Sumário
-
A legislação portuguesa de IRC ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado Membro, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds, com acórdão de 17.03.2022.
II. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade.
-
As liquidações de IRC por retenção na fonte sobre dividendos distribuídos a um OIC residente noutro Estado-Membro da União Europeia são anuláveis por erro de direito.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Nina Aguiar e Paulo Ferreira Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25 de fevereiro de 2025, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., doravante designada por “Requerente”, com morada em ..., Dublin, Irlanda, ..., organismo de investimento coletivo (“OIC”), sob a forma de sociedade, organizado em compartimentos patrimoniais autónomos (“Fundos”), entre os quais, B..., C..., D..., E... e F...[1], e representada pela entidade gestora, sociedade de direito irlandês, G... Limited, com sede na mesma morada, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), na sequência da formação de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em território português, referentes ao período compreendido entre 15 de julho de 2020 e 6 de maio de 2021, no montante total de € 947.339,99, com vista à declaração de ilegalidade e anulação daquelas retenções na fonte e consequente restituição do imposto, acrescido de juros indemnizatórios.
Para tanto, o Requerente invoca o disposto nos artigos 57.º, n.ºs 1 e 5, 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) da Lei Geral Tributária (“LGT”); 99.º, alínea a) e 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”); 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRC; e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 17 de dezembro de 2024 e, de seguida, notificado à AT.
Após nomeação de todos os árbitros, os mesmos comunicaram, em prazo, a aceitação do encargo. O Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 5 de fevereiro de 2025, não tendo sido manifestada oposição.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 25 de fevereiro de 2025.
Em 2 de abril de 2025, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação. Não juntou o processo administrativo (“PA”).
O Requerente pronunciou-se sobre a matéria de exceção por requerimento submetido em 14 de abril de 2025.
Por despacho do Tribunal, de 21 de abril de 2025, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (v. artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). As Partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações e para pagarem a taxa arbitral subsequente, tendo sido fixado o prazo para a decisão até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
Requerente e Requerida apresentaram alegações em 9 de maio de 2025 e 13 de maio de 2025, respetivamente.
Posição do Requerente
O Requerente alega que, face ao teor literal do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), o regime de dispensa de retenção na fonte aí previsto não é aplicável aos dividendos de fonte portuguesa auferidos por fundos não residentes em Portugal, ainda que constituídos e a operar noutro Estado-Membro de acordo com a Diretiva 2009/65/CE, ou seja, em condições equivalentes às aplicáveis aos fundos residentes em Portugal.
Do que retira ser a tributação em IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sobre os dividendos de fonte portuguesa recebidos em 2020 e 2021 de sociedades residentes em território português, discriminatória dos OIC não residentes, pois, se fossem OIC residentes em Portugal, não seriam sujeitos à referida retenção na fonte, sendo a única diferença a circunstância de não terem a sua residência em Portugal.
Isto significa que o regime previsto nos artigos 94.º n.ºs 1 alínea c), 3 alínea b), e 5, e 87.º n.º 4, todos do Código do IRC, ao prever que os rendimentos, no caso dividendos, obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC à taxa de 25%, enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes, não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais e, por essa razão, viola também o artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, por violação do primado do direito da União Europeia sobre o direito interno.
Para o Requerente, estamos perante situações objetivamente comparáveis, a partir do momento em que um Estado-Membro opte por exercer o seu poder de tributação sobre residentes e não residentes, como sucede no caso, sendo a respetiva diferença de tratamento injustificada. Acrescenta que a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não constitui fundamento válido para fundar a discriminação, como reiteradamente afirmado pelo Tribunal de Justiça.
Por outro lado, estando isento, bem como os seus compartimentos patrimoniais autónomos (Fundos), de imposto irlandês sobre os rendimentos das pessoas coletivas, não pôde neutralizar a tributação dos referidos dividendos em Portugal através do crédito de imposto previsto na CDT Portugal/Irlanda.
Invoca diversa jurisprudência do Tribunal de Justiça, no sentido por si preconizado, e, em particular, o veredito de 17 de março de 2022, daquele tribunal, no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds, que, sobre questão idêntica à que se coloca nestes autos, se pronunciou de acordo com a pretensão do Requerente, encontrando-se a questão de direito resolvida por aquela instância comunitária.
Perante a decisão do Tribunal de Justiça e por força do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, considera não poderem manter-se os atos tributários de retenção na fonte de IRC sindicados, porque ilegais. Entendimento que resulta igualmente firmado pela decisão uniformizadora da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de setembro de 2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 7/2024).
Em consequência, não devem ser aplicadas as normas do direito nacional em conflito com o direito da União Europeia (princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE), o que, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), determina a anulação dos atos de retenção na fonte de IRC, com a consequente restituição do imposto retido, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3 da LGT, na medida em que a revisão dos atos tributários impugnados se efetue mais de um ano após o pedido dos Requerentes.
Posição da Requerida
A título preliminar a Requerida nota que o certificado de residência anexado ao ppa não se refere “à Requerente em causa nos autos”.
De seguida, suscita as exceções de inimpugnabilidade dos atos de retenção na fonte e de incompetência do Tribunal Arbitral.
Em relação à primeira, sustenta que o pedido de revisão contemplado no artigo 78.º da LGT constitui, à semelhança da reclamação graciosa, um procedimento de segundo grau, com os mesmos efeitos da (e equiparável à) reclamação necessária a que se refere o artigo 132.º do CPPT, aplicável à jurisdição arbitral por remissão da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Apesar de o artigo 78.º, n.º 1 da LGT estabelecer que a AT pode rever o ato tributário no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, extensível ao contribuinte por força do n.º 7, a equivalência à reclamação graciosa para este efeito apenas pode ser reconhecida quando o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado dentro do prazo previsto para aquela forma de impugnação administrativa, isto é, dentro do prazo de dois anos do artigo 132.º, n.ºs 3 e 4 do CPPT. Estando em causa atos de retenção na fonte reportados a 2020 e tendo os pedidos de revisão oficiosa sido apresentados em 14 de maio de 2024, foi ultrapassado o prazo de dois anos, pelo que esses pedidos são intempestivos, com a consequente inimpugnabilidade dos atos tributários objeto da ação arbitral, por falta de precedência de impugnação administrativa dentro do prazo legal.
Sobre a exceção de incompetência em razão da matéria do Tribunal Arbitral, a Requerida considera que se trata de questão que não pode ser dissociada da relativa à (in)impugnabilidade contenciosa dos atos tributários acabada de referir. Defende que o Requerente não cumpre a condição de ter sido desencadeado, no prazo de dois anos, o procedimento de reclamação graciosa previsto no artigo 132.º do CPPT, pelo que a AT não está vinculada à jurisdição arbitral, como resulta do disposto no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, segundo o qual esta é excluída para as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
Mais argui que, atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem, o intérprete não pode ampliar o objeto fixado pelo legislador no que concerne à vinculação da AT aos tribunais arbitrais, carecendo o Tribunal Arbitral de apreciar a (i)legalidade das mesmas, ainda que o Requerente tenha apresentado pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos.
Observa que o entendimento preconizado se impõe por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito, da Separação dos Poderes e da Legalidade (v. artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição), sendo vedada uma interpretação que amplie a vinculação da Requerida à tutela arbitral fixada legalmente, como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT (v. artigos 3.º, n.º 2, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição).
Acrescenta a Requerida que as retenções na fonte não foram por si efetuadas, nem se chegou a pronunciar sobre a sua (i)legalidade e que nos pedidos de revisão oficiosa não foi invocado erro imputável à AT ou que, sendo invocado, tenha sido comprovado, designadamente que as retenções na fonte se deveram a orientações da AT. O que se comprova é que as retenções na fonte foram feitas conformes à lei e que, no entender do Requerente, a mesma consubstancia uma restrição discriminatória ao princípio da livre circulação de capitais, contrária ao artigo 63.º do TFUE.
Mais aduz que, no caso concreto, o indeferimento do pedido de revisão oficiosa é um ato silente que teria obrigatoriamente que se reportar a um indeferimento por extemporaneidade, sendo, assim, submetida à apreciação do Tribunal Arbitral uma questão relativa ao controle dos pressupostos de aplicação do artigo 78.º da LGT, em concreto o prazo de apresentação do pedido de revisão oficiosa, tendo em conta a existência de erro imputável aos serviços, e não a apreciação – direta ou indireta – de uma liquidação “adicional”, não tendo este Tribunal competência para apreciar e decidir a primeiramente referida. Pugna pela absolvição da instância à face do disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Por impugnação, invoca, em primeira linha, que é sobre o Requerente que recai o ónus da prova dos factos constitutivos da sua pretensão, não tendo este logrado fazer tal prova, pelo que fica prejudicada a subsunção dos factos aos princípios e normas do Direito da União.
Por outro lado, salienta que, na esteira do acórdão Truck Center, C-282/07, de 22 de dezembro de 2008, a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, objetivamente comparável. Deste modo, o tratamento diferenciado não é discriminatório e está plenamente justificado dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português (v. acórdãos Bachman, C-204/90; Comissão/Bélgica, C-300/90; e Marks & Spencer, C-446/03). Assinala que, embora essa jurisprudência tenha sido objeto de aperfeiçoamento em decisões mais recentes, um tratamento discriminatório de entidades não residentes foi permitido pela razão de interesse geral e a coerência do sistema fiscal nacional.
Invoca ainda os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de fevereiro de 2013, processo n.º 01435/12, e de 27 de novembro de 2013, processo n.º 0654/13, de 27 de novembro, no sentido de que importa averiguar se a restrição à livre circulação de capitais é neutralizada por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação.
Assinala que a exclusão de tributação dos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (v. artigo 22.º, n.º 3 do EBF) é contrabalançada com a criação de uma taxa de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC [da verba 29]. Daí resulta uma tributação trimestral, à taxa de 0,0025%, sobre o valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa de 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, podendo, neste último caso, incluir dividendos distribuídos. Desta tributação em Imposto do Selo ficam excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
Também nota que os OIC com sede em Portugal estão sujeitos a tributação autónoma, nos termos previstos no 88.º, n.º 11 do Código do IRC, por remissão do artigo 22.º, n.º 8 do EBF, o que não sucede com os demais OIC.
Adicionalmente, alega que o Requerente não demonstrou que o imposto não recuperado não possa ser recuperado na esfera dos investidores.
Logo, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram os OIC residentes e aqueles constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis, ou que os OIC residentes tenham uma menor carga fiscal, nem concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em desconformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE. Além de que não compete à AT avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, nem pode aceitar, de forma direta e automática, as orientações interpretativas do Tribunal de Justiça, “quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu” ou deixar de aplicar as normas legais que a vinculam (v. artigo 3.º do CPA ex vi artigo 2.º, alínea c) da LGT).
A Requerida sustenta que a distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal é passível de ser qualificada como movimento de capitais na aceção do artigo 63.º do TFUE e da própria Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988.
Para avaliar se o tratamento fiscal é menos vantajoso para os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF (i.e., não residentes), tem de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte aos OIC não residentes, aqui à taxa de 15%[2], e os impostos – IRC (por tributação autónoma) e Imposto do Selo – que incidem sobre os residentes, que podem exceder 23% do valor bruto dos dividendos. Além do mais, afirma que o imposto retido ao Requerente é passível de dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, tanto na esfera deste, como na dos investidores.
Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos “dividendos” opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário. O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas a que não corresponde uma discriminação em substância.
Sobre os juros indemnizatórios, não vislumbra qualquer ilegalidade nos atos tributários (de retenção na fonte) contestados, pelo que considera não haver lugar ao seu pagamento. Invoca também que a AT só pode deixar de aplicar uma norma legal com fundamento em inconstitucionalidade quando o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral, ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias, para o que invoca o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de janeiro de 2019, processo n.º 0564/18.2BALSB).
Conclui pela absolvição da instância ou, se assim não se entender, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Posição do Requerente quanto à Matéria de Exceção
Segundo o Requerente, as decisões arbitrais citadas pela Requerida são opostas à jurisprudência dominante em matéria de competência dos Tribunais Arbitrais, que reconhece que estes são competentes para apreciar a legalidade de atos tributários previamente contestados por via da revisão oficiosa tacitamente indeferida. Salienta que o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou repetidamente no sentido da equiparação do pedido de revisão do ato tributário à reclamação graciosa necessária, como mecanismo de abertura da via contenciosa (v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de junho de 2006, processo n.º 402/06). Esta admissibilidade do pedido de revisão oficiosa também vale para o caso em que este é apresentado além do prazo de dois anos previsto para a reclamação graciosa necessária, considerando que entendimento diverso violaria o princípio da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º da Constituição).
Refuta, de igual modo, que o Tribunal Arbitral careça de competência para analisar os pressupostos do mecanismo de revisão oficiosa, assistindo-lhe o poder-dever de aferir se os pressupostos procedimentais antecedentes à impugnação arbitral estavam verificados.
Rejeita também a premissa de que não existe erro imputável aos serviços, nos termos e para os efeitos do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, quando uma norma interna seja incompatível com o direito da União Europeia. Neste âmbito, invoca jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo segundo a qual o erro será imputável aos serviços da AT numa situação de substituição tributária, como a que está em discussão nos autos, realizada através do mecanismo de retenção na fonte, em que não haja intervenção do contribuinte e o substituto atue por imposição legal, desde que o erro não seja imputável a conduta negligente do sujeito passivo (v. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de novembro de 2022, processo n.º 087/22.5BEAVR, e de 12 de dezembro de 2021, processo n.º 26.333).
Sublinha ainda que o ato de indeferimento tácito é, para efeitos de impugnação contenciosa, um verdadeiro e pleno ato tributário (v. artigo 57.º, n.ºs 1 e 5 da LGT), refletindo a posição da AT sobre a pretensão do contribuinte.
Conclui que os pedidos de revisão apresentados foram apresentados tempestivamente pelo Requerente, dentro do prazo legal de quatro anos que a AT dispõe para efetuar aquela revisão, e que pode ser impugnada a decisão expressa ou tácita de indeferimento desses pedidos em sede de arbitragem tributária. Dada a referida equiparação e a observância do prazo são necessariamente improcedentes as exceções de inimpugnabilidade dos atos de liquidação por retenção na fonte e de incompetência, sendo o Tribunal Arbitral materialmente competente para apreciar o mérito da causa, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
Sobre a alegação da AT de que o certificado de residência não se refere “à Requerente em causa nos autos”, afirma que resulta de confusão quanto à posição da entidade que atua na qualidade de gestora do OIC A... PLC, o qual se encontra organizado em sub-fundos ou compartimentos patrimoniais autónomas. Sustenta que os certificados de residência não poderiam deixar de ser titulados pelo OIC A... PLC e não pela sociedade G..., que é meramente gestora daquele.
* * *
Tendo sido suscitada pela Requerida matéria de exceção relativamente à inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IRC por retenção na fonte e à incompetência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento tem caráter prioritário, procede-se à fixação da matéria de facto relevante, com vista à subsequente apreciação destas questões prévias.
II. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
A. A G... Limited é a sociedade gestora do A... PLC, este último aqui Requerente, organismo de investimento coletivo em valores mobiliários (“OIC”), que se encontra organizado em compartimentos patrimoniais autónomos ou “Fundos”, nomeadamente os seguintes – cf. cópias dos prospetos juntos como Documentos 1 a 3:
(i) B…, NIF…;
(ii) C…, NIF…;
(iii) D…, NIF…;
(iv) E…, NIF…; e
(v) F…, NIF… .
B. O A... PLC, abrangendo os identificados compartimentos patrimoniais autónomos ou Fundos:
- Foi constituído ao abrigo da legislação da República da Irlanda que transpõe a Diretiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2019, ao abrigo da qual opera;
- É residente, para efeitos fiscais, nesse Estado-Membro, não dispondo de estabelecimento estável em Portugal;
- Está aí sujeito à supervisão do Banco Central: Central Bank of Ireland; e
- Ao operar ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE, cumpre exigências equivalentes às estabelecidas na legislação nacional que também transpõe essa Diretiva
– cf. Documentos 1 a 3 e certificados de residência juntos como Documento 4.
C. Nos anos 2020 e 2021, os seguintes compartimentos patrimoniais autónomos do Requerente eram detentores de participações sociais na H..., SGPS S.A., sociedade comercial residente em território português:
Fundo
|
Sociedade
|
ISIN
|
N.º de Ações
|
B…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
7.433.211
|
C…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
1.281.996
|
D…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
268.585
|
E…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
290.515
|
F…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
400.353
|
B…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
7.639.958
|
C…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
1.472.377
|
D…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
302.232
|
E…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
367.961
|
F…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
515.963
|
B…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
7.286.192
|
C…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
1.472.377
|
D…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
289.478
|
E…
|
H..., SGPS S.A.
|
PT…
|
438.044
|
F…
|
h..., SGPS S.A.
|
PT…
|
554.720
|
– cf. Documentos 5 e 6 – facto não controvertido.
D. Em 2020 e 2021, os referidos compartimentos patrimoniais autónomos do Requerente, na qualidade de acionista, auferiram, dividendos distribuídos pela sociedade H..., SGPS S.A., no montante de € 6.315.599,96, que foram tributados em IRC por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, no montante total de € 1.578.899,99, conforme quadro seguinte – cf. Documento 5, contendo declarações emitidas pelo Banco custodiante –I..., Plc, com menção ao valor do IRC retido na fonte, taxa de imposto aplicada e identificação do número e data da respetiva guia de pagamento; e Documento 6, correspondente às declarações do Banco J... S.A., que confirmou ter recebido os referidos dividendos líquidos de retenção na fonte, sendo os seus beneficiários os compartimentos patrimoniais autónomos do Requerente identificados na tabela infra:
Fundo
|
Data
|
Dividendo Bruto
|
Retenção na Fonte
|
Guia de Retenção na Fonte
|
B…
|
15.07.2020
|
1.538.674,68
|
384.668,67
|
…
|
C…
|
15.07.2020
|
265.373,17
|
66.343,29
|
…
|
D…
|
15.07.2020
|
55.597,10
|
13.899,28
|
…
|
E…
|
15.07.2020
|
60.136,61
|
15.034,15
|
…
|
F…
|
15.07.2020
|
82.873,07
|
20.718,27
|
…
|
I…
|
16.12.2020
|
1.054.314,20
|
263.578,55
|
…
|
C…
|
16.12.2020
|
203.188,03
|
50.797,01
|
…
|
D…
|
16.12.2020
|
41.708,02
|
10.427,01
|
…
|
E…
|
16.12.2020
|
50.778,62
|
12.694,66
|
…
|
F…
|
16.12.2020
|
71.202,89
|
17.800,72
|
…
|
B…
|
06.05.2021
|
2.098.423,30
|
524.605,83
|
…
|
C…
|
06.05.2021
|
424.044,58
|
106.011,15
|
…
|
D…
|
06.05.2021
|
83,369.66
|
20.842,42
|
…
|
E…
|
06.05.2021
|
126.156,67
|
31.539,17
|
…
|
F…
|
06.05.2021
|
159.759,36
|
39.939,84
|
…
|
TOTAL
|
|
6.315.599,96
|
1.578.899,99
|
|
E. A entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários foi, até 9 de outubro de 2020, o K... (NIPC português...) e, a partir daquela data, o I... PLC (NIPC português...) – cf. Documentos 1 (p. 101) a 3 (p. 104).
F. O Requerente (incluindo os seus compartimentos patrimoniais autónomos) não obteve crédito de imposto sobre o rendimento na República da Irlanda relativo às retenções na fonte supra identificadas, objeto dos autos, encontrando-se os dividendos isentos de imposto irlandês sobre o rendimento, nos termos da Section 739B of the Taxes Act – cf. Documentos 1 a 3 e publicação do referido ato legislativo irlandês em linha, no endereço https://www.irishstatutebook.ie/eli/1997/act/39/enacted/en/print.
G. O Requerente solicitou o reembolso do imposto pago em excesso em Portugal, no montante de € 631.560,00, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital celebrada entre a República Portuguesa e a República da Irlanda (“CDT”), pelo que nesta ação arbitral está em causa o valor da diferença de € 947.339,99 (€ 1.578.899,99 – € 631.560,00) – cf. provado por acordo.
H. Inconformado com as retenções na fonte acima identificadas, por entender que essa tributação consubstancia uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, em violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, em consequência, do primado do direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, o Requerente apresentou pedidos de revisão oficiosa relativos aos seus compartimentos patrimoniais autónomos, com vista à anulação dessas retenções, em 23 de maio de 2024 – cf. Documentos 7 a 11.
I. Até ao presente o Requerente não foi notificado de qualquer pronúncia da AT sobre mencionados os pedidos de revisão oficiosa, que correram termos sob os n.ºs ...2024..., ...2024..., ...2024..., ...2024... e ...2024... – cf. provado por acordo.
J. Em discordância das retenções na fonte de IRC sobre os dividendos auferidos em 2020 e 2021 de fonte portuguesa o Requerente apresentou no CAAD, em 16 de dezembro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
2. Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelo Requerente que é o OIC denominado A... PLC.
Conforme resulta da análise dos documentos juntos, em particular dos prospetos 1 a 3, o Requerente é um OIC complexo, constituído por diversos Fundos, que são seus compartimentos, possibilidade que a Diretiva prevê e que se encontra também consagrada no direito português (v. artigo 13.º do Regime da Gestão de Ativos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de abril). Por essa razão, os certificados de residência emitidos pelas autoridades irlandesas (documento 4) mencionam a identificação do OIC Requerente, o A... PLC e não a dos seus compartimentos. Os certificados também não mencionam a sociedade gestora, que é uma terceira entidade, totalmente distinta, com funções delimitadas e que não se confunde com o OIC titular dos rendimentos. A sociedade gestora atua em representação do OIC e os respetivos efeitos não se produzem na sua esfera jurídico-tributária [da sociedade gestora], mas na do representado, o OIC [A... PLC]. Desta forma, ao contrário do que alega a Requerida, os certificados de residência para 2020 e para 2021 foram emitidos pelas autoridades fiscais do Estado da residência em nome do Requerente, fazendo prova cabal dos factos neles atestados. De assinalar que a posição da Requerida neste ponto parece assentar na conceção, errónea, de que o Requerente é a sociedade gestora.
Em relação ao facto de que o Requerente (incluindo os compartimentos patrimoniais autónomos) não obteve crédito de imposto sobre o rendimento na República da Irlanda relativo às retenções na fonte supra identificadas, o mesmo está patente nos prospetos depositados junto do Banco Central da Irlanda (Documentos 1 a 3), onde é expressamente assinalada a impossibilidade de obtenção do crédito de imposto por dupla tributação internacional (pp. 60-61 “Taxation”). O prospeto é um documento de publicação obrigatória e obrigatoriamente enviado as autoridades competentes do Estado-Membro de origem (artigos 68.º e 74.º da Diretiva 2009/65/CE), pelo que, a sua análise conjuntamente com o disposto na legislação irlandesa (Section 739B do “Taxes Act”), permite alcançar tal conclusão.
Não existem factos alegados com relevância para a apreciação da causa que devam considerar-se não provados.
III. Apreciação das Exceções Suscitadas. Saneamento
1. Sobre a (In)Competência Material do Tribunal Arbitral
A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
O âmbito de competência dos tribunais arbitrais é delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, compreendendo exclusivamente a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável que não deem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais. Este recorte da jurisdição arbitral em razão da matéria corresponde, de um modo geral, às pretensões que são sindicáveis nos Tribunais Tributários por via da impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1 do CPPT.
Que a ação arbitral foi conformada pelo legislador como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, ressalta, de igual modo, do disposto no artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3‐B/2010, de 28 de abril (Lei do Orçamento do Estado para 2011), que consagrou a autorização legislativa ao Governo para introdução da arbitragem tributária, segundo o qual “O processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial […]”.
Paralelamente, a Requerida vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida pelo artigo 2.º do RJAT, nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, previsão não pode deixar de abranger o IRC, imposto que está em discussão nos presentes autos arbitrais.
Na situação particular de atos de retenção na fonte, como os que constituem objeto desta ação, o artigo 2.º, alínea a) da citada Portaria n.º 112-A/2011, que estabelece o âmbito da vinculação da AT aos Tribunais Arbitrais, implica o prévio “recurso à via administrativa”, remetendo para a disciplina dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
A Requerida suscita a incompetência do Tribunal Arbitral por considerar que o pedido de revisão oficiosa, apesar de equiparável à reclamação graciosa, só pode ser enquadrado no “recurso à via administrativa” exigido pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, com remissão para o CPPT, se for deduzido no prazo de 2 anos mencionado no artigo 132.º, n.ºs 3 e 4 do CPPT.
Discordamos, porém, desta posição. A revisão oficiosa deve ser entendida como um meio administrativo alternativo ou complementar à disposição do contribuinte e tanto pode ser deduzida no prazo de dois anos (v. por remissão para o artigo 132.º do CPPT), como dentro do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT, desde que, nesta última hipótese, se verifique o pressuposto de “erro imputável aos serviços”. Este entendimento foi há longa data reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. V. a título de exemplo, com as necessárias adaptações, o acórdão de 9 de novembro de 2022, processo n.º 087/22.5BEAVR, em cujo sumário se lê:
“IV - O indeferimento, expresso ou tácito, do pedido de revisão, mesmo nos casos em que [este] não é formulado dentro do prazo da reclamação administrativa mas dentro dos limites temporais em que a Administração tributária pode rever o acto com fundamento em erro imputável aos serviços, pode ser impugnado contenciosamente pelo contribuinte [art. 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da L.G.T.].
[…]
VI - O meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do acto de liquidação).”
O artigo 132.º do CPPT, para o qual remete a Portaria n.º 112-A/2011, faz referência à reclamação graciosa, sem mencionar revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, não pode deixar de ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.
O legislador tributário consagrou a via administrativa como condição necessária e prévia do recurso à via jurisdicional, porquanto os atos de autoliquidação (assim como, para este efeito, os atos de retenção na fonte e de pagamento por conta) decorrem da iniciativa do contribuinte, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a AT ainda não tomou posição, pelo que se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia. Este é, de igual modo, o entendimento expresso nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.
De igual modo se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”), admitindo o recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação – v., a título ilustrativo, os acórdãos de 27 de abril de 2017, processo n.º 08599/15, e de 25 de junho de 2019, processo n.º 44/18.6BCLSB, de 11 de julho de 2019, processo n.º 147/17.4BCLSB, de 13 de dezembro de 2019, processo n.º 111/18.6BCLSB, de 11 de março de 2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB, de 26 de maio de 2022, processo n.º 97/16.6BCLS, e de 12 de maio de 2022, processo n.º 96/17.6BCLSB.
O entendimento assente também foi apreciado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 244/18, de 11 de maio de 2018, processo n.º 636/17, que versou sobre a norma “que resulta da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, no sentido de considerar os casos em que ocorreu um «pedido de revisão oficiosa» equivalentes aos pedidos «precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”, decidindo não julgá-la inconstitucional (v. neste sentido JORGE LOPES DE SOUSA, “Guia da Arbitragem Tributária”, Coord. Nuno Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira, 2.ª Ed., Almedina, pp. 103-109).
Sustenta também a Requerida não ocorrer erro imputável aos serviços, porquanto os atos de retenção na fonte impugnados não foram da sua autoria e não se chegou a pronunciar na fase procedimental, com a consequente inaplicabilidade do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT.
De novo, não pode ser acolhida esta argumentação. O conceito de erro imputável aos serviços a que alude o artigo 78.º, n.º 1 da LGT, embora não compreenda todo e qualquer vício (nomeadamente vícios de forma ou procedimentais), abrange a ilegalidade substantiva ou material, i.e., o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo a imputabilidade aos serviços independente da demonstração de culpa dos funcionários. Constitui jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores que esse erro concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente.
Perante atos de retenção na fonte, que não foram praticados pelo sujeito passivo, pontifica a jurisprudência que, desde que o erro não seja atribuível a conduta negligente do Requerente, será imputável à AT, independentemente de esta não ter praticado o ato tributário. Salienta-se que dentro do conceito de erro se inclui o erro de direito por aplicação de normas nacionais que violem o direito da União Europeia (tal como conformado na causa de pedir do Requerente), desde que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. O que se compreende, dado que não só o substituto tributário (in casu, a entidade pagadora dos rendimentos) atua em substituição da administração, como seria inadmissível responsabilizar o contribuinte pela atuação do substituto – v. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de novembro de 2022, processo n.º 087/22.5BEAVR e de 12 de dezembro de 2021, processo n.º 26.233, e Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23 de março de 2017, processo n.º 1349/10.0BELRS.
Em síntese, estando em discussão uma ilegalidade substantiva dos atos de retenção na fonte por violação do direito europeu e não existindo quaisquer indícios, nem tal tendo sido alegado, de que o Requerente tenha contribuído para esse erro, estamos perante um erro imputável à administração tributária, enquadrável na previsão do artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT. Desta forma, a revisão do ato tributário pode ser efetuada no prazo de 4 anos, com a consequente tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa deduzidos pelo Requerente e a sua equiparação à reclamação graciosa, para efeitos do disposto no artigo 132.º do CPPT, aplicável por remissão do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011. Não assiste razão à Requerida neste ponto.
A Requerida suscita, de igual modo, a incompetência material do Tribunal Arbitral, alegando que este não pode conhecer da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, por configurar questão relativa ao controle dos pressupostos de aplicação do artigo 78.º da LGT e não a apreciação – direta ou indireta – de uma liquidação “adicional”. Este argumento encerra, contudo, a confusão entre o objeto central da ação, que é a declaração de ilegalidade e anulação do ato tributário (aqui de retenção na fonte), que o Requerente expressa e claramente peticiona, para o qual o Tribunal Arbitral tem competência, com a questão, que não é de mérito, da verificação dos pressupostos processuais. Sendo que, também para esta última não pode deixar de ter competência, uma vez que se o Tribunal não pudesse aferir dos pressupostos processuais, ficaria impedido de apreciar e decidir a ação ou tais pressupostos não poderiam existir, alternativas que não se concebem.
Nem o facto de o pedido de revisão oficiosa ter resultado num ato silente pode comprometer o acesso à justiça. Constitui dever da AT, aqui Requerida, decidir o procedimento no prazo de quatro meses (v. artigo 57.º, n.º 1 da LGT). O ato silente representa, assim, antes de mais, o incumprimento, pela Requerida, do dever essencial de dar resposta aos pedidos do contribuinte dentro do prazo legal. Razão que motivou o legislador a ultrapassar o impasse causado pela eventual inércia da AT, que, em rigor, inviabilizaria o acesso à via contenciosa, através de uma ficção, presumindo o indeferimento tácito da pretensão deduzida para assegurar aos contribuintes o acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 57.º, n.º 5 da LGT).
Ora, não se pode admitir que, num sistema justo, a Administração venha invocar, ao arrepio do princípio da legalidade e da colaboração, uma situação de incumprimento por si causada (omissão do dever de se pronunciar e decidir os pedidos dos contribuintes), para obstar ao acesso dos administrados à justiça.
Por outro lado, não tem qualquer relevância a alegação de que, se tivesse decidido os pedidos de revisão oficiosa, a decisão seria obrigatoriamente de indeferimento por extemporaneidade.
Com efeito, de harmonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que aqui se segue, é indiferente se a reação contenciosa contra os atos tributários foi precedida de prévia pronúncia administrativa sobre os mesmos (desde que, no caso de retenções na fonte[3], essa pronúncia tenha sido pedida, como foi), como é indiferente o teor – formal ou material – da decisão dos atos administrativos que sobre aqueles tenha recaído, nomeadamente de extemporaneidade. Desde que seja pedida pronúncia sobre a (i)legalidade do ato de liquidação, estamos no domínio do meio processual da impugnação judicial, e, portanto, por identidade de razões, da ação arbitral, cujo objeto se recorta na apreciação da legalidade do ato tributário – v., acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR e de 18 de novembro de 2020, processo n.º 0608/13.4BEALM 0245/18. Sobre questão análoga, v. ainda a decisão no processo arbitral n.º 832/202-T, de 15 de setembro de 2022.
Deste ponto de vista, cabe na competência dos Tribunais Arbitrais a apreciação das retenções na fonte de IRC controvertidas, ainda que a sua impugnação ocorra na sequência da presunção de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa. Aliás, no caso de retenções na fonte (bem como de autoliquidações), o contribuinte só pode mesmo aceder à fase contenciosa se tiver previamente impulsionado um procedimento administrativo que tenha esses atos por objeto, pois a lei impõe o prévio recurso à via administrativa.
Nestas situações, a ação arbitral terá de ser necessariamente proposta na sequência do indeferimento - expresso ou presumido - do meio administrativo. Isto, sem prejuízo de, em última análise, o objeto da ação ter de ser inevitavelmente o ato tributário ilegal e a sua remoção.
Resulta do exposto que o entendimento sufragado pela Requerida, além de contrário à norma aplicável (v. artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março), conduziria ao resultado paradoxal e inaceitável de a lei exigir o prévio recurso à via administrativa como condição de acesso à ação arbitral e, a um tempo, recusar esse mesmo acesso porque a ação arbitral não se poderia debruçar sobre, e apreciar, os pressupostos do indeferimento administrativo (presumido) do pedido de anulação dos atos de retenção na fonte. Posição que não se perfilha, quer por ser desprovida de suporte legal, quer por implicar um conflito normativo insanável e, por fim, a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, quando o desígnio legislativo expresso no artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril (que contém a autorização legislativa do regime da arbitragem tributária), foi precisamente o de “reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes”.
Por outro lado, ao contrário do invocado pela Requerida, não se verifica qualquer alargamento da vinculação da AT à tutela arbitral. Em consequência, é manifestamente improcedente a arguição, pela Requerida, de vícios de inconstitucionalidade, desde logo, por falta do seu pressuposto-base, pois, como referido, inexiste qualquer ampliação da jurisdição arbitral.
Em conclusão, tendo a ação sido precedida de recurso à via administrativa nos termos do disposto no artigo 132.º do CPPT e sendo o seu objeto a apreciação da (i)legalidade de atos de retenção na fonte de IRC, não subsistem dúvidas, quanto a este ponto, de que estamos perante tarefa que cabe a este Tribunal Arbitral.
Assim, conclui-se que o Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, para conhecer dos atos de liquidação de IRC por retenção na fonte (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
2. Da Inimpugnabilidade dos Atos
Como atrás assinalado, a Requerida entende não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, por falta de equivalência do pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa, que teria de ser apresentada, do seu ponto de vista, no prazo máximo de dois anos, de onde retira o efeito (jurídico) da inimpugnabilidade dos atos de retenção na fonte.
Todavia, tal como acima exposto, o requisito do prévio recurso à via administrativa, que configura o pressuposto processual da inimpugnabilidade do ato (in casu, dos atos de retenção na fonte, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT[4]), foi satisfeito, pois aplica-se o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT e o pedido de revisão oficiosa é equiparado à reclamação graciosa, mesmo que ultrapassado o prazo de dois anos.
Assim, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente.
3. Demais Pressupostos Processuais
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa em 24 de setembro de 2024 (v. artigo 57.º, n.ºs 1 e 5 da LGT), tendo a ação arbitral dado entrada em 16 de dezembro de 2024.
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
IV. Do Direito
1. A Título Preliminar sobre os Certificados de Residência
Invoca a Requerida que os certificados de residência juntos aos autos (referentes aos anos 2020 e 2021) não se reportam ao Requerente. No que não tem razão, laborando em equívoco, por confundir a figura do Requerente, titular da relação jurídico-fiscal controvertida, que é o OIC A... PLC, com a sua representante, a sociedade gestora G... Limited, cuja atuação nessa qualidade produz efeitos na esfera do Requerente e não na sua própria.
Os certificados de residência foram emitidos em nome do A... PLC concluindo-se, por isso, estarem em nome do Requerente, nada havendo a apontar neste domínio.
2. Retenção na Fonte de IRC aos OIC não Residentes – Violação da Liberdade de Circulação de Capitais – Artigo 63.º do TFUE
A questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, do regime de tributação diferenciado que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos distribuídos por sociedades portuguesas (de fonte portuguesa, portanto) a OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC constituídos noutro Estado-Membro, no caso, na República da Irlanda, com observância dos requisitos da Diretiva 2009/65/CE.
Na primeira hipótese, de OIC residentes, aqueles dividendos não são tributados por retenção na fonte em IRC. No segundo pressuposto, de OIC não residentes constituídos num outro Estado-Membro da União Europeia, nos termos da Diretiva 2009/65/CE, os dividendos são sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo, nos termos do disposto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), n.ºs 5 e 7 e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC.
A questão tem sido profusamente apreciada pela jurisprudência arbitral, que se pronuncia de forma predominante pela desconformidade do direito nacional, considerando a interpretação do Tribunal de Justiça, em especial a vertida no acórdão AllianzGI-Fonds, de 17 de março de 2022, processo de reenvio prejudicial C-545/19, tal como assinalado pelo Requerente.
O problema jurídico equacionado no citado processo C-545/19 surge no âmbito de uma situação factual com características em tudo idênticas às dos presentes autos, respeitante a rendimentos de capitais (precisamente dividendos), suscitada por um Tribunal Arbitral Tributário constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), sob o mesmo enquadramento legislativo.
O Tribunal de Justiça conclui que o “artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
A este respeito relembra-se que a interpretação do direito da União Europeia realizada pelo Tribunal de Justiça é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, sendo incontornável a sua aplicação.
Sobre a mesma questão, também o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão uniformizador no âmbito do processo n.º 93/19.7BALS, publicado na 1.ª série do Diário da República, de 26 de fevereiro de 2024, nos seguintes termos:
“1 - Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2 - O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3 - A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”
Nos presentes autos também está em causa a apreciação da tributação de rendimentos de capitais, em concreto, de dividendos[5], auferidos por um OIC não estabelecido em Portugal.
O tratamento fiscal conferido a uma situação desse tipo tem de respeitar as disposições dos Tratados e, em particular, as liberdades europeias, entre as quais se encontra a liberdade de circulação de capitais.
A liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do TFUE, abrange toda e qualquer transferência de capital, onerosa ou não, de um Estado para outro. Esta liberdade impede quaisquer restrições aos movimentos de capitais suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir ou transacionar em certo Estado-Membro e, pese embora o TFUE reconheça, em geral, os elementos de conexão do Direito tributário internacional – residência e fonte –, aceitando o tratamento diferenciado de entidades nacionais e não nacionais[6], a admissibilidade de tal diferenciação está restrita aos casos em que as mesmas (i) não se encontram em situações objetivamente comparáveis, ou (ii) em que a diferença de tratamento é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral[7].
Dado o manifesto paralelismo, não pode deixar de aplicar-se também no presente caso a conclusão interpretativa alcançada pelo Tribunal de Justiça no processo assinalado [C-545/19], no sentido de que o artigo 63.° do TFUE se opõe a uma legislação de um Estado-Membro [como a portuguesa], por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Com efeito, à semelhança da situação analisada no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o Requerente:
− é um OIC constituído ao abrigo da legislação de um outro Estado-Membro com observância do disposto na Diretiva 2009/65/CE;
− é gerido por uma entidade gestora com sede nesse outro Estado-Membro;
− não é residente nem dispõe de estabelecimento estável em território nacional; e
− foi sujeito a tributação por retenção na fonte sobre dividendos recebidos de entidades residentes em Portugal.
Seguindo a interpretação do Tribunal de Justiça no aresto em referência, a situação é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais constante do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE que proíbe “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”, resultando de jurisprudência constante que as medidas proibidas “incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado-Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C-252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln-Aktienfonds Deka, C-156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).” – v. pontos 33 e 36 do acórdão no processo C-545/19.
Prossegue o Tribunal de Justiça nos seguintes moldes, com plena aplicabilidade à situação em análise:
“37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
40 Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].”
É, pois, indiscutível que a legislação fiscal portuguesa trata de modo desfavorável os OIC não residentes face aos OIC residentes, em relação à tributação sobre o rendimento, sob a forma de retenção na fonte, dos dividendos distribuídos por sociedades estabelecidas em Portugal (v. o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF conjugado com os artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), n.ºs 5 e 7 e 87.º, n.º 4 do Código do IRC).
Esta discriminação, nos termos enunciados pelo Tribunal de Justiça, é desconforme ao direito da União Europeia exceto se, de duas uma: i) respeitar a situações que não sejam objetivamente comparáveis; ou (ii) for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.
Importa, assim, aquilatar sobre estes dois motivos de exclusão, no que se continua a acompanhar o aresto em referência na parte relevante para a matéria em discussão nestes autos [C-545/19], como se transcreve:
“ Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis
44 O Governo português alega, em substância, que as respetivas situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes não são objetivamente comparáveis uma vez que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de organismos de investimento de sociedades residentes em Portugal é regulada por técnicas de tributação diferentes – a saber, por um lado, esses dividendos são objeto de retenção na fonte quando são pagos a um OIC não residente e, por outro, estão sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas quando são pagos a um OIC residente.
45 Este Governo indica igualmente que resulta do artigo 22.°-A do EBF que os dividendos distribuídos por OIC residentes a detentores de participações sociais residentes em território português ou que sejam imputáveis a um estabelecimento estável situado neste território são tributados à taxa de 28 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares) ou de 25 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas), ao passo que os dividendos pagos a detentores de participações sociais que não residem no território português e que não têm estabelecimento estável neste último estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (com algumas exceções destinadas essencialmente a prevenir abusos).
46 Segundo o referido Governo, há uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais nestes organismos. Assim, o modelo português de tributação dos OIC, de natureza «compósita», conjuga estruturalmente os impostos incidentes, por um lado, sobre os OIC residentes, ou seja, o imposto do selo e o imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, bem como, por outro, os incidentes sobre os detentores de participações sociais em tais organismos, conforme referidos no número anterior. Estas diferentes tributações, muito bem integradas entre si, sendo cada uma delas imprescindível à coerência do sistema de tributação instituído, devem ser entendidas como um todo.
47 Além disso, este mesmo Governo acrescenta, em substância, que, no âmbito da apreciação da comparabilidade das situações em causa, não se deve abstrair dos efeitos da transparência fiscal que caracteriza a relação entre a recorrente no processo principal e os detentores de participações sociais na mesma, o que leva a que a retenção na fonte efetuada em Portugal possa ser imediatamente repercutida nos detentores de participações sociais que, não estando isentos de imposto, podem imputar ou, ainda, creditar a sua participação dessa retenção efetuada em Portugal sobre o imposto do qual são devedores na Alemanha.
48 Por último, o Governo português considera que, ao ter livremente optado por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável, a recorrente no processo principal autoexcluiu‑se de qualquer comparação com os OIC estabelecidos em Portugal, sendo a sua situação, isso sim, comparável a todas as situações das demais entidades não residentes e cujos dividendos auferidos em Portugal são sempre tributados a taxas nunca inferiores a 25 %.
49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 47 e jurisprudência referida).
50 Quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 44 do presente acórdão, há que recordar que, nas circunstâncias que deram origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C‑282/07, EU:C:2008:762), o Tribunal de Justiça admitiu a aplicação, aos beneficiários de rendimentos de capitais, de técnicas de tributação diferentes consoante esses beneficiários sejam residentes ou não residentes, uma vez que esta diferença de tratamento diz respeito a situações que não são objetivamente comparáveis (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center, C‑282/07, EU:C:2008:762, n.° 41).
51 Do mesmo modo, no processo que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402), o Tribunal de Justiça declarou que o tratamento diferenciado da tributação dos dividendos pagos a fundos de pensões segundo a qualidade de residente ou de não residente destes últimos, resultante da aplicação, a esses fundos respetivos, de dois métodos de tributação diferentes, era justificado pela diferença de situação entre estas duas categorias de contribuintes à luz do objetivo prosseguido pela regulamentação nacional em causa nesse processo, bem como do seu objeto e do seu conteúdo.
52 No entanto, sob reserva da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 44 e jurisprudência referida).
53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.° 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.° TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado‑Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado‑Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.
59 Além disso, na medida em que o argumento do Governo português se refere à pretensa necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro em causa deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas (v., designadamente, Acórdão de 30 de abril de 2020, Société Générale, C‑565/18, EU:C:2020:318, n.° 26 e jurisprudência referida), bem como o objeto e o conteúdo destas últimas (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 48 e jurisprudência referida).
60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 49 e jurisprudência referida).
61 No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao objeto, ao conteúdo e ao objetivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, resulta tanto da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça como da resposta do Governo português às perguntas escritas que lhe foram dirigidas no âmbito do presente processo que o referido regime foi concebido numa lógica de «tributação à saída», ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.
62 Com efeito, o Governo português precisou que o regime nacional em matéria de tributação dos dividendos visava alcançar objetivos como, nomeadamente, evitar a dupla tributação económica internacional e transferir a tributação na esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes, procurando assim que a tributação incidente sobre estes rendimentos seja aproximadamente equivalente à que ocorreria caso esses rendimentos tivessem sido obtidos diretamente pelos participantes nesses mesmos OIC.
63 Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar o direito nacional, tendo em conta todos os elementos da legislação fiscal em causa no processo principal e o conjunto dos elementos constitutivos desse mesmo regime de tributação, determinar o objetivo principal prosseguido pela legislação nacional em causa no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 79).
64 Se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa evitar a dupla tributação dos dividendos pagos por sociedades residentes, atendendo à qualidade de intermediário dos OIC face aos seus detentores de participações sociais, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, relativamente às medidas previstas por um Estado‑Membro para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica dos rendimentos distribuídos por uma sociedade residente, as sociedades beneficiárias residentes não se encontram necessariamente numa situação comparável à das sociedades beneficiárias não residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 53 e jurisprudência referida).
65 Todavia, como resulta do n.° 49 do presente acórdão, a partir do momento em que um Estado‑Membro, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só as sociedades residentes mas também as sociedades não residentes, relativamente aos rendimentos que auferem de uma sociedade residente, a situação das referidas sociedades não residentes assemelha‑se à das sociedades residentes.
66 Com efeito, é unicamente o exercício por esse mesmo Estado da sua competência fiscal que, independentemente de tributação noutro Estado‑Membro, cria um risco de tributação em cadeia ou de dupla tributação económica. Em tal caso, para que as sociedades beneficiárias não residentes não sejam confrontadas com uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE, o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 55 e jurisprudência referida).
67 Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida).
68 Caso o órgão jurisdicional de reenvio chegue à conclusão de que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa, no intuito de não renunciar pura e simplesmente à tributação dos dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal, transferir essa tributação para a esfera dos detentores de participações sociais dos OIC, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, se o objetivo da legislação nacional em causa for deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o acionista desse veículo, são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos acionistas que devem ser consideradas determinantes e não a técnica de tributação utilizada (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 60).
69 Ora, um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado‑Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra‑se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 61).
70 É certo que a República Portuguesa não pode tributar os detentores de participações sociais não residentes sobre os dividendos distribuídos por OIC não residentes, como aliás o Governo português admitiu tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça. Contudo, essa impossibilidade é coerente com a lógica de deslocação do nível de tributação do veículo para o detentor de participações sociais (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 62).
71 No que respeita, em segundo lugar, aos critérios de distinção pertinentes, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.
Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral
75 Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 56 e jurisprudência referida].
76 No caso em apreço, há que constatar que, embora o órgão jurisdicional de reenvio não invoque essas razões no pedido de decisão prejudicial, uma vez que este se concentra na eventual comparabilidade das situações em causa no processo principal, o Governo português alega, tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça, que a restrição à livre circulação de capitais efetuada pela legislação nacional em causa no processo principal se justifica à luz de duas razões imperiosas de interesse geral, a saber, por um lado, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional e, por outro, a de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros em causa, ou seja, a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha.
77 No que respeita, em primeiro lugar, à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, o Governo português considera, como resulta do n.° 46 do presente acórdão, que o modelo de tributação português dos dividendos constitui um modelo «compósito». Assim, só seria possível garantir a coerência deste modelo se a entidade gestora dos OIC não residentes operasse em Portugal através de um estabelecimento estável, de modo a que essa entidade pudesse concretizar as retenções na fonte necessárias junto dos detentores de participações sociais residentes, bem como, em certos casos excecionais orientados por considerações ligadas ao facto de evitar a planificação fiscal, junto dos detentores de participações sociais não residentes.
78 A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C‑375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 87).
79 Ora, no presente processo, como resulta do n.° 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 93).
80 Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.° 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.
81 A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.
82 No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 57 e jurisprudência referida, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.° 59).
83 No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 71 e jurisprudência referida).
84 Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.
85 Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
Resulta, em síntese, da apreciação do Tribunal de Justiça que o tratamento diferenciado da legislação portuguesa não é admissível por se verificar, por um lado, a comparabilidade dos OIC residentes e não residentes (constituídos num Estado-Membro da União Europeia), não ocorrendo, por outro lado, uma razão imperiosa de interesse geral que o justifique.
Tal como sublinhado na decisão arbitral do processo n.º 99/2019-T, de 22 de julho, o Tribunal de Justiça ponderou “(i) quer o facto de os OICs Residentes serem alvo de uma diferente modalidade de tributação/de técnicas de tributação diferentes (a saber, em IS e em TAs), (ii) quer o facto de o regime tributário em questão ter sido concebido numa lógica de tributação à saída e de, assim, os dividendos serem tributados na esfera dos Participantes”.
Acresce, como salientado na decisão do processo arbitral n.º 370/2021-T, que:
“Por outro lado, o Estado português não compensa aos titulares de unidades de participação em OICs estrangeiros residentes em território português ao imposto português retido a estes em Portugal, o que é suficiente para que se considere a tributação desses residentes não estar salvaguardada pela doutrina do Acórdão [do Tribunal de Justiça] C-282/07.
Segundo o nº 23 daquele Acórdão, a possibilidade de reservar a isenção da retenção na fonte aos OICs residentes, como fez o legislador nacional, não pode ir além do necessário para garantir a coerência do regime fiscal em causa, o que deve ser determinado caso a caso, o que não acontece no presente caso: a coerência do sistema fiscal não justifica a abdicação pelo Estado português do poder de tributação dos não residentes titulares de unidades de participação em OICs nacionais, nem o não reconhecimento aos residentes titulares de unidades de participação em OICs estrangeiros de crédito do imposto retido em Portugal .
Tendo o legislador optado por isentar os rendimentos redistribuídos por OICs nacionais a não residentes, a retenção aos OICs estrangeiros mas que respeitem as exigências impostas pela lei nacional aos OICs violaria o princípio da equivalência de tratamento, já que a sua única justificação seria a garantia da cobrança de um imposto à qual, em situações equiparadas, renunciou.
Com efeito, de acordo com o nº 28 do Acórdão do TJUE C-338/11 a 347/11[3], apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela regulamentação nacional da tributação dos OICs devem ser tidos em conta para efeitos de apreciar se a diferença de tratamento resultante de tal regulamentação reflete uma diferença de situações objetiva.
Quando um Estado-Membro escolha exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OICs beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações dos OICMVs seria desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação: a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o caráter discriminatório ou não da referida regulamentação deve ser realizada apenas ao nível do veículo de investimento, o OIC, e não ao nível do investidor.”
À face do exposto, tendo em conta a interpretação do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, que versa sobre uma situação similar à dos presentes autos, regida pelo mesmo quadro legislativo, impõe-se concluir pela desconformidade ao artigo 63.º do TFUE do regime de tributação por retenção na fonte que foi aplicado aos dividendos distribuídos ao Requerente, na qualidade de OIC não residente, previsto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 5, e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, uma vez que os OIC residentes não estão sujeitos a essa retenção ao abrigo do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF.
Em linha com a decisão do processo arbitral n.º 133/2021-T, de 21 de março de 2022, constitui corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º TFUE, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça “tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11- 2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593). A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».”
Termos em que deve ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade e de anulação, por erro de direito, das liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, com a consequente restituição do imposto pago (v. artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e artigo 100.º da LGT, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
Não cumpre anular o “ato” de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica, destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
3. Sobre o Pedido de Juros Indemnizatórios
O Requerente peticiona juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT, que, no seu n.º 1, postula que estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro [de facto ou de direito] imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5 do RJAT e da jurisprudência consolidada.
Acresce que o Tribunal de Justiça tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência, não só direito ao reembolso, como o direito a juros – v. acórdão de 18.04.2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere que:
“21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).”
Compete à ordem jurídica interna dos Estados-Membros prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União.
O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que o erro imputável aos serviços fica demonstrado quando seja procedente a reclamação graciosa ou impugnação da liquidação e o contribuinte não tenha contribuído para aquele [erro]. A imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado. E preconiza ainda que “Resultando a ilegalidade do acto anulado da desconformidade do mesmo com normas de direito da União Europeia, para além da restituição da quantia ilegalmente retida, são devidos juros indemnizatórios, por tal ilegalidade não ser imputável ao contribuinte.” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, processo n.º 01273/08.6BELRS 01364/17.
Em face desta jurisprudência, não sendo os erros que afetam os atos de retenções na fonte imputáveis ao Requerente, são-no à AT e o facto de não serem praticados diretamente pela AT não afasta essa imputabilidade, pois a ilegalidade da retenção a fonte, quando não é baseada em informações erradas do contribuinte, não lhe é imputável.
No caso particular da revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, como sucede nos presentes autos, o artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT institui uma disciplina específica (uma lex specialis), constituindo-se a obrigação de indemnizar na esfera da Requerida somente depois de decorrido um ano a contar dos pedidos de revisão – v. acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 11 de dezembro de 2019, processo n.º 051/19.1BALSB[8].
Tendo os pedidos de revisão oficiosa sido apresentados em 23 de maio de 2024, a contagem dos correspondentes juros indemnizatórios, só se inicia em 24 de maio de 2025.
Nestes termos, são devidos juros indemnizatórios ao Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, a liquidar desde 24 de maio de 2025 até ao processamento da nota de crédito (v. artigo 61.º, n.º 5 do CPPT).
V. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedentes as exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral e de inimpugnabilidade dos atos de retenção na fonte de IRC;
b) Julgar a ação procedente e, em consequência:
- Anular as liquidações de IRC por retenção na fonte referentes aos anos 2020 e 2021, com a inerente restituição do valor peticionado de € 947.339,99;
- Reconhecer o direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 947.339,99 (novecentos e quarenta e sete mil trezentos e trinta nove euros e noventa e nove cêntimos) indicado pelo Requerente, respeitante ao montante das retenções na fonte de IRC cujo reembolso pretende (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Custas no montante de € 13.158,00 (treze mil cento e cinquenta e oito euros), a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 25 de junho de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins, Relatora
Nina Aguiar
Paulo Ferreira Alves
[1] Com os contribuintes fiscais portugueses números ..., ..., ..., ... e ... .
[2] Resultante da CDT Portugal/Irlanda.
[3] Bem como de autoliquidações.
[4] Sobre esta questão vide VIEIRA DE ANDRADE, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs..
[5] V. quanto a situações análogas, os acórdãos Verkooijen (Processo C-35/98); Manninen (Processo C- 319/02, ACT 4 (Processo C 374/04) e Denkavit II (Processo C-170/05).
[6] V. os acórdãos Futura Participations, Processo C-391/97, Marks & Spencer, Processo C-446/03 e Denkavit II, Processo C-170/05.
[7] V. acórdãos X AG, Processo C-40/13, e Felixstowe Dock and Railway Company, Processo C-80/12.
[8] No mesmo sentido, v. os Acórdãos de 28/01/2015, no processo n.º 0722/14, de 11/12/2019, no processo n.º 058/19.9BALSB, de 20/05/2020, no processo n.º 05/19.8BALSB, de 04/11/2020, processo n.º 038/19, e de 26/05/2022, no processo n.º 159/21.3BALSB, todos do Supremo Tribunal Administrativo.