Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1142/2024-T
Data da decisão: 2025-06-27  IVA  
Valor do pedido: € 244.161,17
Tema: IVA. Direito à dedução. Despesas com lugares de estacionamento destinados à actividade normal do sujeito passivo. Princípio da neutralidade fiscal.
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SUMÁRIO:

 

Nas circunstâncias do caso concreto, as despesas suportadas pelo sujeito passivo com os lugares de estacionamento, localizados no local a partir do qual se exerce a actividade profissional, não constituem custos de transporte ou viagem do sujeito passivo e seu pessoal em representação da empresa, não estando assim abrangidas pela exclusão do direito à dedução, previsto no artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Rui Duarte Morais (Presidente), Rita Guerra Alves e Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 02-01-2025, acordam no seguinte:

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., S.A., com o NIF ... e sede social no ..., ..., ...-... ... .

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral

 

Legalidade das autoliquidações de IVA, efectuadas nas Declarações Periódicas de IVA da Requerente, referentes aos períodos mensais de tributação compreendidos entre Outubro de 2021 (inclusivé) e Maio de 2022 (inclusivé);

 

Legalidade da decisão de indeferimento proferida pela Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 12 de Setembro de 2024, no âmbito do processo n.º ...2024..., que indeferiu o Pedido de Revisão Oficiosa apresentado pela Requerente, ao abrigo dos artigos 78.º, da Lei Geral Tributária e 98.º, do Código do IVA.

 

A.4 - Pedido:

 

A Requerente formulou os seguintes pedidos:

 

a) Anulação parcial das autoliquidações de IVA efectuadas pela Requerente nas Declarações Periódicas deste imposto relativas aos períodos mensais de tributação decorridos entre Outubro de 2021 (inclusivé) e Maio de 2022 (inclusivé), no montante total de € 244.161,17 por padecerem de manifesto erro nos pressupostos de facto e de direito;

 

b) Anulação da respectiva decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa porque manifestamente ilegal;

 

c) Condenação da AT à restituição à Requerente do valor do IVA pago em excesso nas supra-referidas Declarações Periódicas de imposto, no montante global de € 244.161,17;

 

d) Condenação da AT no pagamento, à Requerente, dos juros indemnizatórios legalmente devidos, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT.

 

 

A.5 - Fundamentação do pedido:

 

A fundamentação do pedido arbitral apresentado pela Requerente assenta no seguinte:

 

A Requerente contesta a decisão de indeferimento da Autoridade Tributária relativa ao Pedido de Revisão Oficiosa por si apresentado, no qual reclamou o direito à dedução do IVA suportado com a aquisição de serviços de cedência de lugares de estacionamento à B..., respeitantes aos períodos de tributação compreendidos entre Outubro de 2021 e Maio de 2022, no montante global de € 244.161,17.

 

A referida decisão da Autoridade Tributária sustentou que tais despesas se encontram abrangidas pela exclusão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA, que exclui do direito à dedução as "despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens".

 

A Requerente contrapõe que as concretas despesas com estacionamento em causa não constituem "despesas de transportes e viagens", argumentando que:

 

a) O conceito de "transporte" refere-se a uma acção dinâmica de deslocação, enquanto o estacionamento constitui uma situação estática de imobilização da viatura;

 

b) A cedência de lugares de estacionamento não configura uma despesa referente a deslocações, mas sim ao mero espaço onde as viaturas permanecem paradas;

 

c) As exclusões ao direito à dedução devem ser interpretadas restritivamente, conforme jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia.

 

A Requerente refere que os lugares de estacionamento em causa se destinam exclusivamente aos membros das tripulações das suas aeronaves, sendo necessários para que estes possam estacionar as viaturas durante os períodos de voo em que exercem as suas funções profissionais.

Invoca que tais despesas constituem custos gerais da actividade económica da Requerente, estabelecendo um nexo directo e imediato com o conjunto das suas operações tributadas ou isentas com direito à dedução, nos termos da jurisprudência comunitária.

 

A Requerente invoca ainda a violação do princípio da neutralidade do IVA, que visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do imposto suportado no quadro das suas actividades económicas, garantindo que o mesmo não constitua um custo para os operadores económicos intermédios.

 

A Requerente alega por fim que o procedimento de não dedução adoptado resultou de erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária, decorrente da aplicação de instruções e entendimentos por esta emanados, nomeadamente através de informações vinculativas e de uma acção inspectiva realizada em 2009, assim fundando o pedido de juros indemnizatórios.

 

Em síntese, a argumentação da Requerente centra-se na demonstração de que as despesas de estacionamento não se subsumem em qualquer das exclusões taxativamente previstas no artigo 21.º do Código do IVA, constituindo antes custos gerais indispensáveis ao exercício da sua actividade principal, pelo que o imposto correspondente deve ser integralmente dedutível nos termos gerais dos artigos 19.º e 20.º do mesmo diploma.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

A Requerida sustenta o seguinte:

 

O direito à dedução previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA exige a demonstração de um nexo de causalidade entre os bens ou serviços adquiridos e as operações realizadas a jusante que confiram tal direito, citando jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente o caso BLP Group, para sustentar que deve existir uma "relação directa e imediata" entre as operações a montante e a jusante.

 

A compatibilidade das exclusões previstas no artigo 21.º do Código do IVA com o direito da União Europeia, é plena, face à cláusula de standstill consagrada no artigo 176.º da Directiva IVA.

 

As despesas de estacionamento em causa nos autos subsumem-se na exclusão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA, relativa a "despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal".

 

Para sustentar tal entendimento, a Requerida, invoca:


a) Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que interpreta de forma ampla o conceito de "despesas de transporte", não as limitando a despesas de representação;


b) O facto de o estacionamento se destinar exclusivamente a permitir a deslocação dos trabalhadores entre a sua residência e o local de trabalho;


c) O Regulamento da B...  que estabelece que o cartão de avença do utente staff apenas pode ser utilizado durante a prestação de trabalho.

 

A Requerida suscita ainda a insuficiência dos elementos probatórios apresentados pela Requerente, argumentando que:

 

a) Foram juntos apenas exemplos de facturas, não a totalidade da documentação comprovativa do montante reclamado;

 

b) Não foram apresentados extractos contabilísticos nem elementos que documentem os valores de imposto inscritos nas declarações periódicas;

 

c) Nos termos do artigo 74.º da LGT, incumbe ao sujeito passivo o ónus de demonstrar os factos constitutivos do direito à dedução que invoca.

Por fim, a Requerida sustenta que, ainda que se admitisse o direito à dedução, não haveria lugar a juros indemnizatórios, porquanto o alegado erro na autoliquidação do IVA não é imputável aos serviços.

 

Em síntese, a Requerida pugna pela manutenção dos actos tributários contestados, defendendo que as despesas de estacionamento destinadas aos membros das tripulações se encontram abrangidas pela exclusão legal do direito à dedução e que a Requerente não logrou fazer prova suficiente dos valores que reclama, concluindo que deve a acção ser julgada totalmente improcedente e a Requerida absolvida de todos os pedidos.

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.


As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo nenhuma delas manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 02-01-2025.

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente, atenta a conformação do objeto do processo e de acordo com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, ambos do RJAMT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas e o pedido foi tempestivamente apresentado.

Embora notificada expressamente, por duas vezes, por este Tribunal, a Requerida não juntou aos autos o Processo Administrativo, não tendo sequer apresentado qualquer justificação para a omissão.

 

O Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAMT, e a produção de alegações.

 

O processo não enferma de nulidades, nem existem exceções de que cumpra conhecer.

 

 

C - FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Matéria de facto - Factos provados:

 

Com base na análise dos elementos probatórios constantes dos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

1. A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objecto principal o transporte aéreo regular de passageiros, encontrando-se registada como sujeito passivo de IVA desde 1 de Janeiro de 1986, no regime normal com periodicidade mensal - Artigo 2.º da Resposta onde a Requerida admite expressamente este facto; informação constante dos sistemas da AT.

 

2. A Requerente exerce a actividade de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, operando voos regulares nacionais e internacionais, o que implica a necessidade de dispor de tripulações (pilotos, co-pilotos, comissários de bordo e outro pessoal navegante) que asseguram a operação das aeronaves - Artigos 47.º e 48.º da petição inicial, não contestados; natureza notória da actividade da Requerente enquanto companhia aérea nacional.

 

3. No âmbito da sua actividade operacional, a Requerente celebrou com a B..., S.A. um contrato para a cedência, a título oneroso, de lugares de estacionamento localizados no ..., em ..., destinados exclusivamente aos membros das tripulações das suas aeronaves - Artigo 49.º da petição inicial; Documento 7 (Regulamento de Funcionamento e Utilização dos Parques de Estacionamento); facto parcialmente admitido pela Requerida no artigo 52.º da Resposta ao reconhecer a existência da cedência de lugares.

 

4. Os lugares de estacionamento em causa destinam-se a permitir que os membros das tripulações (comandantes, co-pilotos, comissários de bordo e demais tripulantes) possam estacionar as suas viaturas particulares durante os períodos em que se encontram a exercer funções profissionais a bordo das aeronaves, períodos esses que podem variar entre algumas horas e vários dias, consoante o tipo de voo realizado - Artigos 50.º e 108.º da petição inicial; artigo 15.º, n.º 8 do Regulamento (Documento 7) que estabelece que "o cartão avença do utente staff apenas pode ser utilizado durante a prestação de trabalho pelo utente, de acordo com o respetivo horário de trabalho"; facto admitido pela Requerida no artigo 52.º da Resposta.

 

5. A utilização dos lugares de estacionamento está regulamentada pelo "Regulamento de Funcionamento e Utilização dos Parques de Estacionamento e das Zonas Dedicadas à Largada e Tomada de Utentes nos Aeroportos da B...", o qual define as condições de acesso e utilização, incluindo a categoria específica de "utente staff" aplicável aos trabalhadores das empresas que operam nos aeroportos - Documento 7 junto aos autos; referências constantes dos artigos de ambas as partes.

 

6. A B... factura mensalmente à Requerente os valores devidos pela cedência dos lugares de estacionamento, liquidando IVA à taxa normal de 23% sobre o valor dos serviços prestados -Artigos 51.º e 52.º da petição inicial; Documento 8 (exemplos de facturas emitidas pela B...); facto não contestado pela Requerida.

 

7. No período compreendido entre Outubro de 2021 e Maio de 2022, o IVA liquidado pela B..., à Requerente, relativo aos serviços de cedência de lugares de estacionamento, totalizou € 244.161,17, distribuído mensalmente conforme quadro constante do artigo 54.º da petição inicial - Quadro discriminativo constante do artigo 54.º da petição inicial; Documento 8 (exemplos de facturas); montantes não especificamente impugnados pela Requerida, que apenas questiona a suficiência da documentação no artigo 61.º da Resposta.

8. A Requerente não exerceu o direito à dedução do IVA constante das referidas facturas, por considerar que as despesas em causa se encontravam abrangidas pela exclusão prevista no artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA - Artigos 53.º, 57.º e 59.º da petição inicial; natureza do pedido de revisão oficiosa que visa precisamente a dedução deste IVA; facto admitido pela Requerida no artigo 3.º da Resposta.

 

9. A decisão da Requerente de não deduzir o IVA relativo a estas despesas baseou-se no entendimento reiteradamente manifestado pela AT de que as mesmas se encontram excluídas do direito à dedução, entendimento esse que foi especificamente aplicado à Requerente em anteriores acções inspectivas e decisões administrativas - Ficha Doutrinária de 28 de Janeiro de 2011, informação vinculativa n.º 1486 e na Ficha Doutrinária de 18 de Novembro de 2019, informação vinculativa n.º 16022 - Artigos 33.º a 39.º da petição inicial; Documento 5 (Relatório de Inspecção Tributária de 2009); Documento 6 (decisões de indeferimento de anteriores reclamações e recursos); Informações Vinculativas n.ºs 1486 e 16022 citadas nos autos.

 

11. Na sequência de uma acção inspectiva e das correcções efectuadas, a Requerente alterou o seu procedimento contabilístico e fiscal, passando a não deduzir o IVA suportado com despesas de cedência de lugares de estacionamento - Artigo 36.º da petição inicial; deduz-se logicamente do facto de a Requerente ter passado a não deduzir este IVA após a inspecção.

 

12. A posição da AT quanto à não dedutibilidade do IVA nestas despesas tem sido consistentemente mantida, como demonstram as decisões de indeferimento da Revisão Oficiosa n.º ...2021... (relativa aos períodos de Outubro de 2017 a Outubro de 2019), do Recurso Hierárquico n.º ...2022... e da Reclamação Graciosa n.º ...2021... (relativa ao período de Outubro de 2020) - Documento 6 (decisões de indeferimento); artigos 37.º a 39.º da petição inicial.

 

13. Em 12 de Junho de 2024, a Requerente apresentou novo Pedido de Revisão Oficiosa (processo n.º ...2024...), contestando a legalidade das autoliquidações de IVA dos períodos de Outubro de 2021 a Maio de 2022, por considerar que tinha direito à dedução do IVA suportado com os serviços de cedência de lugares de estacionamento - Documento 4 (Pedido de Revisão Oficiosa); data confirmada na página 3 da decisão de indeferimento (Documento 1); facto confirmado pela Requerida.

 

14. No referido Pedido de Revisão Oficiosa, a Requerente invocou, entre outros argumentos, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul de 4 de Junho de 2015 (processo n.º 06391/12) e sustentou que as despesas de estacionamento não constituem despesas de transporte, mas sim despesas operacionais necessárias ao exercício da sua actividade - Documento 4 (Pedido de Revisão Oficiosa, artigos 89.º e 90.º); referências constantes da decisão de indeferimento no procedimento de revisão oficiosa.

 

15. Por decisão datada de 12 de Setembro de 2024, a Unidade dos Grandes Contribuintes da AT indeferiu o Pedido de Revisão Oficiosa, mantendo o entendimento de que as despesas em causa estão excluídas do direito à dedução, por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA - Documento 1 (decisão de indeferimento no procedimento de revisão oficiosa); artigo 62.º da petição inicial.

 

16. Na fundamentação da decisão de indeferimento, a AT considerou que "referindo a C... que o contrato celebrado com a B... se destina à cedência de lugares de estacionamento destinados, em exclusivo, a ser utilizados pelos seus colaboradores (ex: comandante, copiloto, comissario e demais tripulantes das aeronaves), é manifesto que as mesmas estão excluídas do direito à dedução, porquanto de acordo com a referida norma [alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA], as despesas relativas ao uso de viatura própria do sujeito passivo ou do seu pessoal, ainda que em deslocações de e para o local de trabalho, incluindo o respetivo estacionamento, não conferem direito à dedução do imposto nelas contido" - Documento 1, ponto 113 na página 15 da decisão de indeferimento no procedimento de revisão oficiosa.

 

17. Os membros das tripulações da Requerente utilizam as suas viaturas próprias para se deslocarem entre as respectivas residências e o Aeroporto ..., onde iniciam e terminam o seu serviço de voo, necessitando de local seguro para estacionar durante os períodos de ausência - Artigo 108.º da petição inicial; facto admitido pela Requerida no artigo 52.º da Resposta; decorre logicamente da natureza da actividade.

 

18. A natureza específica da actividade de transporte aéreo implica horários de trabalho irregulares, incluindo períodos nocturnos e madrugadas, bem como ausências que podem prolongar-se por vários dias consecutivos, consoante o tipo de voo realizado (curto, médio ou longo curso) - Natureza notória da actividade de transporte aéreo; factos que decorrem logicamente do tipo de operação.

 

19. Durante o período em que os tripulantes se encontram em serviço de voo, as suas viaturas necessitam de permanecer estacionadas de forma segura, não sendo viável a utilização de estacionamento de curta duração ou a deslocação das viaturas durante esse período - Decorre logicamente dos factos anteriores e da própria natureza das funções desempenhadas.

 

20. O Regulamento da B... estabelece que o "utente staff" é a "pessoa singular com vínculo laboral ou análogo a qualquer empresa que preste serviços nos aeroportos e que aí tenha o respetivo local de trabalho", podendo estes utentes subscrever avenças específicas para estacionamento. O acesso ao estacionamento é controlado pela respectiva entidade gestora e faz-se mediante o denominado ‘cartão de avença staff’, o qual só pode ser usado durante o horário de trabalho - Artigo 1.º, n.º 1, alínea n), e artigo 15.º do Regulamento constante do Documento 7.

 

21. A notificação da decisão final que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa contém a data de 12-09-2024 - Documento 1.

 

22. A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 18-10-2024 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

23. Por despachos de 05-01-2025 e de 10-03-2025, foi a Requerida notificada para proceder à junção do processo administrativo. A Requerida não cumpriu com o determinado nas referidas notificações, nem apresentou qualquer justificação para a omissão - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

4.3. Factos Não Provados:

 

Com relevância para a decisão da causa, inexistem factos que devam considerar-se não provados.

 

4.4. Motivação da Decisão de Facto:

 

A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados formou-se com base na análise crítica dos elementos probatórios constantes dos autos, designadamente:

 

Os documentos juntos pelas partes, que não foram impugnados quanto à sua autenticidade ou veracidade;

 

As admissões expressas ou tácitas das partes nos seus articulados;

 

Os factos notórios relacionados com a actividade da Requerente;

 

As ilações lógicas retiradas dos factos provados;

 

A consistência e a coerência internas dos elementos probatórios.

 

Relativamente aos montantes de IVA em causa nos autos, embora a Requerida tenha suscitado a insuficiência documental, não contestou especificamente os valores indicados nem apresentou elementos que os contradigam. Os exemplos de facturas juntos pela Requerente como Documento 8, conjugados com o quadro discriminativo apresentado, constituem elementos suficientes para formar a convicção do Tribunal quanto aos montantes, tanto mais que correspondem aos valores que serviram de base ao Pedido de Revisão Oficiosa e à decisão de indeferimento deste, sem que, nesse procedimento, hajam sido questionados.

Relativamente à matéria de facto, importa ainda salientar que o Tribunal não tem de pronunciar-se sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAMT, vigorando, quanto à prova, o princípio da livre apreciação, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAMT).

 

 C.4 - Matéria de direito:

 

C.4.1 - Enquadramento jurídico-tributário do IVA e do direito à dedução:

 

Princípios Fundamentais do Sistema Comum do IVA.

 

O IVA constitui um imposto geral sobre o consumo, harmonizado a nível da União Europeia através da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (doravante "Directiva IVA"), que codificou e substituiu a anterior Sexta Directiva (Directiva 77/388/CEE).

 

O IVA caracteriza-se por ser um imposto plurifásico, incidindo sobre todas as fases do circuito económico, mas não cumulativo, graças ao mecanismo da dedução.

 

Como tem sublinhado o Tribunal de Justiça da União Europeia, o sistema comum do IVA assenta em princípios fundamentais que garantem a sua neutralidade e eficácia.

 

O princípio da neutralidade fiscal constitui a pedra angular do sistema comum do IVA. Este princípio comporta duas vertentes essenciais:

 

a) Neutralidade económica: O IVA não deve influenciar as decisões económicas dos operadores, devendo ser neutro quanto à forma de organização empresarial, aos métodos de produção e distribuição e às escolhas de consumo.

b) Neutralidade concorrencial: Operadores económicos que efectuem operações similares não devem ser tratados de forma diferente no que respeita à cobrança e dedução do IVA.

 

O mecanismo da dedução como elemento essencial do sistema do IVA.

 

O direito à dedução constitui elemento essencial e indissociável do mecanismo do IVA, sendo através dele que se garante a neutralidade do imposto para os operadores económicos.

 

Como tem reiteradamente afirmado o TJUE, desde o Acórdão Comissão/França, processo C-50/87:[1]

 

O regime das deduções tem por objectivo libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas actividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas actividades, na condição de as referidas actividades estarem, em princípio, elas próprias, sujeitas ao IVA.

 

O artigo 1.º, n.º 2, segundo segmento, da Directiva IVA estabelece o princípio fundamental:

 

Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

 

Esta formulação evidencia que a dedução não é uma mera faculdade ou benefício concedido ao sujeito passivo, mas sim um elemento estruturante do próprio imposto, sem o qual o IVA perderia a sua natureza de imposto sobre o consumo para se transformar num imposto cumulativo sobre o volume de negócios, em cascata, contrário aos princípios que presidiram à sua criação.

 

O âmbito do direito à dedução na Directiva IVA.

 

O artigo 167.º da Directiva IVA estabelece o nascimento do direito à dedução:

 

O direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.

 

Por sua vez, o artigo 168.º da referida Directiva, define o âmbito material deste direito:

 

Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes: 

 

a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo.

[…]

 

Esta disposição consagra o princípio de que é dedutível todo o IVA suportado em bens e serviços utilizados para os fins das operações tributadas do sujeito passivo.

 

A jurisprudência do TJUE tem interpretado esta norma de forma ampla, em consonância com o princípio da neutralidade.

 

Como se entendeu no Acórdão do TJUE, Morgan Stanley & Co International plc/Administração fiscal francesa, processo C‑165/17:[2]

27. […] importa, em primeiro lugar, recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito dos sujeitos passivos a deduzir do IVA de que são devedores o IVA devido ou pago sobre os bens adquiridos e os serviços que lhes foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União. Este direito a dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Esse direito é imediatamente exercido em relação à totalidade dos impostos que tenham onerado as operações efetuadas a montante (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.os 37, 38 e jurisprudência aí referida).

 

28. O regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 - Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.o 39 e jurisprudência aí referida).

 

29.  A este respeito, resulta do artigo 17.o, n.o 2, alínea a), da Sexta Diretiva e do artigo 168.o, alínea a), da Diretiva 2006/112 que o sujeito passivo tem direito, no Estado‑Membro em que efetua as próprias operações tributáveis, a deduzir do montante do imposto de que é devedor o IVA devido ou pago nesse Estado‑Membro em relação aos bens e serviços, na medida em que esses bens e serviços tenham sido utilizados pelo sujeito passivo a jusante para os efeitos dessas operações (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.o 40 e jurisprudência aí referida).

 

30. Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que, para o IVA ser dedutível, as operações efetuadas a montante devem apresentar uma relação direta e imediata com operações a jusante com direito a dedução. Com efeito, o direito a dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução (Acórdão de 16 de julho de 2015, Larentia + Minerva e Marenave Schiffahrt, C‑108/14 e C‑109/14, EU:C:2015:496, n.o 23 e jurisprudência aí referida).

 

Direito Nacional.

 

O direito à dedução do IVA suportado a montante constitui um princípio basilar do sistema do imposto sobre o valor acrescentado, achando-se consagrado nos artigos 19.º e 20.º do CIVA (e, correspondentemente, nos artigos 167.º e 168.º da Directiva IVA). 

 

Em regra, os sujeitos passivos têm o direito de deduzir integralmente o IVA suportado em bens ou serviços adquiridos destinados à realização de operações tributadas, de forma que o imposto incidente sobre inputs não constitua um encargo efectivo da actividade económica. 

 

Este mecanismo visa assegurar o princípio da neutralidade fiscal, libertando completamente o operador económico do ónus do IVA incorrido no âmbito das suas actividades tributadas.

 

Todavia, a própria lei estabelece limites ou exclusões ao exercício do direito à dedução, designadamente no artigo 21.º, do Código do IVA, que elenca certas categorias de despesas em que o imposto suportado não é dedutível, por se presumir que os correspondentes gastos não têm um carácter estritamente empresarial. 

 

Entre essas exclusões legais - cujas introdução, âmbito e validade serão analisados adiante -, interessa particularmente aos presentes autos a prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA.

 

Esta alínea exclui do direito à dedução o IVA “contido nas despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens”.

 

No caso vertente, importa desde já delimitar o âmbito de aplicação literal desta norma de exclusão: estão abrangidas as despesas com transportes e deslocações profissionais realizadas pelo sujeito passivo ou pelos seus trabalhadores/colaboradores, o que tipicamente cobre os custos de viagens de serviço, deslocações em trabalho (incluindo eventuais encargos com transportes, portagens, combustíveis, etc.), bem como outras despesas relacionadas com essas deslocações de negócios.

 

O legislador estabeleceu aqui uma presunção de não profissionalidade ou não empresarialidade estrita para esse tipo de gastos, dada a sua natureza frequentemente mista ou susceptível de proporcionar um benefício pessoal aos participantes.

 

Por outras palavras, assume-se que as despesas com viagens de negócios e transportes do pessoal podem encobrir consumos de carácter privado ou de representação, não estando directamente e exclusivamente ao serviço da actividade produtiva da empresa. Daí que o IVA nelas suportado seja, por defeito, considerado não dedutível.

 

No entanto, é crucial ter presente que as exclusões do artigo 21.º do CIVA devem ser interpretadas restritivamente, por constituírem derrogações ao princípio geral do direito à dedução.

 

Como tem sido afirmado, não é pacífico determinar se todas as limitações consagradas no direito interno preenchem os exactos pressupostos admitidos pelo direito comunitário (cláusula de standstill).

 

Em qualquer caso, o intérprete nacional deve aplicar tais normas de forma estrita, não as ampliando além do seu âmbito específico nem delas retirando ilações que levem à denegação do direito à dedução em situações não claramente previstas pelo legislador.

 

A Directiva IVA e a cláusula de standstill.

 

O ordenamento jurídico da União Europeia, através da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (vulgo Directiva IVA), estabelece nos artigos 167.º e seguintes as regras harmonizadas sobre o direito à dedução do IVA. 

 

O artigo 168.º da Directiva consagra que o sujeito passivo tem direito a deduzir o IVA devido ou pago em bens e serviços adquiridos, na medida em que sejam utilizados para as suas operações tributadas. 

 

Não obstante o carácter amplo deste princípio, a própria Directiva prevê que poderão existir exclusões de determinadas despesas: em especial, o artigo 176.º (correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 6 da Sexta Directiva 77/388/CEE) dispõe que, até que o Conselho determine as despesas que não conferem direito a dedução, os Estados-Membros ficam autorizados a manter em vigor as exclusões ao direito à dedução que tivessem estabelecido no seu direito interno antes de 1 de Janeiro de 1979 (ou, no caso de Estados aderentes posteriormente, antes da data da adesão). Esta disposição transitória é conhecida precisamente como “cláusula de standstill” ou de não retrocesso.

 

Em termos práticos, a cláusula de standstill visa evitar que a harmonização fiscal implique a revogação imediata das restrições nacionais pré-existentes em matéria de direito à dedução, até que seja adoptada uma regulamentação comunitária uniforme sobre o tema.

 

Com efeito, o objectivo do artigo 176.º da Directiva IVA foi permitir que cada Estado-Membro mantivesse temporariamente as exclusões ao direito à dedução que já aplicava no seu ordenamento, impedindo, porém, que introduzisse novas exclusões ou que ampliasse o âmbito das existentes após as datas-chave fixadas (1979 ou data de adesão).

 

O TJUE tem interpretado esta cláusula no sentido de que ela não legitima quaisquer ampliações das restrições nacionais além do que vigorava previamente, nem tão-pouco autoriza exclusões que não se enquadrem nas categorias gerais de despesas de carácter não profissional indicadas na própria Directiva (v.g. despesas de luxo, recreio ou representação).

 

No que toca à compatibilidade das exclusões do artigo 21.º do Código do IVA com o direito comunitário, a jurisprudência comunitária reconhece, de um modo geral, que despesas susceptíveis de uso privado ou de carácter de representação podem ser objecto de exclusão do direito à dedução, ao abrigo do artigo 176.º da Directiva, desde que tal exclusão já existisse na ordem jurídica nacional dentro do período protegido pela cláusula de standstill.

 

No caso português, o Código do IVA - em vigor desde 1986 - incluiu desde a origem um elenco de exclusões no direito à dedução (artigo 21.º) em termos essencialmente análogos aos actuais, tendo o Estado Português, à data da adesão (1986) e entrada em vigor plena das directivas do IVA (1989), optado por manter essas limitações.

 

Tais exclusões - que abrangem, entre outras, veículos de passageiros e despesas conexas, despesas de alimentação e alojamento, despesas de diversão ou luxo, e in casu despesas de transporte e viagens de negócios - estão, em princípio, cobertas pela cláusula de standstill, uma vez que revestem natureza similar às despesas identificadas na Directiva como não estritamente profissionais (“despesas sumptuárias, recreativas ou de representação” - cf. artigo 176.º, 1.º parágrafo). 

 

Com efeito, entende o TJUE que a manutenção destas categorias de exclusão pode justificar-se enquanto medida transitória, atendendo a que se trata de despesas que, pela sua natureza, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final dissimulado.

 

No tocante especificamente às despesas de transporte e viagens de negócios, é geralmente aceite que estas configuram uma categoria abrangida pela cláusula de standstill, dado tratar-se de gastos nos quais frequentemente se mistura o interesse da empresa com o interesse particular do viajante (por exemplo, deslocações que proporcionam benefícios pessoais acessórios, ou componentes de lazer). 

 

O TJUE reconheceu explicitamente que os Estados-Membros podem manter a exclusão da dedução de despesas desse tipo, por as mesmas não terem carácter estritamente profissional, desde que não ultrapassem o âmbito previamente definido no direito interno nem contrariem os princípios da Directiva. 

 

Importa sublinhar, todavia, que qualquer exclusão ao direito à dedução constitui uma derrogação ao regime regra e, como tal, deve ser interpretada de forma restritiva. 

 

Assim, ao aplicar a alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA, há que atender à finalidade subjacente permitida pelo direito comunitário - evitar deduções de IVA em despesas de aparente finalidade empresarial, mas passíveis de fruição privada - sem ampliar o seu alcance para além do estritamente necessário a essa finalidade.

Diversos arestos do Tribunal de Justiça enunciam os princípios acima referidos:

 

  • Acórdão Ghent Coal Terminal (Processo C-37/95, de 15.01.1998),[3] onde se reafirmou que o direito à dedução do IVA nas despesas de investimento efectuadas com vista a operações tributadas futuras permanece intacto, mesmo que tais operações não cheguem a concretizar-se, salvo obrigação de ajuste nos termos da Directiva. Este acórdão reforça o carácter objectivo do direito à dedução - baseado na afectação prevista do bem ou serviço à actividade económica tributada - e a ideia de que o não uso efectivo para fins empresariais, por razões alheias à vontade do sujeito passivo, não compromete imediatamente o direito dedutível.

 

  • Acórdão Charles e Charles-Tijmens (Processo C-434/03, de 14.07.2005),[4] no qual o TJUE abordou as regras de afectação de bens ao activo da empresa e a possibilidade de um sujeito passivo optar por incluir totalmente um bem de uso misto na esfera empresarial, deduzindo integralmente o IVA da sua aquisição, mediante posterior tributação das utilizações privadas. Ficou estabelecido que, desde que a legislação nacional assim o preveja, o sujeito passivo pode afectar integralmente um bem (por exemplo, um edifício parcialmente habitacional) à actividade económica, não sendo forçado a uma repartição a priori, devendo, porém, liquidar IVA sobre o uso privado para garantir a neutralidade e evitar vantagens indevidas. Esta jurisprudência releva para a distinção entre afectação total com tributação das utilizações privadas versus afectação proporcional inicial, questão essa a considerar quando se trate de bens ou serviços utilizados tanto para fins empresariais quanto pessoais.

 

  • Acórdão Sveda (Processo C-126/14, de 22.10.2015),[5] onde se decidiu que uma pessoa colectiva que construiu, com custos sujeitos a IVA, uma infra-estrutura (trilho pedagógico) de acesso público gratuito, mas destinada a atrair visitantes para uma loja tributada, mantinha o direito à dedução do IVA dessas despesas. O TJUE entendeu que existia um nexo directo e imediato entre os custos de construção e a actividade económica tributada (vendas na loja), não prejudicado pela gratuidade de parte da utilização da infra-estrutura. Este acórdão evidencia que a dedução não pode ser recusada quando as despesas, mesmo oferecendo utilizações gratuitas, servem objectivamente os fins da actividade tributada do sujeito passivo - reforçando a noção de que o critério essencial é o da afectação ao circuito económico tributado e não a natureza gratuita ou onerosa imediata da operação a jusante.

 

  • Acórdão Super Bock Bebidas (Processo C-837/19, de 09.09.2021),[6] proveniente de reenvio prejudicial de jurisdição portuguesa, no qual se discutiu a dedutibilidade de IVA em despesas suportadas com ofertas e acções de promoção comercial. O TJUE reafirmou, nesse contexto, que apenas se podem excluir do direito à dedução as despesas previstas na Directiva ou abrangidas pela cláusula de standstill, invalidando práticas nacionais que equivalham a criar novas exclusões não autorizadas. Embora inserido noutra temática, este acórdão sublinha a necessidade de conformar o direito interno ao quadro harmonizado, nomeadamente no que toca a restrições ao direito à dedução.

 

  • Por fim, salienta-se o Acórdão Magoora (Processo C-414/07, de 22.12.2008),[7] onde se clarificou que a cláusula de standstill permite manter exclusões nacionais já existentes, mas não justifica a introdução posterior de exclusões mais amplas ou de condições adicionais ao direito à dedução. O TJUE frisou que o propósito da disposição transitória foi dar tempo aos Estados-Membros, e não autorizar retrocessos no grau de neutralidade do imposto. Qualquer interpretação das normas internas de exclusão deve, por conseguinte, respeitar o sentido e o alcance que tinham na ordem interna ao tempo devido, sob pena de violação do direito comunitário.

 

Em conclusão, do prisma do Direito da UE, resulta que o artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA só pode ser aplicado dentro dos limites em que seja compatível com o artigo 176.º da Directiva IVA, i.e., tal como vigorava à data relevante e apenas no seu escopo específico (despesas de transportes e viagens susceptíveis de finalidade extraprofissional).

 

Além disso, a interpretação dessa norma nacional deve ser conforme aos princípios da neutralidade e da proporcionalidade, evitando onerar indevidamente o sujeito passivo quando as despesas em causa estejam objectivamente vinculadas à sua actividade tributada.

 

A Jurisprudência nacional.

 

No âmbito da jurisprudência dimanada dos tribunais tributários nacionais - judiciais e arbitrais -, a questão da dedutibilidade do IVA suportado com despesas de estacionamento similares às dos presentes autos não é inédita.

 

No Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, de 05-11-2020, processo n.º 2500/10.5BELRS,[8] no qual estava em causa uma situação de empresa que arrendara lugares de parqueamento no edifício da sua sede, utilizados por funcionários, clientes e fornecedores, o Tribunal confirmou a sentença de primeira instância que anulara a correcção de IVA efectuada pela AT, sufragando que tais despesas se encontravam “ligadas ao exercício da actividade económica” da empresa e, como tal, o imposto era dedutível, não se lhes aplicando a exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA.

 

Transcreve-se parte da fundamentação expendida pelo tribunal superior, pela sua relevância e clareza:

 

É certo que as despesas referidas no preceito do artigo 21.º do CIVA, constituindo exclusões do direito à dedução e estando sujeitas ao princípio do não retrocesso (cláusula de standstill), têm sido aceites pela jurisprudência do TJUE como exclusões do direito à dedução, atendendo a que se trata de despesas que, pela sua natureza e características, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final.

 

Sem embargo, no caso em exame, estão em causa despesas relacionadas com o uso de lugares de estacionamento utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante […].

 

Na Informação Vinculativa da DGCI n.º 1486, de 28.01.2011, referente a “Direito à dedução - lugares de estacionamento”, a AT fixou a orientação seguinte: «i) De acordo com os argumentos da consulente e tendo em consideração a actividade declarada, o espaço de estacionamento afigura-se necessário ao exercício da sua actividade, pelo que pode, em princípio, conferir o direito à dedução por enquadramento no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA. ii) Todavia, face à exclusão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º, importa acautelar que a atribuição de lugares de estacionamento a funcionários, colaboradores, titulares de cargos de direcção ou outros que se subsumam nesta norma, limita aquele direito na proporção dos lugares atribuídos para esse fim».

 

Por seu turno, no caso em exame nos autos, o estacionamento referido o estacionamento referido está situado no mesmo edifício da sede da impugnante e era utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante, pelo que o imposto suportado respeita a despesas relacionadas com o exercício da actividade da impugnante (“despesas afectas à exploração”), não sendo as mesmas recondutíveis ao disposto no artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA (“Despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal”). De onde se retira que o imposto suportado em apreço é dedutível por parte da empresa/impugnante, como sucedeu no caso. A correcção em exame, ao decidir diferentemente, enferma de erro e não pode ser mantida na ordem jurídica.

 

Este aresto é particularmente elucidativo.

 

Nele, o TCA - Sul procede a uma distinção fundamental entre (i) despesas conexas com o local de exercício da actividade (despesas afectas à exploração da empresa) e (ii) despesas de deslocação/trânsito em contexto de viagens de negócios.

 

No entender daquele Tribunal, as primeiras não configuram “despesas de transportes e viagens de negócios” na acepção do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, ainda que os gastos acabem por beneficiar também os trabalhadores da empresa, ao passo que somente as segundas se enquadram no âmbito da exclusão.

 

Assim, lugares de estacionamento integrados nas instalações da empresa - ainda que utilizados pelos empregados para aí estacionarem as suas viaturas - são vistos como um custo inerente às instalações e funcionamento da actividade (equiparáveis, por exemplo, a despesas de condomínio, segurança ou manutenção do edifício), e não como um encargo com deslocações em representação da empresa.

 

Este critério foi considerado conforme aos ensinamentos do TJUE, pois evita alargar indevidamente a exclusão do direito à dedução a despesas que não constituem verdadeiras “viagens de negócios” ou consumos de natureza pessoal recreativa, mas sim custos operacionais do sujeito passivo no local onde exerce a sua actividade tributada.

 

No caso apreciado pelo TCA - Sul no processo n.º 2500/10.5BELRS, enfatizou-se ainda que os lugares eram utilizados indistintamente por funcionários, clientes e fornecedores, ou seja, não estavam ad personam atribuídos como regalia ou uso exclusivo de certos trabalhadores, reforçando o seu carácter de infra-estrutura de apoio geral à actividade.

 

Mesmo quando beneficiassem trabalhadores, considerou-se esse benefício meramente acessório face às necessidades da empresa, de molde semelhante ao raciocínio acolhido no Acórdão Fillibeck do TJUE (C-258/95)[9] a propósito do transporte gratuito de trabalhadores em certas condições necessárias ao empregador.

 

Cabe mencionar que este entendimento não é isolado.

 

Outros arestos nacionais se encontram na mesma orientação.

 

Por exemplo, o TCA - Sul, em Acórdão de 27-10-2021, processo n.º 1113/05.8BELSB,[10] reafirmou que as exclusões do artigo 21.º, do Código do IVA devem ser interpretadas teleologicamente, à luz da Directiva IVA, não podendo abranger despesas que constituam custos empresariais comuns.

 

Também há notícia de jurisprudência arbitral tributária, considerando dedutíveis despesas de estacionamento quando necessárias à actividade e não configurando vantagens pessoais extravagantes.

 

Cumpre destacar as Decisões Arbitrais do CAAD proferidas no processo n.º 97/2022-T,[11] bem como no processo n.º 477/2023-T[12] - envolvendo períodos distintos, mas a mesma Requerente e a mesma questão de fundo -, nas quais se decidiu no sentido do reconhecimento do direito à dedução do IVA suportado no arrendamento de lugares de estacionamento situados no local de exercício da actividade, destinados aos colaboradores (tripulações, no caso concreto) e demais utentes profissionais.

 

Saliente-se que, nas referidas Decisões arbitrais, a Requerente era a mesma dos presentes autos e que a situação de facto era idêntica, apenas se diferenciando pelos períodos de imposto em causa.

 

Nessas Decisões Arbitrais entendeu-se, em linha com a jurisprudência do TCA - Sul acima referida, que tais despesas de estacionamento não se subsumem à previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA, por não constituírem verdadeiras despesas de transporte ou deslocação em viagem de negócios, mas sim custos operacionais ligados às instalações da empresa.

 

No sumário da Decisão Arbitral proferida no processo n.º 97/2022-T consignou-se expressamente que «As despesas suportadas com os lugares de estacionamento localizados no local a partir do qual se exerce a actividade profissional não constituem custos de transporte ou viagem do sujeito passivo e seu pessoal em representação da empresa, não estando abrangidas pela exclusão do direito à dedução prevista no artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do CIVA».

 

Não obstante, mais recentemente, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 480/2023-T[13] apresentou entendimento divergente, recusando o direito à dedução do IVA relativo a lugares de estacionamento exclusivos para funcionários de uma empresa.

Neste caso, o Tribunal Arbitral considerou que, estando os lugares destinados exclusivamente ao uso privativo dos trabalhadores (para parqueamento das suas viaturas pessoais no contexto das deslocações casa-trabalho), as correspondentes despesas consideram-se inseridas na previsão da al. c) do n.º 1 do artigo 21.º, do Código do IVA, configurando encargos de transporte suportados pela entidade patronal em benefício do seu pessoal.

 

Entendeu-se, ademais, que a eventual afectação exclusiva da despesa à actividade da empresa não bastava, por si só, para afastar a exclusão, já que a cláusula de standstill autoriza a manutenção de exclusões mesmo para despesas com aparente carácter profissional se estas se incluírem nas categorias tradicionais (como viagens de negócios).

 

Referiu-se ainda que a Requerente, nesse caso, não demonstrara que os funcionários utilizavam o estacionamento apenas em funções (isto é, sem qualquer uso pessoal ou deslocação de interesse próprio).

 

Em suma, na Decisão proferida no processo n.º 480/2023-T firmou-se a posição de que “a despesa assegurada com a aquisição de lugares de estacionamento destinados exclusivamente aos funcionários integra-se no âmbito das exclusões do direito à dedução do IVA, previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA”, enfatizando-se o carácter privativo e não indissociável da opção individual de transporte próprio por parte dos trabalhadores.

 

Em todo o caso, ambos os entendimentos concordam num ponto de partida: as exclusões do artigo 21.º, n.º 1, do Código do IVA, têm fundamento válido no direito da UE (cláusula de standstill), mas a sua aplicação deve ater-se às situações em que, pela natureza das despesas, se justifique presumir um uso alheio à actividade empresarial.

 

Quando essa justificação falha - como entendeu o TCA - Sul e a maioria das decisões arbitrais relativamente a parques/estacionamentos na sede da empresa - a exclusão não opera e o direito à dedução deve ser reconhecido.

 

A Jurisprudência do TJUE.

 

Conforme já aflorado anteriormente na análise do Direito da UE, a jurisprudência comunitária faculta ao intérprete importantes directrizes sobre a questão em discussão nestes autos.

 

Destacam-se os seguintes pontos pela sua relevância:

 

  • Princípio da neutralidade e direito pleno à dedução: O TJUE reiterou, em múltiplos casos, que o direito à dedução é parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. O sujeito passivo tem direito a deduzir de imediato todo o IVA suportado nas suas aquisições relacionadas com operações tributadas, de modo a assegurar que o imposto incide apenas sobre o consumidor final e não sobre o empresário ao longo da cadeia produtiva. Este princípio foi estabelecido em jurisprudência constante (v.g. acórdãos KEST-AG de 1985, BP Soupergaz de 1991, Général Beverage de 2001, entre outros) e reafirmado em casos como Dankowski (C-438/09, de 22.12.2010),[14] onde se considerou contrária à Directiva a recusa do direito à dedução baseada em meros formalismos de facturação ou situação cadastral do fornecedor, não previstos expressamente na legislação harmonizada. O TJUE concluiu que «um sujeito passivo beneficia do direito à dedução do IVA pago por prestações de serviços fornecidas por outro sujeito passivo não registado para efeitos desse imposto, desde que a factura contenha os elementos exigidos pela Directiva», não podendo o Estado invocar uma regra interna para excluir tal dedução. O que significa, para o que nos ocupa, que apenas razões excepcionais e fundamentadas na Directiva podem legitimar a supressão do direito à dedução, devendo rejeitar-se interpretações nacionais que, por analogia ou conveniência fiscal, restrinjam esse direito fundamental.

 

  • Cláusula de standstill e despesas de carácter não profissional: Nos casos Metropol Treuhand und Stadler (C-409/99, de 2005)[15] e Magoora (C-414/07, de 2008),[16] o TJUE sublinhou que as excepções nacionais ao direito à dedução, toleradas pela cláusula de standstill, devem circunscrever-se ao âmbito das despesas de natureza não estritamente profissional enunciadas (ainda que exemplificativamente) na Sexta Directiva. Assim, despesas como viagens de recreio, luxos, ofertas não relacionadas com a actividade, viaturas de turismo para uso misto, etc., podem permanecer excluídas se já o estavam, mas não é permitido aos Estados alargar essa exclusão a despesas que não tenham essa natureza. No Acórdão Charles-Tijmens (C-434/03),[17] conexo com esta temática, realçou-se igualmente que o sujeito passivo pode afastar uma utilização privada do âmbito de uma exclusão optando por tratar o bem/serviço como completamente afecto à empresa, tributando depois o uso privado - mecanismo que salvaguarda a neutralidade sem negar o direito à dedução. Tais considerações conjugam-se, no presente caso, em desfavor de uma concepção lata da al. c) do n.º 1 do artigo 21.º, do Código do IVA: se a despesa de estacionamento for intrínseca à actividade (logo, estritamente profissional no propósito), tentar incluí-la na exclusão equivaleria a expandir indevidamente o respectivo campo de aplicação, contrariando o Direito da UE.

 

  • Distinção entre despesas de exploração e vantagens pessoais (Ac. Fillibeck): Merece referência o Acórdão Fillibeck(C-258/95, de 1997),[18] citado pela Requerente nestes autos e também no processo arbitral n.º 804/2024-T.[19]Neste Acórdão, o TJUE decidiu que o transporte gratuito de trabalhadores entre casa e trabalho, assegurado pelo empregador, constitui, em princípio, um uso privado dos trabalhadores (logo, fins alheios à empresa nos termos da Sexta Directiva), excepto se circunstâncias especiais da empresa tornarem esse transporte necessário (por exemplo, inexistência de alternativas, locais de trabalho remotos). Transpondo este critério para despesas de estacionamento: ceder gratuitamente estacionamento a funcionários pode ser visto como satisfação de uma necessidade privada (o conforto do transporte individual), a menos que se demonstre que, pelas condições da actividade, tal é exigido pela empresa (por ex., a natureza do negócio e localização impõem viatura própria, ou a disponibilidade de clientes exige parqueamento próprio, etc.). Este entendimento complementa a análise: a regra é considerar o estacionamento de colaboradores como algo de âmbito pessoal (não dedutível), mas a excepção - que é precisamente o caso dos autos, como se verá adiante - ocorre quando isso se incorpora nas necessidades operacionais da empresa, perdendo o carácter de atribuição de mera vantagem privada individualizada.

 

Em síntese, a jurisprudência europeia apoia uma leitura do direito à dedução que: (i) favorece a neutralidade e a plenitude do direito, (ii) tolera exclusões historicamente estabelecidas, mas sem extensões abusivas, e (iii) distingue situações em que a despesa serve intrinsecamente a empresa daquelas em que serve predominantemente interesses privados. Estes princípios serão adiante aplicados na resolução do caso concreto.

 

C.4.2 - Aplicação ao caso concreto:

 

Análise da alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA.

 

Elemento literal da norma:

 

A alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º do Código do IVA exclui do direito à dedução o imposto contido nas «despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens».

A interpretação desta norma exige a análise dos seus elementos constitutivos:

 

a) "Despesas de transportes" - O conceito de transporte implica deslocação, movimento de pessoas ou coisas de um local para outro. Como refere o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, transporte é o "acto ou efeito de transportar" ou o "facto de levar algo para outro lugar, mudança". Trata-se, portanto, de uma actividade dinâmica que pressupõe movimento.

 

b) "Viagens de negócios" - Viagem define-se como o "acto de ir de um lugar até outro, mais ou menos distante, geralmente utilizando um meio de transporte" ou "o percurso feito nessa deslocação; trajecto". Também aqui estamos perante um conceito que implica deslocação, movimento.

 

c) "Do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal" - A norma abrange tanto as despesas relacionadas com deslocações do próprio sujeito passivo (por natureza, no caso de empresário em nome individual) como do seu pessoal (trabalhadores, colaboradores).

 

d) "Incluindo as portagens" - A referência expressa às portagens confirma que estamos no âmbito de despesas relacionadas com deslocações, uma vez que as portagens são custos associados à utilização de determinadas vias de comunicação no contexto de uma viagem.

 

Interpretação sistemática:

 

A interpretação da referida alínea c) deve ser feita em conjugação com as restantes alíneas do artigo 21.º, nomeadamente com a alínea a), que exclui as:

 

Despesas relativas à aquisição, fabrico ou importação, à locação, à utilização, à transformação e reparação de viaturas de turismo, de barcos de recreio, helicópteros, aviões, motos e motociclos.

 

 

 

Verifica-se que o legislador distinguiu claramente entre:

 

  • Despesas relacionadas com os próprios veículos (alínea a);

 

  • Despesas relacionadas com transportes e viagens (alínea c).

 

Se o legislador pretendesse excluir todas as despesas de qualquer forma relacionadas com viaturas ou com a deslocação de pessoal, tê-lo-ia feito de forma expressa e não teria necessidade de criar categorias distintas.

 

Esta interpretação é confirmada pela técnica legislativa utilizada: quando o legislador quis ser abrangente, foi-o expressamente, como se verifica na alínea a) que enumera exaustivamente várias operações (aquisição, fabrico, importação, locação, utilização, transformação e reparação).

 

Interpretação teleológica:

 

A finalidade da norma, como vimos, é a de evitar a dedução de IVA relativo a despesas que possam facilmente ser desviadas para consumo privado.

 

No caso das despesas de transporte e viagens, a preocupação do legislador terá sido evitar que sejam deduzidos impostos relativos a deslocações que não tenham carácter estritamente profissional.

 

Contudo, esta finalidade não justifica uma interpretação extensiva da norma que abranja realidades distintas daquelas que o legislador expressamente previu.

 

O estacionamento, enquanto disponibilização de um espaço físico para a imobilização de veículos, não se confunde com o transporte ou a viagem.

 

Interpretação histórica:

 

O artigo 21.º do Código do IVA tem a sua origem no Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, que aprovou o Código do IVA. A redacção original manteve-se praticamente inalterada ao longo dos anos, o que demonstra uma vontade consistente do legislador.

 

Importa notar que, à data da entrada em vigor do Código (1986), já existiam parques de estacionamento e já se colocava a questão do estacionamento de viaturas.

 

Se o legislador pretendesse incluir as despesas de estacionamento na exclusão, tê-lo-ia feito expressamente, tal como fez com as portagens.

 

A questão específica dos serviços de estacionamento sua natureza jurídica.

 

O contrato de cedência de lugares de estacionamento configura-se juridicamente como uma prestação de serviços, consistente na disponibilização de um espaço determinado para a guarda e parqueamento de veículos.

 

Trata-se de um contrato atípico, com elementos do contrato de depósito e do contrato de locação, assim se distinguindo do contrato de transporte pela ausência do elemento deslocação.

 

Esta distinção é fundamental: enquanto o transporte implica movimento, deslocação, o estacionamento pressupõe precisamente o contrário - a imobilização do veículo num determinado local.

 

Ora, a distinção entre despesas de estacionamento e despesas de transporte não é meramente académica, tendo importantes consequências práticas:

 

a) Quanto ao objecto:

·       O transporte tem por objecto a deslocação;

·       O estacionamento tem por objecto a disponibilização de espaço.

 

b) Quanto à natureza da prestação:

·       O transporte é uma obrigação de resultado (levar de A para B);

·       O estacionamento é uma obrigação de meios (disponibilizar espaço).

 

c) Quanto ao momento da utilização:

·       O transporte verifica-se durante a deslocação;

·       O estacionamento verifica-se durante a imobilização.

 

d) Quanto à finalidade:

·       O transporte visa possibilitar a deslocação;

·       O estacionamento visa possibilitar a guarda do veículo.

 

No caso em apreço, os factos provados permitem caracterizar a situação nos seguintes termos:

 

a) Natureza da actividade da Requerente: A C... é uma companhia aérea que opera voos regulares nacionais e internacionais, necessitando de tripulações especializadas (pilotos, co-pilotos, comissários) para a operação das suas aeronaves.

 

b) Especificidades operacionais - A actividade da Requerente implica, quanto aos tripulantes:

·       Horários irregulares, incluindo períodos nocturnos;

·       Ausências prolongadas (de horas a dias);

·       Início e fim do serviço no aeroporto;

·       Impossibilidade prática de utilização de transportes públicos.

 

c) Função do estacionamento - Os lugares de estacionamento destinam-se a:

·       Permitir que os tripulantes estacionem durante o período de serviço;

·       Garantir a segurança das viaturas durante ausências prolongadas;

·       Assegurar a operacionalidade do serviço de transporte aéreo.

 

d) Características da utilização:

·       Utilização exclusiva por tripulantes em serviço;

·       Utilização durante o período de trabalho (conforme Regulamento da B...);

·       Localização no aeroporto, local de trabalho dos tripulantes.

 

Face aos factos provados e ao enquadramento jurídico já exposto, importa agora qualificar juridicamente o serviço de estacionamento a que se referem os autos. Assim:

 

a) Não se trata de despesas de transporte.

 

O estacionamento não constitui um serviço de transporte.

 

A cedência de lugares de estacionamento constitui uma prestação de serviços distinta, que consiste na disponibilização de um espaço para guarda de viaturas.

 

Não há qualquer elemento de deslocação ou movimento associado a esta prestação.

 

A circunstância de o estacionamento ser utilizado por trabalhadores que se deslocam em viaturas próprias não transforma a natureza do serviço.

 

O estacionamento continua a ser estacionamento, independentemente de quem o utiliza ou para que fins.

 

b) Não se trata de despesas de viagem.

 

As viaturas são estacionadas precisamente porque os tripulantes vão ausentar-se em viagem de serviço.

 

O estacionamento não faz parte da viagem - é anterior e posterior a ela.

 

Quando os tripulantes estão em viagem (a bordo das aeronaves), as viaturas estão paradas no estacionamento.

 

c) Trata-se de despesas operacionais.

 

O estacionamento constitui uma infra-estrutura necessária ao normal funcionamento da actividade da Requerente.

 

Tal como a companhia necessita de hangares para as aeronaves, de balcões de check-in para os passageiros, também necessita de estacionamento para as viaturas dos tripulantes.

 

A especificidade da actividade - com horários irregulares, ausências prolongadas, localização no aeroporto - torna o estacionamento uma necessidade operacional incontornável.

 

d) Existe nexo com a actividade económica da Requerente.

 

As despesas de estacionamento apresentam um nexo directo com o conjunto da actividade económica da Requerente.

 

Sem tripulações, não há voos; sem possibilidade de os tripulantes se deslocarem e estacionarem, não há tripulações disponíveis.

 

Trata-se, assim, de despesas gerais que conferem direito à dedução por terem uma relação directa e imediata com o conjunto da actividade económica do sujeito passivo, isto é, trata-se de uma despesa operacional.

 

 

 

As despesas de estacionamento como despesa operacional.

 

No contexto empresarial, as despesas de estacionamento podem assumir diferentes naturezas consoante as circunstâncias:

 

a) Estacionamento ocasional durante deslocações: Quando um trabalhador se desloca em serviço e necessita de estacionar temporariamente (por exemplo, durante uma reunião), essa despesa está associada à viagem e pode considerar-se abrangida pela exclusão.

 

b) Estacionamento regular no local de trabalho: Quando a empresa disponibiliza ou paga estacionamento regular para os seus trabalhadores no local onde exercem funções, trata-se de uma despesa operacional relacionada com a organização da actividade.

 

c) Estacionamento operacional específico: Em certas actividades, como a da Requerente, o estacionamento assume uma natureza operacional específica, sendo indispensável ao normal funcionamento da actividade.

 

No caso dos autos, estamos claramente perante a terceira situação. Os tripulantes não estão em viagem quando utilizam o estacionamento - pelo contrário, estacionam precisamente porque vão ausentar-se em serviço durante períodos prolongados.

 

Ainda assim, à primeira vista, poderia pensar-se que pagar estacionamento aos trabalhadores configura uma benesse pessoal, desconectada do exercício profissional - interpretação, de resto, que a Requerida perfilha.

 

Não obstante, este Tribunal concorda com a análise já efectuada em decisões anteriores, pelos tribunais arbitrais e judiciais supracitados: o contexto e a finalidade deste estacionamento retiram-lhe a natureza de “despesa de transporte ou viagem” no sentido visado pela norma de exclusão.

Vejamos: os trabalhadores da Requerente não estão aqui a efectuar uma “viagem de negócios” pela empresa; estão simplesmente a deslocar-se para o seu local de trabalho fixo, aquando das suas escalas de voo.

 

A Requerente, por sua opção, suporta o encargo de lhes facultar lugares de parqueamento no edifício, possivelmente para garantir pontualidade, comodidade ou segurança-

 

Trata-se de uma medida de gestão de recursos humanos e logística empresarial, intrínseca ao modo de funcionamento da Requerente e às específicas condições do exercício de actividade profissional do pessoal de voo.

 

Este dispêndio não diverge, na sua essência, de outros custos laborais ou operacionais: compare-se, por exemplo, com disponibilizar cantina, cacifos ou vestiários aos funcionários - benefícios que servem ao conforto privado destes, mas que são colocados à disposição pelo empregador visando o bom andamento do trabalho.

 

O IVA suportado nesses gastos (refeições na cantina, manutenção de vestiários, etc.) é dedutível, salvo se uma norma expressa o excluir (como sucede, por exemplo, com despesas de alimentação, excluídas pela al. d) do artigo 21.º).

 

No caso do estacionamento, não há norma expressa, excepto a invocada al. c); logo, só seria possível negar a dedução se fosse inequívoco que tal despesa se insere no conceito de “transporte ou viagem de negócios”.

 

A redacção do artigo 21.º, n.º 1, al. c) sugere que o legislador pensou em viagens de serviço, deslocações em trabalho, com carácter transitório e itinerante (daí referir “portagens” inclusivé). 

 

Não parece razoável incluir aí a situação estática de um carro parado na garagem da sede ou do escritório durante o horário de expediente.

Reforçando a interpretação deste Tribunal, o Acórdão do TCA - Sul, tirado no de 05-112020, processo n.º 2500/10.5BELRS, ensinou que o estacionamento na sede constitui “despesas afectas à exploração”, não reconduzíveis a viagens de negócios.

 

E bem assim o corroborou a decisão arbitral do CAAD, no processo n.º 97/2022-T, ao concluir que o estacionamento não constitui uma despesa de deslocação em representação da empresa, mas sim de viabilização do local de actividade.

 

É certo que, numa óptica económica, ao pagar o estacionamento aos colaboradores a Requerente está a suportar um custo que de outra forma recairia sobre eles (caso tivessem de pagar parque público ou transportes).

 

Poderia objectar-se que isso configura, de facto, um benefício privado.

 

Contudo, esse raciocínio levaria a extremos claramente contrários ao espírito neutral do IVA: por exemplo, se a empresa instalar chuveiros para empregados ciclistas tomarem banho (despesas com água e luz), também estaria a subsidiar uma necessidade privada? Ou se disponibilizar café gratuitamente, seria “alimentação do pessoal” (não dedutível)? 

 

Visivelmente, há uma zona cinzenta onde o que é fornecido ao trabalhador serve simultaneamente o interesse dele e o da entidade patronal.

 

O critério decisivo, como referido no acórdão Fillibeck e na Informação Vinculativa da AT n.º 1486/2011,[20] é averiguar se a prestação é necessária ou útil ao exercício da actividade da empresa ou se é puramente facultativa e sem relação com as necessidades operacionais.

 

No caso sub judice, demonstrou-se que a existência de estacionamento na própria sede onde desenvolve a actividade da Requerente é algo inerente ao desenvolvimento da sua actividade principal e relevante para a boa condução desta.

 

Não se trata aqui de pagar deslocações recreativas ou extravagantes aos pilotos e demais membros das tripulações, mas sim de proporcionar condições logísticas adequadas no local de trabalho.

 

Assim, ainda que haja um benefício colateral para o colaborador (poupa tempo ou dinheiro no estacionamento), esse benefício surge como acessório em relação às necessidades da empresa, para usar as palavras do TJUE em Fillibeck.

 

Por conseguinte, este Tribunal entende que, material e finalisticamente, a despesa em causa nos autos não corresponde ao tipo de gastos que o legislador pretendeu excluir do direito à dedução na al. c) do artigo 21.º, do Código do IVA.

 

Incluir esta situação no âmbito da exclusão significaria tratar uma despesa de mera infra-estrutura empresarial como se fora uma viagem de negócios ou um luxo concedido ao trabalhador, o que configuraria, no entendimento deste Tribunal, uma extensão indevida da norma de exclusão.

 

Tal extensão não é permitida nem pela hermenêutica restritiva que essas disposições exigem, nem pela Directiva IVA (cláusula de standstill), a qual não abrange despesas indispensáveis à actividade, mesmo que delas resulte algum conforto para o trabalhador, desde que o objectivo principal seja profissional.

 

Ainda a este propósito, remetemos para a cautela expressa pela própria AT na Informação Vinculativa n.º 1486/2011: caso se apurasse que determinados lugares de estacionamento foram atribuídos exclusivamente a certos funcionários ou membros da direcção, para uso pessoal além do contexto profissional, então nessa medida deveria limitar-se o direito à dedução proporcionalmente a esses lugares afectos a fins particulares.

 

Porém, tal cenário não foi comprovado nos presentes autos.

 

Não consta que a Requerente disponha de lugares privativos para uso extralaboral dos funcionários em causa.

 

Todos os indícios e toda a prova produzida apontam para um uso empresarial corrente e indiscriminado do parque: os pilotos e demais pessoal das tripulações estacionam quando vêm trabalhar e abandonam o estacionamento após regressados da viagem.

 

Não se trata de disponibilizar parque para fins pessoais fora do horário de trabalho (se assim fosse, poderia exigir-se liquidação de imposto por via de tributação do benefício).

 

Deste modo, inexistindo evidência de desvio para fins alheios à empresa, não há razão para fraccionar ou recusar a dedução do IVA suportado, o qual permanece ligado à totalidade da actividade económica tributada da Requerente.

 

Em conclusão, afigura-se juridicamente correcto concluir que a despesa com os lugares de estacionamento em causa possui carácter intrinsecamente empresarial, constituindo encargo geral da Requerente na manutenção do seu estabelecimento e na prossecução da sua actividade empresarial, e não uma despesa de transporte ou viagem de negócios do sujeito passivo ou do seu pessoal.

 

Por isso, não cai no âmbito da exclusão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA, pelo que o IVA que a onerou deve ser considerado dedutível, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do mencionado Código.

 

A isto acresce que a interpretação sufragada por este Tribunal em nada lesa os princípios subjacentes ao ordenamento do IVA: a empresa apenas recuperará o imposto incidente sobre um custo que efectivamente suportou no interesse da sua actividade tributada (preservando-se a neutralidade), e não há aqui qualquer brecha de evasão ou de abuso.

 

Ao invés, negar a dedução implicaria onerar a Requerente com um custo fiscal (IVA não deduzido) incidente sobre uma despesa absolutamente relacionada com a sua actividade tributada - resultado contrário ao princípio estrutural do IVA e não justificável por nenhuma excepção válida.

 

E esta é também a solução que melhor acautela a aplicação do princípio da neutralidade do imposto - princípio fundamental na economia do IVA.

 

Por fim, o Tribunal considera particularmente relevante que existam já duas decisões arbitrais transitadas em julgado, em processos da própria Requerente, reconhecendo o direito à dedução do IVA em situações idênticas, a saber:

 

  • Decisão Arbitral de 03-01-2023, processo n.º 97/2022-T - período de Outubro de 2020;

 

  • Decisão Arbitral de 07-02-2024, processo n.º 477/2023-T - períodos de Outubro de 2017 a Outubro de 2019.

 

Embora as decisões arbitrais não tenham eficácia de caso julgado para além do processo em que são proferidas, constituem precedentes importantes que reforçam a posição da Requerente.

 

Em conclusão, a não-dedutibilidade do imposto contido nas facturas relativas ao estacionamento e suportado pela Requerente enferma de erro sobre os pressupostos de direito, por incorrecta subsunção dos factos à norma de exclusão do artigo 21.º, n.º 1, al. c), do Código do CIVA, não devendo subsistir.

 

Em consequência, o Tribunal irá reconhecer a final o direito da Requerente à dedução do IVA suportado nessas facturas de estacionamento e, como tal, pela procedência do pedido de anulação parcial das autoliquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

C.4.3 - Condenação da Requerida em juros indemnizatórios:

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente afirma que «contudo, pese embora assista à Requerente o direito à dedução integral dos montantes de IVA incorridos com a aquisição dos serviços em apreço, o imposto em causa não tem sido deduzido pela Requerente em resultado de, em observância do entendimento sustentado pela AT, ter enquadrado incorretamente tais despesas com aquisição de serviços de cedência de estacionamentos como despesas abrangidas no âmbito das exclusões ao direito à dedução do IVA, consagradas no n.º 1 do artigo 21.º do Código deste imposto» e, em nota de rodapé, «conforme acima referido, este entendimento da AT está preconizado na Ficha Doutrinária de 28 de janeiro de 2011, proferida no procedimento de informação vinculativa n.º 1486 e na Ficha Doutrinária de 18 de novembro de 2019, proferida no âmbito do procedimento de informação vinculativa n.º 16022, que versam sobre factualidade materialmente análoga à aqui presente […]» - artigo 53.º, da p.i.

 

E requer o pagamento de juros indemnizatórios já que «o direito a juros indemnizatórios alicerça-se no artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o que faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida […]» - artigo 120.º, da p.i.

Vejamos:

 

O artigo 43.º, nos seus nrs. 1 e 2, da LGT, estabelece que:

 

1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

O direito a juros indemnizatórios, invocado pela Requerente, enquadrar-se-á naquele n.º 2?

 

A Requerente afirma que não exerceu o seu direito à dedução, em cumprimento de um «entendimento» da AT sobre a dedutibilidade do IVA suportado quanto aos estacionamentos anteriormente analisados.

 

Sendo que tal «entendimento» da AT é expressamente identificado pela Requerente como sendo o que consta na «Ficha Doutrinária de 28 de janeiro de 2011, proferida no procedimento de informação vinculativa n.º 1486 e na Ficha Doutrinária de 18 de novembro de 2019, proferida no âmbito do procedimento de informação vinculativa n.º 16022, que versam sobre factualidade materialmente análoga à aqui presente».

 

O artigo 43.º, n.º 2, da LGT, tem como âmbito as orientações genéricas e a Requerente funda o direito que invoca em informações vinculativas.

 

As informações vinculativas e as orientações genéricas não se confundem, pois constituem dois instrumentos distintos e apresentam características e efeitos jurídicos diferenciados.

 

As informações vinculativas, previstas no artigo 68.º, da LGT, são emitidas pela administração tributária em resposta a consultas individuais formuladas pelos sujeitos passivos sobre a aplicação de normas tributárias a situações concretas e determinadas.

 

O carácter vinculativo destas informações significa que a administração tributária fica obrigada a aplicar a interpretação nelas contida, não podendo posteriormente adoptar entendimento diverso relativamente ao contribuinte concreto e à situação concreta que foi objecto da consulta, salvo nas situações excepcionais previstas na lei, como a alteração da legislação aplicável ou a declaração de ilegalidade por tribunal competente.

 

Já as orientações genéricas, previstas no artigo 68.º-A da LGT, constituem instruções de serviço - alguma doutrina atribui-lhes mesmo natureza regulamentar - emitidas pela administração tributária com o objectivo de uniformizar a interpretação e a aplicação das normas tributárias.

 

Ao contrário das informações vinculativas, as orientações genéricas não conferem direitos subjectivos aos contribuintes, não tendo carácter vinculativo relativamente aos mesmos, embora devam ser respeitadas pelos serviços no exercício das suas funções.

 

A distinção fundamental entre estes dois institutos reside precisamente no seu alcance subjectivo e objectivo, bem como nos respectivos efeitos jurídicos.

 

Enquanto as informações vinculativas se destinam a resolver questões concretas e individuais suscitadas por contribuintes específicos, produzindo efeitos vinculativos para a administração relativamente a essas situações particulares e apenas ao contribuinte consulente, as orientações genéricas têm natureza geral e abstracta, constituindo directrizes interpretativas dirigidas aos serviços. 

 

Veja-se, por todos, o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, de 21-05-2020, processo n.º 194/12.2BELRS, [21] - em especial, quanto a esta temática, o ponto 2.2.3.

 

Deste modo, não é possível ao Tribunal aceitar que a condenação da Requerida em juros indemnizatórios possa fazer-se com fundamento no artigo 43.º, n.º 2, da LGT.

 

É verdade que, a partir do conteúdo de uma informação vinculativa, é possível aos particulares extraírem certas regras e critérios e, em face disso, conformarem os seus comportamentos fiscais em função de tais regras e critérios.

 

Mas isso não transmuta de modo algum uma informação vinculativa numa instrução genérica, pois a informação vinculativa tem como exclusivos destinatários o concreto consulente e a AT, sendo desprovida de generalidade e abstracção - características fundamentais das orientações genéricas.

 

Daí que o direito invocado pela Requerente não encontre, no plano dos factos, acolhimento no artigo 43.º, n.º 2, da LGT.

 

 

Porém, poderá o pedido de condenação da Requerida em juros indemnizatórios ainda assim proceder nos termos e ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT?

 

A Requerente pediu a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios por o valor do imposto a pagar ter sido superior ao que seria devido, caso tivesse exercido adequadamente o direito à dedução do imposto nas declarações periódicas de IVA.

 

O artigo 24.º, n.º 5, do RJAMT, estabelece que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário».

 

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, estabelece o direito do particular a juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que resultou pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Ficou provado que, nas declarações periódicas de IVA que apresentou e nas autoliquidações a que procedeu, a Requerente não exerceu o direito à dedução, tendo, por esse facto, sido apurado imposto superior ao legalmente devido.

 

E também já se viu que a conformação da Requerente com o que constava na «Ficha Doutrinária de 28 de janeiro de 2011, proferida no procedimento de informação vinculativa n.º 1486 e na Ficha Doutrinária de 18 de novembro de 2019, proferida no âmbito do procedimento de informação vinculativa n.º 16022» constituiu uma mera opção de gestão fiscal daquela.

 

Assim, tendo o imposto a que se referem estes autos sido apurado pela própria Requerente e, em consequência, resultado de erro na autoliquidação a esta imputável, entende este Tribunal inexistir erro imputável aos serviços quanto ao excesso de imposto resultante das referidas autoliquidações.

 

Também é certo que a partir do momento em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa, tendo por objecto as autoliquidações aqui impugnadas, a AT ficou a conhecer os motivos pelos quais seria de anular parcialmente aquelas.

 

Não obstante, constitui entendimento pacífico que «pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT]».[22]

 

E mais recentemente: «pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr.artº.78, nº.1, da L.G.T.) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, al.c), da L.G.T., mais não relevando o facto de a A. Fiscal o ter decidido, embora indeferindo, em período inferior a um ano».[23]

 

E a verdade é que a LGT dispõe, no artigo 43.º, n.º 3, que: «São também devidos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».

 

Não há notícia nos autos - e, de resto, nem sequer foi alegado - de ter ocorrido atraso imputável à administração tributária.

 

 

Pelo contrário, a AT proferiu decisão expressa no procedimento de revisão oficiosa bem antes de decorrido um ano sobre o pedido de instauração do procedimento - cfr. probatório, alínea 13 e 15.

 

Ora, no caso dos presentes autos, o pedido de revisão oficiosa deu entrada no dia 12 de Junho de 2024 - cfr. probatório, alínea 13.

 

Deste modo, o cômputo de juros indemnizatórios no caso concreto, atenta a jurisprudência uniforme do STA, somente tem o seu termo inicial decorrido um ano após a dedução do citado pedido de revisão oficiosa.

 

Nestes termos, a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde 12-06-2025, inclusivé, até à data da emissão da respectiva nota de crédito, o que irá decretar-se a final.

 

 

D - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de anulação parcial do IVA autoliquidado, no valor de € 244.161,17.

 

b)    Anular a decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa em causa nos autos processo n.º ...2024... .

 

c)     Determinar o reembolso à Requerente do imposto anulado, no valor de € 244.161,17.

 

d)    Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, contados desde 12-06-2025, inclusivé, até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

 

E - VALOR DA CAUSA:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 244.161,17, correspondente às liquidações impugnadas, objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 244.161,17.

 

F - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, a cargo da Requerida, que decaiu na totalidade.

Notifique.

 27 de junho de 2025.

 

Os Árbitros,

 

(Rui Duarte Morais)

 

(Rita Guerra Alves)

 

(Martins Alfaro)

 



[22] Acórdão uniformizador do STA, de 11-12-2019, processo n.º 051/19.1BALSB. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0cc78d65c6b01059802584d500373330?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1

[23] Acórdão do STA - Pleno da Secção de Contencioso Tributário, de 24-04-2024, processo n.º 0120/23.3BALSB e vasta jurisprudência ali citada. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/62f64ef0530056d880258b10004c7773?OpenDocument&ExpandSection=1