Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1290/2024-T
Data da decisão: 2025-05-30   Outros 
Valor do pedido: € 928.377,79
Tema: Adicional de solidariedade sobre o sector bancário. Princípio da não retroatividade da lei fiscal. Princípio da igualdade. Princípio da capacidade contributiva.
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Sumário:

 

I - A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, é apenas aplicável ao adicional de solidariedade ao sector bancário devido em 2020, não podendo ser tida como inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, relativamente a atos de autoliquidação de 2022 e 2023;

II - As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

            

1. A..., S.A., SUCURSAL EM PORTUGAL, titular do número de identificação fiscal n.º..., com sede na Rua ..., ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB) referentes aos períodos de tributação de 2022, no valor de € 442.558,11, e de 2023, no valor de € 485.819,68,  bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios. 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos. 

 

 

A Requerente é a sucursal, em Portugal, da instituição financeira de crédito espanhola B..., S.A., estando autorizada pelo Banco de Portugal para o exercício da atividade de crédito desde 30 de dezembro de 2011, pelo que se encontra sujeita ao normativo previsto no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), no que às sucursais respeita.  

 Atenta a sua qualidade de sucursal em Portugal de instituição de crédito sedeada noutro Estado membro da União Europeia, a Requerente encontra-se sujeita ao pagamento do ASSB, tributo que é autoliquidado anualmente através da submissão da Declaração Modelo 57. 

Neste contexto, a Requerente submeteu a Declaração Modelo 57 no dia 30 de junho de 2022, a respeito do ASSB de 2022, tendo apurado um valor de € 442.558,11, e no dia 28 de junho de 2023, a respeito do ASSB de 2023, tendo apurado um valor de € 485.819,68, e procedeu ao pagamento dessas quantias.

 

Não obstante o ASSB ter sido anunciado como um adicional à CSB e recorrer a uma base de incidência objetiva e subjetiva em tudo idêntica à dessa contribuição, constitui um verdadeiro imposto, atenta a sua unilateralidade, como tal sujeito ao respetivo regime jurídico-constitucional.

 

O ASSB padece de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13.º da Constituição da República (CRP), nas vertentes da proibição do arbítrio, proibição de criação de impostos não genéricos e desproporcionais e proibição da violação do princípio da capacidade contributiva, ao onerar mais gravosamente o setor bancário do que os demais setores de atividade, sem qualquer justificação.

 

O ASSB viola ainda o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, na medida em que, sendo um tributo criado em julho de 2020, por via da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, se tornou devido, pela primeira vez, tendo por referência saldos de passivos relativos ao primeiro semestre de 2020.  

 

Por outro lado, a sujeição no âmbito do ASSB das sucursais de entidades com sede ou direção efetiva na União Europeia, viola o Direito Europeu, por violação da liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

O ASSB viola ainda a Lei de Enquadramento Orçamental enquanto lei de valor reforçado, no tocante aos princípios da não consignação e da discriminação, uma vez que as correspondentes receitas não foram devidamente discriminadas nos respetivos Orçamentos do Estado, o que faz com que o tributo se tenha como não orçamentado, com a consequente nulidade das autoliquidações, nos termos das alíneas k) e l) do artigo 161.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

 

Subsidiariamente, a Requerente peticiona a anulação parcial da autoliquidação uma vez que a incidência do ASSB sobre passivos correspondentes a responsabilidades com a casa-mãe constituem “dívidas para com terceiros”.

 

Conclui, requerendo a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e das autoliquidações do ASSB relativas aos anos de 2022 e 2023, e a condenação da Autoridade Tributária na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

A Autoridade Tributária, em sede de impugnação, considera que, de acordo com o acórdão C-340/22 do TJUE, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio aferir se é ou não legalmente admissível dedução pelas sucursais dos capitais próprios e dos instrumentos de dívida equiparados aos capitais próprios. 

 

E segundo o parágrafo 32 desse acórdão, as sucursais das instituições não residentes não podem deduzir da sua base de incidência, a título do ASSB, capitais próprios ou elementos do passivo que podem ser equiparados a capitais próprios. O que equivale por dizer que se não existirem rubricas no passivo que sejam equiparáveis a capital próprio não podem ser deduzidos quaisquer valores, a esse título, para efeitos do cálculo da base de incidência da ASSB. 

 

E não se descortina, neste caso, qualquer discriminação das sucursais de instituições não residentes e de sociedades residentes.

 

Quanto à violação do direito da União Europeia, a Requerida refere que a Diretiva 2014/59/UE (Diretiva sobre Recuperação e Resolução Bancárias) introduziu regras que harmonizam os mecanismos para fazer face às crises bancárias, tendo em vista instituir mecanismos nacionais de financiamento destinados a assegurar a estabilização do sistema financeiro. 

 

No entanto, o ASSB não é uma forma de financiamento das medidas de resolução nem do Fundo Único de Resolução, posto que não se encontra abrangido pela referida Diretiva e a finalidade deste imposto é distinta e não está relacionada com o financiamento das medidas de resolução.  

 

No que se refere à violação do princípio da liberdade de estabelecimento, é de considerar que o regime do ASSB não comporta um tratamento discriminatório baseado na nacionalidade das instituições de crédito.

 

A Requerente é uma sucursal de uma instituição de crédito com sede e administração efetiva num Estado membro, que atua em Portugal ao abrigo da liberdade de estabelecimento, nos termos do disposto no artigo 49.º do TFUE. 

 

O n.º 2 do artigo 1.º do regime do ASSB estabelece que este “tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores”.  

 

São sujeitos passivos do ASSB também as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português, as quais fazem parte do mesmo grupo de sujeitos passivos beneficiários da isenção de IVA aplicável à generalidade das operações financeiras e, igualmente, da isenção do imposto do selo relativamente às operações de captação de fundos junto de outras instituições financeiras.  

  

Por outro lado, não se encontra vedado às sucursais a dedução de capitais próprios, estando na disponibilidade da sucursal qualificar os fundos que lhe são afetos pela Sede como como passivo ou como capital próprio, em função, entre outros critérios, de serem ou não passíveis de remuneração e do carácter de permanência.  

 

Ou seja, o tratamento dado às sucursais e aos restantes sujeitos passivos do ASSB é igual, no sentido em que são sujeitas ao ASSB independentemente da nacionalidade e a não dedução de capitais próprios, caso a sucursal os não tenha, não significa que exista um tratamento diferenciado.  

 

Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, a Autoridade Tributária entende que o ASSB constitui um tributo com a natureza de imposto indireto, na medida em que visa compensar a não tributação em IVA da generalidade das operações financeiras. E considerando que o IVA constitui uma das fontes de financiamento da Segurança Social, através da consignação de uma parcela da sua receita a essa finalidade, a criação de um imposto como forma de contrabalançar a isenção de IVA associada aos serviços e operações financeiras, apresenta-se como uma opção legislativa razoável e materialmente justificada.

 

Quanto à violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, a Autoridade Tributária refere que o ASSB surgiu como fonte excecional de receita, perante a disrupção do sistema financeiro do Estado provocada pelo COVID, que provocou a queda de receitas públicas e um aumento das despesas públicas na função social do Estado, e essa é uma situação legitimadora da retroatividade fiscal, sendo de considerar que pode excecionalmente aceitar-se a retroatividade da lei fiscal, mesmo em matéria de impostos, caso se conclua que a segurança jurídica deve ser sacrificada em face de outros valores que no caso concreto se mostrem mais relevantes.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. Por requerimento de 30 de abril de 2025, a Requerente prescindiu da produção de prova testemunhal inicialmente requerida.

 

Por despacho arbitral de 2 de maio de 2025, considerando que a matéria de facto relevante para a decisão da causa depende de prova documental e se torna desnecessária a realização de outras diligências instrutórias, determinou-se a dispensa da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 14 de fevereiro de 2025.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O processo não enferma de nulidades, nem foram suscitadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação 

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)   A Requerente é a sucursal, em Portugal, da instituição financeira de crédito espanhola B..., S.A., estando autorizada pelo Banco de Portugal para o exercício da atividade de crédito desde 30 de dezembro de 2011, pelo que se encontra sujeita ao normativo previsto no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), no que concerne às sucursais.  

B)    No dia 30 de junho de 2022, a Requerente procedeu à autoliquidação do ASSB relativo ao ano de 2022, mediante a submissão da declaração Modelo 57, em que apurou um valor € 442.558,11 (documento n.º 2 junto ao pedido arbitral).

C)   No dia 28 de junho de 2023, a Requerente procedeu à autoliquidação do ASSB relativo ao ano de 2023, em que apurou um valor de € 485.819,68 (documento n.º 4 junto ao pedido arbitral).

D)   A Requerente procedeu ao pagamento do ASSB relativo a 2022, no montante de € 442.558,11, no dia 30 de junho de 2022 (documento n.º 3 junto ao pedido arbitral).

E)    A Requerente procedeu ao pagamento do ASSB relativo a 2023, no montante de € 485.819,68, no dia 29 de junho de 2023 (documento n.º 5 junto ao pedido arbitral).

F)    Em 26 de junho de 2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os referidos atos tributários de autoliquidação do ASSB (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral e processo administrativo, pág. 1). 

G)   Por ofício remetido por correio registado de 4 de julho de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de decisão para exercer o direito de audição, não tendo usado o direito de pronúncia (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral).

H)   Por despacho do Diretor do Serviço Central, de 10 de setembro de 2024, praticado com subdelegação de competência, a reclamação graciosa foi indeferida (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral).

I)     A decisão de indeferimento baseou-se na informação dos serviços n.º 257-AIR3/2024, que, na parte que releva, é do seguinte teor (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral):

 

V- Análise da Reclamação

13. Como referido, é pretensão da Reclamante ver anulado o ato tributário identificado, com a natural e respetiva restituição do locupletado, com fundamento na suposta inconstitucionalidade material do tributo designado por «Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário» (ASSB), através das suas diversas normas, introduzido no ordenamento jurídico-tributário pelo artigo 18.º da Lei 27-A/2020, de 24 de julho, diploma que promove várias alterações ao Orçamento de Estado para 2020, pelos motivos sumariamente expostos.

14.    Faz-se notar que nenhum fundamento ou argumento avançado pela Reclamante respeita a ilegalidade por erro quanto aos pressupostos da aplicação das normas a que refere o regime do ASSB, nem de interpretação ilegal, ainda que com fundamento em inconstitucionalidade, dessas normas.

15.    Dito isto, e a respeito da conformidade constitucional da ASSB ou das normas que integram o seu regime, ou de qualquer outra figura tributária diga-se, tem sido a posição da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não se pronunciar sobre o mérito e de facto nenhuma outra posição poderá ser tomada.

16.    Com efeito, a AT, como órgão da administração pública sob direção do Governo, não tem competências no foro da apreciação da conformidade constitucional de normas jurídicas, ou sequer da atividade legiferante, pelo que qualquer pronúncia decisória encontrar-se-ia ela mesma ferida de legalidade institucional.

17.    Resulta do Decreto-Lei n.º 118/2011 de 15 de dezembro, diploma que aprova a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, no seu artigo 2.º, n.º 1, que «a AT tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos, bem como exercer o controlo da fronteira externa da União Europeia e do território aduaneiro nacional, para fins fiscais, económicos e de proteção da sociedade, de acordo com as políticas definidas pelo Governo e o Direito da União Europeia». [sic]

18.    O n.º 2 do mesmo preceito elenca as diversas atribuições ou tarefas administrativas da AT, que no fundo aprofundam apenas o conceito de administração dos impostos referido no número anterior, e, naturalmente, nenhuma faz qualquer referência ao controlo legal ou constitucional de normas tributárias.

19.    Isto porque o controlo legal ou constitucional de normas tributárias não se insere no escopo da função administrativa.

20.    Essa função é sim assegurada pelo Tribunal Constitucional, conforme o disposto no artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que veda essa matéria em exclusivo a esse órgão, e claro, à própria Assembleia da República.

21.    Acrescente-se também que a Administração Pública, da qual a AT faz parte, não goza das mesmas prerrogativas dos tribunais, isto é, de desaplicar uma norma jurídica em caso concreto com fundamento na sua inconstitucionalidade e que no fundo será sempre uma suposição até pronúncia por parte do Tribunal Constitucional, conforme o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP.

22.    Nestes termos, contrariamente ao pretendido pela Reclamante, a alegada violação, pelo   legislador, dos princípios constitucionais, aquando da criação do regime do ASSB, não consubstancia vício que possa ser invocado perante a AT.

23.    É, de facto, uma questão relativamente pacífica que na arquitetura jurídico-administrativa nacional que os órgãos administrativos, pelo dever de obediência (ao Governo) que lhes é imposto pela lei fundamental, não podem rejeitar a aplicação da lei com tal fundamento.

24.    A este respeito, veja-se as considerações de Vieira de Andrade, da sua obra 'Direito Constitucional", Almedina, 1977, pág. 270:

       «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a proteção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» [sic],

25.    E no mesmo sentido vem João Caupers, na sua obra "Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição", Almedina, 1985, pág. 157.

«(…) a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207.º [hoje, 204.º] e 266.º, n.º2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei. Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exatamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excecional» [sic].

26.    Ora, não se encontrando prevista nas leis orgânicas da AT ou até do Ministério das Finanças a competência para o controlo legal ou constitucional de normas tributárias, qualquer decisão sobre o mérito do pedido encontrar-se-ia ferida de nulidade.

27.    Deste modo, não obstante, possuirmos uma opinião vincada nesta matéria, qualquer pronúncia nossa, favorável ou não aos interesses da Reclamante, pecará sempre por inutilidade da mesma, razão pela qual nos abstemos de quaisquer demais considerações para além das já enunciadas.

28.    Nestes termos, deverá ser assim rejeitada a pretensão formulada, ficando prejudicada a apreciação da restituição do montante pago acrescido de juros indemnizatórios.

[…]

VI. Conclusão

Perante o exposto, atendendo às razões de facto e direito descritas, propõe-se o indeferimento, conforme detalhe do "quadro-síntese" identificado no introito da informação com todas as consequências legais.

 

J)     A decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada por carta registada, em datada de 12 de setembro de 2024 (documento n.º 6 junto ao pedido arbitral).

K)   O pedido arbitral deu entrada em 4 de dezembro de 2024.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta. 

 

 

Matéria de direito

 

Regime jurídico do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário

 

5. O adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB) foi criado pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/ 2020, de 24 de julho, que altera a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (Lei n.º 2/2020, de 31 de março) e cujo regime jurídico consta do Anexo VI a essa Lei. 

O ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artigo 1.º, n.º 2) e tendo como sujeitos passivos as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1).

O ASSB tem como âmbito de incidência objetiva o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos, com as especificações constantes do artigo 3.º 

O artigo 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 refere-se à quantificação da base de incidência, definindo, no seu n.º 1, como passivo o “conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”, com as exceções constantes das diversas alíneas desse número, e  como instrumento financeiro derivado o que seja qualificado como tal pelas normas de contabilidade aplicáveis, com exceção dos instrumentos financeiros derivados de cobertura ou cujas posições em risco se compensem mutuamente (artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 3). O n.º 4 desse artigo 4.º esclarece ainda que [a] base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte. 

Os artigos 5.º, 6.º. 7.º e 8.º referem-se, respetivamente, às taxas aplicáveis à base de incidência e aos procedimentos de liquidação e cobrança, e o artigo 9.º, sob a epígrafe “Consignação da Receita”, declara que a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social

 

Resta referir que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, em consonância com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, limita-se a assinalar que “[é] igualmente criado um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

Qualificação jurídica do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário

6. Analisado, em traços gerais, o regime jurídico do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, cabe ainda uma referência preliminar quanto à qualificação jurídica que lhe poderá ser atribuída.

A LGT, aprovada em 1998, no seu artigo 3.º, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

 

Aí se explicita que “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” (n.º 1), e as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares” (n.º 2). No que se refere às contribuições especiais, o n.º 3 desse artigo apenas especifica que “[a]s contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou 

ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade são consideradas impostos”.    

 

Em tese geral, o imposto constitui uma “prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida por uma entidade pública com o propósito de angariação de receita”, ao passo que a taxa se caracteriza como “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se essas duas espécies de tributos pelo seu carácter de unilateralidade ou bilateralidade (cfr., na linha de outros Autores, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 214 e 240).

 

Por seu lado, a constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

 

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira“a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos  e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095).

 

Neste sentido, as contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 287). 

 

Trata-se, neste caso, de tributos de natureza bilateral ancorados numa lógica grupal ou de equivalência de grupo, por oposição ao que sucede com a figura das taxas, que se alicerça num princípio de equivalência estrita ou individual, e que, nessa medida, são uma categoria de tributo cujo facto tributário se constitui em função de um nexo bilateral derivado para o qual influem os sujeitos passivos do grupo a que pertencem (cfr. Filipe de Vasconcelos Fernandes, O (Imposto) Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pág. 86-87 e nota 132). E que dependem, do mesmo modo, do preenchimento de três diferentes requisitos: a homogeneidade do grupo, que pressupõe uma distinção face à carga impositiva geral que incide sobre a generalidade dos contribuintes, a 

responsabilidade de grupo, que implica uma relação específica entre o cada grupo homogéneo e certas necessidades de ordem financeira, e a utilidade de grupo, que tem por base o facto de estes tributos assentaram num princípio de equivalência de grupo, de forma que a receita é utilizada no interesse de todo o grupo, e não especificamente de um contribuinte individual (idem, págs. 87-90).

Como se deixou dito, o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e constitui receita geral do Estado que é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

E, assim, ao contrário do que sucede com a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), que foi consensualmente caracterizada como uma contribuição financeira (cfr., por último o acórdão do STA de 25 de janeiro de 2023, Processo n.º 01622/20, e a jurisprudência nele citada), não pode ser atribuída essa mesma natureza ao ASSB, na medida em que não existe conexão entre os objetivos que presidem à sua criação e uma qualquer responsabilidade acrescida do setor bancário, como também não há uma relação específica de proximidade entre o grupo de sujeitos passivos e ónus de custear o serviço público de segurança social, nem subsiste qualquer benefício para o grupo por efeito da carga fiscal com que é diferenciadamente onerado. E, nesses termos, não se verificam os requisitos típicos de homogeneidade, responsabilidade e utilidade de grupo que possam justificar a caracterização do ASSB como contribuição financeira (idem, págs. 91-96).

E, por maioria de razão, está excluído que o ASSB possa integrar o conceito de taxa, uma vez que não estão em causa qualquer dos pressupostos enumerados no artigo 4.º, n.º 2, da LGT que permitam evidenciar o carácter de bilateralidade do tributo.

Em face a todo o exposto, o ASSB constitui um imposto especial sobre o sector bancário, que, não obstante apresentar um âmbito de incidência semelhante à Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), não se limita a estabelecer uma nova taxa sobre a matéria coletável dessa contribuição, nem um novo imposto sobre a coleta, e, nesse sentido, não corresponde a um adicional ou a um adicionamento, mas a um imposto autónomo (sobre o conceito de adicional e de adicionamento, cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, pág. 79; no sentido da qualificação do ASSB como imposto, Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., pág. 92, e a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T). 

 

Inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal

 

7. A Requerente suscita a inconstitucionalidade do regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, em relação ao imposto que se torna devido em 2020, por considerar que, por efeito da norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o adicional é calculado, nesse caso, por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, e, sendo assim, o facto gerador do pagamento do imposto verifica-se em momento anterior à entrada em vigor da lei, que ocorreu no dia seguinte à sua publicação.

 

É esta a questão que cabe primeiramente apreciar.

Tal como prevê para a CSB o artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o ASSB, nos termos da disposição homóloga do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, igualmente incide sobre o “passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos”, estatuindo o artigo 4.º, n.º 4, quanto à quantificação da base de incidência, que “a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”. 

No entanto, a norma transitória do artigo 21.º da mesma Lei, determina, na sua alínea a) do n.º1, que, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, “a base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”.

O artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, sob a epígrafe “Disposição transitória”, consigna o seguinte:

  

a) A base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, e nas contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2021, publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas;” 

Com efeito, o adicional é calculado com base numa média relativa ao primeiro semestre de 2020, e embora deva haver correspondência entre os saldos de cada mês, nesse semestre, e os saldos que constem das contas anuais relativas ao mesmo semestre, o certo é que a eventual divergência entre o saldo médio que serviu de base à liquidação do imposto e os saldos mensais aprovados nas contas anuais, apenas poderá justificar a correção aritmética, por parte da Autoridade Tributária, com base na verificação de erros ou omissões que determinem a exigência de um valor do adicional superior ao liquidado, tal como prevê o artigo 6.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020. 

Ou seja, a exigida correspondência entre o saldo médio relativo ao primeiro semestre e os saldos finais de cada mês considerados nas contas anuais não salvaguarda a retroatividade do imposto, visto que a aprovação das contas referentes a 2020, incluindo as do primeiro semestre, em atenção ao disposto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, só pode ocorrer após o encerramento de cada exercício anual, e, portanto, após o período de tributação a que respeita ao imposto (cfr. Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 481). 

Tendo em consideração que, no que se refere ao adicional devido em 2020, o sujeito passivo deve efetuar a liquidação do imposto até 15 de dezembro de 2020, não será possível ao contribuinte certificar, através das contas anuais, a média de saldo que serviu de base à liquidação, e, sendo assim, não há qualquer dúvida que o facto tributário que origina o imposto é o mero apuramento contabilístico da média dos saldos do passivo relativamente ao primeiro semestre.

 Como explicita, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T, à data da liquidação do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, ainda se não encontra encerrado o exercício nem aprovadas as contas, pelo que o facto tributário que a norma erige para efeito de liquidação não é a aprovação das contas, mas o facto material da verificação de existência do passivo através dos dados inscritos na contabilidade, e que necessariamente ocorre ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020.

 

Assim sendo, a violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, relativamente à referida norma, ocorre na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020.

 

Nesse sentido se pronunciaram os acórdãos do TC n.º s 149/2024 e 469/2024. O primeiro julga inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, a norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), “no segmento em que se estabelecem as regras de liquidação e pagamento do adicional de solidariedade sobre o setor bancário, previsto no regime que consta do Anexo VI à referida lei, relativo ao ano 2020”. O segundo julga inconstitucional a mesma norma, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, “no segmento que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020”.

 

Aliás, como se depreende dos artigos 267.º, 275.º, 276.º e 278.º da petição inicial, a Requerente imputa a inconstitucionalidade da norma transitória, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal, por considerar que o ASSB, sendo um tributo criado em julho de 2020, se torna devido, pela primeira vez, tendo por referência saldos de passivos relativos ao primeiro semestre de 2020.

 

E, de resto, no artigo 284.º, vem a concluir do seguinte modo:

 

Face ao exposto, é manifesto que o regime do ASSB veio exigir uma nova prestação tributária, para o ano de 2020, por referência a factos ocorridos integralmente antes da entrada em vigor da respetiva lei, o que redunda numa regulação a posteriori de factos cujos efeitos se encontravam já plenamente concretizados na ordem jurídica.

Ora, estando em causa atos de autoliquidação de 2022 e 2023, não lhes é aplicável a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, da Lei n.º 27-A/2020, que se refere ao adicional de solidariedade devido em 2020, pelo que não pode considerar-se verificada a retroatividade dessa norma.

Violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva.

 

8. A Requerente assaca ao regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário a violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva, na medida em que cria uma imposição injustificada sobre um grupo seletivo de contribuintes e  um tratamento discriminatório entre sujeitos passivos colocados na mesma situação, em face de uma necessidade de financiamento geral.

 

Para dar resposta a estas questões deve começar por efetuar-se, ainda que em termos sucintos, a caracterização dos princípios constitucionais da igualdade fiscal e da capacidade contributiva.

 

Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 11ª edição, Coimbra, 2021, págs. 154-155). 

Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece de um específico e direto preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respetiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103.º e 104.º da Constituição (ob. cit., pág. 155).

Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto» (ob. cit., pág. 157).

Também o Tribunal Constitucional tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa, por exemplo, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo».

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

            9. Como se deixou exposto, o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e incide sobre instituições de crédito sediadas em território português e filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigos 1.º e 2.º).

 

Tem uma estrutura de incidência objetiva e subjetiva similar ao previsto para a Contribuição sobre o Sector Bancário (artigo 3.º), com a significativa diferença de a receita do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário constituir receita geral do Estado, consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (artigo 9.º).

 

Importa fazer notar, num primeiro momento, que, não obstante a similitude de incidência com a Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB), o ASSB não pode ser entendido como uma tributação acessória ou adicional do CSB, nem constitui uma contribuição de estabilidade financeira.

 

A Contribuição sobre o Sector Bancário foi criada pelo artigo 141.º da Lei do Orçamento do Estado para 2011, entretanto alterada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, como uma 

contribuição extraordinária, que constitui receita do Fundo de Resolução, criado mediante a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, ao Regime das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (artigo 153.º-F, alínea a)) e definido como pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, que funciona junto do Banco de Portugal (artigo 153.º-B). O Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo Banco de Portugal e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas (artigo 153.º-C) e nele participam obrigatoriamente, entre outras entidades, as instituições de crédito com sede em Portugal (artigo 153.º-D).

 

O próprio Relatório do Orçamento de Estado para 2011 explica a génese da Contribuição sobre o Sector Bancário em termos suficientemente elucidativos quanto aos objetivos que se pretendiam atingir, aí se afirmando (pág. 73):

 

«A Proposta do Orçamento do Estado para 2011 procede ainda à criação de uma contribuição sobre o sector bancário na linha daquelas que foram já́ introduzidas noutros Estados Membros, com o propósito de aproximar a carga fiscal suportada pelo sector financeiro da que onera o resto da economia e de o fazer contribuir de forma mais intensa para o esforço de consolidação das contas públicas e de prevenção de riscos sistémicos, protegendo também, assim, os trabalhadores do sector e os mecanismos de segurança social.

A contribuição incide, assim, sobre as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, sobre as filiais de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e sobre as sucursais, instaladas em território português, de instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração em Estados terceiros». 


          Face ao seu regime jurídico, a CSB tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto dos regulados à respetiva entidade ou agência de regulação. Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos, nem se caracteriza como um imposto, pois que não se verifica o requisito de unilateralidade: não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita (não se destina a que «as instituições participantes concorram para os gastos da comunidade, em cumprimento de um qualquer dever de solidariedade»), antes se pretendendo que o sector financeiro contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.

 

E a sua natureza não é afastada pela circunstância de as receitas provenientes da CSB serem consignadas ao Fundo de Resolução, porquanto o Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas pelo Banco de Portugal e visa a prevenção dos riscos sistémicos do sector bancário. Esse mesmo objetivo é assinalado na nota preambular da Portaria 

nº 121/2011, de 30 de março, onde se refere que os elementos essenciais da CSB são definidos «em termos semelhantes aos de contribuições já introduzidas por outros Estados Membros da União Europeia, com o duplo propósito de reforçar o esforço fiscal feito pelo sector financeiro e de mitigar de modo mais eficaz os riscos sistémicos que lhe estão associados».

 

Como se concluiu no acórdão do STA de 19 de Junho de 2019 (Processo n.º 02340/13), a motivação legislativa constante dos diplomas que regularam a contribuição para o sector bancário e o Fundo de Resolução legitima a ilação de que a contribuição visou, em primeiro lugar e desde o início, atenuar as consequências resultantes das intervenções públicas no sector financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo sector, reconduzindo-se a um instrumento de apoio na prevenção dos inerentes riscos do sistema, não se destinando a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado. 

 

Trata-se, nestes termos, de um tributo que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efetiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades financeiras das entidades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira (cfr., neste preciso sentido, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 706/2018-T).

 

Contrariamente, o ASSB é um verdadeiro imposto que constitui receita geral do Estado e se encontra consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, e, embora destinado a fazer face de modo indistinto às necessidades de financiamento da segurança social, se carateriza como um imposto sectorial na medida em que incide exclusivamente sobre o sector financeiro.

 

10. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, que, na sequência da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, aprovou o Programa de Estabilização Económica e Social, refere-se no ponto 4.3.5 à criação de um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, “cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise”. Esse mesmo propósito é mencionado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, e a que, num momento anterior, já se fez referência.

 

O artigo 1.º, n.º 2, do Regime do ASSB, já transcrito, refere ainda que o tributo tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores. 

 

No entanto, o próprio Relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), incidente sobre a proposta de alteração da lei orçamental para 2020 (Relatório n.º 13/2020), consigna que “a iniciativa legislativa não tem justificação no contexto COVID-19, antes sendo 

 

apresentada pelo Governo para contribuir, de modo permanente, para a diversificação das fontes de financiamento das pensões pagas pelo sistema previdencial da Segurança Social Pública” e 

acrescenta que, “do ponto de vista técnico, não se entende a necessidade de justificar publicamente a criação do imposto como sendo uma compensação por o sector das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras estar isento de IVA nas transmissões efetuadas”, quando “deveria também dizer-se que as operações deste sector são tributadas por uma miríade de taxas do imposto do selo”.   

 

E, com efeito, dificilmente se compreende a justificação fornecida pelo legislador quando pretende associar a sujeição das instituições de crédito ao ASSB à despesa fiscal decorrente da isenção aplicável a serviços e operações financeiras.

 

A isenção de IVA relativamente a operações bancárias e financeiras está expressamente prevista na Diretiva 2006/112/CE (artigo 135.º) e o artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA limita-se a efetuar a transposição dessa regra para o direito interno. E, por outro lado, o conteúdo das isenções não pode ser alterado pelos Estados-Membros, dado que estão em causa conceitos autónomos de direito europeu que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA, devendo ainda ser objeto de uma interpretação restritiva, na medida em que constituem derrogações ao princípio geral segundo o qual o imposto sobre o valor acrescentado é cobrado sobre todas as prestações de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo (cfr. acórdãos do TJUE, nos Processos n.ºs C-348/1987 e C-455/05).

 

Acresce que, como esclarece Clotilde Celorico Palma, “[a]s isenções em sede de IVA assumem uma natureza objetiva, ou seja, para efeitos da sua concessão releva essencialmente a natureza da atividade prosseguida e não a natureza jurídica da entidade que prossegue a atividade”. Além de que as isenções em IVA têm uma lógica diferente das isenções concedidas no âmbito dos impostos sobre o rendimento. Como refere a mesma Autora, “[a]o passo que nestes impostos, a isenção libera o beneficiário do pagamento do imposto, no IVA as situações de isenção clássica traduzem-se na não liquidação do imposto nas operações ativas por parte sujeito passivo beneficiário (o beneficiário paga imposto mas não liquida). Isto é, nas suas operações passivas (aquisições de bens e prestações de serviços) os sujeitos passivos de IVA não beneficiam de isenção” (Introdução sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 6.ª edição, págs. 172-174).

 

Na situação prevista no artigo 135.º da Diretiva IVA, como explica ainda Sérgio Vasques, trata-se de “isenções simples ou incompletas que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante, pelo que o sujeito passivo, não liquidando IVA imposto sobre a operação isenta, não deduz o imposto em que incorra nas aquisições destinadas à sua realização”. E, nesse sentido, “o sujeito passivo passa a ocupar posição idêntica à do consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições”, pelo que a isenção não representa um verdadeiro benefício para o sujeito passivo, como sucede com a generalidade das isenções de imposto, na medida em que acaba por suportar o peso do imposto 

 

por via das suas aquisições, originando um imposto oculto pela incorporação do IVA incorrido a montante no preço dos bens e serviços prestados a terceiros (O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 2015, págs. 312-313; em idêntico sentido, Angelina Tibúrcio, Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coimbra, 2014, pág. 160). 

 

Por outro lado, como refere o Autor há pouco citado, as isenções de IVA relativas a serviços financeiros são motivadas por razões de ordem técnica que respeitam à dificuldade em apurar o valor acrescentado inerente a essas operações e, em especial, no que se refere à determinação da matéria coletável e do montante do IVA dedutível (ob. cit., págs. 318-319, e ainda o acórdão do TJUE, no Processo n.º C-455/05, considerando 24.)

 

Num outro plano de análise, importa ainda reter que a isenção de IVA para serviços e operações financeiras tem como contraponto a sujeição das operações financeiras a imposto do selo, nos termos da verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, sendo sintomático, quanto ao nível de dependência entre os dois impostos, que o artigo 1.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo exclua do âmbito de incidência objetiva do imposto “as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”. Como assinala Saldanha Sanches, “o imposto do selo assume a sua vocação de tributar aquilo que não pode ser tributado de outra forma” e ao contribuinte assiste o direito de ser tributado da forma que melhor se adequa ao normal funcionamento da economia de mercado e ao princípio da tributação segundo a capacidade contributiva do sujeito passivo (Manual de Direito Fiscal, 3ª edição, Coimbra, pág. 435).

 

Em todo este contexto, não é possível determinar objetivamente o critério de diferenciação que conduziu o legislador a sujeitar as instituições de crédito a um imposto especial sobre o sector bancário, nem é possível discernir qual a sua real fundamentação. 

 

Encontrando-se a medida legislativa descrita como sendo um tributo destinado a compensar a isenção de IVA de que beneficia o setor financeiro, não se compreende que, simultaneamente, sejam excluídas outras categorias de atividades que se encontram igualmente isentas e que poderão revelar idêntica ou superior capacidade contributiva. E não é tido em devida consideração, na aplicação da medida, que as isenções previstas na Diretiva, e transpostas para o direito interno pelo artigo 9.º do Código do IVA, são de carácter obrigatório, e, no que se refere aos serviços e operações financeiras previstos no artigo 135.º da Diretiva, essas isenções são motivadas pelas dificuldades práticas de apuramento do valor acrescentado e de aplicação do imposto, e não por qualquer propósito de favorecimento fiscal. O legislador desconsidera ainda que a isenção simples, que é aplicável ao caso, não confere o direito à dedução do imposto a montante, e não representa, por isso, uma efetiva vantagem para o sujeito passivo, que acaba por suportar a incidência do imposto através das suas aquisições. Além de que não se tem em linha de conta que essa isenção, no direito nacional, já é contrabalançada pelo imposto do selo, que abrange a generalidade das operações financeiras, tal como sucede, em geral, na legislação dos Estados Membros, em que as operações relativamente às quais se 

afasta a aplicação da diretiva, são sujeitas a impostos especiais (cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, citado, pág. 317).

 

Em todo este condicionalismo, a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o sector bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado.

 

11. As condicionantes da criação do ASSB justifica ainda que se recoloque a questão sob o prisma da capacidade contributiva. 

 

Como ressalta do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da LGT, em linha com o artigo 104.º da Constituição, “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”, pelo que são esses os indicadores possíveis do critério de repartição dos impostos. Nesse mesmo sentido, Sérgio Vasques considera que, em razão do princípio da capacidade contributiva, “os impostos devem adequar-se à força económica do contribuinte e por isso o seu alcance mais elementar está na exigência de que o imposto incida sobre manifestações de riqueza e que todas as manifestações de riqueza lhe fiquem sujeitas”. E sublinha que, “para que o imposto corresponda à força económica de quem o paga, é forçoso que incida sobre realidades economicamente relevantes, realidades que se podem reconduzir sinteticamente ao rendimento, ao património e ao consumo” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 295).   

 

Como explicita Filipe de Vasconcelos Fernandes (ob. cit., págs. 107-109), o rendimento corresponde ao produto imputável, regularmente e durante um certo período, a uma fonte durável, designadamente ao trabalho (salários, comissões, etc.), ao património (rendas, juros, etc.) ou a uma combinação integrada de trabalho e património (lucros de uma exploração industrial ou comercial). Por outro lado, o rendimento pode corresponder, além do rendimento consumido, à diferença, num determinado período, entre o património final e inicial do contribuinte, compreendendo o rendimento não consumido ou aforrado, os bens adquiridos a título gratuito ou aleatório e as valorizações do ativo, na conceção de rendimento-acréscimo. Os impostos sobre o consumo tributam o rendimento através da sua manifestação em atos de despesa, ou seja, o rendimento propriamente gasto com a aquisição de bens ou serviços. Podem revestir a forma de impostos gerais (IVA) ou de impostos especiais (IEC), apresentando em comum a circunstância de onerarem a transmissão de bens ou serviços. Os impostos sobre o património incidem sobre o rendimento acumulado que, entretanto, foi transformado em valor patrimonial tributário, quer considerado estaticamente o património em si mesmo (IMI), quer numa perspetiva dinâmica, tributando-se o património apenas no momento da respetiva transmissão (IMT).

 

No caso do ASSB, como conclui o mesmo Autor, não está em causa qualquer modalidade de tributação do rendimento, mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das 

componentes do passivo. Do mesmo modo que não se trata da oneração de atos de despesa, que pudesse reconduzir-se a um imposto sobre atividades financeiras ou sobre transações financeiras. E, por outro lado, ainda que pudesse dizer-se, de um ponto de vista contabilístico e financeiro, que os elementos do passivo que são objeto de tributação por via do ASSB integram o balanço dos sujeitos passivos, não poderá entender-se que estamos aí perante modalidade de tributação do património.

 

A ausência de uma cabal correspondência entre o ASSB e um concreto índice de valoração de capacidade contributiva coloca em causa a viabilidade constitucional do imposto, na medida em que impossibilita o estabelecimento de qualquer tipo de relação causal entre o objeto da tributação que é imposto aos sujeitos passivos e um efetivo incremento de capacidade contributiva, sobretudo quando não está em causa uma contrapartida pela prevenção de riscos sistémicos em que as instituições de crédito possam estar envolvidas (como sucedia com a CSB), mas uma exclusiva medida de angariação de receita.

 

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 217/15, o princípio da capacidade contributiva assume um valor paramétrico fundamentalmente como condição da tributação, de molde a impedir que determinado imposto atinja uma riqueza ou rendimento que não existe, vedando a exação de uma capacidade de gastar que verdadeiramente não se verifica. Em idênticos termos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/2004 consigna que a capacidade contributiva preenche o critério unitário da tributação, entendendo-se esse critério como sendo aquele em que “a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica ou capacidade de gastar (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.

 

No caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam.

Em conclusão:

As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.

Resta acrescentar que, no mesmo sentido, no que respeita à violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, se pronunciaram os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 469/2024, 529/2024, 192/2024 e 737/2024 e a decisão sumária n.º 168/2025, confirmando as decisões arbitrais proferidas no CAAD.

Em consequência, os atos de autoliquidação de ASSB relativos aos períodos de tributação de 2022 e 2023, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, são ilegais.

Vícios de conhecimento prejudicado

12. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.

            

Juros indemnizatórios

 

13. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato tributário de autoliquidação do ASSB ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde a data do pagamento 

indevido do imposto, à taxa dos juros legais, até à data do processamento da respetiva nota de crédito (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

No entanto, em caso de autoliquidação, e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passa a ser imputável à Autoridade Tributária depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte, ou seja, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração teve de pronunciar-se sobre a situação do contribuinte (acórdão do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16).

 

Considerando que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa é de 10 de setembro de 2024, são devidos juros indemnizatórios a partir de 11 de setembro de 2024. 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a)    Não declarar inconstitucional por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, na situação em análise, a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho; 

b)    Declarar inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva;

c) Declarar ilegais e anular os atos tributários de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário referentes aos períodos de tributação de 2022 e 2023, respetivamente, nos montantes de € 442.558,11 e de € 485.819,68;

d)   Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde 11 de setembro de 2024 até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 928.377,79, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 13.158,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notificação ao Ministério Público

 

Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de maio de 2025

   

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

 

 

Tomás Tavares (com declaração de voto e voto de vencido)

 

O Árbitro vogal

 

 

Luís Menezes Leitão

 

 

Declaração de voto e voto de vencido.

1. Declaro que voto favoravelmente a questão principal – acerca de inconstitucionalidade dos preceitos referidos do ASSB – por adesão institucional aos vários Acórdãos do Tribunal Constitucional sobre o tema.

2. Votei vencido quanto ao tema dos juros indemnizatórios. Tê-lo-ia negado, com base na jurisprudência do STA (Acórdão de 22/3/2017, no proc. 0471/14), porque no momento da liquidação e pagamento do ASSB (e decisão de indeferimento da reclamação graciosa) ainda não havia declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral; nem se está perante, na minha opinião, da violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas.

30 de maio de 2025

 

 

Tomás Cantista Tavares