Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1200/2024-T
Data da decisão: 2025-07-02   Outros 
Valor do pedido: € 100.262,65
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) – Repercussão – Ininteligibilidade do pedido.
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SUMÁRIO

I     A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, era um imposto, não se verificando, por isso, na sua apreciação, nem a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, nem a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição arbitral.

II   A CSR não prosseguia “motivos específicos”, na acepção do artigo 1º, 2, da Directiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas tinham essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação directa entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que se encontravam consignados no respectivo quadro legal.

III A recusa do reembolso integral do imposto indevidamente liquidado, por violação do direito da União Europeia, apenas é admissível se for feita a prova, tanto de que o imposto foi suportado, na íntegra, por uma pessoa diferente do sujeito passivo, e em nenhuma medida pelo sujeito passivo, como de que o imposto não causou perdas económicas ao sujeito passivo.

IV  Não houve nem há repercussão legal da CSR, não podendo presumir-se essa repercussão, nem dispensar-se a prova da repercussão efectiva.

V    Na ausência de “repercussão formalizada”, não pode alcançar-se a anulação de liquidações através da mera impugnação de repercussões, ou sequer identificar-se os sujeitos passivos das liquidações, ou o nexo entre liquidações e repercussões.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1.     A contribuinte A..., Lda., NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 8 de Novembro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do acto de indeferimento tácito do pedido revisão oficiosa apresentado em 17 de Maio de 2024, e, mediatamente, das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) praticadas com base nas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) submetidas por sociedades fornecedoras de combustíveis, e consequentes actos de repercussão da CSR, consignados nas facturas referentes aos combustíveis àquelas adquiridos pela Requerente, durante o período de Fevereiro de 2019 a Dezembro de 2022, de que resultou o suporte, por ela, na qualidade de consumidora final, de CSR no montante total de €100.262,65; peticionando o reembolso desse montante, acrescido de juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

6.     Em 21 de Novembro de 2024 a AT endereçou ao Presidente do CAAD um Requerimento solicitando a identificação dos actos de liquidação, em cumprimento do disposto no art. 10º, 1, a) do RJAT e no art. 102º, 2 do CPPT, para efeitos de exercer, ou não, a faculdade prevista no art. 13º do RJAT.

7.     Por Despacho de 21 de Novembro de 2024, o Presidente do CAAD remeteu a decisão para o Tribunal a constituir.

8.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 21 de Janeiro de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.

9.     Por Despacho de 22 de Janeiro de 2025, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre as questões suscitadas pela Requerida no seu Requerimento de 21 de Novembro de 2024 – ressalvando-se que a constituição do Tribunal precludia o exercício da faculdade prevista no art. 13º do RJAT, mas não impediria, já na pendência do processo, a revogação, ratificação, reforma ou conversão do acto tributário pela AT.

10.  A Requerente não reagiu a essa notificação.

11.  Por Despacho de 23 de Abril de 2025, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta – ressalvando-se, de novo, que a constituição do Tribunal precludia o exercício da faculdade prevista no art. 13º do RJAT.

12.  A AT apresentou a sua Resposta em 2 de Maio de 2025, juntamente com o Processo Administrativo.

13.  Por Despacho de 12 de Maio de 2025, a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção suscitada na Resposta da Requerida.

14.  Por Requerimento de 23 de Maio de 2025, a Requerente replicou à matéria de excepção suscitada na Resposta da AT.

15.  Por Despacho de 27 de Maio de 2025, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, sendo as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.

16.  A Requerente apresentou alegações em 9 de Junho de 2025.

17.  A Requerida apresentou alegações em 20 de Junho de 2025.

18.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.

19.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

20.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     A Requerente é sociedade de direito português que se dedica à actividade de transporte rodoviário de mercadorias.

2.     A Requerente não é operador económico detentor do estatuto IEC de destinatário registado, concedido ao abrigo e nos termos do regime previsto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho.

3.     Durante o período de Fevereiro de 2019 a Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu produtos petrolíferos, directa ou indirectamente, a sujeitos passivos de ISP e de CSR.

4.     Alegando ter sido integralmente repercutido sobre ela a CSR, o que estaria comprovado através das facturas emitidas por fornecedoras de combustíveis (das quais é identificada a B..., S.A.), a Requerente deduziu, em 17 de Maio de 2024, um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR, e dos consequentes actos de repercussão.

5.     Esse pedido de revisão oficiosa considera-se tacitamente indeferido em 17 de Setembro de 2024, nos termos do art. 57.º, 1 e 5 da LGT.

6.     Em 8 de Novembro de 2024, a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar (dado o standard de prova estabelecido pelo TJUE no seu despacho de 7 de Fevereiro de 2022 [Proc. nº C-460/21], nomeadamente vedando presunções):

a)     Quais os valores de CSR liquidados às fornecedoras de combustíveis que tenham sido sujeitos passivos de CSR, com base nas DIC por ela apresentadas, e os valores de CSR por elas pagos ao Estado: nomeadamente, uma relação dos valores totais de CSR liquidado, através de um quadro-síntese que especifique, mês a mês do período considerado, o registo de liquidação de ISP e a data desse registo de liquidação, os NIFs dos operadores (detentores do estatuto IEC de destinatários registados) e os valores discriminados de ISP e de CSR liquidados em cada mês desse período.

b)    Que a CSR tenha sido repercutida integralmente pelas fornecedoras de combustíveis sobre a cadeia de transmissões onerosas a jusante delas, e especificamente sobre a Requerente.

c)     Qual o grau de repercussão da CSR, caso não tenha havido repercussão integral.

d)    Quais os efeitos económicos da repercussão da CSR, seja sobre as próprias fornecedoras de combustíveis, seja sobre a cadeia de transmissões onerosas a jusante delas – nomeadamente, a inexistência de prejuízos associados à diminuição do volume das vendas das fornecedoras de combustíveis, fosse qual fosse o grau da repercussão da CSR a jusante delas, e a inexistência de repercussão, em qualquer grau, a jusante da Requerente, na medida em que, sendo um elo apenas na cadeia produtiva, ela própria, como sociedade comercial com fins lucrativos, não é, manifestamente, consumidor final.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA, ao processo administrativo e a requerimentos oportunamente deferidos.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

5.     Além disso, não se deram como provadas, nem não provadas, alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

6.     O Tribunal considera que a facturação apresentada documenta as transacções de uma fornecedora de combustíveis com a Requerente (fornecedora da qual não se comprova, sequer, o estatuto IEC de destinatário registado, para efeitos do CIEC, relativamente a todo o período de referência), mas não faz, nem pode fazer, prova de repercussão económica da CSR, seja porque os montantes da CSR não eram discriminados, nem podiam sê-lo, nessa facturação (apenas se discriminando os valores de IVA), seja porque está vedada – dada a posição expressa do TJUE – a presunção de que tenha havido repercussão integral da CSR em toda e qualquer das transacções documentadas.

 

III. Sobre a Matéria de Excepção

 

III. A. Posição da AT no Requerimento de 21 de Novembro de 2024

 

1.     Em Requerimento de 21 de Novembro de 2024, na fase procedimental, a AT sugeriu, sem afirmá-lo, que se estaria perante uma ineptidão do pedido de pronúncia, dada a insuficiência na identificação dos actos tributários impugnados, uma insuficiência que, mais do que violar o art. 10º, 2, b) do RJAT, impediria o exercício da faculdade prevista no art. 13º do RJAT.

 

III. B. Posição da Requerida na Resposta, em 2 de Maio de 2025

 

2.     A Requerida, na sua Resposta, formula um conjunto de questões suscitadas pela alegada legitimidade da Requerente para peticionar o reembolso da CSR, enquanto entidade que, embora não revestindo a posição de sujeito passivo relativamente às liquidações em causa, declara ter suportado a CSR por via da repercussão, ocupando uma posição de “repercutido”.

3.     Por isso suscita de novo, desde logo, como “questão prévia”, o problema da idoneidade de meras facturas como elementos de prova, e mais ainda como sucedâneos idóneos das declarações de introdução no consumo (DIC), que seriam, essas sim, provas de liquidação de CSR. Lembrando que nas facturas somente é discriminado o IVA, um tipo de tributo distinto, com sujeitos passivos distintos (não resultando das facturas qualquer acto imputável à AT); e que, mesmo que existisse repercussão legal, isso não converteria os “repercutidos” em sujeitos passivos, como resulta do art. 18.º, 4, a) da LGT.

4.     Nota a Requerida que, compulsados os autos, não se identifica qualquer acto tributário, porquanto não se vislumbra, como pretende a Requerente, a declaração de ilegalidade das liquidações de CSR, e consequente anulação, com base em simples facturas. 

5.     Isto porque na DIC está em causa uma contribuição, devida pela introdução no consumo de produtos petrolíferos, e na factura um imposto aplicado às vendas ou prestações de serviços, o IVA – não existindo qualquer coincidência, ou sequência temporal, na emissão de ambos, nem sendo sequer emitidas obrigatoriamente pelo mesmo sujeito passivo. 

6.     Trata-se, sublinha a Requerida, de dois tipos de tributos com regimes diferenciados – envolvendo dois tipos de documentos igualmente diferentes, sem qualquer relação jurídica entre eles. Sendo que a confusão entre eles tem vindo a conduzir à errada utilização das garantias dos contribuintes e dos seus mais variados meios de defesa.

7.     Surge, por outro lado, um problema com a identificação da fornecedora de combustíveis e com o seu estatuto IEC de destinatário registado, para efeitos do CIEC, relativamente a todo o período de referência.

8.     Enquanto a Requerente alega que a sua fornecedora,  B..., S.A., foi sujeito passivo de CSR, a Requerida faz notar que a B..., S.A. apenas foi titular de estatuto em sede de ISP até 7 de Outubro de 2020, pelo que, após essa data, esta deixou de ser responsável pela introdução dos produtos no consumo ou pelo pagamento da CSR correspondente – ficando na melhor das hipóteses, na posição de mero intermediário na cadeia de distribuição de combustíveis.

9.     Assim sendo, não ocorre a identificação adequada dos sujeitos passivos de CSR para o período de referência; desconhecendo-se, sequer, por quais entrepostos fiscais foram introduzidos no consumo os combustíveis adquiridos pela Requerente.

10.  Antes mesmo de especificar as excepções, a Requerida procura esclarecer alguns conceitos-chave, como o de repercussão, que esclarece ser um conceito económico e contabilístico que traduz um efeito económico da tributação em geral, e não apenas da tributação sobre o consumo; sendo que ocasionalmente pode o legislador querer atribuir relevância jurídico-tributária ao fenómeno, criando a figura da “repercussão legal” – como é o caso do art. 37.º do CIVA, ou do art. 3.º do CIS. Não assim nos impostos com objectivo extrafiscal de desincentivo ao consumo, nos quais o efeito pretendido é puramente económico.

11.  Isso veda qualquer equiparação entre consumidor “economicamente repercutido” e contribuinte, por respeito ao princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade. Aquele que é “economicamente repercutido” não chega a ter qualquer interesse legalmente protegido – não podendo admitir-se uma interpretação extensiva dos arts. 9.º, 1 do CPTT, e 18.º, 4, a) da LGT, que seria manifestamente inconstitucional.

12.  A Requerida recorda também as condições de criação da contribuição de serviço rodoviário (CSR) através da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, tendo entrado em vigor em 01/01/2008 – visando financiar a rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A., constituindo a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis. 

13.  Na tributação dos produtos petrolíferos e energéticos era aplicada uma taxa de ISP, a que acrescia o montante legalmente estabelecido a título de CSR. As taxas vieram a ser estabelecidas pela Portaria n.º 16-C/2008, de 09/01 e tornou-se necessário reduzir as taxas unitárias do ISP, incidentes sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário, no exato montante do valor da CSR, conforme referido expressamente no preâmbulo da Portaria.

14.  Sendo que os IEC se tornam exigíveis, conforme decorre do artigo 8.º do CIEC, no momento da introdução no consumo de produtos sujeitos a imposto ou da constatação de perdas que devam ser tributadas em conformidade com o CIEC, considerando-se como introdução no consumo os factos descritos no n.º 1 do artigo 9.º (designadamente a saída dos produtos do regime de suspensão, a detenção e armazenagem fora do regime de suspensão sem pagamento do imposto, a produção fora do regime de suspensão, a importação, a entrada dos produtos no território nacional, ainda que em situação irregular, a cessação ou violação dos pressupostos de um benefício fiscal).

15.  Por seu lado, a introdução no consumo é formalizada através da Declaração de Introdução no Consumo (DIC), processada por transmissão eletrónica de dados (e-DIC), nos termos do art. 10.º do CIEC.

16.  Sendo que é a DIC que contém todos os elementos que permitem o cálculo e a liquidação do tributo aplicável, ou seja, documentando as quantidades de produtos declaradas para consumo bem como a liquidação do imposto correspondente. 

17.  Os produtos introduzidos no consumo, e já declarados nas respetivas DIC, são, por sua vez, destinados a uma multiplicidade de destinos/clientes. Porque, após a introdução no consumo e consequente liquidação das contribuições devidas, podem ainda existir vários intervenientes na cadeia comercial de abastecimento até à chegada do produto ao consumidor final (grossistas, distribuidores, e outros revendedores, designadamente, postos de abastecimento) – não tendo o legislador estatuído qualquer norma de tutela destes últimos.

18.  E a Requerida assinala ainda que vários sujeitos passivos têm peticionado contenciosamente a ilegalidade da liquidação da CSR, com fundamento na desconformidade n.º 2 do artigo 1.º da Directiva n.º 2008/118/CE, de 16/12/2008, apoiando-se no entendimento sufragado pelo despacho proferido pelo TJUE em 07/02/2022, no Proc.º C-460/21.

 

III. B. 1. Excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria

 

19.  A Requerida sustenta que, sendo a CSR uma contribuição financeira e não um imposto (a CSR seria uma contraprestação/contrapartida pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes/utilizadores das vias rodoviárias, em nome do Estado), o Tribunal não teria competência para apreciar o litígio, seja por força do disposto nos arts. 2º e 4º do RJAT, seja pelo disposto na “portaria de vinculação” (Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).

20.  Lembra a Requerida que a AT está vinculada à jurisdição dos Tribunais Arbitrais nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, sendo o objecto desta vinculação definido pelo artigo 2º, que espelha a intenção do legislador de restringir a vinculação dos serviços e organismos ao CAAD no âmbito de pretensões que digam respeito, especificamente, a impostos, aqui não se incluindo tributos de outra natureza, tais como as contribuições – sendo que, segundo a Requerida, este é o caso da Contribuição de Serviço Rodoviário e respectivas liquidações.

21.  Tratando-se de uma contribuição e não de um imposto (e isto independentemente do seu nomen iuris), as matérias sobre a CSR encontrar-se-iam, assim, excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal. E assim não se encontraria verificada a arbitrabilidade do thema decidendum, verificando-se, pelo contrário, uma excepção dilatória nos termos do vertido nos arts. 576.º, 1 e 577.º, a) do CPC.

22.  Além disso, mesmo que a CSR revestisse a natureza de imposto, importa referir que a competência da jurisdição arbitral abrange unicamente os impostos que estejam sob a administração da AT – o que não foi por muito tempo o caso, visto essa administração estar confiada, à data, à extinta DGAIEC (Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo) – cfr. Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de Dezembro, e a integração da CSR nas atribuições normais da AT apenas com o art. 9.º da Lei n.º 24-E/2022.

23.  Por outro lado, os actos de repercussão não podem ser apreciados, na sua alegada ilegalidade, pelos tribunais arbitrais, visto que não chegam sequer a ser actos tributários, mais a mais dada a sua natureza de “repercussão meramente económica”; extravasando, assim, o âmbito material da arbitragem tributária.

24.  Concluindo que, por todas essas razões, a incompetência do Tribunal em razão da matéria consubstanciaria uma excepção dilatória nos termos do vertido nos arts. 576.º, 1 e 577.º, a) do CPC, prejudicando o conhecimento do mérito da causa e conduzindo à absolvição da instância.

 

III. B. 2. Excepção da Ilegitimidade da Requerente

 

25.  Sem prova de que a fornecedora de combustíveis tenha sido o sujeito passivo de ISP/CSR que suportou o imposto, e sem prova de que tenha havido repercussão, e com que extensão, a Requerida coloca em dúvida que a Requerente seja, sequer, consumidor final dos combustíveis que foram objecto das transacções comprovadas por facturas, não podendo excluir-se que os tenha revendido, repercutindo a jusante a carga da CSR – criando-se assim um problema de legitimidade que verdadeiramente só não afecta os sujeitos passivos a quem o imposto foi liquidado e que efectuaram o correspondente pagamento – os mesmos que são identificados pelo art. 5º da Lei nº 55/2007, e a quem os arts. 15º e 16º do CIEC reconhecem o direito ao reembolso (não tendo aquela Lei qualquer referência à repercussão da CSR, nem sequer uma remissão para o art. 2º do CIEC no qual se se prevê a repercussão dos impostos especiais sobre o consumo).

26.  A Requerida insiste que são sujeitos passivos de CSR as entidades responsáveis pela introdução dos combustíveis no consumo, com implicações de prova para que haja direito a reembolso – nomeadamente, a comprovação da liquidação e pagamento desse tributo. E daí o regime do art. 15.º do CIEC, e do art. 78.º, 1 da LGT.

27.  E lembra que se trata, no caso, de tributo monofásico, que incide apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez (por contraste com o plurifásico IVA).

28.  Logo, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do acto tributário, e consequente pedido de reembolso do imposto – tenha ocorrido, ou não repercussão económica.

29.  Assinala a Requerida que esta situação contém duas relações jurídicas distintas: a relação jurídica tributária de direito público, pela qual o Estado é credor de uma certa quantia de um sujeito passivo, e a relação jurídica de direito privado, pela qual os adquirentes do combustível, na medida em que entendem ser repercutidos, podem vir a ter o direito de exigir uma certa quantia do sujeito passivo. O que não pode é vir a Requerente pedir à AT o reembolso de um tributo que nunca entregou ao Estado.

30.  Além disso, insiste que não existiu, na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, uma repercussão legal do tipo das previstas no art. 37.º do CIVA e no art. 3.º CIS. E invoca o entendimento sufragado pelo despacho proferido pelo TJUE em 07/02/2022, no Proc.º C-460/21: 

ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos.”.

31.  E lembra a Requerida que a repercussão meramente económica, ou de facto, depende da decisão dos sujeitos passivos, de, no âmbito das suas relações comerciais, ao abrigo do direito privado, procederem, ou não, à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem, sejam os fornecedores, sejam os seus clientes, tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade, designadamente, em termos do aumento de preços para o consumidor final, e que, de acordo com a lei da procura, poderá redundar numa diminuição da quantidade procurada e do lucro obtido.

32.  Especificamente, a venda do combustível não dá obrigatoriamente origem a uma repercussão, estando esta dependente da política de definição dos preços de venda da empresa vendedora, ou fornecedora, que pode repercutir uma parte da CSR, o seu total, ou não repercutir de todo. Por outro lado, dada a natureza da repercussão em causa, que é meramente económica, ainda que o sujeito passivo de ISP/CSR “repassasse” o custo da CSR, ou parte dele, no preço de venda dos combustíveis, os seus clientes imediatos não seriam, necessariamente, quem suporta, a final, o encargo do tributo.

33.  Por outro lado, tendo presente que o preço de venda ao público incorpora o custo dos impostos indirectos líquidos, todo e qualquer consumidor/comprador se transformaria em contribuinte, se se atribuísse relevância jurídica ao fenómeno da repercussão económica. Compreende-se, por isso, a restrição da legitimidade aos repercutidos legais, no art. 18.º, 4, a) da LGT e no art. 9º., 1 do CPPT, dos quais se retira que tal repercussão é estranha à relação jurídica tributária, tratando-se, antes, de uma relação de direito privado, disciplinada por normas de direito civil.

34.  De tudo isto retira a Requerida um argumento a determinar a ilegitimidade da Requerente. E o facto é que a Requerente, que alega ter pago o valor da CSR, não faz prova disso (sendo as facturas omissas quanto a ISP ou CSR) – não sendo, tão-pouco, parte da relação tributária subjacente às liquidações contestadas.

35.  Além de que um alargamento da legitimidade a meros repercutidos, com transacções sub-identificadas e não provadas, teria como consequência inevitável uma ilegítima, infundada e indevida restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo ou discriminação entre o sujeito passivo de imposto, e os grossistas, distribuidores, revendedores, etc., até ao consumidor final.

36.  Pelo que a Requerida conclui que a Requerente não tem legitimidade processual, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos dos arts. 576.º, 1 e 2, 577.º, e) e 578.º do CPC, a conduzir a uma absolvição da instância; e não tem legitimidade substantiva, o que consubstancia uma excepção peremptória, nos termos dos arts. 576.º, 1 e 3, e 579.º do CPC, conducente a uma absolvição do pedido.

 

III. B. 3. Excepção de Ineptidão da Petição Inicial, por falta de objecto

 

37.  Na Resposta, a Requerida explicita o tema da ineptidão (já sugerido no seu Requerimento de 21 de Novembro de 2024), alegando a existência, no pedido de pronúncia arbitral, de deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, mormente a violação do art. 10.º, 2, b) do RJAT, que determina a nulidade de todo o processo e a absolvição da instância, conforme os arts. 186º, 1, 576º, 1 e 2, 577º, b) e 278º, 1, b) do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

38.  Lembra a Requerida que a ineptidão da petição inicial ocorre quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade – e que é isso que ocorre, por força da mencionada violação do art. 10.º, 2, b) do RJAT. E isto porque, analisado, quer o pedido arbitral, quer a documentação a ele anexa, em lado algum se encontra identificado qualquer acto tributário, sejam os actos de liquidação de ISP/CSR praticados pela AT, sejam as Declarações de Introdução no Consumo (DIC) submetidas pelos alegados sujeitos passivos de imposto. 

39.  Assim, sem a identificação, por parte da Requerente, dos actos tributários, cuja legalidade pretende ver sindicada, e não sendo possível à AT identificar os actos de liquidação em crise, também não é, de todo, possível à Requerida identificar factos essenciais omitidos pela Requerente, tornando impossível estabelecer-se qualquer correspondência entre os actos de liquidação praticados pelos sujeitos passivos de ISP/CSR e o alegado pela Requerente no pedido arbitral, e os documentos juntos, com este, aos autos, de onde não constam quaisquer dados que permitam a associação às correspondentes liquidações. 

40.  Não tendo as transacções, que ocorrem após a introdução no consumo, por base um acto de liquidação específico, é totalmente impossível à AT identificar o acto de liquidação subjacente à declaração dos produtos para o consumo, que vão sendo transaccionados ao longo da cadeia de comercialização. 

41.  Pelo que apenas o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo, a quem foi liquidado o imposto e que efetuou o correspondente pagamento, reúne condições para identificar os actos de liquidação.

42.  Em suma, a não identificação dos actos tributários objecto do pedido arbitral por parte da Requerente compromete, irremediavelmente, a finalidade do referido pedido – porque deixa de ser possível sindicar a respectiva legalidade, pelo que nunca poderia o tribunal determinar a respectiva anulação, total ou parcial.

43.  Sustenta a Requerida, assim, que se verifica a excepção de ineptidão da petição inicial, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, conforme arts. 186.º, 1, 576.º, 1 e 2, 577.º, b) e 278.º, 1, b) do CPC, conduzindo à absolvição da Requerida da instância. 

 

III. B. 4. Excepção de Ineptidão da Petição Inicial, por ininteligibilidade e contradição entre pedido e causa de pedir

 

44.  A Requerida sustenta que a presunção de que se estaria na presença de uma repercussão legal gera uma confusão entre liquidações e repercussões, para efeito de se determinar qual o objecto do pedido, criando problemas de inteligibilidade e de contradição entre o pedido (anulação de liquidações) e causa de pedir (repercussão de um tributo inválido).

45.  Apresentando como causa de pedir, para efeitos de reembolso do que foi pago, a repercussão de um tributo alegadamente inválido por desconformidade desse tributo com o Direito da União, a Requerente formula um pedido de anulação de liquidações que não identifica, através da mera impugnação de alegadas repercussões, sem sequer identificar o nexo entre estas e aquelas – partindo somente da ideia errada de que vigorou para a CSR um regime de repercussão legal, a qual, adicionalmente, se pode presumir.

46.  Concluindo a Requerida que, ainda que a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial seja de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196º do CPC, é de ser invocada por uma dupla razão: a não-identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, o que compromete irremediavelmente a finalidade da petição inicial, e a contradição entre o pedido e a causa de pedir; levando ambos à nulidade de todo o processo, nos termos conjugados do art. 186.º, 1 e do art. 577.º, b), ambos do CPC. 

 

III. B. 5. Excepção de Caducidade do Direito de Acção

 

47.  A Requerida assinala que as deficiências de identificação dos actos impugnados não permitem aferir da tempestividade, seja do pedido de revisão oficiosa, seja do subsequente pedido de pronúncia arbitral.

48.  É que a contagem do prazo para a apresentação dos referidos pedidos se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação.

49.  E, na ausência de prova quanto às liquidações, pelo menos é de presumir que, tratando-se de aquisições ocorridas entre os anos de 2019 e 2022, o prazo de 120 dias (art. 78.º, 1 da LGT) já estaria esgotado em 17/5/2024, data de apresentação do pedido de revisão oficiosa.

50.  A Requerida rejeita o recurso a um prazo de 4 anos com a alegação de erro imputável aos serviços, alegando que a ideia desse erro se sustenta na simples invocação de um despacho proferido pelo TJUE no Caso Vapo Atlantic, o qual não tem força de caso julgado fora do âmbito do seu processo de origem, não interferindo, e menos ainda se sobrepondo, à vinculação à legalidade, à qual a Requerida está adstrita.

51.  Em todo o caso, a falta de identificação dos actos tributários em crise tem como efeito a impossibilidade de se aferir, em pleno, da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa e de reembolso por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR; e, consequentemente, da tempestividade do pedido arbitral. 

52.  Conclui a Requerida que essa caducidade do alegado direito de acção por parte da Requerente consubstancia uma excepção peremptória, o que acarreta a absolvição do pedido. 

 

III. C. Posição da Requerente quanto à matéria de excepção suscitada pela Requerida

 

III. C. 1. Posição da Requerente no Requerimento de 23 de Maio de 2025

 

53.  Em Requerimento de 23 de Maio de 2025, a Requerente tomou posição quanto às excepções formuladas pela Requerida na sua resposta.

 

III. C. 2. Excepção da Incompetência do Tribunal

 

54.  Quanto às excepções de incompetência absoluta e relativa do tribunal arbitral, a Requerente sustenta que a CSR não se integra em nenhuma das exclusões da “Portaria de Vinculação”; e que, como se trata materialmente de um imposto, não restam dúvidas quanto à competência dos tribunais arbitrais para a sua apreciação.

55.  Sustenta ainda que, do ponto de vista da sua estrutura jurídica e económica, a CSR assume características típicas de um imposto indirecto sobre o consumo: é exigida sobre bens sujeitos a IEC, com incidência objectiva e base de cálculo proporcional ao volume de combustível; é repercutida ao consumidor final no momento da venda (relação jurídica de consumo); visa angariar receita pública para uma entidade administrativa com funções públicas de infraestrutura; a sua cobrança é feita pela AT, nos termos do CIEC, nos mesmos moldes que o ISP.

56.  É que, ao contrário das contribuições financeiras, a CSR não pressupõe uma relação bilateral entre o contribuinte e a entidade que presta um serviço público, sendo que a CSR não se dirige a qualquer grupo concreto, pois é exigida em função do consumo de combustível, sem individualização ou contraprestação identificável – tratando-se, por isso, de um verdadeiro imposto indirecto sobre o consumo, e não de uma contribuição financeira.

57.  Lembra a Requerente que a qualificação da CSR como imposto foi igualmente validada pelo TJUE no despacho de 07.02.2022 (Proc. C-460/21), no qual se entendeu que a CSR constitui um imposto adicional, violador da Directiva 2008/118/CE, que harmoniza a tributação sobre os produtos sujeitos a IEC, como os combustíveis rodoviários.

58.  Inserindo-se, pois, a CSR nos casos previstos no art. 2.º do RJAT

 

III. C. 3. Excepção da ilegitimidade da Requerente no âmbito da presente acção arbitral. 

 

59.  Sobre a excepção de ilegitimidade processual e substantiva, a Requerente assenta na ideia de que existia, deveras, um regime de repercussão legal da CSR (a partir dos arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 55/2007), visando onerar o consumidor com o imposto – como é próprio da tributação indirecta que recai sobre o consumo.

60.  E alega que quem suporta economicamente um imposto, o contribuinte material, tem legitimidade para reagir judicialmente, por força do disposto no art. 18.º, 4 da LGT e nos arts. 9.º, 1 e 4, e 132.º do CPPT.

61.  Insistindo que a regra da repercussão legal da CSR, expressa na própria lei que a cria, conduz necessariamente ao reconhecimento de que é o consumidor final quem está legitimado a reagir contra a sua exigência, por ser o único lesado.

62.  Sustenta ainda que ocorre, no caso, uma substituição tributária sem retenção, tornando aplicável o art. 132.º do CPPT à sua situação de contribuinte “substituída” (perdendo o substituto a legitimidade para ser reembolsado).

63.  A Requerente invoca ainda princípios constitucionais, como o do direito à tutela jurisdicional efectiva.

64.  E invoca a jurisprudência do TJUE, favorável à atribuição do direito ao reembolso de tributos indevidamente cobrados em violação do direito europeu a quem tenha suportado o encargo económico do tributo.

65.  O que conduz à improcedência da excepção.

 

III. C. 4. Excepção de ineptidão por ininteligibilidade e contradição entre pedido e causa de pedir

66.  A Requerente acusa a Requerida de incorrer em excesso de formalismo (ferindo o princípio da proporcionalidade, art. 18.º da CRP) e de ignorar a interpretação teleológica, sistemática e pragmática que deve presidir à apreciação da suficiência da petição inicial no processo judicial e arbitral tributário.

67.  A Requerente insiste que formula pedidos claramente definidos, nomeadamente:

  • Declaração de ilegalidade dos actos de liquidação da CSR praticados pela AT, e, bem assim, dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo adquirido; 
  • Restituir os valores do imposto indevidamente pagos;

·       Determinar o pagamento de juros indemnizatórios.

68.  E que tudo estaria comprovado através das facturas: os períodos temporais, os fornecedores, os volumes de combustível adquiridos e os valores correspondentes à CSR suportada.

69.  Sendo de aceitar que a relação entre facturas e actos de liquidação de CSR seja demonstrada por prova indirecta, sendo admitida a presunção fundada, dada a exclusividade da posse dos documentos de liquidação (DIC) pela AT ou pelos fornecedores, não estando acessíveis à Requerente.

70.  Impondo-se a aplicação do princípio do inquisitório (art. 58.º da LGT), imputando a Requerente à AT a insuficiência probatória, contrária ao disposto no art. 59.º, 4 da LGT, não podendo recair sobre a Requerente uma prova que seria impossível.

71.  O que deve levar à rejeição desta excepção.

 

III. C. 5. Excepção de Caducidade do Direito de Acção.

 

72.  A Requerente invoca o prazo de 4 anos para o pedido de revisão oficiosa por erro imputável aos serviços, nos termos do art. 78.º, 1 da LGT, na medida em que os erros não são imputáveis à própria Requerente, o que torna tempestiva a apresentação desse pedido, dadas as datas da facturas, e dadas ainda as suspensões legais de prazos durante o período da pandemia.

73.  Sustentando a Requerente que uma interpretação diversa seria atentatória dos princípios constitucionais do direito de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva.

74.  Tornando improcedente também esta excepção.

III. C. 6. Posição da Requerente em alegações

 

75.  Em alegações, a Requerente sintetiza, quanto à matéria de excepção, os argumentos já apresentados no seu Requerimento de 23 de Maio de 2025. Reforçando que a jurisprudência recente do STA confirma que a arbitragem tributária é admissível para tributos qualificados como impostos indirectos, ainda que formalmente designados de "contribuições" (cfr. Ac. STA de 11.01.2024, Proc. n.º 01427/23.6BELRS). E que a jurisprudência do TJUE confirma essa natureza, declarando, no Processo C-460/21, que a CSR é um “imposto adicional” incompatível com a Directiva 2008/118/CE.

 

IV. Sobre o Mérito da Causa

 

IV.A. Posição da Requerente

 

76.  A Requerente começa por sustentar, em tese geral, a incompatibilidade do regime legal da CSR com o Direito da União, com as consequências de ilegalidade resultantes do primado do Direito da União (espelhado no arts. 8.º, 4 da CRP e 1.º, 1 da LGT), com consequências, igualmente, na actuação vinculada da Administração Pública.

77.  Lembrando que a tributação dos produtos petrolíferos e energéticos é enquadrada pela Directiva n.º 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, que fixa a estrutura comum dos IEC harmonizados, sendo que a CSR configura um imposto não harmonizado cuja criação está sujeita à dupla condição de respeitar a estrutura essencial dos IEC e do IVA, e de ter como fundamento um “motivo específico”. 

78.  De acordo com a jurisprudência do TJUE, esta obrigatoriedade de existência de “motivo específico” não poderá ser uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita, exigindo-se uma ligação directa entre a utilização da receita e a finalidade do imposto – ligação que não se verifica sempre que a receita gerada pelo imposto esteja apenas afecta a despesas susceptíveis de serem financiadas pelo produto de impostos de qualquer natureza, e a estrutura do imposto não serve para desmotivar o consumo que ele queira prevenir.

79.  Tornando-se claro que nenhum desses motivos específicos esteve na base do surgimento da CSR, através da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto. 

80.  O que impõe que se conclua que a CSR é um imposto criado em claro incumprimento do previsto no n.º 2 do art. 1º da Directiva n.º 2008/118/CE – sendo ilegal, por violação clara do Direito Europeu, o que persistiu até à sua eliminação pela Lei n.º 24-E/2022, de 31 de Dezembro.

81.  Isso implica a inexistência de facto tributário conducente ao acto de liquidação e a sua consequente anulação contenciosa, porquanto há erro sobre os pressupostos de facto, havendo assim uma divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do acto. 

82.  Entendendo a Requerente que a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação da CSR praticados pela Administração Tributária com base nas Declarações de Introdução no Consumo abrange os consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas referentes a gasóleo adquirido. 

83.  E, não obstante a incidência subjectiva da CSR abarcar os sujeitos passivos de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, entende a Requerente que é sobre o consumidor de combustíveis que recai o real encargo com o referido tributo.

84.  Daí que ela se tenha considerado legitimada a formular o pedido de revisão nos termos do art. 78.º da LGT (e também arts. 9º, 1 e 95º, 1 da LGT), assente na alegação de ter existido um erro imputável aos serviços, gerando dever de pronúncia da AT, nos termos do art. 56.º, 1 da LGT.

85.  Ao pedido de anulação do indeferimento do pedido de revisão, e dos actos que foram objecto desse pedido de revisão, adita-se a pretensão de restituição do indevidamente pago, e de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos arts. 43º, 1 e 100.º, 1 da LGT, contados a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão (de acordo com o estabelecido no acórdão do STA de 27-02-2019, Proc. n.º 022/18.5BALSB).

86.  Em alegações, a Requerente, depois de recapitular a matéria de excepção, limita-se a reiterar os argumentos expendidos no pedido de pronúncia.

87.  Nelas, enfatiza que, não obstante não ter tido qualquer intervenção no processo de liquidação da CSR, sendo apenas destinatária económica do tributo, este lhe foi repercutido “com caráter obrigatório e automático, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 55/2007 de 31 de agosto”.

 

IV.B. Posição da Requerida

 

88.  Na sua Resposta, passada uma série de excepções, a Requerida começa a sua impugnação por insistir nas questões de prova, nas regras do ónus da prova e nas consequências da ausência de prova do que é alegado – sustentando que não é possível construir alegações sobre presunções que nenhuma norma, no caso, legitima; sob pena de poder proceder-se, em substância, a uma inversão do ónus da prova, ou estabelecer-se um standard de prova diabólica que forçaria a própria Requerida a fazer prova daquilo que a Requerente se limita a alegar.

89.  Assinala, em especial, que nas facturas apresentadas não há qualquer referência à CSR, e não foi apresentado qualquer comprovativo de pagamento de CSR. Sendo que, nos termos do art. 74.º da LGT, o ónus da prova de factos constitutivos de direito recai sobre quem os invoque – excluindo liminarmente a interferência de “presunções”, sobretudo as emergentes de argumentação superveniente, no funcionamento das regras do ónus da prova.

90.  Assim, exclui a presunção da repercussão, dado estarmos perante uma repercussão meramente económica, e exclui também que procure onerar-se a AT com a prova diabólica da “ausência de repercussão”.

91.  Nestes termos, entende a Requerida que não logra a Requerente fazer prova do que alega, designadamente sobre o alegado facto de ter adquirido e pago combustível e, consequentemente, ter suportado integralmente o encargo do pagamento da CSR, que a fornecedora de combustível alegadamente repercutiu nas respectivas facturas. Até porque a prova da repercussão pressupõe necessariamente, como ponto de partida, a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que não sucedeu. 

92.  Além de que, até por força da jurisprudência do TJUE, a ocorrência do fenómeno de repercussão não pode simplesmente ser presumida, por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. 

93.  Impugnando o teor dos documentos 1 a 99, facturas anexas ao pedido arbitral, igualmente anexas ao pedido de revisão oficiosa, porquanto não servem como prova dos factos alegados pela Requerente. Fazendo notar que das facturas apresentadas apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. 

94.  Não tendo sido, também, apresentados, além disso, quaisquer comprovativos de pagamento ao Estado do ISP/CSR, consubstanciados pela apresentação dos respetivos Documentos Únicos de Cobrança (DUC) e das Declarações Aduaneiras de Importação/Documentos Administrativos Únicos (DAI/DAU) com averbamento do número de movimento de caixa. 

95.  Não provando a Requerente que suportou qualquer imposto, e que ela própria não incluiu os impostos por si suportados no preço de venda aos seus clientes. 

96.  Sendo que não se pode confundir as fórmulas de determinação do preço com a liberdade dos agentes económicos de, em cenários concorrenciais, incluírem ou não, no PVP, todos os encargos por si suportados, não excluindo uma limitação voluntária da repercussão a jusante, com a consequente diminuição da sua própria margem de lucro.

97.  Concluindo a Requerida que não há prova de que efectivamente ocorreu repercussão, parcial ou total, da CSR na aquisição dos combustíveis aos seus fornecedores, e que, nessa sequência, efectuou o pagamento e suportou, a final, o encargo da CSR – sem o ter repassado, a jusante, no preço dos serviços prestados pela Requerente aos seus próprios clientes ou consumidores finais. 

98.  Além disso, não são identificados quaisquer actos de liquidação de CSR e datas em que aqueles teriam sido efectuados, em decorrência das DIC submetidas pelo sujeito passivo de ISP/CSR, que permitissem estabelecer uma qualquer relação entre o combustível adquirido pela Requerente à sua fornecedora e as liquidações de CSR suportadas, a montante, pelo sujeito passivo. 

99.  Isto porque, ainda que existisse repercussão legal no âmbito dos IEC, que não é o caso, sempre teria a Requerente que identificar os actos de liquidação de ISP/CSR referentes ao combustível introduzido no consumo, ao qual seria de imputar a parte de combustível vendida pela fornecedora à Requerente, o que só pode ser feito pelo sujeito passivo que, ao processar a DIC ou Documento Administrativo Único (DUC) e a Declaração Aduaneira de Importação (DAU /DAI), procedeu à introdução no consumo. 

100.       Pois que, sem a exacta identificação do acto tributário em causa, correr-se-ia o risco de a AT vir a ser, sucessivamente, condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, mais do que uma vez, a todos os intervenientes no circuito económico de comercialização de combustíveis rodoviários, que se veriam indevidamente enriquecidos em claro prejuízo do erário público: o que não configuraria uma real situação de reembolso nos termos e para o efeito do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do CIEC mas, sim, um atentado à segurança jurídica e a todo o ordenamento jurídico-constitucional. 

101.       Por outro lado, olhando para o teor da redacção do despacho do TJUE datado de 7 de Fevereiro de 2022 (Processo n.º C-460/21), sustenta a Requerida que em momento algum o TJUE considera ilegal a CSR, além de que não existe qualquer decisão judicial nacional transitada em julgado que declare a CSR ilegal, o que impõe a conclusão de que não há desconformidade do regime da CSR com qualquer Directiva Europeia, na medida em que inexiste uma só decisão judicial transitada em julgado que assim o declare – tal como não há qualquer decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária, e que determine a respectiva devolução. 

102.       Além de considerar que existia à data dos factos, efectivamente, um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação – ou seja, existiam na CSR, à data dos factos, finalidades não orçamentais, estando subjacente à sua criação e afetação motivos específicos distintos de uma finalidade orçamental, nomeadamente finalidades de redução de sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, sendo, pois, a referida CSR conforme ao direito comunitário. 

103.       Quanto à repercussão económica, esclarece a Requerida que esta consubstancia uma situação em que existem duas relações jurídicas distintas: 1) a relação jurídica de imposto pela qual o Estado é credor de uma certa quantia de um sujeito passivo e 2) a obrigação de Direito Civil, pela qual um credor (que é o sujeito passivo do imposto) tem o direito de exigir uma certa quantia (do mesmo montante da quantia devida a título de imposto, mas não a mesma quantia) de um terceiro, sendo que nesta segunda relação não intervém o Estado. Assim, caberá aos sujeitos passivos no âmbito das suas relações comerciais (ao abrigo do direito civil) proceder, ou não, à transferência da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta as consequências para a sua actividade, designadamente, em termos do aumento de preços para o consumidor final, o que poderá redundar numa diminuição da quantidade procurada e do lucro obtido. 

104.       Quanto a este aspecto, o Acórdão do TJUE de 20 de Outubro de 2011 (Proc. C-94/10 ) estabeleceu que um Estado-Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo, e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil. 

105.       Quanto aos juros indemnizatórios, a Requerida chama a atenção para o regime especial do art. 43.º, 3, c) da LGT, que dispões que os juros indemnizatórios são devidos apenas quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste – ou seja, depois de decorrido um ano, contado da apresentação do pedido de revisão, e não desde a data do pagamento indevido do imposto.

106.       Em alegações, a Requerida retoma os argumentos da sua resposta, destacando que não existe repercussão legal da CSR, a Requerente não fez prova do que alega, não identificou os actos tributários que diz querer impugnar.

 

V. Fundamentação da decisão

 

V.A.1- Considerações prévias: um problema no pedido.

 

A Requerente deixa subentendido que o objecto imediato do pedido são os actos de repercussão (tidos, mesmo que só implicitamente, por manifestações de um regime de “repercussão legal”, que a Requerente subscreve ostensivamente); e que são mediatamente impugnadas as liquidações de CSR apenas porque são elas que estão subjacentes às repercussões, precedendo-as lógica e temporalmente.

Esclareçamos, desde logo, que, quanto aos actos de repercussão, eles só seriam actos tributários, susceptíveis de apreciação jurisdicional por parte deste tribunal, se estivesse em causa uma situação de repercussão legal – que, veremos de seguida, não está.

Por outro lado, quanto aos actos de liquidação de CSR, na verdade a Requerente não chega a identificar correctamente essas liquidações – sendo que ela poderia ter tentado obter, ao menos da fornecedora de combustíveis enquanto foi comprovadamente sujeito passivos de ISP / CSR, a documentação comprovativa de tais liquidações – ainda que fosse problemático (e virtualmente impossível num imposto monofásico) estabelecer o nexo entre as liquidações de CSR e cada uma das repercussões que possam posteriormente ter ocorrido.

Com efeito, os documentos anexos ao pedido de pronúncia consistem em facturas que apenas discriminam o valor-base e o valor de IVA, sendo omissas quanto a montantes de ISP e de CSR repercutidos, ou não-repercutidos – visto que, quanto a estes tributos, jamais existiu, como referimos, um sistema de “repercussão formalizada”; limitando-se a Requerente a presumir que houve repercussão completa de CSR em cada uma das transacções de combustíveis, a um valor fixo de CSR por litro – num simples exercício de conjectura, num contexto no qual não existia repercussão legal, nem sequer “repercussão formalizada”.

Manifesta-se, aqui, portanto, uma margem de ininteligibilidade na indicação do pedido.

Quanto à margem de ininteligibilidade em função do objecto – afinal, o objecto do pedido são as liquidações, ou são as repercussões? – ela poderia ser eventualmente sanada nos termos do art. 186º, 3 do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Mais difícil será sanar outro tipo de ininteligibilidades: seja a que resulta da inexistência de comprovação dos actos impugnados, seja a que emerge da contradição entre o pedido (a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações) e a causa de pedir (a ilegalidade de um tributo, por desconformidade desse tributo com o direito da União, para efeitos de reembolso do que foi alegadamente repercutido – isto, não obstante não se ter provado a respectiva liquidação, por se assentar na ideia errada de que vigorava para esse tributo um regime de repercussão que permitia presumir essa repercussão, seja no seu quid, seja no seu quantum, para se inferir, da ilegalidade das liquidações, a invalidade das repercussões, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões).

Dificuldade, desde logo porque, insista-se, este tribunal pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são actos tributários, mas não sobre a legalidade de fenómenos de repercussão económica, que não são actos tributários: pelo que o pedido poderia ser apreciado por este tribunal, mas não com uma tal causa de pedir.

Tentando remover aquilo que designámos por “margem” de ininteligibilidade, poderíamos presumir que a Requerente só pretende impugnar os actos de repercussão que ela considera serem inerentes à transmissão onerosa de combustíveis – na medida em que só quanto a esses actos de repercussão a Requerente julgou ter feito prova, através da documentação junta ao pedido de pronúncia, e posteriormente.

Só que esse passo para fora da “margem” de ininteligibilidade confronta-nos directamente com a natureza do fenómeno de repercussão que pode associar-se à CSR.

 

V.B.2- Problemas de legitimidade.

 

Demonstraremos que não está em causa – não o estava, nem o pode estar retroactivamente – um regime de repercussão legal; mas não sem, antes, esclarecermos alguns pontos relativos a legitimidade.

A questão nasce dos efeitos da consideração da hipótese de repercussão plena do imposto – o que faria com que, não obstante o sujeito passivo de CSR ser aquele que se encontra definido para efeitos de ISP, o encargo desta contribuição seria economicamente suportado pelo consumidor do combustível, ou por alguém a jusante do sujeito passivo no circuito económico da distribuição de combustíveis, o que poderia sugerir a adopção de uma solução de substituição tributária – em termos de o contribuinte de facto da CSR passar a ser a única parte legítima para peticionar a declaração de ilegalidade dos respectivos actos de liquidação, retirando aos “repercutentes” o seu interesse em agir.

É o art. 9.º, 1 e 4 do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, 1 do RJAT, a norma que define a legitimidade activa no processo arbitral tributário, e lá não se prevê que essa legitimidade se possa perder por efeito de uma repercussão que propiciasse a identificação de um interesse, concorrente ou exclusivo, na esfera de um “repercutido” que não seja o sujeito passivo.

E essa conclusão não se modifica com a alteração da redacção do art. 2.º do CIEC pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, a converter a “repercussão económica” em “repercussão legal”, mesmo que essa alteração tenha alcance interpretativo / retroactivo (ou seja, mesmo que não fosse inconstitucional): porque também aí não ocorre, nem passa a ocorrer, substituição tributária, visto que não só não é o consumidor final quem responde pela prestação tributária, como também é a própria lei que exclui, do conceito de sujeito passivo, quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”.

Por outras palavras, não ocorre nesta situação uma deslocação da obrigação tributária, do contribuinte directo para um terceiro, o contribuinte “de facto” – aquele que, por repercussão, eventualmente suporta o peso do imposto. E, sem essa deslocação da obrigação, sem essa vinculação jurídica do contribuinte “de facto”, não pode ocorrer uma verdadeira substituição tributária, nos termos dos arts. 20º e 28º da LGT.

Com efeito, para que exista a substituição tributária a que se refere o art. 20º da LGT, é preciso que ocorra a deslocação da obrigação tributária, do contribuinte directo (isto é, de quem se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto) para um terceiro: sendo que a responsabilidade do substituto tributário, nos termos do art. 28.º da LGT, se traduz na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção, e da respectiva entrega nos cofres do Estado, em termos que exonerem o substituído da entrega dessas mesmas importâncias.

A conjugação do art. 9º, 1 e 4 do CPPT com o art. 18º, 3 da LGT dissipa quaisquer dúvidas sobre a ilegitimidade processual da ora Requerente: têm essa legitimidade os contribuintes, e contribuinte é o “sujeito passivo” na relação tributária, a pessoa singular ou colectiva, património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, seja como substituto ou responsável.

Não sendo a Requerente sujeito passivo do ISP, de acordo com a norma de incidência subjectiva constante do art. 4.º, 1, a), do CIEC, ela não é responsável pelo pagamento da CSR, por força do disposto nos arts. 4.º, 1, e 5.º, 1, da Lei n.º 55/2007 – não sendo consequentemente, por ausência de qualidade de contribuinte directo, titular da relação jurídica tributária, e parte legítima no processo (art. 9º, 1 do CPTA).

Por outro lado, uma vez que a competência dos Tribunais arbitrais se circunscreve, no que é aqui relevante, à avaliação de actos de liquidação, os actos de repercussão são, qua tale, inarbitráveis, como referimos – restando, como únicos factos relevantes para apurar a legitimidade da Requerente para impugnar os actos de liquidação da CSR, os referentes às relações estabelecidas com os verdadeiros sujeitos passivos que intervieram nesses actos. 

Além disso, havendo um regime especial de revisão no CIEC, para o qual remetia o art. 5º, 1 da Lei n.º 55/2007, que criou a CSR, o círculo dos potenciais impugnantes dos actos de liquidação da CSR tenderá a convergir com o círculo dos potenciais credores do reembolso delimitado no art. 15º, 2 do CIEC: “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto”; ou seja: “o depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado”, ou ainda “a pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação”. Esses círculos de legitimidade tenderão a convergir, mas não necessariamente a coincidir, visto que, como é óbvio, um pedido de revisão não se confunde com um pedido de reembolso – até porque ambos podem cumular-se.

Em todo o caso, impressiona a circunstância de o art. 15º, 2 do CIEC se ter mantido inalterado ao longo da história desse Código, e de os arts. 15º, 2 e 4º, 1 e 2, a) só terem sofrido, também eles, uma única alteração substancial, o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “incidência subjectiva” – o que só pode significar que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

Querendo isto dizer, muito pragmaticamente, que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre erros na liquidação.

O entendimento subscrito quanto à ausência, no caso, de substituição tributária prejudica amplamente a atribuição de relevância à repercussão económica deste tributo (e a questão da retroactividade “interpretativa”, dada a inconstitucionalidade, prejudica o alcance da respectiva requalificação como “repercussão legal”).

Se assim não fosse, poderíamos admitir que, tendo havido repercussão plena, e provando-se essa repercussão plena (ou não se ilidindo uma eventual presunção de repercussão plena), fossem os repercutidos a ter legitimidade para impugnar os actos que concretizassem a repercussão, ou os actos que a antecedessem (através dos arts. 18º, 4, a), 54º, 2, 65º e 95º, 1 da LGT, e 9º, 1 e 4 do CPPT): pois, num caso desses, apenas os repercutidos seriam afectados nas suas esferas jurídicas pelo acto lesivo, e o substituto só teria legitimidade na medida em que não tivesse repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade (por analogia com o estabelecido no art. 132º do CPPT) – podendo haver concorrência de legitimidades, a reclamar a solução do litisconsórcio necessário; ou a exclusão de uma legitimidade pela outra, sua concorrente.

Sem esquecermos, de novo, que o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (art. 9º, 1 e 4 do CPPT).

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E o art. 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema. 

Não se tratando, no caso presente, de sujeito passivo originário, mas de mero “repercutido económico”, coloca-se, em relação à Requerente, a questão de saber se se constituiu uma relação jurídico-tributária com o credor tributário Estado; podendo, quando muito, fazer-se apelo à noção de “interesse legalmente protegido” para conferir à Requerente uma legitimidade, via arts. 9º, 1 e 4 do CPPT e 18º, 3 da LGT, mas sem perder de vista que esse apelo é problemático, já que, na ausência de uma “repercussão legal” ou de uma ligação legalmente reconhecida entre as liquidações de CSR e as eventuais repercussões a jusantes, é difícil sustentar-se que os “meramente repercutidos” tenham, no âmbito jurídico-tributário, um interesse legalmente protegido.

 

 

V.B.3- A inexistência de repercussão legal.

 

Entretanto, afigura-se claro que a CSR não implicava, à data dos factos, qualquer repercussão legal.

A Lei n.º 55/2007, que instituiu a CSR, não contemplava qualquer mecanismo de repercussão legal, e nem sequer de repercussão meramente económica – ainda que se saiba que, dado o seu escopo lucrativo, as empresas vendedoras tendem a repassar para os adquirentes, através dos preços, uma parte dos gastos em que incorrem, incluindo entre eles, mas não exclusivamente, os gastos tributários (o grau de repercussão dependerá das elasticidades-preço em presença, e de decisões comerciais que nasçam da constatação dessas elasticidades).

É verdade que, como repetidamente temos referido, entretanto a repercussão legal veio a ser associada ao ISP e à CSR, por força da nova redacção do CIEC introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, com uma pretensão de retroactividade, acrescentada pelo facto de se atribuir natureza interpretativa a essa nova redacção do art. 2º do CIEC (art. 6º da Lei nº 24-E/2022). 

Só que, por um lado, essa solução é questionável, não apenas porque não parece que seja possível, ou juridicamente admissível, uma retroactividade desse género, e através desse artifício (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021, Proc. nº 843/19); mas também porque uma tal solução lança a AT para os domínios de uma contradição flagrante na abordagem processual deste tema – como se verá adiante.

Por outro lado, essa nova “repercussão legal”, se fosse válida, surgiria desacompanhada de meios de controlo e prova que permitissem a sua gestão, e a dissuasão de abusos (se ambos os objectivos fossem eventualmente alcançáveis em fenómenos de repercussão relativos a um imposto monofásico, como a CSR), como por exemplo ocorre com a repercussão legal prevista no art. 37º do CIVA, que, essa sim, surge acompanhada de mecanismos adequados para esses efeitos (começando pela obrigatória discriminação do IVA na facturação) – aquilo que podemos designar por “repercussão formalizada”.

Seja como for, insistamos: mesmo que tivesse ocorrido repercussão plena da CSR, mesmo que se tivesse provado essa repercussão plena, mesmo que se excluíssem efeitos da CSR sobre o volume de vendas da Requerente independentemente da repercussão, a ponto de ficar estabelecido que o encargo do tributo foi completa e rigorosamente transferido para a Requerente pelas suas contrapartes, ainda assim a legitimidade procedimental e processual da Requerente dependeria, em primeiro lugar, da demonstração de um interesse legalmente protegido, nos termos e para os efeitos do art. 9º do CPPT; e dependeria ainda, consequentemente, da demonstração de que a própria Requerente teria sido o consumidor final de combustíveis, o “fim de linha” no circuito económico sobre o qual recai, ou deve recair, o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo – ou seja, da demonstração de que a Requerente, por sua vez, não constituiu um simples elo intermédio do circuito económico, ou seja, não repercutiu economicamente a jusante, ela mesma, a CSR “embutida” no preço, repassando o encargo económico do tributo para a sua própria clientela, dentro dos limites das elasticidades-preço em confronto – como é altamente plausível que tenha sucedido, na medida em que ela própria é uma sociedade com escopo lucrativo.

Ou seja, mesmo a ter havido repercussão, devidamente comprovada, isto não retiraria aos sujeitos passivos “repercutentes” legitimidade processual, ao menos parcial, nem a atribuiria aos “repercutidos”, a menos que estes demonstrassem, para adquirirem legitimidade concorrente e residual, o preenchimento de dois requisitos:

1)    a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera – não bastando a invocação e comprovação, pelos repercutidos, da existência de uma repercussão, fosse ela legal, fosse ela meramente económica;

2)    a ausência de repercussão a jusante no circuito económico, pelos próprios repercutidos, através do preço de bens e serviços entregues ou prestados à sua própria clientela.

Mas nunca retiraria completamente aos sujeitos passivos a sua legitimidade processual, visto que – insista-se – não ocorria na CSR, à data dos factos, repercussão legal[1].

A complicar este raciocínio está o facto de a Lei n.º 55/2007 não fazer qualquer referência a quem deve suportar, do ponto de vista económico, o encargo da CSR, mas apenas estabelecer, no seu art. 5º, 1, que:

A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

Ou seja, como assinalado antes, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, não remetendo, o referido art. 5º, 1, para o art. 2º do CIEC, no qual se prevê a repercussão legal nos IEC, mas somente para as normas do CIEC que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Mas compreende-se que o legislador tenha optado por não estabelecer um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura dessa legitimidade suscitaria:

·      quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão económica e a determinação do seu quantum;

·      quer no potencial de multiplicação de devoluções de imposto indevido – simultaneamente ao sujeito passivo e aos múltiplos repercutidos económicos dentro da cadeia de valor – de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade. 

Sobre esta segunda consequência, não podemos deixar de referir advertências formuladas recentemente:

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação. [§] Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos![2]

A ter havido um qualquer grau de repercussão económica, nada impede os repercutidos, não obstante a sua ilegitimidade activa no foro administrativo-tributário, de buscarem o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra as “repercutentes”, seja nos termos gerais do Direito nacional, seja, a nível europeu, nos termos declarados pelo TJUE em Acórdão de 20 de Outubro de 2011 (Proc. C-94/10, Danfoss A/S (§§ 24 a 29) – preservando-se, por qualquer das vias, o princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP).

Não esqueçamos que, a ter havido verdadeira repercussão, mesmo repercussão plena, entre o terceiro repercutido e o Estado credor (o sujeito activo), não existe, nem se forma, vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do imposto, não nascendo a sua obrigação da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga a faculdade de repercutir (ou não repercutir), que cabe ao sujeito passivo, e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar (ou não) o sujeito passivo, quando este exerça (ou não) aquela faculdade.

Daqui decorre que as relações entre o sujeito passivo e qualquer repercutido se regem pelo Direito Privado – uma razão suplementar, para lá do que consta dos arts. 2º a 4º do RJAT, para se sustentar a incompetência do Tribunal arbitral relativamente à ponderação dessas relações “repercutente - repercutido”, e respectivas implicações – isto, não obstante dever enfatizar-se que a circunstância de o repercutido estar à margem da relação jurídica tributária não significa que ele esteja à margem do Direito, e não lhe assista alguma protecção, quando (e só quando) a lei a estabeleça expressamente, ainda que num plano subalterno face à tutela reservada aos sujeitos passivos (como resulta do disposto na LGT – por exemplo, do art. 18º, 4, a), em casos de repercussão legal – ou do referido art. 9º, 1 do CPPT, mediante prova de “interesse legalmente protegido”).

Esse entendimento foi expressamente acolhido na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, quando eles concluem que, na ausência de repercussão legal:

o repercutido não tem qualquer direito que possa exercer, diretamente, contra o sujeito ativo da relação jurídica tributária, sendo que os meios de que dispõe, designadamente, para solicitar o reembolso de quantias indevidamente pagas, devem ser exercidos contra o sujeito passivo da concreta relação jurídico-tributária” (Acórdão do STA de 28/10/2020, Proc.º 0581/17.0BEALM)

Por outro lado, não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto no art. 29º, 1, do RJAT, em concreto; e, de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC. 

A regra geral do direito processual, que consta do art. 30º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida” – sendo a mesma regra reproduzida no processo administrativo, conferindo-se legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (art. 9º, 1 do CPTA). 

A legitimidade no processo decorre do conceito central de “relação material”, que, no âmbito fiscal, há-de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário, cujo sujeito passivo é delimitado nos termos do art. 18º, 3 da LGT. 

Em suma, deste preceito resulta que a figura do “repercutido” não se enquadra na categoria de sujeito passivo, pelo que, não sendo parte em relações jurídico-fiscais, a legitimidade do repercutido só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido.

No art. 5º, 1 da Lei n.º 55/2007, como referimos já, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, nem sequer no art. 3º, 1, quando estabeleceu que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” – sendo ainda que, como referimos também, a remissão para o CIEC, na Lei n.º 55/2007, é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”. 

De tudo isto decorre que compete à AT demonstrar, nos procedimentos administrativos ou nas acções instauradas pelos sujeitos passivos da CSR, que se verificou a repercussão efectiva e completa do imposto sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional para, desse modo, evitar um reembolso do imposto indevidamente liquidado que redundasse em enriquecimento sem causa de sujeitos passivos “repercutentes”, e na possibilidade de um duplo reembolso do imposto – que ocorreria se, na ausência de litisconsórcio, os repercutidos lograssem demandar com sucesso a AT para tutela do “interesse legalmente protegido” de não serem o suporte fáctico do encargo económico de um tributo indevido, porque ilegal.

É pelo facto de os sujeitos passivos da CSR serem partes inequivocamente legítimas que, nos casos em que os requerentes não têm essa qualidade de sujeitos passivos, invocando a de “repercutidos”, a AT tem reagido com a invocação do litisconsórcio necessário, suscitando o incidente de intervenção provocada, mas deixando claro que, no entender da AT, sem a intervenção dos sujeitos passivos, dada a própria natureza da relação jurídica, a decisão a proferir não produzirá o seu efeito útil normal, deixando de ser possível a composição definitiva dos interesses em causa (art. 33º, 2 do CPC). Isto, sem embargo de poder discordar-se da pertinência da invocação de litisconsórcio necessário, impondo-se a constatação de que as entidades repercutentes e repercutidas têm diferentes interesses em demandar, e quanto a elas não se verifica qualquer dos critérios legais que justificam o litisconsórcio necessário.

Há mais uma diferença entre sujeitos passivos e terceiros “repercutidos” que não podemos deixar de mencionar, em apoio da ilegitimidade processual dos repercutidos, como a ora Requerente: tem sido comum que a AT invoque, nos processos referentes à CSR, a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.

A AT tem tido esta reacção habitualmente, e teve-a no presente processo, depois de notificada e antes da constituição do tribunal arbitral; tendo o CAAD, invariavelmente, remetido a ponderação de um tal incidente à competência do próprio tribunal arbitral a constituir, o qual deve apreciá-la como questão prévia, prejudicial da pronúncia sobre o mérito.

A razão para a AT suscitar essa questão está claramente ligada ao problema que mencionámos: afigura-se ser impraticável fazer prova de quais são os actos de liquidação específicos dos quais deriva, a jusante, cada uma das transacções que, após a introdução no consumo, acarretam a repercussão económica por meio da incorporação do tributo nos preços – sendo portanto razoável admitir-se que, por um conjunto de circunstâncias – aquilo que designámos como ausência de “repercussão formalizada” –, os repercutidos não reúnam condições para identificar os actos de liquidação, de modo a poderem solicitar a respectiva revisão.

Daí que, no presente processo, a AT tenha seguido por esse caminho: não sendo a Requerente o próprio sujeito passivo da relação tributária, quem declarou os produtos para consumo, a quem foi liquidado o imposto, e quem efectuou o correspondente pagamento, ela não está em condições de proceder a uma identificação completa, e documentada, dos actos de liquidação específicos que ela pretende impugnar – por exemplo, relacionando os DIC com as facturas das vendas de combustível, e com as liquidações que sobre eles recaíram.

O que, como já referimos e melhor veremos adiante, é decorrência lógica da estruturação do ISP e da CSR como impostos monofásicos.

 

V.B.4- A lei interpretativa e a vedação da retroactividade.

 

Já assinalámos a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262).

O art. 3º dessa Lei dá nova redacção ao art. 2º do Código dos IEC:

(…) Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

E o art. 6º dessa Lei nº 24-E/2022 estabelece o seguinte:

A redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC tem natureza interpretativa.

O tema, há muito controvertido, das leis interpretativas na lei fiscal permite dois caminhos para uma tal lei:

1)    o de tornar certo direito que era incerto, aclarando ou declarando direito preexistente, preenchendo alguma lacuna, caso em que temos uma retroactividade puramente formal;

2)    o de modificar direito preexistente e certo, intervindo em disputas doutrinárias ou jurisprudenciais, violando expectativas quanto à continuidade desse direito preexistente, colidindo com prerrogativas jurisdicionais, caso em que temos retroactividade material.

Deste modo, leis e normas autodeclaradas como interpretativas, mas que sejam inovadoras, são materialmente retroactivas.

Ora, como lapidarmente se estabelece no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021, Proc. nº 843/19,

a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição”.

Fica juridicamente vedada a inferência de que, sendo esta uma norma de aplicação retroactiva, o ISP, e com a ele a CSR, é, e foi, sempre repercutido nos consumidores.

Pode encarar-se a Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, somente como um reconhecimento da invalidação da CSR pelo TJUE, e a consequente ilegalidade da CSR – e daí a abolição da CSR através da sua “reincorporação” no ISP, consumada naquele diploma.

Uma leitura possível do art. 6º da Lei nº 24-E/2022 é a de que a repercussão dos IEC nos consumidores é um efeito legal, ou seja, passa a presumir-se “iuris et de iure” que a repercussão é inerente à tributação especial do consumo – dada a retroacção propiciada por essa norma interpretativa: só que essa leitura do art. 6º da Lei nº 24-E/2022, insiste-se, é inconstitucional, como resulta claramente do supracitado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021.

Além disso, mesmo que essa leitura não fosse inconstitucional, ainda assim ficariam por satisfazer alguns dos critérios estabelecidos no despacho de 7 de Fevereiro de 2022 do TJUE: nomeadamente, ficaria por realizar-se a comprovação da repercussão efectiva da CSR nos consumidores através da subida de preços; e, por implicação, a comprovação da medida efectiva do enriquecimento sem causa dos fornecedores de combustíveis, se este enriquecimento existisse e pudesse ser provado.

Adicionalmente, e em observância da jurisprudência do TJUE (Acórdão Weber’s Wine World, Proc. nº C-147/01, Ponto nº 95), faltaria ainda uma norma interna que permitisse à Requerida fazer uso da excepção do enriquecimento sem causa para afastar o direito ao reembolso de um imposto cobrado em violação do Direito Europeu, norma essa que encontramos no Código do IVA, mas que não se encontra no CIEC – uma razão adicional para não se poder excepcionar ao reembolso, aos sujeitos passivos, da CSR indevida, porque uma tal atitude de “excepção sem lei” constituiria violação do princípio da legalidade tributária consagrado no art. 103.º da CRP.

Esta a questão jurídica em torno do tema da retroactividade, cuja solução destrói os propósitos do expediente de recurso a normas “interpretativas” para resolver um problema jurídico, e interferir na adjudicação judicial e arbitral de interesses em processos já em curso.

 

V.B.5- A incongruência da Autoridade Tributária.

 

Só que aqui se revela, adicionalmente, uma incongruência, que convirá referir, por imperativo de justiça.

Lembremos o esforço de prevenção da duplicação de reembolsos, seja fazendo convergir o direito ao reembolso com o direito à revisão, seja lançando-se mão da figura do litisconsórcio necessário, sempre que se trate de pedidos de pronúncia apresentados por operadores económicos que não sejam os sujeitos passivos da relação tributária, invocando somente a condição de “repercutidos”; seja invocando-se que as legitimidades activas são concorrentes e mutuamente exclusivas, determinando que o reconhecimento de legitimidade a “repercutentes” a retira ipso facto a “repercutidos”, e vice-versa.

Se não fosse essa prevenção, se se admitisse que a invocação de ilegalidade de liquidações de CSR, assentes nas DIC apresentadas pelas fornecedoras de combustíveis, pudesse alastrar irrestritamente àqueles que invocassem a repercussão dessas liquidações, então seria difícil evitar a duplicação, ou multiplicação, de reembolsos, e um eventual locupletamento repartido entre repercutentes e repercutidos, passando a fazer todo o sentido as advertências antes transcritas.

Outra forma de reagir é a que acabámos de classificar como inconstitucional – a introdução retroactiva de uma “repercussão legal” como forma de travar indiscriminadamente os reembolsos aos sujeitos passivos – com o efeito colateral de alimentar, ou incrementar, as pretensões dos “repercutidos”.

E há ainda a forma incongruente de reagir a esse perigo, e que consiste em, ao mesmo tempo:

·      invocar a repercussão contra os próprios sujeitos passivos da CSR, alegando que, tendo ocorrido essa repercussão, esses sujeitos enriqueceriam sem causa se lhes fosse reembolsado o tributo;

·      não reconhecer legitimidade activa aos repercutidos, mesmo na hipótese de comprovação de uma repercussão económica integral, invocando o litisconsórcio necessário com os repercutentes, insistindo no chamamento à demanda destes sujeitos passivos.

Desta combinação de reacções – insistir na repercussão e depois negar-lhe efeitos – pode resultar um obstáculo importante à possibilidade de duplicação de reembolsos, mas resulta também uma atitude incongruente, claramente incongruente, da Requerida, a AT.

Pode, com efeito, admitir-se que a AT insista em demarcar, nos termos da lei, um círculo estrito de legitimidade activa – nomeadamente assumindo que apenas os sujeitos passivos que declararam a introdução dos produtos para consumo, e efectuaram o pagamento do imposto, podem solicitar a anulação das liquidações e o reembolso por erro na liquidação.

Mas não pode admitir-se que a AT, esgrimindo o argumento da repercussão – o mesmo argumento que recusa aos repercutidos – procure furtar-se a reembolsar o imposto, seja aos sujeitos passivos que pagaram o imposto, seja aos repercutidos sobre os quais tenha comprovadamente recaído, seja parte, seja a totalidade, do suporte económico daquele pagamento.

Negando-se injustificadamente a reembolsar um imposto ilegal, será o Estado a locupletar-se, sem causa, com receitas tributárias indevidas.

Impõe-se reconhecer que, não obstante o apoio de princípio que possa ser concedido por lei à posição dos repercutidos, residual ou não, o simples ónus probatório que sobre eles recai pode ser muito oneroso, a ponto de se revelar impraticável – bastando pensarmos que, na ausência de “repercussão formalizada”, as repercussões são eventuais efeitos de transacções que ocorrem após a introdução no consumo, a jusante dos sujeitos passivos na relação de imposto, independentemente do número de clientes ou de intervenientes na cadeia de abastecimento e comercialização, pelo que cada uma dessas transacções não tem que ter por base um acto de liquidação específico e discernível, o que pode inviabilizar, completa e definitivamente, a identificação, em concreto, do acto tributário que lhe está subjacente.

É razoável, assim, o argumento de que somente o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo, a quem foi liquidado o imposto e que efectuou o correspondente pagamento, reúne condições para identificar, com segurança, os actos de liquidação, para solicitar a respectiva revisão com vista ao reembolso dos montantes cobrados – sendo que essa informação escapa, em princípio, aos repercutidos a jusante dessas entidades responsáveis pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR (ressalvando que a prova da liquidação não constitui prova, igualmente necessária, do nexo entre liquidações e eventuais repercussões).

O que é reprovável, e causa perplexidade, é a dualidade de critérios, e a evidente incongruência da argumentação, que podemos formular ainda de outro modo:

·      Nos processos arbitrais em que sejam requerentes os sujeitos passivos, a AT defende a ilegitimidade processual deles, na medida em que, alega, o encargo da CSR é, na verdade, suportado pelos adquirentes dos combustíveis;

·      Nos processos arbitrais em que sejam requerentes os adquirentes dos combustíveis, a AT sustenta que estes não têm legitimidade, por não serem os sujeitos passivos do tributo, reclamando-se a presença, no processo, desses sujeitos passivos “repercutentes”.

 

V.B.6- A posição do TJUE quanto à necessidade de prova da repercussão

 

Quando, na verdade, e como ficou estabelecido no Despacho do TJUE proferido no Proc. nº C-460/21, o reembolso duplicado, ou multiplicado, é evitado pela prova, ou falta de prova, da repercussão: se não tiver havido repercussão ou ela não for provada, só o sujeito passivo tem direito ao reembolso; se tiver havido repercussão integral, e esta for provada, e não existirem efeitos comprovados ao nível de “volume de vendas”, só o repercutido terá direito ao reembolso; e o reembolso será parcial, e reverterá exclusivamente para o sujeito passivo, em caso de ter havido, e ser comprovada, uma repercussão parcial, e em caso de qualquer reembolso do repercutente originar enriquecimento sem causa:

“(…) um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido.” [§ 42]

Em suma, não havia – nem há, porque seria inconstitucional – uma repercussão legal de CSR.

Mas, mesmo que houvesse, ela não poderia sobrepor-se à exigência de comprovação da repercussão, estabelecida pelo TJUE no despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no Proc. C-460/21, tendo por objecto um pedido de decisão prejudicial apresentado no âmbito do processo n.º 564/2020-T:

A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas” (§39) (sublinhado nosso)

Para o caso de subsistirem dúvidas quanto à existência, seja de “repercussões legais”, seja de “repercussões presumidas”, o mesmo despacho de 7 de Fevereiro de 2022 do TJUE conclui lapidarmente:

O Direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros (…)”

Vale a pena transcrever alguma da fundamentação do despacho, que esclarece plenamente a irrelevância, para o direito da União, de “repercussões legais”, ou de “repercussões presumidas”, mesmo quando elas existam no direito interno dos Estados-membros:

43. Constituindo esta exceção ao princípio do reembolso dos impostos incompatíveis com o direito da União uma restrição a um direito subjetivo resultante da ordem jurídica da União, há que interpretá‑la de forma restritiva, atendendo nomeadamente ao facto de que a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo.

44. Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos.

45. Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção.

46. O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão.

47. Além disso, mesmo na hipótese de vir a ser provado que o imposto indevido foi repercutido sobre terceiros, o respetivo reembolso ao operador não implica necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas.”

Daqui decorre, novamente em consonância com o decidido pelo TJUE, que o Estado não pode recusar a restituição do imposto com fundamento numa presunção de repercussão do mesmo, e consequente enriquecimento sem causa do sujeito passivo.

Não havendo prova concreta de efectiva repercussão, e de repercussão plena, do imposto, mas meros juízos presuntivos, e não havendo prova de que a repercussão que tenha existido não tenha redundado numa quebra de vendas e de receitas dos sujeitos passivos e demais “repercutentes” a montante da Requerente, e que portanto a restituição redunde necessariamente em enriquecimento sem causa dos sujeitos passivos, não existe fundamento para recusar aos sujeitos passivos o reembolso do imposto indevidamente pago, sendo essa a consequência natural da declaração de ilegalidade das liquidações.

Assim, independentemente de haver, ou não, “repercussão legal”, ou “repercussão presumida” na lei portuguesa – que já vimos não ter havido quanto à CSR, nem à data dos factos, nem posteriormente –, as pretensões da Requerente só valeriam, nos termos do direito da União, se tivesse sido feita prova de uma repercussão total e efectiva da CSR sobre terceiros, consumada a partir das primeiras transacções dos sujeitos passivos com a respectiva clientela a jusante, e adicionalmente a prova de que a Requerente é consumidora final (isto é, sem a possibilidade de também ela repercutir o tributo); e de que o reembolso da CSR paga não constituiria um efectivo enriquecimento sem causa dos “repercutentes”, ou mesmo dos “repercutidos”.

Resta acrescentar, secundando o TJUE, que a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo, e, mesmo que viesse a provar-se que o imposto (indevidamente liquidado) foi repercutido sobre terceiros, e o grau em que o foi, o respectivo reembolso ao operador não implicaria necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas: pelo que sempre seria necessário demonstrar que, nas condições de mercado resultantes do agravamento da tributação, o contribuinte teria beneficiado, ao menos parcialmente, por efeito da repercussão do imposto.

No caso, está ausente qualquer prova de que as margens de lucro dos sujeitos passivos não se reduziram no período em análise, ou a prova de que o volume de vendas dos distintos produtos não sofreu uma redução no mesmo período – para se apurar se o requisito do enriquecimento sem causa, exigido pelo direito da União, se verifica, ou não – voltando a sublinhar-se que a repercussão do imposto, seja ela legal ou económica (mas nunca presumida), não é, só por si, suficiente para alicerçar a excepção de enriquecimento sem causa.

 

V.C. A matéria de excepção.

 

Temos a encarar as seguintes questões suscitadas pela Requerida, na sua defesa por excepção:

 

1.     Excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria

2.     Excepção da Ilegitimidade da Requerente

3.     Excepção de Ineptidão da Petição Inicial, por falta de objecto

4.     Excepção de Ineptidão da Petição Inicial, por ininteligibilidade e contradição entre pedido e causa de pedir

5.     Excepção de Caducidade do Direito de Acção

 

A procedência de qualquer das excepções levará à extinção da instância, com absolvição da Requerida.

A procedência de qualquer das excepções obstará à apreciação do mérito, ao juízo sobre procedência ou improcedência do pedido de pronúncia, à avaliação dos fundamentos e da prova do pedido. 

Dado que são de verificação alternativa – ou seja, dado que a procedência de qualquer delas será suficiente para obstar à decisão de mérito, prejudicando o conhecimento das demais – não se impõe qualquer precedência lógica entre elas, e não estamos adstritos a considerar as excepções pela ordem pela qual foram apresentadas, ou pela qual foram contestadas, ressalvados os critérios do art. 124º do CPPT (ex vi art. 29º, 1, c) do RJAT).

Todavia, até por razões de ordem pública, o conhecimento das excepções dilatórias deve obedecer à ordem subentendida nos arts. 595.º, 1, a), e 278.º, 1, a) e e) do CPC, aplicáveis ao processo arbitral tributário por força do artigo 29.º, 1, e) do RJAT, e assumida no art. 13.º do CPTA (aplicável ex vi art. 29.º, 1, c) do RJAT).

Nas demais excepções dilatórias, o conhecimento da matéria de ineptidão da petição inicial deve preceder o das restantes excepções (Acórdão do TRC de 21.11.2023, Proc. 158/19.5T8LRA.C2).

 

V.C.1. A excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria

 

A Requerida suscita a excepção de incompetência material do tribunal arbitral, alegando que a CSR, sendo uma contribuição financeira e não um imposto, se encontra excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

A competência material dos Tribunais Arbitrais é delimitada pelo artigo 2º do RJAT.

Sendo esta a norma, e a única norma, que define a competência material dos tribunais arbitrais tributários, é evidente que a respectiva competência material abrange todas as espécies de tributos, sendo assim irrelevante, para esse efeito, a qualificação da CSR dentro das espécies de tributos. 

A Requerida cita, porém, vários acórdãos arbitrais em que se conclui que, estando em causa um tributo que o legislador designou como contribuição financeira, este não é abrangido pelo âmbito de vinculação da AT à arbitragem tributária. 

Com efeito, o artigo 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”), ao estabelecer a prévia vinculação da AT, não emprega o termo “tributos”, abrangente de todas as espécies tributárias, mas somente o termo “impostos”.

Tratar-se-ia, assim, não da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral, mas somente da incompetência relativa do Tribunal por falta de vinculação da AT ao processo arbitral na matéria em causa.

Sucede que a CSR é um verdadeiro imposto, o que imediatamente ressalta da sua génese e destino: nascida de um “desdobramento” do ISP, a ele regressou, após a sua extinção na Lei nº 24-E/2022, de 30 de Dezembro, acompanhada de concomitante aumento da taxa de ISP pelo valor da ex-CSR.

Além disso, por concordarmos com o pensamento exposto acerca da questão na decisão proferida no Processo Arbitral nº 304/2022-T, reproduzimos aqui o que aí se disse sobre esta matéria:

Desde a revisão constitucional de 1997, que deu à alínea i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP a sua atual redação, não pode restar mais qualquer dúvida de que o sistema tributário português comporta três categorias de tributos: os impostos, as taxas e as “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (acórdãos TC n.º 365/2008, de 02.07.2008; e n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15).

(…)

Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC nº 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC nº 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[3]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC nº 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

A mesma conceção encontra-se plasmada no acórdão do TC nº 232/2022 (de 31.03.2022, proc. 105/22, relator J.E. Figueiredo Dias), em que o tribunal afirma:

“[E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”

E o tribunal acrescenta nesse mesmo aresto, com particular importância para a questão que nos ocupa no presente processo:

“(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”.

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

Confrontemos esta construção, totalmente amparada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como na doutrina por estes citada, com o decidido no processo arbitral nº 629/2021-T (decisão de 03.08.2022, relator Vítor Calvete) sobre a mesma questão de que se ocupa o presente processo arbitral.

(…)

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007). 

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do nº 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o nº 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis.

Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

É ainda relevante a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, onde se lê:

 “Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspetos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito ativo da respetiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.

(...)

Face ao exposto, não se antevê suporte legal bastante, face à Constituição e à lei, para a contribuição de serviço rodoviário ser paga diretamente a uma sociedade anónima, sem passar pelo Orçamento do Estado. Para além disso, o Tribunal de Contas não pode deixar de assinalar que esta situação leva a uma saída de receitas e despesas da esfera orçamental e, por consequência, da sua execução, o que conduz à degradação, nesta sede, do âmbito do controlo das receitas e despesas públicas.”

A posição do Tribunal de Contas apenas reforça a conclusão do Tribunal, já anteriormente enunciada, de que a CSR é um imposto de receita consignada.

A interpretação que adotamos é igualmente corroborada por Casalta Nabais, J., Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, em que o Autor afirma que “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efetivos impostos, muito embora dada a titularidade ativa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”

Tendo por base toda a argumentação expendida, que perfilhamos integralmente, conclui-se pela não procedência, nem da alegada excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral – excepção que, na opinião do Tribunal, nunca resultaria da exclusão do tributo do âmbito da vinculação prévia da AT à arbitragem tributária – nem da excepção de falta de vinculação de uma das partes, em virtude da natureza do tributo.

Sendo a CSR um verdadeiro imposto, ela encontra-se abrangida quer no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais tributários, definido pelo art.º 2.º do RJAT, quer no âmbito da vinculação prévia da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais.

Não se verifica, pois, a excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria, nas várias vertentes e implicações, próprias ou impóprias, que analisámos.

 

V.C.2. A excepção de ineptidão da petição inicial. O obstáculo da ausência, num imposto monofásico, de qualquer “repercussão formalizada”

 

Estabelecida a competência do Tribunal, o conhecimento da matéria de ineptidão da petição inicial deve preceder o das restantes excepções dilatórias (Acórdão do TRC de 21.11.2023, Proc. 158/19.5T8LRA.C2).

Mesmo que a questão não tivesse sido suscitada, a ineptidão da petição inicial é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 196º do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Mas o facto é que a Requerida invocou repetidamente a excepção da ineptidão da petição inicial, por entender que a não-identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral compromete irremediavelmente a finalidade da petição inicial, dada a violação do art. 10º, 2, b) do RJAT:

Artigo 10.º (Pedido de constituição de tribunal arbitral)

(…)

2 - O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar:

(…)

b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral;

(…)”

Podendo invocar-se igualmente o art. 78º do CPTA (aplicável ex vi art. 29º, 1, c) do RJAT):

Artigo 78.º (Requisitos da petição inicial)

(…)

2 - Na petição inicial, deduzida por forma articulada, deve o autor:

(…)

e) Identificar o ato jurídico impugnado, quando seja o caso;

f) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação;

(…)”

Ou ainda o art. 108º do CPPT:

1 - A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.”

Sendo que a Requerente não só não identifica esses actos, como não os comprova, apresentando facturas que a Requerente julga servirem como prova bastante de uma repercussão que ela própria entende ser uma repercussão presumida (no sentido de que considera que a simples facturação evidencia a existência de tal repercussão).

E, no entanto, logo na comunicação enviada em 21 de Novembro de 2024, antes mesmo da constituição do Tribunal, a AT advertia a Requerente de que “Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”, e por isso solicitava que “seja(m) identificado(s) o(s) ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada”.

Ficando, por isso, por estabelecer qualquer conexão entre aquilo que a Requerente alega, e aquilo que documentou – uma omissão agravada pela circunstância de as repercussões não terem necessária conexão com uma única introdução no consumo, não podendo estabelecer-se, entre liquidações e repercussões de IEC, quaisquer relações biunívocas.

Vimos que a Requerente alegou que procedeu à identificação que lhe competia, sustentando, no pressuposto (errado) da existência de uma repercussão presumida (que ela considerou expressamente ser uma repercussão “legal”), e de uma relação “causal” entre liquidação e repercussão, que a mera entrega de facturas, a documentar as transacções, bastaria como prova da repercussão da CSR.

Na verdade, a identificação dos actos de liquidação carecia de ser feita pelos verdadeiros sujeitos passivos de CSR, que não são parte no processo, e sobre os quais este Tribunal não dispõe de poderes de autoridade, pelo que não seria possível, no caso, recorrer ao regime previsto no art. 429º do CPC.

Quando a Requerente invoca o princípio do inquisitório, pretendendo onerar a AT com a prova dos actos tributários propriamente ditos, ela estava a pretender algo que é duplamente inalcançável: 1) que se faça prova cabal de uma repercussão puramente económica a partir da posição dos envolvidos na liquidação (não na repercussão); 2) que, a partir dos documentos de liquidação, se presuma, sem mais, um montante repercutido (isto a partir de uma outra presunção, a de que, em cada transacção, ocorreu, através dos preços, uma repercussão plena).

Pelo contrário, há que reconhecer que não estaria sequer ao alcance da própria AT identificar os actos de liquidação a serem sindicados, por, na ausência de “repercussão formalizada”, ser impossível identificar as DIC e os respectivos actos de liquidação que estiveram subjacentes à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerente.

Aliás, a alfândega competente para a liquidação nem sequer é necessariamente a da sede do sujeito passivo de ISP / CSR, dependendo do lugar onde são apresentadas as DIC –não sendo de excluir que uma mesma fornecedora de combustíveis tenha acordado a colocação dos produtos nos depósitos do entreposto fiscal de outros operadores económicos, para serem expedidos a partir daí, cabendo, neste caso, a estes operadores económicos submeter a DIC relativa às introduções no consumo, e, assim, assumir perante a AT a posição de sujeito passivo de ISP / CSR – caso em que os fornecedores dos produtos não coincidiriam sequer, como no caso passaram a não coincidir a partir de certa data, com o sujeito passivo que introduziu os produtos no consumo (os produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerente).

Torna-se, assim, impraticável estabelecer uma relação biunívoca entre DIC e transacções a jusante: o circuito económico envolve uma multiplicidade de destinos e de clientes para os produtos após a introdução no consumo, sendo virtualmente impossível, sem uma “repercussão formalizada”, acompanhar todos os passos e transacções que vão da introdução no consumo até ao consumo final – sendo raro, e não podendo presumir-se, que uma única liquidação de ISP e CSR seja referente a uma única transacção, aquela que eventualmente teria tido lugar entre o sujeito passivo dos tributos e um seu único cliente. Sendo normal o oposto, ou seja, que haja uma multiplicidade de transacções a jusante da introdução no consumo – sendo, portanto, que uma factura que documente uma qualquer dessas múltiplas transacções não terá necessária e inequivocamente uma relação com uma única DIC, correspondente à liquidação praticada por uma única alfândega, ou até com os produtos introduzidos no consumo por uma única fornecedora de combustíveis.

Essa a razão, aliás, pela qual se verificou o incumprimento, na facturação exibida pela Requerente, do estabelecido na al. b) do nº 1 do art 11º da Lei nº 5/2019, de 11 de Novembro, e na al. a) do nº 2 do art. 9º do Regulamento Relativo ao Regime de Cumprimento do Dever de Informação do Comercializador de Combustíveis Derivados do Petróleo e de GPL ao Consumidor, da ERSE, publicado no Diário da República, II Série, de 20/2/2020 – a impossibilitar definitivamente qualquer prova formalizada, e minimamente rigorosa, através da facturação aos consumidores de combustíveis, de uma eventual repercussão económica da CSR.).

Como concluímos no final das considerações prévias relativas à detecção de uma contradição no pedido, verifica-se, manifestamente, uma margem de ininteligibilidade na indicação do pedido.

Quanto à margem de ininteligibilidade “stricto sensu” sobre o objecto – que se reporta ao facto de ficarmos sem saber se o que se pretende é a anulação de liquidações, se a de repercussões indiciadoras de liquidações – vimos que ela poderia ser eventualmente sanada nos termos do art. 186º, 3 do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT), na medida em que a Requerida foi respondendo às questões suscitadas sem se deixar enredar nesse impasse relativo à definição do objecto imediato da acção, apenas realçando as insuficiências probatórias emergentes de tal indefinição de objecto.

Mesmo assim, não se negará o princípio de que:

a petição inicial de impugnação que não identifica o acto tributário impugnado, que não formula a pretensão concreta por referência àquele e que não indica os factos concretos que justificariam a adopção da providência judiciária requerida é inepta” (Acórdão do TCAS de 30-06-2022, Proc. nº 138/17.5BELRS).

Não tendo legitimidade para impugnar directamente a liquidação – porque, muito simplesmente, não foi parte nela, e nem sequer a consegue identificar – a Requerente tenta alcançar o efeito equivalente apoiando-se numa presunção de repercussão, para encontrar na repercussão o acto de que ela se julga parte legítima.

E fá-lo por implicitamente reconhecer que é impossível anular, ainda que parcialmente, actos de liquidação não-identificados – apegando-se, pois, à facturação, que, no seu entendimento quanto à natureza necessária da repercussão, a Requerente julga ser suficiente para identificar este outro acto tributário inválido.

Na verdade, esta contradição é fatal para o prosseguimento da acção, comprometendo irremediavelmente a sua finalidade, porque este tribunal pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são actos tributários, mas não pode pronunciar-se sobre a invalidade que alegadamente inquinaria fenómenos de repercussão económica, que não são actos tributários: pelo que o pedido poderia ser apreciado por este tribunal, mas não com uma tal causa de pedir.

A causa de pedir, além de existir e dever ser inteligível, deve estar em conformidade com o pedido, formando, com a qualificação jurídica, as premissas que constituem o corolário da pretensão formulada[4].

A contradição entre pedido e causa de pedir bastaria para tornar procedente a excepção de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186º, 2, b) do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Mas há mais do que simples contradição entre pedido e causa de pedir: ocorre uma ininteligibilidade em sentido amplo.

Por causa do entendimento que erradamente perfilhou sobre a natureza da repercussão da CSR, a Requerente não trouxe para os autos a documentação que, ao menos, pudesse comprovar a liquidação conjunta de ISP e de CSR pelos verdadeiros sujeitos passivos, nomeadamente as Declarações de Introdução no Consumo (DIC, art. 10º do CIEC), ou o Documento Administrativo Único / Declaração Aduaneira de Importação (DAU / DAI), de forma a, subsequentemente, permitir imputar, a esses valores totais da introdução no consumo, a parte de combustível vendida a ela, Requerente – antes mesmo de qualquer prova, igualmente necessária, relativa ao quid e ao quantum da repercussão económica e aos nexos entre liquidação e repercussão.

Na ausência desses elementos mínimos, como fazer, sequer, a prova de liquidação à qual o próprio direito da União obriga, removendo presunções que pudessem prejudicar a legitimidade activa dos sujeitos passivos – em eventual benefício de uma legitimidade sucedânea de “repercutidos”?

Estamos, assim, perante um caso de ininteligibilidade “lato sensu” – uma insusceptibilidade de identificar, com o rigor mínimo atendível, o objecto do processo: o acto ou actos tributários objecto do pedido, o acto ou actos jurídicos impugnados.

Atendamos, especificamente, às implicações da ausência de “repercussão formalizada”, à qual já aludimos, lembrando que, quanto à identificação e comprovação dos actos de liquidação, na CSR, imposto monofásico, não se passavam as coisas do mesmo modo que sucede no IVA, imposto plurifásico.

No IVA, os actos de repercussão do imposto no preço cobrado ao adquirente ocorrem anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, determinando a quantificação e a determinação temporal precisas – criando uma correspondência exacta entre o acto de repercussão e a liquidação de IVA.

Mas, no caso da CSR, e não obstante poder admitir-se a existência de um montante não-quantificado de repercussão económica, os actos de repercussão não só não estavam formalmente ligados ao acto de liquidação, como nem sequer podiam está-lo, dada a própria mecânica do imposto. 

Enquanto no IVA o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços (sendo essa transacção que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto), no caso da CSR era a introdução no consumo que fazia nascer, num momento único, a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto) – pelo que o facto gerador da CSR ocorria sem qualquer conexão com as transacções em que essa mesma CSR pudesse vir a ser, ou não, total ou parcialmente, repercutida. 

Na CSR, era possível a um sujeito passivo entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, e não vender qualquer combustível nesse mesmo período – tal como lhe era possível vender, num determinado período, combustível introduzido no consumo, e sujeito a ISP, CSR e outros, em períodos anteriores àquele em que vendia.

Mais amplamente, e ao contrário do que sucede com o Imposto de Selo ou com o IVA, em sede de IEC não é possível a identificação dos actos de liquidação, sendo que as quantidades de combustível vendidas não têm por base um acto de liquidação específico, não constando das facturas um valor discriminado do valor dos IEC.

E é por isso que o imposto monofásico recai sobre os sujeitos passivos, e não impacta formalmente nas vendas subsequentes, que podem envolver uma extensa multiplicidade de intermediários e consumidores finais – e essa a razão pela qual todos esses participantes subsequentes no circuito de distribuição de combustíveis são excluídos da legitimidade para pedir reembolsos, nos termos dos arts. 15.º e 16.º do CIEC.

Ou seja, na ausência de uma “repercussão formalizada”, ao estilo do IVA, não seria, nem é, possível, nem à Requerente, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as facturas dadas como prova. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efectuar uma tal correspondência entre as facturas emitidas e a CSR. Mas tal correspondência não foi realizada; e decerto não o foi com as facturas entregues, as quais nem esboçam (nem podiam) uma tentativa de identificação – seja das liquidações, seja do nexo, em cada período ou em cada bloco de transacções, entre liquidações e repercussões.

Como, em suma, na ausência de identificação bastante dos únicos actos tributários relevantes – as liquidações originais das quais emerge tudo o resto, a própria condição dos “repercutentes”, e a posição dos “repercutidos” –, satisfazer o pedido?

A deficiência na formulação da causa de pedir, e na sua articulação com o pedido, verifica-se quando falte totalmente a indicação dos factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa (no caso, a invalidade de um imposto que a Requerente considera ter suportado por repercussão).

E é isso que determina a nulidade do processo.

E não se diga que a Requerente fez referência às liquidações de CSR da melhor forma que podia: pelo contrário, desvalorizou-as, entendendo-as presumidas, e não carecidas de prova sua, por força de um regime legal que supôs ser o vigente (regime que, refira-se, também não dispensaria a prova mínima que aqui faltou – porque a presunção de que houve repercussão não poderia abarcar, obviamente, a presunção de que houve liquidação, tendo de provar-se que houve liquidação, e qual foi a liquidação).

Não cabendo a este tribunal emitir juízos de equidade (art. 2º, 2 do RJAT), não terão aqui cabimento considerações sobre a desculpabilidade de um tal erro de direito, ou se um tal erro pode, ou não, aproveitar a quem o cometeu.

A procedência da excepção de ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo (art. 186º, 1 do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Trata-se de uma nulidade insanável (art. 98º, 1, a) do CPPT), e de uma excepção dilatória (art. 577º, b) do CPC), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância – não obstando, portanto, a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto (arts. 278º, 1, b) e 2, 279º e 576º, 2 do CPC).

Mas obstando, de imediato, ao conhecimento das demais excepções, nada podendo inferir-se, da sua não-consideração por prejudicialidade, quanto à procedência ou improcedência de cada uma delas para efeitos de absolvição da instância ou do pedido.

 

V.D – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

 

VI. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Declarar nulo o processo, por ineptidão da petição inicial;

b)    Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira;

c)     Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo. 

 

VII. Valor do processo

 

Por ser o valor indicado no Pedido de Pronúncia pela Requerente (salvo um lapso inicial), e não ter sido contestado pela Requerida, tendo-se constituído o presente tribunal com base nessa indicação de valor, e tendo decorrido o processo no mesmo pressuposto, fixa-se o valor do processo em € 100.262,65 (cem mil, duzentos e sessenta e dois euros e sessenta e cinco cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 2 de Julho de 2025

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

António Manuel Melo Gonçalves

(Vencido nos termos da declaração anexa)

 

Jesuíno Alcântara Martins

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Se bem que, como pronúncia parcial emitida ao abrigo do artigo 22.º, n.º 1 do RJAT, concorde com o sentido decisório, voto vencido, por entender que a CSR escapa à competência da jurisdição arbitral, seja a mesma entendida como contribuição, como o legislador a denominou, como imposto, como a maioria da jurisprudência e esta própria decisão a considera, ou uma outra espécie tributária, sendo as decisões tomadas no respetivo âmbito pelos tribunais arbitrais suscetíveis de ficar afetadas pelo vício de pronúncia indevida.

2. O processo legislativo revela que entre o texto da autorização legislativa dada pela Assembleia da República através do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de 28.04.2010, e o texto da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.2011, (portaria de vinculação) houve uma sucessiva redução do alcance da arbitragem tributária, facto que o Prof. Doutor Sérgio Vasques, que à época exercia as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, explicou num artigo publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD. 

3. De uma autorização legislativa que previa a possibilidade de incluir a generalidade dos litígios relativos à liquidação de tributos, o legislador veio circunscrever a vinculação da administração tributária à apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT  e, dentro dos impostos cuja administração lhes está cometida, ainda criou uma restrição dentro da restrição, excluindo da arbitragem o conhecimento de certas pretensões relacionadas com a tributação por ela organicamente assegurada. 

4. A conjugação do artigo 2, º do RJAT com o artigo 4.º não deve prejudicar  os exatos termos de aceitação da portaria, a qual se limita a fixar os pressupostos de adesão da AT à vinculação, tendo o legislador usado esta técnica legislativa com o único propósito de, face a um mecanismo novo de resolução de conflitos tributários, por um lado, poder, de uma forma mais célere e expedita, efetuar alguns ajustamentos que se viessem a revelar necessários, e, por outro, consoante os resultados, ficar habilitado, a gradualmente, alargar a arbitragem a outros domínios da tributação. 

5. Quando o artigo 2.º da portaria de vinculação refere que os serviços e organismos (de administração de impostos), se vinculam à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida mencionadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, tal referência só faz sentido à luz da Lei Orgânica da AT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, a qual estabelece as missões e o quadro geral de atuação dos diversos serviços técnico-normativos, com a tipicidade e a especificação próprias da administração de cada tributo. Doutro modo, se quisesse regular de forma extensiva a intervenção arbitral, bastava ter feito simplesmente uma referência aos organismos, (a DGCI e a DGAIEC), os quais, por natureza, são estruturados por serviços (técnico normativos, serviços de finanças e alfândegas), não havendo qualquer justificação para que o legislador no n.º 1, do artigo 3.º da portaria de vinculação, tenha insistido na mesma formulação da vinculação dos «serviços e organismos».

6. No âmbito dos quadros gerais de competência dos serviços técnico normativos da AT, decorrentes da publicação da portaria n.º 320-A/2011, de 30 de dezembro, e sucessivas alterações, não se vislumbra a competência de qualquer serviço para relativamente à CSR desenvolver as atribuições comummente atribuídas aos demais serviços da Requerida que consubstanciam um poder de administração típico da generalidade dos impostos por ela administrados. 

7. Por isso, a nosso ver, a Requerida apresenta-se «stricto sensu» como uma mera prestadora de serviços de cobrança, pela qual é remunerada em função de uma percentagem de 2% do produto da CSR, cobrada a título de encargos de liquidação e cobrança, como é previsto no artigo 5.º, n.º 2 da Lei 55/2007, situação semelhante a outras cobranças, caso dos direitos aduaneiros de importação e conexos, receita da União Europeia, os quais se viram expressamente excluídos do regime arbitral,  (uma percentagem dos recursos próprios da União Europeia permanece na AT para a compensar dos custos administrativos da cobrança), ou à cobrança da contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos para o Serviço Nacional de Saúde (3% do produto da respetiva cobrança), da contribuição especial para a conservação dos recursos florestais (até 15% da receita) ou da Contribuição extraordinária sobre o setor energético (3% da receita, conforme n.º 5 do artigo 11.º do regime) 

8. Com a CSR está em causa o cumprimento de obrigações contratuais do Estado para com entidades terceiras, igualmente pertencentes à esfera pública, no caso a Infraestruturas de Portugal. I.P. 

O Ministério Público, enquanto defensor da legalidade e da promoção do direito público,  conforme o artigo 14.º, n.º 2 do CPPT, deve ser ouvido nos processos judiciais antes de ser proferida a decisão final, assim como estando em causa direitos do Estado fruídos por entidades autónomas, nos termos do artigo 24.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, as referidas entidades autónomas devem ter a possibilidade de intervir no próprio processo, através de mandatário próprio, situações que a jurisdição arbitral não assegura, diminuindo a efetiva tutela jurisdicional. 

9. No Despacho do Tribunal de Justiça de 7 de fevereiro de 2022 (Processo C-460/21, (Vapo Atlantic), decorre que a CSR é considerada um imposto, que não tem motivação específica em razão da sua estrutura, que não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários («não deixa transparecer, à primeira vista, uma real  vontade de desencorajar a utilização quer dessa rede (de estradas) quer dos principais combustíveis rodoviários, como a gasolina, o gasóleo rodoviário ou o gás de petróleo liquefeito (GPL) automóvel» (ponto 33). 

A CSR ao ser considerado um imposto (não especifico) em razão, entre outras, de não desmotivar os consumos expõe os depositários autorizados à prática de atividades consideradas ambientalmente negativas, se bem que atento o atual desenvolvimento da indústria automóvel seja ainda um mal necessário, e coloca no limbo a sua classificação, pois assume em parte a natureza de imposto, uma vez que é paga obrigatoriamente sem que haja genericamente um retorno individualizado, e em parte a natureza de contribuição, pois pretende penalizar os operadores que pelo exercício de uma certa atividade contribuem para a degradação ambiental, sendo suscetível de se assumir como uma figura híbrida, a meio caminho entre o imposto e a contribuição,  ou um «tertium genius» (conforme Gomes Canotilho/Vital Moreira, em CRP, Anotada, I Volume, página 1095, 4.ª Edição, Coimbra Editora).

 

Em resumo, independentemente de poder ser considerado um imposto, uma contribuição ou um tributo de uma terceira espécie, entendo que os conflitos que se suscitem com a legalidade dos atos de liquidação da CSR não estão abrangidos pela jurisdição arbitral, parecendo antes que entram na esfera de competência dos tribunais tributários, em conformidade com o artigo 49.º, n.º 1, alínea a), i), da Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, que aprovou o ETAF. 

 

 

 

António Manuel Melo Gonçalves

 

 

 



[1] A jurisprudência do STA já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tinha legitimidade para impugnar a respectiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2003, Proc. n.º 0956/03).

[2] “A Contribuição de Serviço Rodoviário e a Legitimidade Processual dos Consumidores Finais”, e “A Contribuição de Serviço Rodoviário: Enquadramento e Desenvolvimentos Recentes”, edições de Agosto de 2022 e de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/ e em

https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-enquadramento-e-desenvolvimentos-recentes-marco-2023/4755/

[3] Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto.

[4] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta & Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I- Parte Geral e Ação Declarativa, 2ª ed., p. 232.