Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1103/2024-T
Data da decisão: 2025-06-18  IRS  
Valor do pedido: € 122.953,65
Tema: IRS – Cláusula Geral Anti-abuso; Step-by-step transaction.
Versão em PDF

consultar decisão integral na versão PDF

 

SUMÁRIO: 

 

A aplicação da CGAA (elemento sancionatório), depende da verificação cumulativa de requisitos legais, que podem sintetizar-se nos seguintes elementos: intelectual (relacionado com o objectivo económico das operações realizadas); resultado (relacionado com o resultado económico das operações realizadas); meio (relacionado com tipo de operações realizadas para obtenção do resultado) e normativo (relacionado com o objectivo do legislador).

 

A não verificação de mais do que um dos elementos referidos, quando bastaria a não verificação de um deles, impede a aplicação da CGAA, não podendo, no caso vertente, tratar-se uma alienação de acções, ainda que à sociedade de cujo capital social elas são representativas, como uma distribuição de dividendos, não sendo economicamente equivalentes uma e outra operações. 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Nuno Pombo e Ricardo Marques Candeias, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

 

I.           RELATÓRIO

 

1.          A..., S.A., com o número de identificação de pessoa colectiva..., com sede na Rua ... ...-... ... (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações adicionais respeitantes a retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e juros compensatórios (“IRS”) n.ºs 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., referentes aos exercícios de 2019, 2020, 2021 e 2022, emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”), das quais resultaram imposto a pagar no montante de € 122.953,65.

 

2.          O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado pela Requerente no dia 10 de Outubro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

3.          A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

 

4.          As partes foram notificadas dessa designação em 2 de Dezembro de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

5.          Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 20 de Dezembro de 2024.

 

6.          Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta, no dia 3 de Fevereiro de 2024, tendo-se defendido por impugnação.

 

7.          Em tal resposta, a Requerida pugnou, a final, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, com a consequente absolvição da Requerida do pedido aí formulado.

 

8.          Nessa ocasião, a Requerida juntou ainda o processo administrativo. 

 

9.          Em 19 de Fevereiro de 2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e a notificar as partes para, querendo, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias. 

 

10.       A Requerente apresentou as suas alegações escritas no dia 5 de Março de 2025, e a Requerida, no dia 11 de Março de 2025, apresentou igualmente as suas alegações escritas.

 

II.          POSIÇÕES DAS PARTES

 

§1     Posição da Requerente

 

11.       Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:

i.           A Requerente adquiriu, em 2019, ao seu accionista, B..., 29.600 acções próprias, pelo preço de € 503.200,00;

ii.          A referida aquisição foi seguida da extinção das acções próprias pela Requerente e por um aumento de capital realizado por incorporação de reservas, no montante de € 448.000,00;

iii.        Tendo o accionista B... adquirido as referidas acções em data anterior a 01/01/1989, a mais-valia resultante da venda dessas acções à Requerente beneficiou do regime de não sujeição a IRS previsto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30/11, que aprovou o Código do IRS;

iv.        A Requerida aplicou a esta operação de venda a cláusula geral anti-abuso (“CGAA”) prevista nos n.ºs 2 a 6 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), tributando-a como se de uma distribuição de dividendos se tratasse, ou seja, liquidando adicionalmente, ao substituto tributário – a Requerente – sobre o montante pago, a retenção na fonte à taxa de 28%, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS;

v.          A aplicação da CGAA (elemento sancionatório) exige a verificação cumulativa dos mesmos elementos, ou seja:

a.          o objectivo económico das operações realizadas tem de ser a obtenção de uma vantagem fiscal (elemento intelectual);

b.          o resultado económico das operações realizadas tem de ser a produção dessas vantagens fiscais pretendidas (elemento resultado);

c.          o tipo de operações realizadas para obtenção do resultado tem de envolver abuso das formas jurídicas (elemento meio); e

d.          a intenção do legislador/direito fiscal, de tributar determinado facto, tem de sair frustrada (elemento normativo);

vi.        Os pressupostos necessários à aplicação da CGAA atrás enunciados não se encontram verificados no presente caso;

vii.       O objectivo económico das operações realizadas foi a transferência progressiva da propriedade da Requerente do accionista B..., igualmente para todos os restantes accionistas, à medida que preparava a respectiva saída da vida activa da empresa, tendo sido este um dos poucos meios encontrados para o fazer sem obrigar os restantes accionistas ao dispêndio de qualquer quantia monetária (como resultaria das alternativas de venda, da obrigação de realização de novas entradas de capital por estes, ou até da doação ao accionistas que não fossem seus descendentes);

viii.     Apesar de o núcleo familiar deter mais de 99% da empresa, as operações realizadas visaram e traduziram-se efectivamente na transferência, não só da propriedade, mas também do controlo entre os respectivos accionistas, não se verificando o elemento intelectual, nos termos do qual o objectivo principal ou um dos principais objectivos da operação teria de ser a distribuição de dividendos não tributada para o accionista B...;

ix.        Não colhe o argumento de que a distribuição de dividendos e a venda de acções à sociedade (mesmo que seguida da sua extinção e aumento do capital) possam ser tidas como operações equivalentes do ponto de vista da substância económica para efeitos da CGAA, pois, como se demonstrou, esta operação conduziu sempre à redução da participação detida no capital da sociedade pelo vendedor em relação aos restantes accionistas, o que não se verificaria numa simples distribuição de dividendos;

x.          Também não terá ficado demonstrada a verificação do elemento resultado, pois a vantagem fiscal exposta pela Requerida resulta da comparação com a prática de actos (distribuição de dividendos) cuja substância económica não é equivalente à da operação em análise;

xi.        O meio utilizado era um dos poucos que permitia obter a desejada transferência de propriedade sem qualquer dispêndio monetário por todos os restantes accionistas;

xii.       Não se encontra também demonstrado o elemento meio, pois a operação não reveste uma forma anómala, inusual, artificiosa, complexa ou mesmo contraditória, em consideração dos fins económicos visados pela Requerente;

xiii.     No caso em apreço, os actos e negócios jurídicos praticados revestem uma forma perfeitamente usual, típica e adequada ao efeito pretendido, não se vislumbrando qualquer utilização de artifício ou fraude para alcançar tal efeito;

xiv.     Os meios alternativos para supostamente alcançar o mesmo resultado económico – venda directa ou doação – seriam igualmente não tributados na esfera do accionista B..., já que essa não tributação decorre directamente de um benefício estipulado pelo legislador para as acções alienadas, não cabendo à Requerente impedir a sua aplicação;

xv.       Também não está verificado o elemento normativo, porquanto a Requerente se limitou a aplicar um benefício fiscal que o legislador criou especificamente para a venda de acções cuja data de aquisição é anterior a 01/01/1989 e que não caberia à Requerida desconsiderar, mesmo num cenário hipotético em que a Requerente, confrontada com a escolha entre dividendos e mais-valias, tivesse optado por esta última por motivos exclusivamente fiscais;

xvi.     Não estando cumulativamente verificados, nem demonstrados pela Requerida, como lhe competia nos termos do artigo 74.º, da LGT, todos os referidos elementos para a aplicação da CGAA (e, sem prescindir, mesmo que algum(ns) dele(s) se verificasse(m) isoladamente), também não se encontra verificado o elemento sancionatório, devendo ser anuladas as liquidações de retenção de IRS e correspondentes juros compensatórios controvertidas;

xvii.    A Requerente procedeu ao pagamento do imposto e juros cuja ilegalidade suscita, requerendo que, anulando-se as liquidações adicionais, lhe seja também paga a indemnização nos termos do disposto nos artigos 43.º, da LGT, e 61.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), em virtude da constatação de erro imputável aos serviços do qual resultou o pagamento de imposto que se mostra ser indevido.

 

 

 

§2     Posição da Requerida

 

12.       Por seu turno, a Requerida contestou a posição da Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:

i.           A Requerida apurou haver uma construção devidamente planeada e realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustra o objecto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, realizada com abuso das formas jurídicas e que não se pode considerar genuína, tendo resultado na eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização destes meios, que, constituem fundamento para proceder à aplicação da CGAA;

ii.          Verificou-se que houve abuso das formas jurídicas, cujo objectivo foi a não tributação em sede de IRS de dividendos pagos pela Requerente, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, nos montantes de € 100.000,00, € 99.200,00, € 100.000,00 e € 100.000,00, respectivamente, ao seu accionista B...; 

iii.        Incumbiu à Requerida considerar ineficaz, no âmbito tributário, a classificação daqueles dividendos como pagamento de uma dívida (crédito) e enquadrá-los como distribuição de dividendos/adiantamento por conta de lucros a pessoas singulares, tributados nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, sujeitos à retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória de 28%, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS, a partir do momento em que são colocados à disposição do respectivo titular, conforme dispõe a subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º do Código do IRS;

iv.        A CGAA, como medida de prevenção e combate à fraude e evasão fiscais, destina-se a combater o chamado planeamento fiscal abusivo, que resulta da contradição entre as formas jurídicas adoptadas pelas partes na realização de determinado acto ou negócio jurídico e os verdadeiros fins económicos desse acto ou negócio;

v.          A CGAA tem como requisito a prática utilizada pelo contribuinte de um negócio jurídico artificioso ou com abuso de formas jurídicas que tem como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida caso tivesse sido utilizado um negócio ou acto de substância económica equivalente;

vi.        Os factos tributários e as construções detectados evidenciam a intenção e a procura de um caminho menos oneroso e afastar a devida tributação em sede de IRS, por parte dos intervenientes neste processo (ora Requerente e o seu accionista e administrador) e a forma anómala e artificiosa como os negócios foram montados e gizados, não obstante, terem liberdade de iniciativa, de gestão, de fixação das condições contratuais e de ser “legalmente permitido”;

vii.       No caso dos autos, a vantagem fiscal resulta verdadeiramente, em termos práticos, na transformação de uma retirada de dividendos daquela sociedade, sem qualquer tributação, em reembolso, por parte da Requerente, ao accionista B... (verdadeiro beneficiário efectivo), do crédito resultante da aquisição de acções próprias;

viii.     A tributação deve ser efectuada de acordo com as normas aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico (na ausência de tais construções), não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, sendo de salientar que as correcções fiscais relativas aos rendimentos de categoria E foram reflectidas na esfera jurídico-tributária da entidade pagadora dos rendimentos de capitais (dividendos) auferidos por B...– a Requerente na qualidade de substituta tributária, conforme previsto no artigo 101.º, n.º 2, alínea a), do Código do IRS;

ix.        As relações especiais existentes entre os intervenientes em todo o processo (A B..., sujeito passivo singular, accionista e administrador da Requerente, a esposa C... e o filho D...) tal como são definidas no artigo 63.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, permitiu realizar todo o processo de “reorganização societária” de molde a receber “dividendos” encapotados de “reembolso de dívida”;

x.          As referidas figuras jurídicas foram o instrumento ou veículo usado para converter dividendos tributados em sede de IRS, na esfera do seu beneficiário, em pagamento de uma dívida ao seu accionista, resultando assim, na obtenção de vantagens/poupanças fiscais, que no caso em análise foi de € 399.200,00 no ano de 2022;

xi.        Se o objectivo fosse a mera libertação de capitais próprios da Requerente (no caso reservas e resultados transitados), o caminho poderia passar por distribuir dividendos em favor do accionista e pessoa singular B...;

xii.       Se o objectivo fosse transferência de propriedade e de controlo de B... para o filho D..., o negócio alternativo e normal poderia passar por venda directa das acções ao filho, ou, doá-las, conforme fizera em 2017;

xiii.     Em ambos os casos, tanto o accionista B..., individualmente, ou mesmo a Requerente não seriam objecto de qualquer tributação. Contudo, no primeiro caso, obrigava o filho a ter que ser ele a desembolsar os valores que B... pretendia receber (cerca de 500 mil euros), enquanto, no segundo caso, sendo uma doação pura, não receberia os referidos cerca de 500 mil euros; 

xiv.     Resultando evidenciado que esse não era o objectivo principal, mas sim, remunerar o accionista B... em igual montante e, por isso, a via escolhida não poderia ser a doação nem a venda directa;

xv.       A Requerente não põe em causa as suas pretensões e decisões como empresário racional sobre o futuro do seu universo empresarial, nem se pronuncia sobre a validade jurídica das operações, mantendo-se, assim, intactos os seus efeitos jurídicos;

xvi.     O que está em causa é a via escolhida, através de uma sequência de operações desprovida de razões economicamente válidas e praticamente quase sem alterações na estrutura societária; 

xvii.    O pai B... e o filho D... controlam cerca de 99,7% do capital da sociedade Requerente, podendo decidir de acordo com as suas vontades e conveniências;

xviii.  A Requerida fez prova da natureza abusiva das construções porquanto os actos praticados e meios utilizados permitiram obter vantagens fiscais que não seriam alcançados se fossem feitas operações normais e usuais;

xix.     Todos os negócios realizados foram concertados entre as pessoas do mesmo núcleo familiar e a sociedade controladas pelos mesmos de forma a obter a melhor vantagem fiscal possível na venda das acções, e todas as construções/operações subsequentes a esse plano, foram meticulosamente preparadas e concertadas para o que o resultado final fosse a não tributação em sede de IRS;

xx.       Houve uma actuação concertada e consistente de todos intervenientes (do mesmo núcleo familiar) que usaram a legislação fiscal e não fiscal vigente de forma abusiva, deturpando os objectivos da mesma, ficcionando uma realidade com vista a escapar à tributação em IRS, socorrendo-se do reembolso de divida e a sua não sujeição a imposto;

xxi.     A conjugação e a forma essencialmente artificiosa com que os actos e negócios jurídicos foram celebrados e utilizados pelos intervenientes expressam que o seu objectivo foi obtenção de vantagens fiscais (no sentido da minimização de impostos ou da ausência de tributação), que não corresponde à motivação do legislador e, por conseguinte, corresponde a um resultado que a legislação fiscal reprova;

xxii.    A CGAA deve impedir que a lei fiscal seja defraudada, realizando-se a tributação conforme a carga tributária que resultaria da aplicação directa da norma iludida e sem recurso a meios que, assegurando sempre o resultado não fiscal equivalente, permitem a vantagem fiscal;

xxiii.  A Requerida deve proceder à reconstrução dos actos ou negócios jurídicos celebrados pelo contribuinte e a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos tais negócios jurídicos.

 

III.        SANEAMENTO

 

13.       O pedido foi tempestivamente apresentado, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

14.       O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT.

 

15.       As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

16.       Em tudo o que de mais possa relevar para a boa decisão da causa, o processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

IV.        MATÉRIA DE FACTO

 

§1 -   Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

17.       O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

18.       Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

19.       Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pela Requerente, do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

20.       Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

§2 -   Factos provados 

 

21.       Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

A)        Em Janeiro de 2017 a distribuição do capital social da Requerente era a seguinte:

B)         Por contrato de compra e venda de acções datado de 21 de Junho de 2019, B... vendeu à Requerente, e esta comprou, 29.600 acções representativas do capital social desta, pelo preço de € 503.200,00, acções estas que o vendedor declarou já possuir, na sequência de aumento de capital emergente de deliberação da Assembleia Geral de 28 de Dezembro de 1987;

C)         Foi acordado que o pagamento do preço seria diferido pelo prazo máximo de três anos;

D)        As 29.600 acções alienadas em Junho de 2019 à Requerente faziam ainda parte daquele lote inicial de acções cuja origem / posse remonta ao período anterior a 01-01-1989;

E)         Por deliberação transcrita em acta, datada de 28 de Junho de 2019 (acta n.º 61), a Requerente declarou a extinção daquelas 29.600 acções próprias e consequente redução do seu capital social, para € 2.052.000,00; 

F)         Por deliberação transcrita em acta, datada de 28 de Junho de 2019 (acta n.º 62), a Requerente declarou aumentar o seu capital social, por incorporação de reservas, no montante de € 448.000,00 e, consequentemente, emitir 500.000 novas acções, que substituíram as anteriores 410.400 acções, cada uma delas com o valor nominal de € 5,00, passando o capital social a ser de € 2.500.000,00; 

G)        A dinâmica das posições accionistas foi a seguinte: 

 

H)        D... obteve, pela primeira vez, uma participação superior a 50,00% no capital social da Requerente;

I)           O accionista B... beneficiou do regime de não sujeição a IRS previsto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30/11, que aprovou o Código do IRS, não tendo sido tributadas a mais-valia resultante da venda de acções referida no ponto B);

J)          Em 19 de Setembro de 2019, 16 de Setembro de 2020, 24 de Setembro de 2021 e 28 de Janeiro de 2022, a Requerente transferiu para o accionista B..., a título de pagamento do preço referente à aquisição das referidas acções, os montantes de € 100.000,00, € 99.200,00, € 100.000,00 e € 100.000,00, respectivamente (tendo no final de 2022 um saldo remanescente, € 104.000,00), sendo que estes fluxos financeiros, foram acompanhados de movimentação a débito da conta SNC nº 2681 —B... — , por contrapartida a crédito da conta 1230 — Banco Santander Totta;

K)        Em 22 de Novembro de 2022, a coberto da Ordens de Serviço n.º OI2022..., de 28 de Março de 2022, OI2022..., de 07 de Novembro de 2022, OI2022..., de 07 de Novembro de 2022 e OI2023..., de 04 de Abril de 2023, a Direcção de Finanças de Aveiro levou a cabo acções inspectivas externas de âmbito parcial – RF IRS, à ora Requerente com a finalidade de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, relativamente aos anos fiscais de 2019 a 2022 — código PNAITA 102-02 — Controlo da entrega de retenções na fonte de IR e Selo;

L)         Estas acções inspectivas foram precedidas de diligências externas de recolha e cruzamento de elementos dirigidos à Requerente, em cumprimento do despacho DI2021..., de 11 de Fevereiro de 2021, com o objectivo de “Análise de planeamento fiscal com potencial aplicação de CGAA”;

M)       Por intermédio de ofícios datados de 26 de Junho de 2023 remetido pela DF de Aveiro (Via CTT), o sujeito passivo foi notificado do teor dos projectos de Relatórios de Inspecção Tributária elaborados, nos termos previstos nos artigos 60.º, da LGT, e 60.º, do RCPITA, para, no prazo de 30 dias, exercer o direito de audição prévia;

N)        A Requerida emitiu os seus projectos de relatório de inspecção tributária considerando serem as operações descritas acima nos pontos B) a F) uma construção ou série de construções realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal, correspondente à distribuição de dividendos ao accionista B... sem tributação em IRS;

O)        A Requerida, nesses projectos de relatório de inspecção tributária, propôs-se aplicar à operação de venda descrita a CGAA, prevista nos n.ºs 2 a 6 do artigo 38.º da LGT, tributando-a como se uma distribuição de dividendos se tratasse e liquidando adicionalmente à Requerente, enquanto substituto tributário, sobre o montante pago, a retenção na fonte à taxa de 28%, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS;

P)         A 29 de Junho de 2023 a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia com o intuito de demonstrar que não estavam reunidos os requisitos legais para a aplicação de tal cláusula;

Q)        A Requerida notificou a Requerente dos relatórios finais de inspecção tributária, onde manteve a sua posição original de aplicar à operação de venda a CGAA, prevista nos n.ºs 2 a 6 do artigo 38.º da LGT, concluindo que:

R)         Na sequência do concluído, a Requerida emitiu as liquidações de Retenção na Fonte (“RF”) de IRS 2019 n.º 2023..., de 06-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 4.295,89, perfazendo um valor total a pagar de € 32.295,89), RF de IRS 2020 n.º 2023..., de 06-09-2023, no valor de € 27.776,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 3.150,48, perfazendo um valor total a pagar de € 30.926,48), RF de IRS 2021 n.º 2023..., de 12-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 2.055,89, perfazendo um valor total a pagar de € 30.055,89), e RF de IRS 2022 n.º 2023..., de 12-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 1.675,39, perfazendo um valor total a pagar de € 29.675,39), perfazendo um valor global de € 111.776,00 respeitante a RFs de IRS, e num montante de € 11.177,65, referentes a juros compensatórios;

S)         Por nota de lançamento n.º..., datada de 20 de Outubro de 2023, declara-se que foi creditado a favor da Requerida, por movimento a débito na conta da Requerente, sedeada no Millennium BCP, o valor de € 32.295,89; por nota de lançamento n.º..., datada de 20 de Outubro de 2023, declara-se que foi creditado a favor da Requerida, por movimento a débito na conta bancária da Requerente, sedeada no Millennium BCP, o valor de € 30.926,48; por comprovativo de pagamento “pagamento ao Estado”, datado de 30 de Outubro de 2023, resulta o pagamento da Requerente a favor da Requerida no montante de € 30.055,89;

T)         Em 27 de Dezembro de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as liquidações referidas nopenúltimo ponto referido ao abrigo do artigo 68º e seguintes, do CPPT, que foi analisada no âmbito do processo n.º ...2023..., de 27 de Dezembro de 2023, tendo sido proferido a 18 de Julho de 2024, pela Chefe de Divisão da Justiça Tributária Contencioso (DJTC) da DF de Aveiro, despacho de indeferimento, do qual resulta:

 

 

 

 

 

§3 -   Factos não provados

 

22.       Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT). 

 

23.       Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

 

24.       Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

25.       Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.

 

V.         MATÉRIA DE DIREITO

 

26.       Resulta do acima exposto que que a questão a apreciar é, no fundo, a de saber se estão reunidos os requisitos para a aplicação, ao caso vertente, da CGAA.

 

27.       Parece não haver dissídio quanto à matéria de facto. Na verdade, as partes não apresentam divergências quanto aos factos que cabe a este Tribunal ajuizar. O litígio cinge-se, pois, à reunião, ou não, dos requisitos de que depende a aplicação da CGAA. 

 

28.       Vejamos o que dispõe o artigo 38.º, n.ºs 2 a 6, da LGT:

 

Artigo 38.º

Ineficácia de actos e negócios jurídicos

1 – (…)

2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.

3 - Para efeitos do número anterior considera-se que:

a) Uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;

b) Uma construção pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica.

5 - Sem prejuízo do número anterior, quando o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções, devem aplicar-se as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.

6 - Em caso de aplicação do disposto no n.º 2, os juros compensatórios que sejam devidos, nos termos do artigo 35.º, são majorados em 15 pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2011, de 5 de junho, na sua redação atual.

 

29.       A Requerente baseia a sua posição na circunstância de não estarem reunidos os requisitos legais para a aplicação da CGAA (elemento sancionatório), conforme sistematizados na doutrina por Gustavo Lopes Courinha:

●           o elemento intelectual (relacionado com o objectivo económico das operações realizadas);

●           o elemento resultado (relacionado com o resultado económico das operações realizadas);

●           o elemento meio (relacionado com tipo de operações realizadas para obtenção do resultado); e

●           o elemento normativo (relacionado com o objectivo do legislador).

 

30.       A Requerida, por seu turno, sustenta ser evidente que a argumentação da Requerente assenta nos denominados quatro elementos de Gustavo Lopes Courinha, ignorando por completo as alterações operadas pela Lei n.º 32/2019, de 03/05, concretamente o artigo 63.º, do CPPT, nela passando a constar, de forma expressa, quais as fundamentações/comprovações que a Requerida tem de fazer para recorrer à aplicação da CGAA. Apesar disso, discorre sobre essa linha argumentativa – e bem – considerando estarem reunidos os requisitos necessários à sua aplicação. 

 

31.       Interessa, para o caso vertente, o disposto no n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, alegadamente ignorado na argumentação da Requerente. Nessa disposição lê-se o seguinte:

3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente: 

 

a) A descrição da construção ou série de construções que foram realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;

 

b) A demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável; 

 

c) A identificação dos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; 

 

d) A demonstração de que o sujeito passivo sobre o qual recairia a obrigação de efetuar a retenção na fonte, ou de reter um montante de imposto superior, tinha ou deveria ter conhecimento da construção ou série de construções, quando aplicável.” 

 

32.       Este preceito legal impõe à Requerida um especial dever de fundamentação. Impõe nomeadamente que a decisão da aplicação da CGAA contenha o que acima se transcreveu. Mas como é evidente isso não basta. A Requerida não pode limitar-se proceder à descrição da construção ou série de construções que foram a realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflictam a substância económica. Não basta essa descrição. É preciso que a Requerida demonstre que construção ou série de construções foram efectivamente realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflictam a substância económica. Ora, tendo isto presente, não parece ter ficado datada ou ultrapassada a análise realizada por Gustavo Lopes Courinha. 

 

33.       Como bem refere a Requerida na sua resposta, o elemento sancionatório corresponde à estatuição da norma da CGAA, dependendo da verificação cumulativa dos elementos atrás referidos. Portanto, é a consequência legal da sua aplicação, acarretando a ineficácia do acto ou do negócio jurídico para efeitos fiscais, mantendo, porém, o acto ou o negócio jurídico a sua validade e eficácia no âmbito civil (entre partes e terceiros). Quer isto dizer que soçobrando qualquer dos requisitos elencados, não pode operar o elemento sancionatório, ou seja, não pode ser aplicada a CGAA.

 

34.       O elemento meio, como bem explica a Requerida na sua resposta, corresponde à forma eleita pelo contribuinte para chegar ou obter uma certa vantagem fiscal por si desejada, que no caso em análise corresponde à denominada “Step-by-step transaction doctrine”, envolvendo uma sucessão de actos coordenados entre si, isolados ou enquanto partes de um todo (embora possam ocorrer em momentos temporais diversos) e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal, devendo assim, o aplicador da lei operar um tratamento integrado, visualizando-as como uma única transacção propendendo para um único e final resultado. 

 

35.       No caso vertente, entende a Requerida que a verificação do elemento meio começa com a utilização de três figuras jurídicas como sejam a “alienação de ações à própria sociedade”, a “extinção das ações próprias”, com a consequente diminuição do capital social, e o “aumento de capital por incorporação de reservas”. Em rigor, o facto tributário seria a alienação de acções, entendendo a Requerida que o pagamento do preço mais não é do que uma encapotada distribuição de dividendos.

 

36.       Conclui a Requerida que a interposição das operações e negócios jurídicos (a saber, a “extinção das ações próprias”, com a consequente diminuição do capital social, e o “aumento de capital por incorporação de reservas”) não se deveu a razões económicas válidas e se encontra desprovida de substância económica. Sublinha a Requerida que, embora os actos e negócios jurídicos que compõem esta estrutura sejam, em si mesmos, válidos e lícitos, e correspondam à efectiva vontade dos sujeitos passivos e os restantes intervenientes, não se lhes vislumbra qualquer substância económica (sendo evidente a vantagem fiscal daí decorrente), factor preponderante para a aplicação da CGAA. 

 

37.       Ora, o Tribunal não acompanha esta leitura dos factos, entendendo que a Requerida não fez prova da natureza abusiva das ditas construções porquanto os actos praticados e meios utilizados permitiram obter vantagens fiscais que não seriam alcançados se fossem feitas operações normais e usuais. Reside aqui o ponto. Como não pode deixar de ser, importa identificar de que operações normais e usuais estamos a falar. 

 

38.       Diz a Requerida que só uma visão de conjunto ou global permite perceber que todos os negócios realizados foram concertados entre as pessoas do mesmo núcleo familiar e a sociedade controlada pelos mesmos de forma a obter a melhor vantagem fiscal possível na venda das acções [ou, como entende a Requerida, distribuição de dividendos] e todas as construções/operações subsequentes a esse plano, foram meticulosamente preparadas e concertadas para que o resultado final fosse a não tributação em sede de IRS. 

 

39.       Já o elemento intelectual resulta da motivação do contribuinte, o qual detém como característica principal a alteração das prioridades que movem o contribuinte, sendo necessário que a finalidade fiscal prevaleça sobre a finalidade não fiscal. E, por conseguinte, a utilização das 3 figuras jurídicas, tais como “alienação de ações à própria sociedade”, seguida da “extinção das ações próprias”, com a consequente diminuição do capital social, e “aumento de capital por incorporação de reservas”, vieram revelar-se actos desprovidos de substância económica válida ou lógica, cujo objectivo seria a eliminação ou evitação fiscal que seria devida com a distribuição de dividendos directamente ao accionista.

 

40.       Entende, pois, a Requerida que do que se está verdadeiramente a tratar é de uma distribuição de dividendos. Ou seja, o accionista alienou acções representativas do capital social de uma sociedade à própria sociedade, quando na verdade, a sua real intenção era manter a titularidade das acções e perceber a respectiva distribuição de resultados. Salvo o devido respeito, só com muita criatividade se pode fazer corresponder, nos seus efeitos económicos e patrimoniais, uma alienação a uma distribuição de dividendos. 

 

41.       Na verdade, quando uma sociedade tem lucros distribuíveis, a sua distribuição depende de uma deliberação dos sócios. Convém dizer que todo o sócio tem o direito de quinhoar nos lucros sociais – artigo 21.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) – e que na falta de preceito especial ou convenção em contrário, os sócios participam nos lucros e nas perdas da sociedade segundo a proporção dos valores das respectivas participações no capital – artigo 22.º, n.º 1, do dito CSC. Portanto, em regra, sendo os accionistas titulares de acções da mesma categoria, impera o princípio da igualdade entre os accionistas no momento da distribuição de resultados: cada um recebe o seu quinhão nos dividendos distribuídos. Ora, a ser como sugere a Requerida, apenas um dos accionistas iria receber dividendos, o que não é economicamente e em termos de razoabilidade aceitável sem mais. 

 

42.       Por outro lado, uma venda representa sempre uma ablação na esfera patrimonial do vendedor. Na verdade, o vendedor deixa de ser titular da coisa vendida. Ora, na distribuição de dividendos, pelo contrário, a participação social é mantida. Não há dúvida de que o accionista alienou as acções de que era titular. Elas saíram, para não mais entrar, no seu património. Portanto, ao invés do que refere a Requerida, a participação do accionista alienante diminuiu. Claro que com a extinção das acções próprias, a participação relativa (que não absoluta) de cada accionista aumenta. E aumenta para todos, em função da participação de cada accionista. Acresce que a circunstância de haver, depois, um aumento de capital por incorporação de reservas beneficia todos os accionistas na proporção do capital detido. 

 

43.       Assim, tudo visto e ponderado, e como resulta claro da factualidade assente e não disputada, com a alienação de acções, o accionista alienante diminui, face aos demais accionistas, a sua participação relativa no capital social. Basta reparar como é que estas operações – a extinção de acções próprias e o aumento de capital por incorporação de reservas – se projectou na esfera dos mais accionistas. Resulta claro que a variação da percentagem dos outros accionistas no capital social da sociedade sofreu um incremento mais do que proporcional face ao que se verificou quanto ao accionista alienante. Portanto, se é assim, como parece evidente que é, não pode sustentar-se que as partes fizeram uma coisa quando na verdade queriam outra economicamente distinta. 

 

44.       Aliás, se o accionista alienante vendesse as mesmas acções a terceiro, ou a um dos outros accionistas o problema nem se levantaria. De resto, se as vendesse a terceiro, ninguém estranharia que o comprador aceitasse pagar um preço que acomodasse o facto de haver resultados na sociedade que não foram distribuídos pelos accionistas. Diria a Requerida, nessa circunstância, que o normal seria a sociedade distribuir resultados (tributáveis) e só depois aceitar a alienação das acções por preço expurgado da reserva de valor constituída pelos resultados acumulados e não distribuídos?

 

45.       A Requerente ofereceu uma explicação plausível e aceitável para a operação se ter feito como ocorreu. A venda das acções à própria sociedade era a única via pela qual o alienante se desfazeria delas, recebendo o respectivo preço, sem fazer entrar no capital da sociedade um estranho e sem impor a nenhum dos accionistas o dever de pagar o preço, não alterando a participação relativa dos demais accionistas no capital social da sociedade adquirente.   

 

46.       Assim, não se tem por verificados mais do que um dos elementos referidos, quando bastaria a não verificação de um deles, como o elemento intelectual, para deitar por terra a pretensão da Requerida de tributar uma distribuição de dividendos quando houve apenas uma alienação de acções, não sendo economicamente equivalentes uma e outra operação. Como se fosse razoável admitir em termos necessários que o accionista alienante – se acaso quisesse mesmo alienar as suas acções – tinha o dever de as vender ou de as doar ao filho.   

 

47.       No que se reporta ao pagamento de juros indemnizatórios, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios. 

 

48.       Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio de 2017, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410: “Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.

Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício». Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT. Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531). O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.

 

49.       Neste contexto, entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respectivos requisitos, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respectivo pagamento até ao seu integral reembolso.

 

VI.        DECISÃO

 

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Colectivo:

a.          Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b.          Anular o acto de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2023..., de 27-12-2023, e as liquidações de RF de IRS 2019 n.º 2023..., de 06-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 4.295,89, perfazendo um valor total a pagar de € 32.295,89), RF de IRS 2020 n.º 2023..., de 06-09-2023, no valor de € 27.776,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 3.150,48, perfazendo um valor total a pagar de € 30.926,48), RF de IRS 2021 n.º 2023..., de 12-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 2.055,89, perfazendo um valor total a pagar de € 30.055,89), e RF de IRS 2022 n.º 2023..., de 12-09-2023, no valor de € 28.000,00 (incluindo juros compensatórios no valor de € 1.675,39, perfazendo um valor total a pagar de € 29.675,39), perfazendo um valor global de € 122.953,65;

c.          Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respectivo pagamento até ao seu integral reembolso;

d.          Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

VII.      VALOR DO PROCESSO

 

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 122.953,65 (cento e vinte e dois mil, novecentos e cinquenta e três euros e sessenta e cinco cêntimos).

 

VIII.     CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), a pagar integralmente pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de Junho de 2025

 

Os árbitros,

 

Carla Castelo Trindade

(Árbitra Presidente – com voto de vencido)

 

 

 

 

Nuno Pombo

(Árbitro Adjunto)

 

Ricardo Marques Candeias

(Árbitro Adjunto)

 

 

Declaração de voto vencido

 

Não posso subscrever a posição que obteve vencimento pelas razões que passo a expor.

 

Para sindicar a legalidade da aplicação da CGAA, prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, é necessário atentar-se ao enquadramento daquele instituto jurídico e à concretização dos respectivos pressupostos de aplicação que constam da norma que o consagra. 

Para este efeito, e por uma questão de conveniência, recorrer-se-á, também, aos cinco elementos mencionados explanados por Gustavo Courinha in A cláusula geral anti-abuso no direito tributário: contributos para a sua compreensão”, Almedina, 2009.

Olhando como ponto de partida ao elemento meio, é importante aferir se o conjunto de operações realizadas pela Requerente implicaram a “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” ou a “obtenção de vantagens fiscais” a que alude o artigo 38.º, n.º 2 da LGT. Para o efeito haverá que recuperar, ainda que de forma sintética, o conjunto de actos e negócios jurídicos em causa nos presentes autos e que consistiram nas seguintes operações realizadas num curto espaço de tempo: 

(i) operação de aquisição pela Requerente de 29.600 acções próprias, pelo preço de € 503.200,00, ao seu accionista (na altura, maioritário), B...;

(ii) operação de redução de capital social da Requerente, mediante amortização (extinção) das acções próprias previamente adquiridas; e

(iii) operação de aumento de capital social da Requerente, por incorporação de reservas.

Conforme decorre desta breve síntese, as operações que foram objecto de aplicação da CGAA por parte da Requerida tiveram o seu “momento zero”, isto é, o seu início, com a alienação à Requerente feita por B... . Com efeito, com a venda desta participação social, B... não foi tributado em sede de IRS, uma vez que não se encontravam sujeitas a IRS as mais-valias geradas com a alienação de participações cuja titularidade tivesse sido adquirida antes de 1 de Janeiro de 1989, conforme previsto no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro. 

Tal vantagem fiscal é, de resto, confessadamente admitida pela Requerente, ainda que a mesma a retracte como sendo um mero facto acessório de toda a factualidade vertida nestes autos.

Em resultado dessa alienação, a Requerente acordou com B... que o pagamento da contrapartida correspondente ocorreria de forma faseada, ao longo dos anos subsequentes. Ou seja, desse acordo resultou a criação de um crédito (um passivo) na esfera da Requerente que justificava que, pontualmente, houvesse lugar a exfluxos monetários desta a favor de B... .

Na sequência desta aquisição de acções próprias pela Requerente e das outras operações acima descritas, foi possível canalizar rendimentos para a B... sem que se verificasse qualquer tributação em sede de IRS. 

Por comparação, caso não houvesse este acordo entre a Requerente e B... (que lhe permitiu receber rendimentos não tributados), este teria recebido directamente na sua esfera jurídica aqueles montantes a título de distribuição de dividendos e/ou adiantamentos por conta de lucros futuros, os quais, sendo qualificados como rendimentos de capitais (categoria E), conforme previsto no artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, alínea h) do Código do IRS, seriam tributados, por via de retenção na fonte à taxa liberatória, prevista no artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Código. 

Assim, considera-se que B... logrou obter uma vantagem fiscal através da realização do conjunto de operações acima descritas, já que recebeu “pagamentos” de um crédito que não foram sujeitos a qualquer tributação, em sede de IRS, e que de outra forma seriam tributados em sede de IRS, enquanto “dividendos”, na respectiva esfera pessoal.

Nestes termos, considera-se preenchido o elemento resultado.

Sem prejuízo de ter ficado assente a obtenção de uma vantagem fiscal por parte de B..., para que a CGAA seja aplicável é também necessário que aquele resultado tenha sido obtido “por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”, conforme previsto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT.

Nesta análise é necessário compreender se o conjunto de operações que resultaram nas entregas de meios monetários sob a forma de pagamentos (não tributados) a B..., por conta do crédito gerado sobre a Requerente, revelam ou não substância e/ou racionalidade económica à luz das circunstâncias e indícios fácticos evidenciados nos presentes autos.

Para tal, é preciso ter em consideração os concretos motivos avançados pela Requerente para se terem realizado as operações aqui em causa.

Quanto a essa motivação, a Requerente invocou que o objectivo das operações acima descritas assentava no interesse de B... de se retirar da vida empresarial activa, promovendo uma transferência progressiva da propriedade da Requerente para os demais accionistas. 

Ora, sendo esse o objectivo de B..., o mesmo poderia ser alcançado através de uma partilha realizada em vida, via doação das suas acções aos demais accionistas. Tal doação permitiria ainda salvaguardar a preocupação mencionada pela Requerida no seu pedido de pronúncia arbitral de evitar que os demais accionistas de despendessem quaisquer quantias para adquirirem a propriedade plena de tais acções.

Acresce que a motivação acabada de enunciar é uma justificação que apenas cuida e atenta aos objectivos e interesses de B..., mas não aos objectivos próprios da Requerente.

Com efeito, a Requerente não expôs – e nada foi dado como provado a este respeito - qualquer propósito comercial e/ou financeiro válido e concretos que permitisse justificar todas as operações anteriormente elencadas.

Nesse sentido, e na falta de mais ou melhores elementos, apenas resta concluir que, do ponto de vista dos interesses próprios da Requerente, inexiste qualquer racional económico-empresarial para a realização do conjunto de operações aqui em análise.

É, pois, consistente a conclusão de que o propósito das mesmas é artificial e externo à esfera da própria Requerente, porquanto, através da transmissão de acções efectuada entre B... e a Requerente, foi possível aquele transformar o pagamento de dividendos e/ou adiantamentos por conta dos lucros sujeitos a tributação em sede de IRS, no pagamento (amortização) de uma dívida, evitando, deste modo, a existência de qualquer tributação.

Pelo exposto, conclui-se que se encontra preenchido o elemento meio.

A finalizar, no que respeita ao preenchimento do elemento intelectual, ainda que não se exija neste domínio a sindicância da motivação subjectiva da Requerente (ou mesmo de B...) – o que nem sequer seria possível, dado que não foram arroladas testemunhas para depor sobre esta matéria em reunião arbitral –, importa apreciar a congruência dos vários indícios fácticos presentes nos autos tendo em vista a finalidade que foi imputada às operações praticadas.

Apesar de a Requerente negar a existência de uma motivação fiscal prevalecente subjacente à alienação das participações sociais, não deixou simultaneamente de reconhecer que, através das operações praticadas, logrou-se a obtenção de uma vantagem fiscal, que aquela qualifica como uma “consequência” (e não a “causa”) dessa alienação.

Acontece que aquele carácter de acessoriedade se revela, afinal, perante os elementos indiciários do caso concreto, como o principal objectivo das operações realizadas. 

Na verdade, conforme já se sinalizou acima, o conjunto de operações globalmente considerado em que a Requerente é parte interveniente revela-se incoerente e anómalo em face do objectivo de garantir a referida saída progressiva da vida activa de B... .

Desde logo porque a Requerente se predispôs a acordar uma operação de aquisição com o seu accionista B... quando, aparentemente, não estaria em condições financeiras de pagar, no imediato, a contrapartida associada a tal aquisição (o que, no mínimo, faz questionar a urgência, premência ou necessidade desta operação). 

Por outro, a Requerente não aparentava ter um especial interesse em promover tal aquisição. Caso contrário, mal se compreende o porquê de, imediatamente a seguir a essa aquisição, ter sido promovida a redução de capital com amortização (extinção) das acções próprias que acabara de adquirir.

Finalmente, com a concretização de uma operação de aumento de capital por incorporação de reserva, fica sinalizada a intenção dos accionistas em colocar a Requerente numa situação similar, do ponto de vista patrimonial e contabilístico, à que existia antes da aquisição de acções próprias (sendo esta, de resto, uma operação em sentido contrário à operação de redução de capital que tinha sido concretizada num momento cronológico imediatamente anterior).

Como tal, as operações praticadas pela Requerente, quando analisadas de acordo com um “filtro” de razoabilidade e normalidade económica, comercial (e mesmo do ponto de vista da sucessão empresarial de B...), não revelam um propósito racional à luz do ordenamento jurídico, razão pela qual se julga, com razoável segurança e certeza, que a motivação e o ganho fiscal das operações foi determinante face a outros motivos e/ou ganhos que a Requerente alega terem existido, encontrando-se consequentemente verificado o elemento intelectual.

Para que a Requerente possa ser objecto de correcção por via da aplicação da CGAA é ainda necessário aferir se emanava ou não do ordenamento jurídico-tributário uma intenção de tributação da realidade fáctica que teria sido praticada não fossem as condutas abusivas.

Ora, no caso concreto, é evidente que existe uma intenção do legislador de tributar em sede de IRS as operações nas quais se visem distribuir lucros e/ou adiantamentos por conta de lucros, estando este tipo de rendimentos tipificado na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS. 

Por conseguinte, dificilmente se compreenderia e admitiria que, pelo simples facto de tal distribuição ter sido “encoberta” por uma diferente “roupagem jurídica” com o intuito de obtenção de vantagens fiscais, o ordenamento se abstivesse de tributar tais realidades.

Assim sendo, ao se encontrarem preenchidos os demais elementos que constam da previsão da norma do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, e ao existir uma intenção clara de tributação das operações que teriam sido praticadas não fosse a actuação elisiva da Requerente, é forçoso concluir que também se encontra verificado o elemento normativo.

Verificados que estão, em meu entender, os elementos resultado, meio, intelectual e normativo, seria forçoso concluir-se pela aplicação da estatuição do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, que comina uma reprovação normativo sistemática às operações realizadas pelos contribuintes através da respectiva tributação de acordo com as normas que seriam aplicáveis se não tivessem sido praticados os actos ou negócios jurídicos artificiosos.

Assim sendo, consideram-se igualmente verificados os requisitos de que dependia a cominação do efeito sancionatório, de sujeição das operações objecto de sindicância nos presentes autos à tributação que resultaria das normas aplicáveis caso estas não tivessem sido praticadas pela Requerente, salvaguardando-se naturalmente os efeitos civis produzidos.

Em face de tudo o exposto, julgando-se verificados todos os elementos de facto e de Direito de que dependia a aplicação da CGAA pela Requerida, estou em crer que a decisão deste Tribunal deveria ser no sentido de julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, com todas as consequências legais advenientes desse juízo.