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos;
vi. Não havendo erro imputável aos serviços na liquidação, fica precludido, com o decurso do prazo de reclamação, o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do acto de liquidação;
vii. O Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o artigo 78.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”) e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela Requerida;
viii. É sobre o Requerente que recaí o ónus de demonstrar os factos constitutivos e legitimadores da sua pretensão, pelo que a falta de demonstração da verificação dos factos por si alegados ter-se-á de resolver contra as suas pretensões processuais;
ix. O Requerente não logrou fazer a prova dos factos por si alegados e, nessa medida, fica prejudicada a subsunção dos factos efectivamente demonstrados aos referidos princípios e normas jurídicas do Direito da União Europeia;
x. A situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas;
xi. As alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português;
xii. Não se está na presença de situações objectivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente;
xiii. Ainda que não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores;
xiv. A aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, não pode levar a concluir por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em Imposto do Selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objectivamente comparáveis;
xv. Não sendo as situações comparáveis parece difícil de aceitar o argumento do Requerente de que a legislação nacional e, particularmente, o artigo 22.º, do EBF, está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais, tendo em apreço a proibição geral de discriminação face a uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º, do TFUE;
xvi. Não compete à Requerida avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma directa e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o Direito Europeu;
xvii. A Requerida não pode deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada, tem que aplicar o disposto nos códigos fiscais que se encontram em vigor e as disposições deles constantes que regulam determinada relação jurídico-tributária, de acordo com o artigo 2.º, alínea b), da LGT, in casu, as normas constantes do Código do IRC e do EBF acima citadas;
xviii. Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, e se tal diferenciação é susceptível de afectar o investimento em acções emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo – que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos;
xix. O Requerente não esclareceu/provou (apenas alegou) se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera do próprio Requerente ou dos investidores;
xx. Contrariamente ao afirmado pelo Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objectivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário;
xxi. A jurisprudência do TJUE não autoriza o intérprete a extrair a conclusão, em abstracto, de que a mera existência de uma retenção na fonte de IRC incidindo apenas sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um Fundo de Investimento estabelecido noutro Estado-Membro constitui por si só uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital no espaço europeu, sem que seja feita uma apreciação global do regime fiscal aplicável aos Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos em Portugal;
xxii. Embora sobre os dividendos pagos por sociedades residentes aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, não exista a obrigação de retenção na fonte (cf., n.º 10 do mesmo artigo), a verdade é que estão sujeitos a uma tributação autónoma, à taxa de 23%, por aplicação conjugada do n.º 11 do artigo 88.º do Código do IRC e do n.º 8 do mesmo artigo 22.º do EBF, excepto se as correspondentes acções forem detidas, de modo ininterrupto, por período igual ou superior a um ano;
xxiii. Para avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório dos fundos de investimento de outros Estados-Membros contrário ao TFUE, por constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a análise não pode cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, há que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, relativamente aos dividendos e às correspondentes acções, pois, só com esta visão global pode concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos estrangeiros que investem em acções de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável;
xxiv. A carga fiscal que pode recair sobre os dividendos e as correspondentes acções dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, seja de IRC, tributações autónomas ou de Imposto do Selo, também tem um impacto negativo na capacidade financeira dos mesmos e nas taxas de rendibilidade dos investimentos, que pode exceder o imposto retido na fonte sobre os dividendos auferidos por Fundos de investimento de outros Estados-Membros;
xxv. O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância, conforme supra referido;
xxvi. Em lugar de se acentuar a discriminação existente no Estado de residência fiscal do credor dos rendimentos, será mais acertado falar em diferentes modalidades de tributação que até pode redundar, em certos casos, numa carga fiscal menor dos dividendos auferidos em Portugal por Fundos de Investimento constituídos ao abrigo da legislação de outros Estados-Membros da União Europeia;
xxvii. A Requerida considera-se inibida de transpor para os casos que lhe são submetidos de forma directa e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu;
xxviii. Reputa-se de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto, se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo; e
xxix. Um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.
III. SANEAMENTO
14. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as duas excepções enunciadas pela Requerida na sua Resposta.
§1 - Inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte
15. A inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte que aqui se encontram em causa está dependente da tempestividade da apresentação do pedido de revisão oficiosa que sobre aqueles versou.
16. Só a eventual extemporaneidade de tal pedido terá como consequência a formação de caso julgado e tal traduzir-se-á na insindicabilidade dos actos de tributários postos em crise, os quais, por essa razão, deixarão de poder ser contestados judicialmente.
17. Assim, para apreciar a impugnabilidade dos actos postos em crise, é necessário analisar se estavam ou não preenchidos os pressupostos de que dependia a procedência do pedido de revisão oficiosa.
18. O mesmo é dizer que é necessário analisar se esses actos estavam ou não viciados por erro imputável aos serviços e se foi respeitado o prazo de impulsionar a revisão nos quatro anos após os actos de retenção na fonte terem ocorrido.
19. Decorre dos articulados apresentados pelo Requerente que o mesmo invoca que, estando em causa actos de retenção na fonte decorrentes da aplicação de normas nacionais violadoras do Direito da União Europeia, um erro incidente sobre tais actos será imputável aos serviços da Requerida.
20. Por seu turno, a Requerida, nos articulados apresentados, nega a existência de qualquer erro que lhe seja imputável, nomeadamente por não ter tido qualquer intervenção naqueles actos de retenção na fonte que incidiram sobre rendimentos (dividendos) pagos ao Requerente.
21. A este propósito, no que toca à querela acerca da existência (ou não) de erro imputável aos serviços da Requerida, subscreve-se, com as devidas adaptações, o entendimento professado pelo STA, no acórdão de 02.10.2024, no processo n.º 01917/21.4BELRS (Relator João Sérgio Ribeiro), no qual se enuncia o seguinte:
· “(…) a revisão oficiosa, apesar de dever ser efetuada pela Administração Tributária, pode resultar da iniciativa desta ou do sujeito passivo. (…). A AT, por seu lado, pode fazer a revisão no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”;
· “O procedimento de revisão dos atos tributários caracteriza-se, sobretudo, por nele ser a entidade que os praticou que eventualmente os vai rever. Podendo fazê-lo por iniciativa própria, no prazo de 4 anos, após a liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços, ou por iniciativa do sujeito passivo que terá, tal como decorre da jurisprudência deste STA, um prazo de 4 anos para requerer, também com fundamento em erro imputável aos serviços, a revisão do ato. (…). Pois, uma coisa é o prazo que AT tem para rever o ato, outra, distinta, é o prazo que o sujeito passivo tem para requerer a revisão que, a ser feita, terá sempre como executante a AT, no prazo de 4 anos”;
· “O procedimento de revisão tem, como o próprio nome indica, o propósito de que seja revisto o ato tributário com o objetivo de reforçar as garantias dos contribuintes e, no respeito pela verdade material, permitir que, detetando a AT algum erro, ou sendo alertada para alguma ilegalidade por parte do sujeito, faça as correções que são devidas O objetivo último do procedimento de revisão é, por conseguinte, que seja feita a correção de qualquer erro, incluindo uma qualquer ilegalidade, sempre, no interesse do sujeito passivo, sendo este, aliás, o espírito do procedimento”;
· “(…) decorre da lei e da jurisprudência que no âmbito do procedimento de revisão, tanto a AT como o sujeito passivo poderão ter a iniciativa da revisão no prazo de 4 anos quando se verifique um erro imputável aos serviços, valendo esta última condição para os dois. Isto é, o fundamento tem de ser sempre um erro imputável aos serviços quer para AT quer para o sujeito passivo.”; e
· “(…) no quadro do artigo 78.º da LGT, está, neste momento, consolidada a possibilidade de o sujeito passivo poder, ainda, solicitar a revisão num período de 4 anos quando se verifique um erro imputável aos serviços. Conceito este que, pela sua abrangência, contempla vícios de facto e de direito o que, em última análise, permitirá abranger ilegalidades que, por essa via, poderão ser suscitadas, já não somente no período e 2 anos, mas num período de 4, pelo facto de serem suscetíveis de ser reconduzidas a um erro de direito imputável aos serviços” (com negritos nossos).
22. Acresce que, conforme é enunciado na decisão arbitral proferida no processo n.º 133/2021, de 31.03.2022 (remetendo para jurisprudência proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul), “constitui erro imputável aos serviços qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte, isto é, qualquer ilegalidade para a qual não tenha contribuído, por qualquer forma, o contribuinte através de uma conduta activa ou omissiva, determinante da liquidação, nos moldes em que foi efectuada”.
23. Nesta linha de entendimento, resultando inequívoco (como melhor se detalhará infra) que tais actos tributários padecem de um erro de Direito e que, por conseguinte, este erro será imputável à Requerida, então efectivamente assistia ao Requerente o direito de, num prazo de 4 anos, recorrer ao disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, para solicitar àquela a revisão oficiosa daqueles actos.
24. Aqui chegados, importa sublinhar que o Requerente contesta actos de retenção na fonte referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, tendo o mais antigo desses actos ocorrido em 09.05.2019.
25. Ora, considerando que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado pelo Requerente (em conformidade com a matéria de facto dada como provada) em 08.05.2023, conclui-se que este pedido é, efectivamente, tempestivo, já que foi respeitado o prazo de 4 anos que aquele dispunha para intentar tal pedido.
26. Em função do acima exposto, é de concluir que o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente deve ser considerado tempestivo relativamente aos actos de retenção na fonte referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, cuja legalidade se encontra a ser apreciada nestes autos.
27. Como tal, a excepção de inimpugnabilidade, que na verdade é de caducidade do Direito de acção arguida pela Requerida, terá de ser julgada improcedente, podendo o Tribunal conhecer do pedido de pronúncia arbitral.
§2 - Da incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral
28. Em relação à questão da competência material dos tribunais arbitrais constituídos no seio do CAAD, entende-se que o pressuposto visado pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, e pelo artigo 2.º, alínea a), da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, é o de impor uma filtragem administrativa prévia à via arbitral, que confira à Requerida a possibilidade de sindicar a legalidade dos actos tributários contestados e, dessa forma, decidir sobre a sua manutenção ou anulação da ordem jurídica.
29. Assim, a apresentação de um pedido de revisão oficiosa pelo Requerente permite colmatar a necessidade de apresentar reclamação graciosa, assegurando o mencionado pressuposto.
30. Isto é, o que importa é assegurar uma apreciação administrativa das retenções na fonte antes da respectiva contestação junto dos Tribunais, e a revisão oficiosa permite fazê-lo.
31. De resto, a circunstância de a Requerida ter proferido decisão expressa no sentido de indeferir tal pedido de revisão oficiosa é uma evidência adicional – se dúvidas houvesse – de que houve essa apreciação administrativa prévia à contestação efectuada pelos contribuintes (neste caso, o Requerente) junto dos Tribunais (reforçando, de resto, a imputabilidade do erro à própria Requerida).
32. Acresce que o facto de a Requerida não ter tido intervenção nas retenções na fonte também não constitui motivo bastante para afastar a inexistência de erro imputável aos serviços da Requerida.
33. Se a lei portuguesa viola o Direito da União Europeia existe uma ilegalidade abstracta que é imputável aos serviços da Requerida e não ao sujeito passivo.
34. A este propósito este Tribunal adere à decisão arbitral, de 15.04.2024, proferida no processo n.º 560/2023-T, que refere o seguinte:
“O recurso à via administrativa é exigido como condição de impugnabilidade contenciosa dos atos de retenção na fonte e de autoliquidação nos termos do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e da remissão por esta operada para o artigo 131.º do CPPT, que dispõe que a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.
Tal alegação [da Requerida] é, todavia improcedente, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, tendo sido apresentado previamente à propositura da ação arbitral, entendimento reiterado sucessivamente pela doutrina e jurisprudência portuguesas.
É verdade que os artigos 131.º e 132.º do CPPT, para os quais a Portaria n.º 112-A/2011 remete, fazem referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação e as retenções na fonte (em que os contribuintes atuam em substituição e no interesse da Autoridade Tributária) sejam objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte ou nas retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.
Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência portuguesas (acórdão do STA de 12.07.2006, Processo nº 042/06) veem no pedido de revisão do ato tributário um meio impugnatório administrativo com um prazo mais alargado que os restantes, um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária.
Como referido por Carla Castelo Trindade (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado” Coimbra, 2016, Almedina, páginas 96 e 97 “(…) as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessidade de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária, mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.
E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.”
Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid(a)s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.
Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011, aludindo-se neste sentido às decisões proferida nos processos arbitrais n.º 245/2013-T e 678/2021T.
De igual modo, o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação, entre outros, no acórdão de 26.05.2022, no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB, cujo excerto se transcreve de seguida:
“O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa (cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)(…)”
De referir ainda que o problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da impugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.). Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer (vide decisão do processo arbitral n.º 397/2019-T, de 12 de junho de 2020).
Em qualquer caso, independentemente da qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação e/ou de retenção na fonte que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011” (com negritos nossos).
35. É também este entendimento que vem sendo seguido pelo STA, recordando-se aqui o exposto por este tribunal no acórdão de 08.02.2017, proferido no processo n.º 0678/16, em que o mesmo conclui que “[a] circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do acto de liquidação, não obsta a que seja pedida a respectiva revisão oficiosa e seja impugnado contenciosamente o eventual acto de indeferimento desta”.
36. Em função do acima exposto, é de concluir que a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral arguida pela Requerida terá de ser julgada improcedente, podendo o Tribunal conhecer o pedido de pronúncia arbitral.
37. Termos em que o pedido foi tempestivamente apresentado, tal como dispõe o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
38. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT.
39. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
IV. MATÉRIA DE FACTO
§1 - Fundamentação da fixação da matéria de facto
40. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
41. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
42. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pelo Requerente, do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
43. Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.
§2 - Factos provados
44. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
i. O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um OIC, com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária;
ii. O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país;
iii. Nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, o Requerente era detentor de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal: B..., S.A., C..., SGPS, S.A., D... SGPS, S.A.;
iv. Nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, o Requerente, na qualidade de accionista da B..., S.A., da C..., SGPS, S.A., e da D... SGPS, S.A. recebeu dividendos destas sociedades que ascenderam ao montante total de € 280.159,23;
v. Nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, os dividendos recebidos pelo Requerente daquelas sociedades estiveram sujeitos a retenção na fonte de IRC, em Portugal, calculada à taxa liberatória de 25%, a qual totalizou o montante de € 70.039,82 assim discriminado:
Ano da Retenção
|
Valor Bruto do Dividendo (€)
|
Data de Pagamento
|
Taxa de Retenção na Fonte
|
Guia de pagamento
|
Valor da retenção (€)
|
2019
|
31.675,47
|
15.05.2019
|
25%
|
|
7.918,87
|
2019
|
12.901,82
|
09.05.2019
|
25%
|
|
3.225,46
|
2019
|
11.413,15
|
10.09.2019
|
25%
|
|
2.853,29
|
2019
|
2.449,53
|
09.05.2019
|
25%
|
|
612,38
|
2020
|
43.140,26
|
14.05.2020
|
25%
|
|
10.785,07
|
2020
|
15.350,00
|
21.05.2020
|
25%
|
|
3.837,50
|
2020
|
2.760,00
|
16.12.2020
|
25%
|
|
690,00
|
2020
|
4.140,00
|
15.07.2020
|
25%
|
|
1.035,00
|
2021
|
46.170,00
|
26.04.2021
|
25%
|
|
11.542,50
|
2021
|
11 250,00
|
16.09.2021
|
25%
|
|
2.812,50
|
2021
|
15.750,00
|
20.05.2021
|
25%
|
|
3.937,50
|
2021
|
6.624,00
|
06.05.2021
|
25%
|
|
1.656,00
|
2022
|
35.530,00
|
28.04.2022
|
25%
|
|
8.882,50
|
2022
|
11.250,00
|
10.05.2022
|
25%
|
|
2.812,50
|
2022
|
11.700,00
|
20.09.2022
|
25%
|
|
2.925,00
|
2022
|
18.055,00
|
18.05.2022
|
25%
|
|
4.513,75
|
TOTAL
|
280.159,23
|
70.039,82
|
vi. No dia 08.05.2023, o Requerente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, LGT, pedido de revisão oficiosa para apreciação da legalidade dos referidos actos de retenção na fonte de IRC relativos aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, no qual solicitava a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade, por violação directa do Direito da União Europeia, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal;
vii. Através do Ofício n.º..., de 05.06.202, a Requerida notificou o Requerente do despacho de 27.05.2024, nos termos do qual se projectava o indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado previamente pelo Requerente;
viii. O Requerente, notificado desse projecto de decisão da Requerida, não exerceu o seu direito de audição prévia;
ix. Em 12 de Agosto de 2024, o Requerente foi notificado, através do Ofício n.º ..., de 09.08.2024, do despacho de indeferimento, de 06.08.2024, do pedido de revisão oficiosa que havia apresentado anteriormente;
x. Nessa decisão de indeferimento, a Requerida enuncia que:
· “(…) não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável”;
· “(…) no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal”;
· “9. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado”;
· “10. Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado”;
· “11. Ora, no caso em apreço, conforme informado, embora o Reclamante seja residente fiscal na Alemanha, não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF”;
· “(…) não será de atender ao pedido quanto às RF/IRC efectuadas nos anos de 2019 a 2022, entregues pelas guias, supra identificadas, respeitantes aos períodos de 2019-05, 2019-09, 2020-05, 2020-07, 2020-07, 2021-04, 2021-05, 2021-09, 2022-05 e 2022-09”;
xi. Em 11 de Novembro de 2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem os presentes autos.
§3 - Factos não provados
45. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.
V. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Violação da liberdade de circulação de capitais
46. Através do presente processo pretende o Requerente sindicar a legalidade dos actos de retenção na fonte de IRC acima referidos, por considerar que os mesmos têm como fundamento jurídico normas que estabelecem uma distinção do regime fiscal aplicável a OIC residentes e não residentes que configura uma restrição à livre circulação de capitais que está a ser exercida por um residente de um Estado terceiro.
47. Por um lado, argumenta o Requerente, em síntese, que o regime português de tributação de dividendos auferidos por OIC previsto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4 e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, ao sujeitar os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes a retenção na fonte em sede de IRC, enquanto os rendimentos obtidos em Portugal por OIC residentes estão isentos de tributação nos termos do artigo 22.º, do EBF, estabelece um discriminação incompatível com o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º, do TFUE.
48. Por outro lado, argumenta a Requerida, em síntese, que os OIC residentes e não residentes se encontram em situações que não são objectivamente comparáveis, já que a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC residentes é mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por OIC não residentes como o Requerente.
49. Nesta medida, conclui a Requerida pela inexistência de qualquer restrição à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º, do TFUE.
50. A existência de uma discriminação entre OIC residentes e não residentes no âmbito do regime de tributação de dividendos auferidos em Portugal, por um lado, e a respectiva compatibilidade com o Direito da União Europeia, por outro lado, foram já objecto de apreciação pelo TJUE, no âmbito do supra mencionado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido em 17 de Março de 2022, no processo n.º C‑545/19, onde este Tribunal entendeu, ao que aqui importa, o seguinte:
“(…) 36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
(…) 49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).
(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida).
(…) 53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa
60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).
(…) na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”.
51. Resulta da jurisprudência do TJUE acabada de citar que a legislação portuguesa que estabelece o tratamento fiscal em sede de IRC dos dividendos auferidos por OIC estabelece uma discriminação inadmissível dos OIC não residentes face aos OIC residentes.
52. Isto deve-se ao facto de estarem em causa situações objectivamente comparáveis e, ainda assim, apenas ser aplicável aos OIC residentes as regras de isenção de tributação em sede de IRC, que não se encontram previstas para os OIC não residentes.
53. Discriminação esta que o TJUE entendeu não ser justificável por razões imperiosas de interesse geral, designadamente pela necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder tributário.
54. Em suma, concluiu o TJUE, em termos inteiramente transponíveis para o presente processo, que o regime português de tributação de dividendos auferidos por OIC não residentes viola o princípio da livre circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.
55. Ora, as disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do princípio do primado previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual se impõe aos tribunais nacionais a recusa da aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA, de 01.07.2015, proferido no processo n.º 0188/15).
56. Raciocínio que vale igualmente para a jurisprudência proferida pelo TJUE relativa à interpretação ou validade de normas jurídicas perante o Direito da União Europeia.
57. As conclusões acima expostas coincidem com as posições que vêm sendo adoptadas em inúmeras decisões arbitrais, nomeadamente (só para mencionar algumas) as proferidas nos processos n.ºs 1030/2023-T, de 12.08.2024, 767/2024-T, de 05.11.2024, 298/2024-T, de 14.11.2024, 442/2024-T, de 11.12.2024, 447/2024-T, de 11.12.2024, 629/2024-T, de 30.12.2024.
58. Tais conclusões encontram ainda o devido respaldo no entendimento expresso pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, no acórdão proferido no processo n.º 93/19.7BALSB, de 28.09.2023, que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“1 –Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2 – O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3 – A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto -Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”.
59. Aqui chegados, e sem necessidade de mais considerações, adere o presente Tribunal Arbitral às conclusões da jurisprudência supra mencionada, sob evocação do desiderato uniformizador decorrente do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, razão pela qual se julga procedente o vício de violação do Direito da União Europeia invocado pelo Requerente e se declaram ilegais os actos de retenção na fonte de IRC aqui contestados e, por conseguinte, a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa de actos tributários oportunamente apresentado pelo Requerente.
§2 – Reembolso do imposto retido na fonte e pagamento de juros indemnizatórios
60. Em virtude da procedência do pedido de pronúncia arbitral, impõe-se à Requerida que haja lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago pelo Requerente, no montante de € 70.039,82, em conformidade com o disposto no dos artigos 24.º, do RJAT, e 100.º, da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.
61. Sobre este montante, peticionou o Requerente o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, da LGT.
62. O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios regulado neste artigo da LGT estabelece o seguinte:
“1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”.
63. O Pleno do STA uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de contestação da legalidade de actos de liquidação através do procedimento de revisão oficiosa, no acórdão de 29.06.2022, proferido no processo n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos:
“Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr.artº.78, nº.1, da L.G.T.) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, al.c), da L.G.T., mais não relevando o facto de a A. Fiscal o ter decidido, embora indeferindo, em período inferior a um ano.”.
64. Jurisprudência esta que vale independentemente do tipo de actos contestados, ou seja, vale também para os casos em que o imposto seja cobrado com base no mecanismo da retenção na fonte (v.g. acórdão do STA, de 03.07.2024, proferido no processo n.º 01890/18.6BELRS).
65. Tratando-se de jurisprudência uniformizada, – a que este Tribunal Arbitral adere com base no disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil –, conclui-se serem devidos ao Requerente juros indemnizatórios, a partir de um ano após a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa ou seja, a partir de 8 de Maio de 2024, até à data do processamento da respectiva nota de crédito, por força do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 100.º, da LGT, e no artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.
66. Os juros indemnizatórios deverão ser contados, durante o período temporal acima enunciado, com base no valor de € 70.039,82, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
VI. DECISÃO
67. Termos em que se decide:
a) Julgar improcedentes as excepções de caducidade do Direito de acção (de inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte, nas palavras da Requerida) e de incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral, arguidas pela Requerida;
b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, declarar a ilegalidade dos actos de retenção na fonte contestados no presente processo, referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, e, também, em consequência, declarar a ilegalidade da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa de actos tributários apresentado pelo Requerente;
c) Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 70.039,82, e condenar a Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios calculados à taxa legal supletiva, a partir do dia 8 de Maio de 2024, sobre a importância a reembolsar, até à data da emissão da correspondente nota de crédito;
d) Condenar a Requerida nas custas do processo.
VII. VALOR DO PROCESSO
68. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 70.039,82.
VIII. CUSTAS
69. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.448,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 2 de Julho de 2025.
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e relatora)
Mariana Vargas
Ricardo Rodrigues Pereira