Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1341/2024-T
Data da decisão: 2025-06-26  IRS  
Valor do pedido: € 22.593,19
Tema: IRS; Residência Parcial; Rendimentos Obtidos no Estrangeiro
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SUMÁRIO: 

1. Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do CIRS, a sujeição a IRS depende da verificação de um critério de conexão relevante – a residência fiscal ou a fonte do rendimento – sendo que, nos termos dos artigos 15.º e 16.º do mesmo Código, o estatuto de residência determina o âmbito de sujeição pessoal a imposto: tributação ilimitada no caso de residentes (abrangendo os rendimentos de fonte mundial) e tributação limitada no caso de não residentes (abrangendo apenas os rendimentos obtidos em território português).

2.  Verificando-se uma situação de residência parcial, é aplicável o disposto no artigo 15.º, n.º 3, do CIRS, que impõe a repartição da sujeição ao imposto consoante os períodos de residência e não residência, não podendo ser tributados em Portugal rendimentos obtidos ou colocados à disposição durante o período em que o sujeito passivo era não residente, salvo se forem considerados como obtidos em território nacional.

  

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

            1.  A..., Contribuinte n.º..., residente em ..., ..., Estados Unidos da América , vem, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRS n.º ..., referente ao ano de 2019, no valor de € 22.593,19, dos quais € 21.529,13 correspondem ao valor do imposto liquidado, e € 1.604,06 a título de juros compensatórios.

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado em 13 de dezembro de 2024 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida).

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

            4. As partes foram notificadas dessa designação, em 4 de fevereiro de 2025, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

            5. O Tribunal Arbitral ficou constituído em 24 de fevereiro de 2025.

            6. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta no dia 2 de abril de 2025 e juntou o processo administrativo (PA).

            7. Em tal Resposta a Requerida defendeu-se por impugnação, pugnando pela improcedência do pedido de pronuncia arbitral apresentado pelo Requerente.

            8. Como não foi requerida a produção de prova testemunhal, por despacho de 28 de abril de 2025, o Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e notificou as partes para, querendo, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 20 dias

            9. Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais e em suma, reforçaram o posicionamento de procedência e de improcedência inicialmente aduzidas.

 

II. POSIÇÕES DAS PARTES

 

§1 Posição do Requerente

           10.    O objeto do pedido de pronúncia (mediato) consiste, assim, na apreciação da ilegalidade do ato de liquidação de IRS, referente ao ano de 2019, do qual resultou o montante a pagar no valor de € 22.593,19, e (imediato) o Despacho de Indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa.

           11.    O Requerente defende que a liquidação impugnada deve ser anulada por vício de violação de lei, uma vez que foi tributado por rendimentos do trabalho obtidos no estrangeiro, mais concretamente no mês de agosto de 2019, quando ainda não era residente em Portugal.

           12.    A pretensão anulatória alicerça-se nos seguintes fundamentos:

a.   O Requerente foi residente fiscal na Alemanha entre abril de 2016 e agosto de 2019;

b.   Em 18/04/2019, o Requerente celebrou um acordo de cessação do contrato de trabalho com a sua Entidade Empregadora nos termos do qual:

(i) o contrato de trabalho cessou em 31/08/2019;

(ii) foi acordado o pagamento de uma indemnização global no montante de € 426.045,61, com pagamento em 2 tranches: (a) Uma no valor de € 111.749,67 até 31/08/2019 (b) a outra no montante de € 314.295,94 até 31/10/2020;

c.    Declarou os rendimentos de trabalho dependente, auferidos na Alemanha entre abril de 2016 e agosto de 2019, na qualidade de residente neste país.

d.   O Requerente passou a ser residente em Portugal em 18/09/2029.

e.    Em 28/06/2020, entregou a declaração de rendimentos referente ao ano 2019 (MOD.3), tendo, posteriormente, em 24/09/2021, submetido Declaração de Substituição na qual inscreveu, erradamente, o rendimento de € 111.749,57 no Anexo J.

f.    A tributação é ilegal porque assenta no enquadramento erróneo de rendimentos obtidos na Alemanha, em data anterior à residência em Portugal, como tendo sido auferidos após a alteração da residência.

           13.    O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da acima aludida liquidação de IRS, que foi indeferida pela AT, com o fundamento de que o Requerente não logrou fazer prova suscetível de afastar a tributação em Portugal dos rendimentos inscritos no Anexo J da modelo 3.

           14.    Defende o Requerente que não reunia os pressupostos legais para ser considerado residente em Portugal no ano de 2019 ao abrigo do n.º 5 do artigo 16.º do CIRS, e tendo sido tributado pelo regime regra – no país onde fora residente - nele deve permanecer nos termos do regime de tributação por período de residência parcial em Portugal, nos termos do citado artigo 16.º do CIRS.

 

§2 Posição da Requerida

 

       15.         A Requerida apresentou resposta, na qual sustenta, no essencial, que objeto do presente pedido é o montante de € 111.749,67 declarado pelo Requerente no Anexo J, o qual diz respeito a rendimentos de trabalho dependente (categoria A) alegadamente obtidos no estrangeiro (Alemanha), mencionado no Quadro 4A do Anexo J, sendo, ainda, mencionado no Anexo L a opção pelo método do crédito de imposto.

           16.        De acordo com a petição e os documentos juntos, é alegado que a quantia declarada é relativa a uma indemnização decorrente da cessação de contrato de trabalho do Requerente com a sua entidade patronal alemã, facto que ocorreu em 31/08/2019, o que significa que o direito àquela quantia ocorreu em momento anterior à sua residência em Portugal.

           17.        Sustenta a AT que, relativamente aos rendimentos da categoria A, o momento pertinente para efeitos de tributação não é o momento em que o direito é adquirido, mas sim o momento do pagamento ou colocação à sua disposição e, neste particular, cabia ao Requerente provar que aquele montante foi pago em momento anterior à sua residência em Portugal.

           18.        Entende a AT que o recibo de vencimento emitido em 28/04/2029, no qual consta entre outros o montante de € 111.749,67, e a declaração de substituição do IRS do ano de 2019, submetida a 07/02/2020, onde consta o montante correspondente ao valor da indemnização, não fazem prova de que o rendimento foi obtido em data anterior a 01/09/2029, data a partir da qual o Requerente declarou ser residente em Portugal.

           19.        Adicionalmente defende a AT que o Requerente declarou aquele montante à autoridade fiscal alemã apenas em novembro, e que as informações prestadas por esta entidade, ao abrigo do SITI - Sistema Integrado de Troca de Informação - indicando um montante superior ao declarado pelo Requerente, indiciam que o valor correspondente à indemnização foi pago quando o Requerente já era residente em Portugal.

           20.        Conclui que resultando a liquidação dos elementos fornecidos pelo Requerente o ato tributário impugnado não merece censura.

 

III. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é, assim, materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.

O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

i. Fatos provados

a.     O Requerente celebrou um acordo de cessação do Contrato de Trabalho com a empresa B... em 18/04/2019, com efeitos reportados a 31/08/2019. (Cf. Doc. n.º 9 e PA)

b.     Por força do acordo de cessação foi atribuída ao Requerente uma indemnização no montante global de € 426.045,61, tendo o Requerente recebido a indemnização referente ao período da prestação de trabalho em Hong Kong, no montante de € 111.749,67, até 31/08/2019. (Cf. Doc. 9 e PA)

c.     O Requerente mudou o seu domicílio fiscal para Portugal em 18/09/2019 e assinalou o Campo “Residente Fiscal Parcial” entre 01/09/2019 e 31/12/2019. (cf. Docs. n.ºs 3 e 8 e PA)

d.     O montante da indemnização de € 111.749,67 consta do recibo de vencimento emitido em 24/08/2019 pela entidade empregadora do Requerente. (cf. Doc. 10 e PA)

e.     A entidade empregadora transferiu o montante de € 68.443,86 (líquido-deduzido de impostos) para a conta do Requerente em 29/08/2019 (Cf. Doc. A, Doc. n.º 10 e PA)

f.      O Requerente entregou a declaração de rendimentos (MOD 3) referente ao ano de 2019 no dia 28/06/2019. (Cf. Doc. n.º 4 e PA)

g.      Em 24/09/2019 o Requerente apresentou a declaração de substituição onde reportou os rendimentos a tempo parcial em Portugal - entre 01/09/2019 e 31/12/2019 – incluindo os anexos J e L. (Cf. Doc. n.º 5 e PA)

h.     O valor da indemnização de € 111.749,67 foi declarado como rendimento da categoria A (trabalho dependente) no Anexo J e como rendimento de elevado valor acrescentado (Anexo L), com opção pelo crédito de imposto. (Cf. Doc. n.º 5 e PA)

i.      Os rendimentos do trabalho obtidos na Alemanha, na qualidade de residente alemão, foram declarados neste Estado. (Cf. Doc. n.º 7 e PA)

j.       Após a submissão da declaração de substituição, a AT emitiu a liquidação n.º […] com o valor a pagar de € 22.593,19. (Cf. PA)

k.     Oportunamente o Requerente apresentou Pedido de Revisão Oficiosa que foi indeferido por despacho do Direto de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 30/08/2024, notificado ao Requerente em 06/10/2024. (Cf. PPA e PA)

l.      Entendeu a AT, no supra identificado despacho de indeferimento, entre o mais, o seguinte:

m.   Exercido o direito de audição prévia pelo Requerente, a AT manteve aposição assumida no projeto de decisão, tendo concluído o seguinte: 

n.     O Requerente apresentou, no dia 13/12/2024, pedido de pronúncia arbitral (sistema informático do CAAD).

 

ii Factos não provados

 

Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.

 

iii Fundamentação da fixação da matéria de facto provada

 

O Tribunal Arbitral tem o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e identificar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes e no acervo probatório carreado para os autos (incluindo o processo administrativo), os quais foram objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade. 

 

V. MATÉRIA DE DIREITO

 

i.      Questão decidenda

Cabe a este Tribunal apreciar a legalidade do ato de liquidação de IRS relativo ao ano de 2019, no valor de € 22.593,19, resultante da tributação de rendimentos auferidos no estrangeiro, em alegado período anterior à residência fiscal em Portugal.

Está, assim, em causa determinar se o montante de € 111.749,67 foi colocado à disposição do Requerente em momento anterior à sua residência em Portugal, e se, por conseguinte, deve considerar-se excluído da tributação ao abrigo do CIRS português.

 

ii Enquadramento legal

Cumpre convocar, para a apreciação do presente litígio, as seguintes normas do CIRS:

Artigo 13.º, n.º 1: “Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.”  

Nos artigos 15.º e 16.º do CIRS, estabelece-se o seguinte:

Artigo 15.º

Âmbito de sujeição  

1. Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território

2. Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.

3. O disposto nos números anteriores aplica-se aos casos de residência parcial previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte, relativamente a cada um dos estatutos de residência.

Artigo 16.º

Residência

 1. São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a)     Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b)     Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;”

Como bem se salientou na decisão arbitral proferida no Processo n.º 847/2024-T[1], a residência fiscal constitui, a par da fonte do rendimento, um dos critérios de conexão determinantes para a sujeição a imposto, quando estão em causa situações com elementos internacionais.

(…)

A residência é, a par da fonte do rendimento, um dos elementos de conexão que definem os termos da aplicação da lei fiscal no espaço, quando nos encontramos perante situações com um elemento internacional relevante.

 Reportando-nos ao já aludido artigo 13.º, n.º 1 do CIRS, a tributação em Portugal dos rendimentos obtidos por pessoas singulares que residam em território português reflete o elemento de conexão “residência”, ao passo que a tributação dos não residentes quanto aos rendimentos considerados como obtidos em território português concretiza a aplicação do elemento de conexão “fonte”.

(…)

A definição de residência em território português é dada pelo artigo 16.º do CIRS (…) 

(…)

Para além de corresponder, como vimos, a um dos elementos de conexão para a aplicação da lei fiscal no espaço, a residência é também um conceito essencial para determinar o âmbito de sujeição pessoal ao IRS, uma vez que este tende a ser bastante distinto para residentes e não residentes.

Relativamente aos residentes, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora de território português (artigo 15.º, n.º 1 do CIRS). Os residentes encontram-se, portanto, sujeitos a um princípio da universalidade ou da tributação universal ou ilimitada pelo Estado da residência. Assim, podem ser tributados em Portugal todos os rendimentos obtidos por um residente, independentemente do local onde tais rendimentos sejam obtidos.

(…)

Em contrapartida, um não residente – pessoa singular que não preencha nenhum dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do CIRS – encontra-se sujeito a IRS unicamente quanto aos rendimentos obtidos em território português (artigo 15.º, n.º 2 do CIRS). Os não residentes são tributados ao abrigo do elemento de conexão fonte do rendimento. O artigo 18.º elenca os rendimentos que se consideram obtidos em território português e que, como tal, podem ser tributados em sede de IRS mesmo quando auferidos por um não residente.”

Em conformidade, o critério da residência determina a sujeição à tributação universal (cf. artigo 15.º, n.º 1 do CIRS), segundo o qual todos os rendimentos do residente, independentemente da sua origem territorial, são tributáveis em Portugal independentemente do local da sua origem. Por oposição, o critério da fonte (artigo 15.º, n.º 2) aplica-se aos não residentes, que apenas são tributados quanto aos rendimentos considerados obtidos em território nacional. Nos termos do n.º 3 do artigo 15.º, em situações de residência parcial, as regras dos n.ºs 1 e 2 aplicam-se separadamente aos períodos em que o sujeito passivo tem, respetivamente, estatuto de residente e de não residente.

No caso em apreço, e face à matéria de facto fixada, não se verifica que o Requerente tenha permanecido em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, no período de 12 meses com início ou fim no ano de 2019 e, por outro lado também não se encontra demonstrado que o Requerente não tenha residido na Alemanha no mesmo período temporal, nem tal nunca foi colocado em causa pela AT.

Assim sendo, tendo por base o corpo do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, a verificação dos requisitos da residência deve ter por referência o ano a que respeitam os rendimentos e, no espectro temporal sub judice, o Requerente não preencheu nenhum destes requisitos antes de 18/09/2019, data em que mudou a sua residência fiscal para Portugal. Por consequência, não se mostra verificado o critério de residência estatuído nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.

Já no que respeita à sujeição ao imposto, à luz do artigo 15.º, n.º 2 do CIRS, durante o período de não residência, o Requerente apenas podia ser tributado em Portugal quanto aos rendimentos aqui obtidos, o que não se verifica no caso vertente.

Destarte, a liquidação de IRS objeto da presente impugnação incidiu sobre o montante de € 111.749,67, referente a uma indemnização colocada à disposição do Requerente em momento anterior à sua mudança de residência para Portugal, conforme comprovado pelos documentos juntos aos autos pelo Requerente, nomeadamente, o acordo de cessação do Contrato de Trabalho, cujo teor reflete os termos e condições acordadas quanto ao pagamento de parte da indemnização que originou a liquidação de IRS sob escrutínio, bem assim como o comprovativo da transferência do valor correspondente a esta indemnização, deduzidos os impostos, datado de agosto de 2028, e o respetivo recibo de vencimento, que demonstram ter o Requerente recebido o montante da indemnização em momento anterior à alteração da residência para Portugal, não sendo, por isso, tributável à luz das regras aplicáveis a não residentes, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do CIRS.

Quanto à atuação da AT, refira-se que esta sustentou o indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa em dois argumentos, a saber: (i) na falta de prova pelo Requerente suscetível de afastar a tributação dos rendimentos declarados pelo próprio e (ii) na inexistência de qualquer injustiça grave ou notória pois a declaração foi entregue pelo próprio Requerente. 

Quanto ao ónus da prova, resulta do artigo 74.º n.º 1 da LGT que: "o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.", em consonância com o artigo 342.º n.º 1 do CC, " Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”

Ou seja, sobre a administração tributária recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à liquidação adicional e sobre o sujeito passivo recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à anulação dessa liquidação.

Por força do n.º 3 do artigo 74.º da LGT, no procedimento de liquidação da iniciativa da Administração Tributária, esta terá de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos, pressupostos da sua existência, qualificação e quantificação do facto tributário) e o sujeito passivo terá de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.

E o Requerente carreou para os autos um conjunto de documentos, acima mencionados, que demonstram que os rendimentos foram colocados à sua disposição antes de se tornar residente em Portugal. Prova essa que não foi eficazmente contrariada pela AT, que se limitou a invocar a ausência de elementos adicionais e informações parciais obtidas junto das autoridades fiscais alemãs.

            No que respeita à conduta da AT, nomeadamente no âmbito do procedimento tributário, salienta-se que a atuação da AT está subordinada ao princípio do inquisitório e da busca da verdade material ao abrigo do artigo 58.º da LGT, o que lhe impõe o dever de realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, sendo manifestamente insuficiente sustentar o pedido de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentada pelo Contribuinte, aludindo vagamente às parcas informações fornecidas pelos SIT da Alemanha, cuja força probatória, atendendo ao teor das mesmas, não afasta a prova feita pelo Requerente, e que, ademais, patenteia a ausência de iniciativa da AT no sentido de esclarecer os factos que, em seu entender, sustentam a liquidação de IRS em crise. 

Neste sentido veja-se a decisão do Processo n.º 769/2020-T do CAAD[2]:  

Com efeito, como se referiu, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT). As regras do ónus da prova, no procedimento tributário, não têm o alcance de dispensar a Administração Tributária do cumprimento deste dever, mas apenas de estabelecer contra quem deve ser proferida a decisão no caso de, no final do procedimento, ficar com uma dúvida insanável sobre qualquer ponto da matéria de facto. O funcionamento destas regras, assim, ocorre apenas quando, após a actividade necessária para a adequada fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida. Nestes casos, por força das regras do ónus da prova, devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. ( ). Assim, no procedimento tributário ( ), o princípio do inquisitório, enunciado neste artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova(acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação está em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

De resto, o dever de utilização de todos os meios de prova necessários resulta claramente de do artigo50.º do CPPT que estabelece que «no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos ...», independentemente o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte, norma esta que está em sintonia com o artigo 72.ºda LGT que estabelece que o «órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito».

As expressões “todas as diligências necessárias», «todos os meios de prova admitidos em direito» e«todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários», utilizadas nos artigos 26.º e 72.ºda LGT e 50.º do CPPT, não dão margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe à Administração Tributária e à não restrição dos meios de prova que deve utilizar

Considera-se assim demonstrado que o rendimento correspondente a parte do valor da indemnização, no montante de € 111.749,67, erroneamente declarado da declaração de substituição, foi colocado à disposição Requerente em momento anterior à sua residência em Portugal.

Face ao acima expendido, estando em causa um rendimento colocado à disposição do Requerente antes da sua residência fiscal em Portugal, e não tendo tal rendimento sido obtido em território nacional, a liquidação respeitante ao ano de 2019 e da qual resultou um valor a pagar de € 22.593,19, padece de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2, e 16.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código do IRS; consequentemente, aquele ato de liquidação de IRS é inválido e deve, por isso, ser anulado (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

 

iii. Da legalidade dos juros compensatórios 

 

Dispõem, na parte que aqui interessa, os números 1, 3, 6 e 8 do artigo 35º da LGT, sob a epígrafe “Juros compensatórios”, que: 

1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.

3 - Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correcção ou detecção da falta que motivou o retardamento da liquidação.

6 - Para efeitos do presente artigo, considera-se haver sempre retardamento da liquidação quando as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais.

8 - Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados. 

A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a respetiva liquidação de IRS e pressupõe que o retardamento da liquidação ocorra por facto imputável ao sujeito passivo e sempre que “as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais.”

Segundo a jurisprudência Uniforme do Supremo Tribunal Administrativo[3] são três os requisitos cumulativos da existência de juros compensatórios: (i) retardamento da liquidação base; (ii) de imposto devido; e (iii) por facto imputável ao contribuinte.

Trata-se, pois, de uma obrigação com carácter indemnizatório, com equivalente no direito privado na responsabilidade pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação (artº 798º CCivil).

Nesta senda, tendo sido declarada ilegal e anulada a liquidação do IRS objeto dos presentes autos, nos termos supra, são também, em consequência, anulados os juros compensatórios calculados sobre o montante daquela liquidação, por não estar preenchido o requisito da existência de imposto devido.

Nesta medida, sendo cumulativos os requisitos para a liquidação de juros compensatórios e concluindo-se pela anulação da liquidação em referência na parte contestada e subjacente aos aludidos juros, considera-se prejudicado o conhecimento das restantes condições.

 

iv. Reembolso do imposto e Juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Tal regime está em plena conformidade com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que impõe o dever de revogação e restituição do indevidamente pago sempre que se reconheça a ilegalidade do ato tributário.

Consequentemente, na sequência da declaração de ilegalidade dos atos de liquidação há assim lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º da LGT e do 61.º n.º 5 do CPPT, estando a AT está obrigada ao seu pagamento desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, calculado sobrea quantia indevidamente paga, à taxa de juros legais.

 

VI. DECISÃO

Termos em que se decide, julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nessa medida:

a)     Declarar a ilegalidade da liquidação de IRS objeto dos presentes autos;

b)    Declarar ilegal o despacho de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa, com as legais consequências;

c)     Condenar a AT a restituir o imposto e acréscimos legais pagos pelo Requerente no montante de € 22.593,19;

d)    Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais; 

e)     Condenar a Requerida nas custas do processo.

VII. VALOR DO PROCESSO

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), fixa-se ao processo o valor de € 22.593,19.

 

VIII. CUSTAS

Nos termos da Tabela I, anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 1.224,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do RCPAT. 

Notifique-se.

Lisboa, 26 de junho de 2025

O Árbitro 

 

Cristina Coisinha

 



[1] Consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/

[2] Consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/

[3] Vide Acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0671/18.1BELLE, de 02-02-2022