DECISÃO ARBITRAL
A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I- Relatório
A) O pedido
A Requerente pede anulação total das seguintes liquidações adicionais:
- Liquidação de IVA nº 2024... relativa a 2021.
- Liquidação nº 2024... (juros compensatórios), relativa a 2021.
- Liquidação de IRC nº 2024..., relativa a 2021.
B) O litígio
Estão em causa correções à matéria coletável, em sede de IRC e de IVA, operadas pela AT no quadro de uma inspeção tributária externa, as quais originaram as liquidações impugnadas.
A Requerida, no RIT, conclui a fundamentação das correções a que procedeu afirmando o seguinte; (…) Não obstante, os bens de Investimento imóveis – Moradia Principal, Moradia do Caseiro e Armazém Agrícola, situados em Cotas, Pombalinho - e Terrenos Agrícolas, situados em Pombalinho, e os bens de Investimento móveis – Viaturas ligeiras de passageiros, Trator e Reboque Agrícolas e Equipamentos Agrícolas – constituírem propriedade da sociedade ”A...”, verificou-se que, a utilização desses bens de Investimento não teve como finalidade a realização de atividades económicas ou empresariais geradoras de rendimentos sujeitos a IRC. Pelo contrário, os bens de Investimento imóveis e móveis referenciados, foram utilizados para fins particulares da sócia gerente da empresa, conforme atestam os factos e situações apuradas e relatadas no Ponto V.1.1 e Ponto V.1.3.
A mesma é, no essencial, a fundamentação das correções operadas em sede de IVA.
Por seu lado, a Requerente entende, em suma,
- Quanto ao IRC,
· que a AT não cumpriu com o ónus de fundadamente pôr em causa a indispensabilidade de um determinado “custo” (gasto), através da evidenciação de indícios sólidos e consistentes da sua dispensabilidade “para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora” (art. 74.º, n.º 1, da LGT), face à presunção de veracidade de que gozam as declarações dos contribuintes e os dados inscritos na sua contabilidade (art. 75.º, n.º 1 da LGT).
· o requisito de indispensabilidade do “custo” (gasto) do art. 23.º do CIRC tem de ser aferido através de um juízo casuístico, não podendo associar-se ao êxito de gestão, não se confundindo com a sua oportunidade ou conveniência, não abrangendo apenas custos que direta e imediatamente conduzam à obtenção de ganhos ou à manutenção da unidade produtiva (nexo causal), antes abarcando igualmente custos que mediatamente visam esse fim.
- Quanto ao IVA
A Requerente invoca a eu favor a jurisprudência do TJUE segundo a qual constituem atividade económica, para efeitos de IVA, os chamados atos preparatórios
Assim, refere, p. ex., o acórdão de 14.02.1985, Rompelman/Minister van Financiën, C-268/83, em que o TJUE considerou ser dedutível o IVA suportado em atos preparatórios do exercício de uma atividade antes do início desta. No mesmo sentido, refere, entre outros, o acórdão de 11.07.1991, Lennartz/Finanzamt e o acórdão de 19.02.1996, Inzo/Belgische Staat.
Entende, em suma, que estando em causa a aquisição de bens ou serviços preparatórios de atividades económicas que tencionava desenvolver (turismo rural + exploração agrícola de olivais), o IVA assim suportado é dedutível não obstante tais atividades não se terem concretizado.
C) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 28/11/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 04/02/2025.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Em 29/05/2025, teve lugar reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT bem como a prestação de depoimentos. Com acordo das partes, foi prescindida a produção de alegações.
D) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito
III – PROVA
III.1 – Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente foi constituída em 01-10-2015, com o objeto social de investimentos imobiliários, administração de imóveis e prestação de serviços conexos, consultoria e elaboração de projetos e compra e venda de imóveis, exploração turística no espaço rural, comercialização de produtos alimentares, vinícolas e laticínios entre outros.
b) Está coletada para o exercício da atividade principal de “Apartamentos turísticos sem restaurante”, CAE 55213, desde 2015-10-15, e para o exercício de outras atividades secundárias, desde 15-05-2018 (compra e venda e arrendamento de bens imóveis, outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão).
c) No quinquénio de 2015-2020, apresentou prejuízos fiscais, no montante total acumulado de € 254.113,62, e encontra-se em situação permanente de crédito de IVA desde o período em que foi constituída.
d) No período de imposto (IVA) de 212112T, o crédito acumulado ascendia a € 58.402,73.
e) A Requerente procedeu à construção de dois edifícios habitacionais (“casa principal” e “casa do caseiro”) e de um armazém agrícola em terreno que para o efeito adquiriu.
f) Tais Investimentos foram relevados na contabilidade na Conta 453101 – “Investimentos em Curso – Ativos Tangíveis em Curso - OBRA 1”, tendo a obra de sido iniciada em outubro de 2016 e finalizada em novembro de 2021.
g) Além dos terrenos onde foram implantadas as construções referidas, a Requerente adquiriu outros prédios rústicos destinados a produção de azeitona.
h) Até ao final do exercício em causa (2021) e até à data em que foi realizada a inspeção externa, a Requerente não declarou rendimentos resultantes de atividades agrícolas
i) A contabilidade releva a inexistência de quaisquer rendimentos provenientes de “atividades de exploração turística em espaço rural” ou de “Apartamentos Turísticos” ou de outras, nem no exercício de 2021, nem desde o início da atividade da empresa até à data em que a inspeção teve lugar.
j) Em sede de IMI, as moradias foram declaradas como concluídas e tendo sido afetadas a “habitação” no ano de 2021, e a “arrecadações e arrumos”, no ano de 2024.
k) Desde a conclusão das obras de construção até finais de 2024, a moradia principal foi afetada ao uso pessoal da gerente da Requerente, que aí “arrumou” pertences seus e permaneceu esporadicamente.
l) A gerente da Requerente tem residido habitualmente no estrangeiro, em razão da profissão do marido, treinador de futebol, apenas se deslocando pontualmente a Portugal.
m) Entre a Requerente e a sua gerente foi celebrado, em 2021, um contrato de comodato, no qual ficou acordado que “a 1ª outorgante cede gratuitamente à 2º outorgante o prédio de artigo matricial nº ..., para que dele exclusivamente se sirva, concretamente fazendo dele Habitação”.
n) A Requerente abandonou o projeto de exploração empresarial dos olivais de azeitona “galega” por várias razões, nomeadamente a dificuldade de encontrar pessoal no local, incluindo quem gerisse a exploração, e o facto de o “parceiro” inicialmente associado ao projeto (que, também ele, explorava uma estrutura de turismo e de produção de azeitona nas proximidades) ter posto fim à suas atividades.
o) A Requerente tem-se limitado a fazer a manutenção mínima dos olivais e colher parte da azeitona (não toda, por falta de pessoal).
p) Em 2021 a Requerente contratou os serviços de um lagar de azeite.
q) A Requerente não declarou, desde o início da sua atividade, rendimentos resultantes de outras atividades empresariais.
r) A Requerente contabilizou e declarou como gastos do exercício em causa (2021) diversas despesas no valor global de € 78.798,66,
s) Tais despesas respeitam a:
• aquisição de bens e serviços contabilizados e declarados em subcontas da Conta 62 – “Fornecimentos e Serviços Externos” - tais como, Arquitetura de Móveis Interiores, Serviços de Lavandaria, Eletricidade, Água, Ferramentas e Equipamentos Agrícolas, entre outros – no valor global de € 21.092,32.
• contratação de pessoal, contabilizadas e declaradas em subcontas da Conta 63 – “Gastos com o Pessoal” - Ordenados e Salários, Seguros e outras despesas com quatro trabalhadores (três trabalhadores agrícolas e um caseiro) – no valor global de € 52.583,09.
• depreciações e amortizações de equipamentos agrícolas contabilizadas e declaradas em subcontas da Conta 64 – “Gastos de Depreciações e Amortizações” – Trator, Reboque e Pulverizador - no valor global de € 5.123,25.
t) Em 2024, a Requerente foi sujeita a uma inspeção externa da qual resultaram as seguintes correções, as quais originaram as liquidações impugnadas:
- IRC: não aceitação de gastos no montante de € 78.798,66,
- IVA: o total das correções ao imposto deduzido ascendem a € 226.041,81 (€ 1.217.11 em 2021 03T; € 1.426,71 em 2021 06T; € 1.245,52 em 2021 09T e € 222.152,47 em 2021 12T).
Estes factos constam do RIT, não tendo sido impugnados. As declarações da gerente da Requerente, que depôs com evidente franqueza, não só confirmaram o essencial do apurado pelos SIT como “completaram” alguma da informação por estes recolhida (nomeadamente, quanto ao constante de k), l), n) e o)).
III.2- Factos não provados
a) Não ficou provado que, relativamente ao contrato de comodato referido em l) tenha sido liquidado e pago, pela Requerente, IVA (por aplicação do disposto da al. b) do n.º 2 do art.º 4.º do CIVA).
b) Não ficaram provados factos de onde se possa concluir a intenção da Requerente de, no futuro, vir a explorar os bens em causa no contexto de uma atividade empresarial.
Relativamente ao primeiro ponto, muito embora da petição constem referências ao enquadramento em IVA dos contratos de comodato, nada de concreto foi alegado e/ou provado.
Relativamente ao segundo ponto, quer a gerente da Requerente, quer a testemunha, afirmaram terem sido obtidos, em 2024 rendimentos com exploração da “casa principal”. Mas não concretizaram em que consistiu tal pretensa exploração nem quais os rendimentos dela advindos, pelo que o tribunal nem sequer pode concluir, com segurança, que tal atividade económica tenha realmente existido.
Relativamente `atividade de exploração empresarial dos olivais, as declarações da gerente da Requerente levaram a concluir que se tratou de um projeto “definitivamente “abandonado.
III -O DIREITO
III. IRC
Como resulta da síntese que deixámos atrás, a Requerente impugna a liquidação adicional deste imposto alegando o não cumprimento pela AT do ónus de alegar e provar factos capazes de ilidir a presunção de verdade resultante do facto de os custos que, em sede de correção administrativa, foram desconsiderados constarem da sua contabilidade como gastos dedutíveis.
Importará, talvez, começar por precisar dois pontos:
Primeiro, a correção da AT não assentou em considerações sobre a “indispensabilidade” (usando o termo empregue pela Requerente) dos gastos em questão. Pelo que, sem mais, resulta liminarmente prejudicada toda a argumentação da Requerente visando demonstrar a “necessidade” de tais custos e afirmar a sua liberdade de gestão empresarial.
Segundo, a determinação do lucro tributável (ou, com é o caso, do prejuízo fiscalmente relevante) assenta num princípio de periodização: os rendimentos e os gastos devem ser imputados ao exercício a que respeitam – art. 18º do CIRC. Princípio que é válido também para as despesas que devam relevar fiscalmente em vários exercícios, nomeadamente através dos mecanismos das amortizações/depreciações.
O mesmo é dizer que, diferentemente do que parece entender a Requerente, o facto de determinadas despesas deverem ser aceites como gasto fiscal num dado exercício não implica que idênticos gastos (ou gastos com origem numa mesma despesa) devam ser aceites noutros exercícios.
A quantificação do lucro ou prejuízo fiscal é feita exercício a exercício. No caso está em causa o ano civil de 2021.
Ora, como ficou provado, a Requerente, nesse exercício não exerceu qualquer atividade geradora de rendimentos sujeitos a IRC. Não exerceu a atividade de alojamento turístico pois o edifício a tal destinado esteve afeto ao uso privado da gerente; não exerceu a atividade empresarial de olivicultura ou, pelo menos, não a declarou; não exerceu outras atividades.
Assim sendo, resulta óbvio que, pelo menos nesse ano, os gastos constantes da contabilidade não foram suportados em ordem à obtenção de rendimentos sujeitos a imposto. E também não o terão sido na perspetiva de obtenção de rendimentos futuros, pois, como resulta da PROVA, não é certo, que algum dia a Requerente venha a exercer as atividades empresariais que poderiam estar na génese de alguns dos gastos em questão.
Pelo que os gastos em causa não podem relevar fiscalmente, mesmo que apenas para o efeito de aumentar o prejuízo eventualmente reportável da Requerente.
Assim não merecem censura as correções efetuadas pela AT relativas a este imposto.
II.2 - IVA
a) Direito à dedução do IVA suportado em “atos preparatórios”
Este tribunal arbitral revisitou a principal jurisprudência do TJUE – que o vincula - relativa à dedutibilidade do IVA suportado com a aquisição de bens e serviços que devam ser considerados como inputs de uma atividade económica não iniciada ou posteriormente “abandonada”.
Assim, no acórdão Rompelman, C- 268/83, o TJUE deixou afirmado:
(13) according to the commission , it follows from article 17 ( 1 ) of the sixth directive that the exploitation of immovable property will generally begin with the first preparatory act , that is to say with the first transaction on which input tax may be charged . the first transaction completed in the course of an economic activity consists in the acquisition of assets and therefore in the purchase of property . any other view would be contrary to the purpose of the vat system since in the period between the payment of the vat which is payable on the first transaction and the refund of that vat a financial charge on the property will arise ; however, under the VAT system , the intention is precisely to relieve the trader entirely of that burden.
Este tribunal arbitral, atenta a prova produzida, nomeadamente o facto de a Requerente se ter inscrito para efeitos de IVA para o exercício de atividades, não abrangidas por uma isenção, que implicam a qualidade de sujeito passivo (turismo habitacional e indústria agrícola) e o enquadramento factual em que tal aconteceu, amplamente descrito pela sua gerente no depoimento que prestou, aceita que as despesas com as aquisição de bens e serviços ora em causa devem ser qualificadas como atos preparatórios de operações ou atividades económicas que a Requerente tinha intenção de vir a exercer no momento em que nelas incorreu.
O mesmo é dizer que, numa primeira análise, o IVA em causa seria dedutível, como sustenta a Requerente.
b) abandono da atividade
Aceite a natureza de atividade económica dos atos preparatórios pré-ordenados à concretização de atividades sujeitas e não isentas de IVA, pergunta-se qual a situação legal no caso de tais “atos preparatórios” não terem seguimento, o que, diga-se, acontece com relativa frequência (pense-se, por exemplo, em despesas incorridas com estudos de mercado visando novos investimentos, com o desenvolvimento de novos produtos, que não tiveram seguimento por se ter constatado a sua inviabilidade económica).
Uma situação deste tipo foi analisada pelo TJUE em 12 de novembro de 2020, C‑734/19, ITH Comercial Timişoara SRL. Transcrevemos alguns dos seus pontos:
29 - Com a sua primeira questão, alíneas a) a i), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 167.o, 168.o, 184.o e 185.o da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que o direito a dedução do IVA pago a montante sobre bens, no caso em apreço bens imóveis, e serviços adquiridos com vista a efetuar operações tributáveis se mantém quando os projetos de investimento inicialmente previstos são abandonados ou se, nesse caso, é necessário proceder a uma regularização desse IVA.
30 - Assim, é a aquisição de bens ou serviços por um sujeito passivo agindo nessa qualidade que determina a aplicação do regime do IVA e, portanto, do mecanismo da dedução. A utilização que é dada aos bens ou serviços, ou que lhes é destinada, apenas determina o montante da dedução inicial a que o sujeito passivo tem direito, nos termos do artigo 168.o da Diretiva IVA, e o âmbito das eventuais regularizações nos períodos seguintes, mas não afeta o surgimento do direito à dedução (v., neste sentido, Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, Imofloresmira — Investimentos Imobiliários, C‑672/16, EU:C:2018:134, n.o 39 e jurisprudência aí referida).
34 - A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o direito a dedução se mantém, em princípio, adquirido, nomeadamente, mesmo que, posteriormente, em razão de circunstâncias alheias à sua vontade, o sujeito passivo não faça uso dos referidos bens e serviços que deram lugar a dedução no âmbito de operações tributadas (Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, Imofloresmira — Investimentos Imobiliários, C‑672/16, EU:C:2018:134, n.o 40 e jurisprudência aí referida).
35 - Quanto às circunstâncias alheias à vontade do sujeito passivo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que não cabe à Administração Fiscal apreciar o mérito dos motivos que levaram um sujeito passivo a renunciar à atividade económica inicialmente prevista (…)
41 - Quanto à questão de saber se, numa situação como a que está em causa no processo principal, se deve proceder a uma regularização do IVA deduzido a montante, importa recordar que o mecanismo de regularização previsto nos artigos 184.o a 187.o da Diretiva IVA faz parte integrante do regime de dedução do IVA estabelecido por esta diretiva. Esse mecanismo visa aumentar a precisão das deduções, de modo a assegurar a neutralidade do IVA, pelo que as operações efetuadas no estádio anterior apenas continuam a dar lugar ao direito a dedução na medida em que sirvam para fornecer prestações sujeitas a esse imposto. Este mecanismo tem, assim, por objetivo estabelecer uma relação estreita e direta entre o direito à dedução do IVA pago a montante e a utilização dos bens ou serviços em causa para operações tributadas a jusante (Acórdão de 9 de julho de 2020, Finanzamt Bad Neuenahr‑Ahrweiler, C‑374/19, EU:C:2020:546, n.o 20).
42 - Com efeito, no sistema comum do IVA, apenas podem ser deduzidos os impostos que incidem a montante sobre os bens ou os serviços utilizados pelos sujeitos passivos para as suas operações tributadas. A dedução dos impostos pagos a montante está ligada à cobrança dos impostos a jusante. Quando os bens ou os serviços adquiridos por um sujeito passivo são utilizados para efeitos de operações isentas ou não abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA, não pode existir cobrança do imposto a jusante nem dedução do imposto a montante (Acórdão de 9 de julho de 2020, Finanzamt Bad Neuenahr‑Ahrweiler, C‑374/19, EU:C:2020:546, n.o 21).
Concluiu o TJUE como se segue:
1) Os artigos 167.o, 168.o, 184.o e 185.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) pago a montante sobre bens, no caso em apreço bens imóveis, e serviços adquiridos com vista a efetuar operações tributáveis se mantém quando os projetos de investimento inicialmente previstos são abandonados por circunstâncias alheias à vontade do sujeito passivo e que não há lugar a proceder à regularização desse IVA se o sujeito passivo mantiver a intenção de explorar esses bens para os fins de uma atividade tributada.
(…)
c) O caso concreto
c.1) relativamente às casas
Ficou provado que a Requerente, por decisão da sua sócia gerente, afetou a “casa principal” ao uso privado por esta, por ela ter passado a ter em tal interesse, nomeadamente – como declarou – por no período da pandemia (2020 a 2023) ter sido obrigada a maiores períodos de estadia em Portugal.
Ficou ainda provado que tal mudança de afetação dos prédios em causa foi documentada, em 2021, por um contrato de comodato gratuito.
Resultou assim provado que a intenção inicial de exercer a atividade de turismo habitacional não teve continuidade, não por causas estranhas à vontade da Requerente, mas sim em razão da sua vontade própria (da vontade e interesse pessoal da sua sócia gerente).
Mais, como consta dos factos não provados, o tribunal não ficou esclarecido quanto ao destino que atualmente (quatro anos depois do exercício em causa neste processo) se projeta para tais edificações.
1) Ou seja, no presente caso não se verifica nenhum dos requisitos enunciados pelo TJUE na decisão proferida no acórdão ITH Comercial Timişoara SRL, acima transcrita, para o exercício do direito à dedução (circunstâncias alheias à vontade do sujeito passivo e intenção de explorar esses bens para os fins de uma atividade tributada).
C.2) relativamente à atividade agrícola
Este tribunal aceita que o projeto de exploração empresarial de olivais de azeitona “galega” pela Requerente foi abandonado por ser constatado a sua inviabilidade, nomeadamente em razão da falta de mão de obra, da impossibilidade física da sua gerente de o acompanhar com a regularidade exigida e do posterior desinteresse do parceiro inicialmente associado ao projeto-. Ou seja, diferentemente do ponto anterior, aceita-se que o projeto foi abandonado por razões externas à vontade da Requerente.
Porém, ficou provado que a atividade de exploração agrícola dos olivais, ainda que com uma dimensão muito inferior à inicialmente prevista, prosseguiu (assim resultou claramente das declarações da gerente e do facto de no ano em causa (2021) a Requerente ter incorrido em despesas com os serviços de um lagar (para moagem da azeitona produzida e colhida).
Não cabe aqui conjeturar sobre o enquadramento fiscal de tal atividade agrícola, ainda que residual.
O que aqui releva é que a Requerente não declarou vendas resultante de tal atividade, pelo que não fez prova de que continuou a explorar esses bens para os fins de uma atividade tributada em IVA, ainda que eventualmente isenta. Antes se poderá concluir, de forma benevolente, que passou a produzir “fora do mercado” mas utilizando para tal bens adquiridos para o exercício de uma atividade empresarial sujeita a IVA.
Ou seja, continuou a existir atividade, mas não uma atividade tributada. Pelo que, cumprindo este tribunal arbitral com o entendimento do TJUE, há que concluir pela improcedência, nesta parte do pedido.
c) Especificidades do caso em análise
Num sistema de precedentes judiciais obrigatórios, como é o caso das pronúncias do TJUE, os “dizeres” das sentenças vinculativas apenas deverão ser observadas quando os contextos factuais em causa sejam idênticos àqueles em que aconteceram.
É importante ter sempre a consciência que as “orientações jurisprudenciais” são formadas a partir da análise de casos concretos, diferentemente do que sucede com a lei, por definição pensada e criada com vocação geral e abstrata.
No caso em análise temos factos com diferenças significativas relativamente aos que originaram a jurisprudência do TJUE em que a Requerente se louva.
Como já salientámos não está em causo o facto de o imposto que se pretende deduzir ter sido suportado em momento anterior ao do início das atividades que confeririam o direito à dedução.
Também não estamos perante um caso de retardamento do início da atividade (situação analisada pelo TJUE no acórdão Imofloresmira – C 672/16).
Estamos sim perante um caso em que houve uma decisão, por parte da Requerente (de quem forma a sua vontade social) de afetar bens imóveis e móveis) que haviam sido adquiridos na perspetiva de serem instrumentos (inputs) de atividades económicas cujos rendimentos estariam sujeitos a IVA a uso privado e a título gratuito por outrem especialmente relacionado (a família da gerente, relativamente “à casa principal”) ou a uma atividade que deixou - ao menos - oficialmente de gerar rendimentos empresariais.
A atividade de conservação de um património imobiliário, urbano e rústico (incluindo aqui os olivais existentes) não se consubstancia em atividades económicas suscetíveis de originar situações de sujeição a IVA.
É esta decisão (esta vontade da Requerente) de afetar os bens em causa a uma utilização não empresarial, a consumo, que torna intransponível a jurisprudência do TJUE em que a Requerente se louva.
d) A obrigação de regularização do IVA deduzido[1]
No presente processo, o IVA contabilizado a crédito da requerente resulta, numa pequena parte, de aquisições de bens e serviços adquiridos no ano em causa e que, por princípio, esgotam o seu efeito útil, por utilização em operações económicas sujeitas a imposto.
Relativamente a estas aquisições (ao imposto nelas liquidado pelos fornecedores) a questão do direito à dedução nem parece colocar-se pois, aquando da sua aquisição, a Requerente não exercia, nem era suposto vir a exercer, uma qualquer atividade económica de que tais bens e serviços pudessem ser considerados inputs.
A maioria do IVA em causa resultou das empreitadas de construção de imóveis, da aquisição de bens e serviços com eles relacionados e também, ainda que com menor expressão, da aquisição de bens móveis destinados à exploração agrícola, como sejam um trator e uma capinadeira.
Estes bens integram o ativo não corrente (imobilizado) da Requerente, tendo como tal sido devidamente contabilizados.
Relativamente a estes bens, o direito à dedução do IVA incluído no respetivo preço compreende-se na perspetiva de que serão um input da atividade económica em causa durante um período longo, uma série de exercícios.
Embora o direito à dedução nasça com a aquisição dos bens ou serviços e deva ser exercido no primeiro “período” seguinte, tal dedução é condicionada à manutenção da sua utilização em operações económicas sujeitas a imposto durante períodos de tempo que, por simplicidade, a lei fixa (20 anos no caso de bens imóbeis e cinco anos no caso de bens móveis – art. 24º CIVA)
O que bem se compreende porquanto, diferentemente do que acontece com a consideração dos montantes pagos na aquisição de bens do ativo não corrente, nos impostos sobre o rendimento, em que a periodização da consideração dos gastos é assegurada através do mecanismo das amortizações/depreciações, em IVA a “consideração fiscal” do imposto pago é imediata e na sua totalidade.
Ora é bom de ver que ao longo dos períodos de tempo que a lei prevê, o direito à dedução pode resultar prejudicado, normalmente apenas em parte, por se ter deixado de verificar o pressuposto do direito à dedução, a afetação de tais bens a uma atividade tributada.
Tal é manifestamente o caso dos presentes autos: os bens em causa deixaram de estar afetados a ma atividade económica tributável por a Requerente (a sua sócia) ter decidido afeta-los a uso não empresarial, como atrás melhor se referiu.
O sistema de regularização, entre nós previsto no artº 24º e ss. do CIVA, que não interessará aqui descrever, assento num princípio de pro rata temporis.
Dito de forma simples, no momento em que o bem foi desafetado de uma atividade económica, há que considerar o período de tempo (o somatório dos anos) em que o bem esteve a ser utilizado em tal atividade; tal número de anos figurará no numerador de uma fração em cujo denominador constará o número de anos de utilização do bem em atividade económica sujeita a IVA prescrito pela lei. Essa fração (ou correspondente percentagem) expressa a extensão do direito à dedução. O imposto excedente (não dedutível) terá de ser pago ao Estado (nos casos em que tenha havido reembolso ou total compensação com dívidas de imposto) ou, permanecendo um crédito de imposto, este deverá ser anulado com a consequente liquidação do imposto em falta. É o caso dos autos.
Assim, este tribunal entende que as liquidações de IVA impugnadas não merecem qualquer censura.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, são julgados improcedentes, na totalidade, os pedidos formulados pela Requerente.
Valor: € 184.926,58.
Custas, no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerente dado o seu total decaimento.
25 de junho de 2025
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Luís Ricardo Farinha Sequeira
Gustavo Gramaxo Rozeira
[1] Ou contabilizado como crédito de imposto. Na realidade, muitas empresas com elevados montantes de IVA a crédito, preferem ir “compensando” tais créditos com dívidas de imposto de períodos subsequentes, num processo que se arrasta por vezes durante muitos anos em lugar de, como seria normal, pedirem o reembolso. Foi no quadro de uma fiscalização generalizada a situações deste tipo que aconteceu a inspeção tributária que originou as liquidações ora impugnadas.