SUMÁRIO:
1- Estando em causa uma autoliquidação de IVA, o particular que invoca a existência de erro imputável aos serviços como pressuposto da tempestividade do seu pedido de revisão oficiosa tem que alegar factos concretos que possibilitem o enquadramento em tal conceito.
2- O IVA indevidamente liquidado é reembolsável pelo fornecedor /creditável na sequência de procedimentos documentais que o CIVA expressamente prevê.
3- Apenas pode ser efetuado o reembolso diretamente pelo Estado se e na medida em que o reembolso pelo fornecedor seja, comprovadamente, impossível ou excessivamente difícil, cabendo tal prova ao adquirente dos bens ou serviços.
DECISÃO ARBITRAL
A..., Lda., com sede na Rua ... ..., ...-... Lisboa, NIPC ..., e B...– Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, NIF..., representado pela sua sociedade gestora C..., SGOIC, S.A., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, NIPC ... vieram, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I- RELATÓRIO
A) O Pedido
Os Requerentes peticionam:
– anulação parcial liquidações de IVA constantes das declarações periódicas n.os..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., relativas a diversos períodos de tributação compreendidos entre Junho de 2020 e Fevereiro de 2022, nos valores de, respetivamente, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 9.453,69, € 23.000,00, € 23.000,00, € 46.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 23.000,00, € 44.850,28 e € 23.000,00, , totalizando o valor global de € 399.821,19
- consequente, a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa;
- a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios
b) O litígio
Nas palavras dos Requerentes, A questão central objecto do presente pedido prende-se com a (i)legalidade da liquidação de IVA incluído na facturação de Serviços prestados pela Requerente A... ao Requerente Fundo, ao invés da aplicação da isenção legalmente prevista para os serviços prestados (de administração e gestão de fundos de investimento, conforme dispõe a subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA) – isenção da qual o fundo ora Requerente, por erro na mencionada autoliquidação do IVA, não beneficiou – daí terem deduzido o pedido de revisão cujo indeferimento aqui se impugna, tal como se impugna a liquidação de imposto subjacente, sustentando a aplicação da referida isenção, que a AT desconsiderou em sede de revisão.
A posição da AT consta da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa junta aos autos, que adiante se transcreverá no essencial.
a) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 09/12/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 18/02/2025.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 12/05/2025 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
b) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas exceções.
Não existem questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
II- PROVA
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos
a) A A... exerce a título principal a atividade de “administração de imóveis por conta de outrem” (CAE 68321).
b) O Fundo B... é um organismo de investimento imobiliário fechado de subscrição particular, encontrando-se registado, a título principal, para o exercício da atividade de “Trusts, Fundos e entidades financeiras similares” (CAE 64300).
c) Para efeitos de IVA, ambos assumem a qualidade de sujeitos passivos de imposto.
d) O Fundo Requerente celebrou com a A... um contrato de gestão imobiliária.
e) A A... procedeu à liquidação e cobrança do IVA, à taxa normal, sobre o valor dos serviços prestados.
f) Das declarações periódicas respeitantes aos períodos em causa não resulta o exercício do direito à dedução de imposto suportado a montante pelo Fundo.
g) O Fundo Requerente não se conformou com as liquidações em causa. tendo desencadeado junto da Administração Tributária e Aduaneira o competente procedimento de revisão oficiosa.
h) O Requerente emitente das faturas não procedeu à sua alteração, fazendo delas constar a isenção e tributação em IVA dos serviços que deram origem à respetiva emissão, mantendo em seu poder o total de imposto assim recebido
i) O pedido de revisão oficiosa foi indeferido pelas razões que se transcrevem (apenas os pontos tidos por mais relevantes):
39. Posto isto, importa, a título prévio, aferir sobre o preenchimento respetivos dos pressupostos processuais, por forma a determinar a suscetibilidade do recurso ao procedimento de Revisão Oficiosa como meio de lograr obter as pretensões formuladas em sede de petição.
42. Face à configuração efetuada pelas Requerentes na sua petição inicial, porque estamos perante um suposto erro na autoliquidação, decorrente de um errado enquadramento jurídico-tributário das prestações de serviço em análise, o mesmo seria, no seu entendimento considerado imputável aos serviços, nos termos do n.°1 do artigo 78.° do LGT.
49. Deste modo, perante um caso, como o presente, em que as Requerentes vêm solicitar a revisão oficiosa de determinados atos tributários ao abrigo da 2.° parte do n.° 1 do artigo em análise, perante a sua eventual ilegalidade, importa aferir em primeiro lugar sobre a existência de erro, e na positiva a quem é imputável
51. Daqui decorre que, arrogando-se as Requerentes do direito à regularização do IVA que, alegadamente, foi indevidamente liquidado, cabe-lhes o ónus de comprovar a ocorrência do erro que lhe está subjacente e imputabilidade do mesmo à AT.
52. Neste pressuposto, não logrando fazê-lo, apurando-se que o erro é imputável ao contribuinte, sendo o pedido apresentado para além do prazo de reclamação (2 anos a contar da entrega da declaração).
60. Sendo que da factualidade descrita decorre que as Requerentes limitam-se a invocar a ocorrência de uma liquidação indevida de IVA efetuada pela prestadora de serviços, em resultado duma incorreta interpretação do regime de isenção do IVA, sem apresentar qualquer justificação para a sua imputabilidade à AT, sendo ponto assente, que as declarações de IVA em causa não foram apresentadas com suporte em qualquer informação genérica, matéria que nem se encontra alegada.
61. As Requerentes, alicerçam toda a sua alegação numa argumentação vaga e genérica, tecendo meras considerações gerais, e invocando jurisprudência sem que, em concreto, densifiquem em que consiste o erro invocado, e como pode o mesmo ser assacado à AT, o que como referido, não se admite, já que não é sobre esta que recai a obrigação de liquidação do imposto, nem a sua regularização.
63. Como refere Jorge Lopes de Sousa "(...) sendo o contribuinte quem faz a autoliquidação, o que é normal é que os erros lhe sejam imputáveis a ele próprio, que a fez, e não à administração tributária, que não a fez. Apenas se entrevê a possibilidade de erros na autoliquidação serem imputáveis à administração tributária nos casos em que esta procedeu a correção ou em que o contribuinte incorreu em erros, segundo instruções, gerais ou especiais, que aquela lhe forneceu."
64. Sem prescindir, e no pressuposto de como refere as Requerentes estarmos perante a existência de um erro, importa realçar que o mesmo jamais se poderia reportar às mencionadas autoliquidações, mas sim a atos prévios às mesmas - as faturas emitidas pela A..., onde se materializou a liquidação do imposto que alegam ser ilegal.
65. Com efeito, as autoliquidações não estão erradas porquanto devem refletir as faturas emitidas e os respetivos registos contabilísticos efetuados pelo sujeito passivo.
68. Para efeitos de IVA, do disposto resulta que, a simples menção do IVA em tais documentos, determina que o respetivo emitente fique enquadrado nas regras de incidência subjetiva, impendendo sobre ele a obrigação de entregar ao Estado, o imposto liquidado, ainda que indevidamente, e seja qual for o motivo. Por esse facto, passa a ser considerado devedor de imposto, tendo de cumprir o disposto no n.° 2 do artigo 27.° do CIVA.
71. Acresce que, o n.° 7 do artigo 29.° do CIVA dispõe que “quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura’’.
72. Ora, para que seja admissível a correção do erro no IVA liquidado, anulando-o ou fazendo constar a isenção, deviam, as faturas emitidas nas quais foi incluído IVA a 23%, ser regularizadas nos termos legais, no sentido de eliminar a alegada menção indevida, o que conforme decorre do alegado pelas Requerentes, não sucedeu.
73.Ou seja, como referido, impunha-se que fosse seguido o procedimento estabelecido no artigo 78.° do CIVA, cujo n.° 1 determina que “as disposições do artigo 36.° e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo.”
74. Daqui decorre que, a liquidação efetuada pelos prestadores de serviços na fatura e a declaração de IVA entregue junto da AT (a que alude o artigo 29.°, n.° 1, al. c) do CIVA), não sofrem de ilegalidade, o mesmo ocorrendo com a arrecadação de imposto operada pela AT. Ao invés, a sua exigência é inerente à natureza e à lógica de funcionamento do próprio imposto.
77. No caso em apreço, não se está perante uma situação em que seja permitida a anulação das autoliquidações, como, aliás, decorre do teor expresso do n.° 3 do artigo 97.° do CIVA, que estabelece que "as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.°".
79. Nestes termos, inexistindo qualquer erro que possa ser imputado à AT, deve concluir-se que não tendo as Requerentes apresentado o requerimento de Revisão Oficiosa dentro do prazo de dois anos a contar da data da entrega das declarações periódicas relativas aos períodos de tributação em análise, a mesma mostra-se intempestiva.
80. Sem prescindir, no mero pressuposto de estarmos perante a existência de um alegado erro, importa realçar que o mesmo jamais se poderia reportar às mencionadas autoliquidações, mas sim a atos prévios às mesmas - as faturas emitidas pela prestadora de serviços- A..., onde se materializou a liquidação do imposto que alegam ser ilegal.
82. Sucede que, no que concerne a este ponto, deve ter-se em consideração os prazos de caducidade das regularizações de imposto, previstos no CIVA, em normas especiais dotadas de carater imperativo.
84. O CIVA, ao contrário do que sucede com outros impostos autoliquidados, contem diversas normas referentes à regularização do imposto que têm de ser articuladas com aquelas que preveem garantias impugnatórias dos sujeitos passivos.
85. O IVA é um imposto plurifásico, cuja liquidação se processa em todas as fases de produção e distribuição, ou seja, fracionando-se por todos os operadores que participam nesse circuito. Funcionando através do denominado método de crédito de imposto, indireto subtrativo, ou das faturas, o que significa que a qualquer um dos sujeitos passivos integrados na cadeia referida é conferido o direito à dedução do imposto suportado a montante.
87. No entanto, as operações subjacentes a esta cadeia, por vezes, sofrem vicissitudes que implicam que os sujeitos passivos procedam à regularização do imposto liquidado ou deduzido.
88. No caso de autoliquidaçâo, a mesma é efetuada com base nos registos contabilísticos que tiveram como base os correspondentes documentos de suporte, em regra, uma fatura, concretizando-se com a entrega da declaração periódica.
89. Após o envio da mesma, qualquer alteração constitui uma regularização do imposto.
91. Trata-se de uma matéria objeto de regulamentação autónoma quer a nível da Diretiva IVA (artigo 90.°), quer a nível interno (artigo 78.° do CIVA), onde se definem os diversos tipos de erros e os procedimentos tendentes à sua regularização.
92. Sucede que, ao contrário do que que acontece com a regularização do imposto inicialmente deduzido, onde se prevê a nível comunitário um direito geral dos sujeitos passivos a essa regularização, de acordo com a disciplina a definir pelos diversos Estados Membros, no caso do imposto liquidado em excesso, a Diretiva IVA já não contempla um direito geral similar. O que se compreende, pois como referido, o imposto indevidamente liquidado é, conforme referido, de entrega obrigatória.
93. (…) poderia questionar- se se estaríamos perante uma situação enquadrável no âmbito do n.° 3 do artigo 78.° do CIVA (…)
97. Nestas situações determina o n.° 3 do mencionado preceito legal que “nos casos de faturas inexatas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45°, a retificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos, podendo ser efetuada sem qualquer penalidade até ao final do período seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar, e é facultativa, guando houver imposto a mais, mas apenas pode ser efetuada no prazo de dois anos”, (sublinhado nosso).
100. Não obstante, ainda que, defendendo a não subsunção do caso em apreço ao disposto no artigo no n.° 3 do artigo 78.°, tal não significa o afastamento da aplicação do n.° 1 da mesma norma, termos em que sempre existiria a obrigatoriedade de observância ao disposto no artigo 36.°, no sentido de fazer constar das mesmas a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto, que entende, a Requerente, ser o enquadramento legalmente correto.
101. Ou seja, impõe-se que a prestadora dos serviços que procedeu à emissão da fatura, para efeitos de restituição do IVA indevidamente liquidado, deverá emitir a correspondente nota de crédito pelo valor do imposto liquidado em excesso, fazendo constar da mesma os elementos a que se refere o n.° 6 do artigo 36.° do CIVA, dos quais se realça a referência à fatura a que respeitam e a menção dos elementos alterados, em particular a aplicação da isenção à operação.
103. Neste caso, e embora a referida regularização seja uma faculdade conferida aos sujeitos passivos, sempre que os mesmo optem por efetuá-la, é necessário o cumprimento do previsto no n.° 4 e 5 do mesmo artigo, os quais determinam que: “(…) 4- 0 adquirente do bem ou destinatário do serviço que seja um sujeito passivo do imposto, se tiver efectuado já o registo de uma operação relativamente à qual o seu fornecedor ou prestador de serviço procedeu a anulação, redução do seu valor tributável ou rectificação para menos do valor facturado, corrige, até ao fim do período de imposto seguinte ao da recepção do documento rectificativo, a dedução efectuada; 5 - Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução. (...)”
104. Não se verificando tais requisitos, inexistirá fundamento legal para a anulação das autoliquidações em questão, por as mesmas estarem em conformidade com as normas legais aplicáveis.
107. A autoliquidação deve estar em conformidade com o IVA liquidado pelo sujeito passivo na sua faturação e respetiva contabilização, sob pena de ilegalidade.
108. Assim sendo, não padecem as autoliquidações objeto do presente procedimento de qualquer ilegalidade, estando conformes às normas que lhes estão subjacentes.
110. De facto, sendo o imposto constante na fatura de montante superior ao devido, enquanto não for retificado, o mesmo é devido.
111. Mais uma vez se refere que dos autos não resulta que tal tenha sucedido. Pelo contrário, do alegado pela Requerente é patente que nada foi feito no sentido de regularizar os documentos que considera padecerem de erro na sua emissão, não cabendo à AT, reitera-se substituir-se aos sujeitos passivos no exercício desta faculdade, legalmente consagrada.
112. Nestes termos, independentemente do enquadramento dos serviços prestados pela A... ao Fundo, serem ou não suscetíveis de se considerarem abrangidos pela isenção invocada, verifica-se um obstáculo à anulação das autoliquidações objeto do presente procedimento, o qual não se mostra assim como meio processualmente adequado à salvaguarda das pretensões formuladas.
126. As partes não se encontram em litígio quanto à regularização do IVA em causa, e ainda que tal sucedesse, o Fundo dispõe de meios judiciais para, sendo a sua posição legalmente sustentada, interpelar os prestadores de serviços para a adoção de um comportamento devido para efeitos de regularização da ilegalidade alegada.
128. Face ao exposto, o pedido de Revisão Oficiosa carece de base legal, não se mostrando como meio processual idóneo para fazer valer a pretensão das Requerentes, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legalmente previstos para o efeito, não se vislumbrando que seja admissível a sua convolação noutro qualquer meio impugnatório.
129. Em consequência, fica precludida a apreciação do mérito/legalidade das demais questões colocadas, em concreto, a aferição da suscetibilidade das operações em causa se enquadrarem, para efeito de tributação em sede de IVA, no âmbito da norma de isenção contante da subalínea g), da alínea 27 do artigo 9.° do CIVA, e bem, sobre o quantum e respetiva comprovação do imposto alegadamente liquidado em excesso, em cumprimento o ónus da prova que sobre si impende nos termos do disposto no artigo 74.° da LGT, que por mero dever de patrocínio não se admite que esteja cumprido.
VI. CONCLUSÃO Analisados os devidos pressupostos legais, somos, nos termos expostos, a entender pela rejeição liminar do pedido ora formulado nos autos, ao abrigo do preceituado no n.° 1 do art.° 109.° do CPA, ex v/da al. d) do art.° 2.° do CPPT, promovendo-se, em consequência, o arquivamento do mesmo, disso se notificando igualmente as Requerentes, através de ofício nos termos do previsto nos art.°s 35.° a 41.°, todos do CPPT, para, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias, exercer o seu direito de participação, na modalidade de audição prévia, sob a forma escrita, ao abrigo do disposto no art.° 60.° da LGT, por sua vez conjugado com a regra contida no art.° 121.°, este do CPA, ex vi da al. c) do art° 2.° também da LGT.
Estes factos resultam diretamente da documentação que integra o PA junto aos autos e, também, dos documentos juntos pelos Requerentes ao PPA, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.
II. 2- Factos não provados
Não ficou provada (nem alegada) qualquer razão impeditiva ou capaz de tornar extremamente difícil a regularização pelas partes do constante das faturas em causa e consequente devolução pelo primeiro Requerente de parte do IVA recebido do segundo.
II- O DIREITO
II.1 – Questões a decidir
1. Importará começar por fixar quais as questões que cabe a este tribunal decidir por, salvo melhor opinião, ambas as partes, nos respetivos articulados, se pronunciaram sobre temas que extravasam aquilo que resulta da lei como sendo o objeto deste processo.
Estamos no domínio de um processo de impugnação, uma forma processual que continua a ser essencialmente dirigida à anulação de um ato. No caso, é peticionada a anulação parcial de determinadas liquidações de IVA. Liquidações que, muito embora praticadas pelo sujeito passivo, quando calculadas por excesso – com é o caso - produzem efeitos nefastos sobre o contribuinte de facto (o repercutido) tal qual um ato administrativo lesivo.
Exatamente por estar em causa a anulação de um ato lesivo a lei exige que o acesso à via judicial/arbitral seja precedido de uma reclamação necessária[1]. O que bem se compreende: não tendo a AT praticado o ato, resultaria incompreensível que que surgisse como requerida num processo em que se invoca a ilegalidade de tal ato. Com a decisão administrativa, se a mesma for no sentido do indeferimento do peticionado pelo interessado – é o caso –, teremos, só então, configurado um litígio entre a administração e o particular, pois que cada um sustenta diferente entendimento.
Temos, também, definida a fundamentação invocada pela administração para manter na ordem jurídica a liquidação posta em crise.
É à luz desta fundamentação, e apenas dela, que o tribunal poderá analisar a situação. O tribunal não pode apreciar questões que não tenham sido objeto da pronúncia administrativa, mesmo que tais questões hajam sido suscitadas pelo particular no procedimento. E, não as tendo apreciado em sede de procedimento (de revisão oficiosa), a AT não pode “retomá-las” no contexto do processo judicial/arbitral. Não pode ser de outra forma sob pena de se admitir formas de fundamentação a posteriori.
2- Aplicando estas considerações ao caso concreto, temos que a questão de saber se os serviços alegadamente prestados pela A... ao Fundo estão ou não isentos de IVA, bem como o valor do imposto liquidado cuja devolução os Requerentes reclamam estão fora do âmbito da pronúncia deste tribunal, pois não foram objeto de apreciação no procedimento administrativo necessário que precedeu este processo arbitral.
Citamos de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa:
129. Em consequência, fica precludida a apreciação do mérito/legalidade das demais questões colocadas, em concreto, a aferição da suscetibilidade das operações em causa se enquadrarem, para efeito de tributação em sede de IVA, no âmbito da norma de isenção contante da subalínea g), da alínea 27 do artigo 9.° do CIVA, e bem, sobre o quantum e respetiva comprovação do imposto alegadamente liquidado em excesso, em cumprimento o ónus da prova que sobre si impende nos termos do disposto no artigo 74.° da LGT, que por mero dever de patrocínio não se admite que esteja cumprido.
~
Por serem questões de que este tribunal, no caso concreto, não pode conhecer, a elas não se fará mais qualquer referência. Pela mesma razão, não foram levados ao probatório quaisquer factos a elas referentes.
Assim sendo, são duas as questões a serem apreciadas, porquanto o indeferimento do pedido de revisão oficiosa assentou na invocação de duas diferentes ordens de razão:
-a tempestividade do pedido de revisão oficiosa;
-a “impropriedade” deste meio processual para se obter o resultado pretendido (devolução do imposto indevidamente pago).
II.2 – Tempestividade do pedido de revisão oficiosa
Na decisão do pedido de revisão oficiosa, a AT começa por analisar a questão da sua tempestividade (nº 39 a 68, acima transcritos em parte).
A AT recordou que há dois prazos a serem considerados: o da interposição da reclamação (graciosa) - no caso, 2 anos a contar da entrega da declaração - e o de revisão oficiosa; que a revisão oficiosa, quando peticionada no prazo de quatro anos, quer por iniciativa da própria AT, quer por impulso do particular, pressupõe a existência de erro imputável aos serviços, tal como dispõe o nº 1 do artº 78º da LGT.
Entende ainda a AT que cabe ao interessado o ónus da prova, ou seja, alegar e provar factos dos quais se deva inferir ter existido algo que deva ser considerado como configurando erro imputável aos serviços.
Entendimentos que merecem a concordância deste tribunal.
Diz a AT:
60. Sendo que da factualidade descrita decorre que as Requerentes limitam-se a invocar a ocorrência de uma liquidação indevida de IVA efetuada pela prestadora de serviços, em resultado duma incorreta interpretação do regime de isenção do IVA, sem apresentar qualquer justificação para a sua imputabilidade à AT, sendo ponto assente, que as declarações de IVA em causa não foram apresentadas com suporte em qualquer informação genérica, matéria que nem se encontra alegada.
61. As Requerentes, alicerçam toda a sua alegação numa argumentação vaga e genérica, tecendo meras considerações gerais, e invocando jurisprudência sem que, em concreto, densifiquem em que consiste o erro invocado, e como pode o mesmo ser assacado à AT, o que como referido, não se admite, já que não é sobre esta que recai a obrigação de liquidação do imposto, nem a sua regularização.
Conferindo o constante do pedido de revisão oficiosa, verifica-se que dele consta o seguinte:
21º - (…)
b) O erro relativamente ao regime jurídico aplicável à prestação de serviços de gestão de projetos imobiliários durante os períodos de tributação de junho de 2020 a fevereiro de 2022 (inclusive), considera-se "imputável aos serviços".
24.° Ora, no que tange ao requisito elencado em b), sempre será de referir que, tanto com referência aos impostos autoliquidados- dos quais é exemplo o IVA - como aos impostos heteroliquidados, pende sobre a AT a responsabilidade última da operação de liquidação, na medida em que, conforme estatuem inter alia os n.°s 1 e 2 do artigo 266.° da Constituição da República Portuguesa e o artigo 55.° da LGT, na sua atuação a AT encontra-se adstrita ao respeito do princípio da legalidade.
25.° E, especificamente a respeito da "revisão" dos atos tributários, o supra referido princípio da legalidade exige que, quando esta entidade tome conhecimento de alguma incorreção na liquidação do imposto - seja uma incorreção por si anteriormente praticada (com referência aos impostos heteroliquidados) ou uma incorreção praticada pelo sujeito passivo do mesmo (com referência aos impostos autoliquidados)- a AT tome a iniciativa da revisão dos referidos atos tributários, sempre que se encontre, ainda, dentro de prazo para tal.
Em suma, entendem os Requerentes que tendo a AT a responsabilidade última relativamente às liquidações, os erros (alegadamente, de direito) cometidos, mesmo quando relativos a atos não praticados pela própria AT, devem ser qualificados como “erro imputável aos serviços”.
Salvo melhor opinião, esta posição não é sustentável. Aliás, a evolução legislativa é clara: na versão inicial do artº 78º da LGT existia um nº 2, o qual expressamente determinava, para efeito de revisão dos atos tributários e prazo em que tal é possível, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação.
Na vigência deste nº 2, estando em causa um imposto autoliquidado, o particular dispunha do prazo de quatro anos para peticionar a revisão. Agora, tem que que alegar factos de onde decorra ser o erro imputável à administração, o que – acrescentamos – poderá acontecer mesmo em casos em que a liquidação não teve origem nos serviços, propriamente ditos.
Assim sendo, e desde logo atentas as regras relativas à distribuição do ónus da prova, há que concluir que o pedido de revisão oficiosa foi intempestivo (melhor, que não foi feita prova de factos de onde decorreria a sua tempestividade). O que, só por si, determinaria a improcedência do pedido por não se mostrar cumprido um pressuposto processual necessário.
III.-3- Impropriedade do meio “revisão oficiosa”
Embora em rigor desnecessária, atento o que se conclui no ponto anterior, entende-se útil (até para pleno esclarecimento da posição deste tribunal) uma referência a esta questão, ou seja, ao segundo fundamento invocado pela AT para concluir pelo indeferimento do pedido e revisão oficiosa.
A questão substantiva que se coloca será a seguinte: havendo erro na (auto) liquidação de IVA de que resultou a entrega ao estado de mais imposto que o devido, pode o interessado, sem mais, peticionar à Autoridade Tributária, em procedimento administrativo ou processo judicial, a devolução do montante pago em excesso.
A AT entende que, para que fosse admissível a correção do erro no IVA liquidado, deviam, as faturas emitidas nas quais foi incluído IVA a 23%, ser regularizadas nos termos legais, no sentido de eliminar a alegada menção indevida, passando a constar do documento retificativo a menção da isenção.
Tal exigência decorreria, desde logo, do n.° 7 do artigo 29.° do CIVA, o qual dispõe que quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura.
Entende a AT que se impunha que fosse seguido o procedimento estabelecido no artigo 78.° do CIVA, o que é contestado pela Requerente que entende que tal procedimento se refere apenas a inexatidões e não, como seria o caso, a situações de “erro de direito”.
Pensamos que, antes de se saber qual o concreto procedimento a ser seguido, se impõe responder à questão que já deixamos adiantada: faz sentido, no sistema IVA, que, constatado um erro de direito, o Estado, sem mais, devolva o montante liquidado em excesso e que lhe foi entregue?
No entender deste tribunal, não faz sentido, pelas razões, já transcritas, alegadas pela Requerida,
Na realidade, não existe uma liquidação de IVA, mas uma cadeia de liquidações: cada operador económico (que não atue como consumidor final) liquida imposto sobre as suas vendas, à taxa aplicável; mas, para não existirem efeitos cumulativos, não haver imposto sobre imposto, tem o direito a deduzir o imposto que lhe foi liquidado, pelos seus fornecedores (que constará das faturas por este emitidas) , nas suas compras.
Por tal razão a correção de “inexatidões” das faturas ( usamos aqui um conceito amplo de “inexatidão”, incluindo erro na determinação da taxa aplicável) supõe a colaboração dos dois intervenientes, o vendedor (sujeito passivo do imposto, que liquidou o imposto) e do adquirente (que pagou tal valor àquele, mas que, sendo também sujeito passivo, procederá à respetiva dedução, o mesmo é dizer não suportará qualquer encargo económico a final economicamente, o total do imposto será suportado apenas pela consumidor final).
De outra forma poderíamos ter situações de devolução do imposto pelo Estado cumuladas com o exercício do direito à dedução do mesmo valor de imposto.
Num breve aparte, sempre se dirá que o prejuízo económico que o Fundo diz ter sofrido resulta, em última análise, do facto de, ao que alega (e tem comprovação, pelo menos numa primeira aparência, nas declarações juntas aos autos), por razões que não explicita, não ter procedido à dedução do imposto que lhe foi faturado apesar de ele, o Fundo, ter também a natureza de sujeito passivo. Se a dedução tivesse sido efetuada, certamente que não se sentiria lesado.
A exigência de um procedimento documental corretivo em todos os casos em que o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados é, como vimos, uma exigência legal (n° 7 do artigo 29.° do CIVA).
Uma exigência formal é certo, mas essencial (ad substantiam), dadas as razões que a justificam. Daí que entendamos que, por princípio, sem o cumprimento de tais formalidades o reembolso (pelo fornecedor) ou o posterior ajuste noutro período de tributação não podem ter lugar.
O reembolso direto pelo Estado (ao repercutido) apenas é possível em situações muito excecionais, nas quais se mostre impossível ou excessivamente difícil o economicamente lesado (adquirente) obter a colaboração do vendedor para a emissão da documentação normalmente necessária para a regularização poder ter lugar[2].
Fazemos nosso o sumário da decisão arbitral no processo 472/2023-T em cujo coletivo arbitral o ora relator também participou:
(…)
-
Inexistindo abuso ou fraude fiscal e estando devidamente acautelado o risco de perda de receita fiscal, o IVA indevidamente liquidado em tais serviços pode ser reembolsado ao adquirente em conformidade com as normas nacionais aplicáveis.
-
Porém, apenas pode ser efetuado o seu reembolso diretamente pelo Estado se e na medida em que o respetivo reembolso pelo fornecedor seja, comprovadamente, impossível ou excessivamente difícil, cabendo tal prova ao adquirente dos bens ou serviços.
Em resumo: (i) confessadamente, não foram observadas as normas (qualquer uma delas) que exigem um procedimento documental como condição para se obter o reembolso/crédito de imposto de IVA indevidamente entregue ao estado e (ii) não foram alegadas quaisquer circunstâncias impossibilitantes de um tal procedimento[3].
Pelo que este tribunal entende ser de subscrever – por legal – também a segunda fundamentação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
Improcedente o pedido principal de anulação parcial das liquidações de IVA m causa, improcedem os demais pedidos, porque daquele dependentes.
IV- DECISÂO
Pelo exposto, julgam-se totalmente improcedententes os pedidos formulados pelos Requerentes.
VALOR: € 399.821,19
CUSTAS, no montante de € 6.426,00. a cargo dos Requerentes por ter sido total o seu decaimento.
02 de junho de 2025
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Rui Miguel Zeferino Ferreira
Hélder Faustino
[1] No caso, um pedido de revisão oficiosa. A questão da “equivalência”, enquanto pressuposto para acesso à via judicial/arbitral de impugnação, entre a reclamação graciosa e pedido de revisão oficiosa (que este tribunal considera existir) não foi suscitada.
[2] Transcrevemos da decisão arbitral 472/2023.
Resulta claro da jurisprudência do TJUE que:
1. Os sujeitos passivos que tenham suportado indevidamente imposto na aquisição de bens ou serviços aos seus fornecedores têm direito ao reembolso desse montante indevidamente pago, nos casos em que estejam de boa-fé e, portanto, inexista abuso ou fraude fiscal, bem como perda da receita fiscal, não obstante tal imposto se ter tornado devido, num primeiro momento, por via da sua menção em fatura[9];
2. O direito ao reembolso de IVA indevidamente liquidado deve ser, em primeira linha, exercido pelo sujeito passivo adquirente junto do fornecedor que procedeu à liquidação, e respetiva entrega, desse imposto ao Estado (e a legislação nacional tem mecanismos processuais que permitem o exercício desse direito em juízo cível);
3. Complementarmente, o TJUE reconhece um direito ao reembolso direto pelo Estado ao adquirente / repercutido (apenas) em circunstâncias especiais, i.e., se e na medida em que o reembolso do IVA pelo fornecedor se torne impossível ou excessivamente difícil – por exemplo, quando o fornecedor não esteja em condições de promover esse reembolso por estar insolvente (C-397/21) ou quando já não seja possível ao adquirente dos bens ou serviços atuar judicialmente, por via da caducidade ou prescrição do seu direito (C-453/22). São, portanto, cenários de extrema e comprovada dificuldade ou, mesmo, absoluta impossibilidade, em que o não reembolso do imposto pelo Estado ao adquirente seria manifestamente gravoso e injustificado, porquanto este (adquirente) já não conseguirá obter tal reembolso junto do seu fornecedor;
4. Nos casos em que o reembolso seja concedido ao adquirente dos bens ou serviços e não ao fornecedor, cabe às administrações fiscais adotarem os procedimentos necessários (neste caso, de recusa) para evitar o risco de duplo reembolso, caso o fornecedor desses bens ou serviços pretenda, a posteriori, ser igualmente reembolsado desse montante[10].
[3] Antes temos a situação, pouco comum, de o vendedor e o adquirente surgirem em litisconsórcio voluntário como co-requerentes no presente processo.