Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 742/2024-T
Data da decisão: 2025-06-20  IRC IVA  
Valor do pedido: € 19.044,99
Tema: IRC – Preços de Transferência; Comodato; Correções
IVA – Comodato; Prestação de serviços; Isenção
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SUMÁRIO

 

I – Nas operações efetuadas entre um sujeito passivo de IRC e outra entidade com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, ao abrigo do regime dos preços de transferência e do respetivo princípio da plena concorrência.

 

II – Tendo a AT observado e fundamentado a verificação dos pressupostos e requisitos de aplicação do regime dos preços de transferência, tendo averiguado a existência de relações especiais entre a Requerente e a outra entidade interveniente na operação, bem como que os termos e condições praticados divergem do que ocorreria entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência, através de Relatório de Inspeção Tributária, com valor probatório, caberia à Requerente o ónus da prova de que os pressupostos e requisitos de aplicação do regime dos preços de transferência não estavam verificados e/ou que houve erro ou manifesto excesso na quantificação.

 

III – Efetuando correções em sede de IRC, por aplicação do regime dos preços de transferência, poderão também ser efetuadas correções em sede de IVA, desde que se verifiquem os pressupostos e requisitos legais para a qualificação da operação como prestação de serviços assimilada a uma prestação de serviços onerosa, atendendo ao valor normal da operação com entidades independentes.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra Adelaide Moura, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral singular, decide o seguinte: 

 

I.       Relatório

 

A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ..., ...-... ..., Viana do Castelo, doravante denominada “Requerente”, no seguimento da liquidação adicional de IRC n.º 2024..., respeitante ao período de tributação de 2020, no valor de 4.234,63 €, bem como da liquidação de IVA n.º 2024..., respeitante ao 1.º trimestre de 2020, da liquidação de IVA n.º 2024..., respeitante ao 2.º trimestre de 2020, da liquidação de IVA n.º 2024..., respeitante ao 3.º trimestre de 2020, e da liquidação de IVA n.º 2024 ..., respeitante ao 4.º trimestre de 2020, veio, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra os atos impugnados, peticionando a respetiva anulação.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida”, “Autoridade Tributária” ou “AT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 11-06-2024 e notificado à AT.

 

A Requerente não procedeu expressamente à nomeação de árbitro. 

 

Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, foi designada a árbitra do presente Tribunal Arbitral singular, que comunicou ao Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.

 

As partes foram notificadas da nomeação, não tendo qualquer delas manifestado vontade de a recusar, tendo o Tribunal sido constituído em 20-08-2024, por despacho do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em harmonia com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.

 

Notificada, a AT apresentou a sua resposta em 30-09-2024. Foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em 07-10-2024, o Tribunal emitiu despacho a agendar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com vista à produção de prova e alegações. 

 

Em 18-10-2024, a Requerida arrolou a testemunha C..., inspetor tributário da Direção de Finanças de Viana do Castelo.

 

Em 22-10-2024, a Requerente peticionou o adiamento da inquirição da testemunha B..., por ausência do país, e requereu declarações de parte do sócio gerente da Requerente.

 

Após requerimento da Requerida, o Tribunal Arbitral emitiu, em 04-11-2024, despacho a desmarcar a reunião do artigo 18.º do RJAT, a admitir o depoimento da testemunha C..., a admitir as declarações de parte do sócio gerente da Requerente e a requerer a junção de documentação probatória pela Requerida conforme peticionado no PPA pela Requerente.

 

Em 19-11-2024, a Requerida requereu a prorrogação do prazo para junção de documentação probatória solicitada pelo Tribunal Arbitral.

 

Em 20-11-2024, o Tribunal Arbitral admitiu a prorrogação excecional do prazo para junção de documentação probatória aos autos, conforme peticionado pela Requerida.

 

Em 29-11-2024, a Requerida procedeu à junção da documentação probatória solicitada nos autos, nomeadamente quanto a arrendamentos rurais nos distritos de Viana do Castelo e Braga.

 

Em 11-12-2024, a Requerente requereu a admissão da junção de prova documental, por fotografias.

 

Em 28-01-2025, o Tribunal Arbitral emitiu despacho a reagendar a reunião do artigo 18.º do RJAT, para declarações de parte, inquirição de testemunhas arroladas e eventual produção de alegações orais.

 

Em 31-01-2025, a Requerente pronunciou-se sobre o despacho do Tribunal Arbitral e reiterou o pedido de admissão de prova documental, por fotografias.

 

Em 04-02-2025, a Requerida peticionou a alteração da data agendada para a reunião do artigo 18.º do RJAT por impossibilidade decorrente de outra reunião em processo arbitral no CAAD.

 

Em 04-02-2025, o Tribunal Arbitral emitiu despacho a reagendar a reunião do artigo 18.º do RJAT.

 

Em 13-02-2025, a Requerente requereu a pronúncia do Tribunal Arbitral sobre o pedido de admissão de prova documental, por fotografias.

 

Em 13-02-2025, o Tribunal emitiu despacho, ao abrigo do princípio da informalidade e do princípio da autonomia na condução do processo e determinação das regras a observar, remetendo a pronúncia para o âmbito da reunião do artigo 18.º do RJAT, de forma a assegurar o exercício do contraditório.

 

Em 18-02-2025, foi realizada a reunião do artigo 18.º do RJAT. Não se tendo a Requerida oposto à junção da prova documental, por fotografias, solicitada pela Requerente, a mesma foi admitida pelo Tribunal Arbitral. Foram ouvidas as declarações de parte do sócio gerente da Requerente, D... . Foram ouvidos os depoimentos das testemunhas E..., B... e F... . A testemunha arrolada pela Requerida foi dispensada pela própria, pelo que não prestou depoimento no processo.

 

As partes foram notificadas na reunião para apresentação de alegações finais escritas e para pagamento da taxa remanescente.

 

Em 06-03-2024, a Requerente juntou as respetivas alegações escritas. Em 07-03-2024, a Requerida também procedeu à junção das respetivas alegações.

 

Em 15-04-2025, o Tribunal Arbitral prorrogou até 20-06-2025 o prazo para prolação de decisão arbitral nos presentes autos.

 

II.     Posições das Partes

 

1,    Requerente

 

a)      Com o PPA, a Requerente cumula o pedido de anulação de liquidações adicionais de IRC e de IVA, referentes ao ano de 2020, por correções efetuadas à matéria tributável e/ou imposto, sem recurso a avaliação indireta, que resultaram da ação de inspeção pelos serviços inspetivos da Requerida, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2022..., emitida para o ano de 2020.

 

b)      Conforme defendido em sede de audição prévia no procedimento de inspeção, todos os argumentos invocados pela Requerida para fundamentar a aplicação do regime de preços de transferência e, consequentemente, a correção da matéria coletável para efeitos de IRC, bem como a correção ao IVA liquidado, não têm qualquer sustentação e aplicabilidade, pelo que as liquidações sob escrutínio padecem de erro, nomeadamente nos pressupostos de facto.

 

c)      Os preços de transferência encontram-se consagrados no artigo 63.º do CIRC e são regulados atualmente pela Portaria n.º 268/2021, de 26 de novembro, que revogou a anterior Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

d)      Os preços de transferência são aqueles pelos quais uma empresa transfere bens corpóreos, ativos incorpóreos ou presta serviços a empresas associadas, conforme decorre da redação do n.º 2 do artigo 63.º do CIRC.

 

e)      Para a aplicação do artigo 63.º do CIRC é essencial a existência de relações especiais entre as entidades contratantes, quer sejam estas residentes em território português e sujeitas a IRC ou não.

 

f)       O n.º 4 do artigo 63.º do CIRC define relação especial como sendo uma situação em que uma entidade tenha o poder de exercer, de forma direta ou indireta, influência significativa nas decisões de gestão da outra.

 

g)      A regulamentação dos preços de transferência exige que as entidades que estejam em situação de relações especiais, pratiquem entre si preços, termos e condições substancialmente idênticos aos que, em condições de normalidade, seriam efetuados em operações semelhantes com entidades independentes.

 

h)      Tem sido pacífico o entendimento de que os pressupostos legais para que a AT possa corrigir a matéria coletável ao abrigo do artigo 63.º do CIRC são os seguintes: a) a existência de relações especiais entre o contribuinte e outra entidades; b) que entre ambos tenham estabelecido condições diferentes das normalmente acordadas entre entidades independentes; c) que tais relações especiais sejam causa adequada das ditas condições; d) que aquelas tenham conduzido a um resultado apurado diverso do que se apuraria na sua ausência.

 

i)       Embora existam relações de parentesco entre os sócios e gerentes de ambas as empresas, a verdade é que tal circunstancialismo, ao contrário do que alega a Requerida, não alterou os termos e condições que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes.

 

j)       A Requerida não pode presumir que, pelo facto de a sociedade inspecionada ter declarado diversos gastos relacionados com a atividade e não cobrar qualquer valor a título de renda pela cedência dos prédios rústicos, tal opção difere da que seria adotada caso se tratasse de entidades independentes, violando o princípio da concorrência.

 

k)      A Requerente é proprietária de 35 prédios rústicos, com uma área total de 66,56 hectares. Desses 35 prédios rústicos, apenas 9 prédios rústicos foram cedidos gratuitamente, através de contrato de comodato, à sociedade G..., Lda., com uma área de 42,86 hectares.

 

l)       Permanecendo na posse e fruição da Requerente os restantes 26 prédios rústicos, com uma área total de 23,70 hectares, que necessitam de constante manutenção e conservação, circunstância que comporta custos e justifica os gastos registados na contabilidade da Requerente.

 

m)    Acresce que a cedência dos 9 prédios rústicos à sociedade G..., Lda., não comportou a cedência ou utilização dos bens ou equipamentos da propriedade da Requerente, mas tão-só a cedência dos terrenos. 

 

n)      Os terrenos em causa não dispunham de quaisquer infraestruturas, sistemas de rega ou equipamentos.

 

o)      Os prédios rústicos cedidos localizam-se numa zona extremamente desfavorecida, uma vez que se situam na zona da antiga extração mineira, com um solo xistoso e com declives acentuados e, portanto, sem aptidão para uso agrário, sem previamente ocorrer uma forte intervenção humana para converter esses terrenos em solos aráveis e produtivos.

 

p)      À data da cedência dos prédios rústicos à sociedade G..., Lda., o solo ainda se mantinha inóspito e improdutivo, agravado pelas inclinações acentuadas do terreno e pela existência de pedras.

 

q)      Com essas características e face à sua localização, os referidos terrenos tinham um reduzido valor económico.

 

r)       O que significa que, não sendo solos aráveis e produtivos, a Requerente jamais teria conseguido arrendar os terrenos a uma entidade independente ou rentabilizá-los de outra forma, uma vez os terrenos não estavam aptos para qualquer tipo de cultivo.

 

s)      Na génese da cedência gratuita dos terrenos rústicos esteve objetivamente um critério economicista e plenamente justificado, e que em nada se relaciona com o facto de se verificar a existência de relações de parentesco entre os sócios e gerentes de ambas as empresas.

 

t)       Dado que a Requerente não pretendia efetuar investimentos avultados, entendeu que a melhor decisão empresarial seria ceder gratuitamente tais terrenos rústicos à sociedade G..., Lda., tendo como contrapartida a valorização desses terrenos por força dos investimentos que esta empresa iria efetuar nos mesmos.

 

u)      Caso contrário, os terrenos rústicos em causa não teriam beneficiado dos inúmeros investimentos que aquela empresa materializou e que aumentaram exponencialmente o valor comercial de tais terrenos.

 

v)      A sociedade G..., Lda., tem vindo a efetuar avultados investimentos para converter os terrenos inóspitos em solo cultivável e produtivo, quer através da realização de limpeza dos terrenos, desmatação, despedrega, surriba, quer pela colocação de toneladas de matéria orgânica (estrume e corretivos orgânicos de solos), os quais são fundamentais para melhorar a estrutura do solo, reduzir a plasticidade e a coesão, aumentar a capacidade de retenção de água e aeração, permitindo maior penetração e distribuição das raízes e, assim, melhorar a capacidade produtiva do solo.

 

w)    Investindo, ainda, na aquisição de sistemas de rega, coletores, montagem de estruturas de pomar de kiwi e equipamentos necessários para a produção de kiwi.

 

x)      Note-se que uma significativa parte dos investimentos efetuados pela sociedade G..., Lda. são respeitantes à conversão do terreno para a produção agrícola e, por isso, são benfeitorias permanentes dos terrenos e que contribuem para uma valorização substancial dos mesmos.

 

y)      Sendo que a implantação de sistemas de rega no subsolo e coletores são também benfeitorias permanentes dos terrenos, uma vez que a extração desses sistemas de rega implicaria a inutilização dos mesmos.

 

z)      Tendo presente que os prédios rústicos em causa, antes do comodato, eram terrenos não aptos para qualquer tipo de produção agrícola, situados numa zona desfavorecida e remota, a realidade é que, numa situação comparável com uma entidade independente, a sociedade inspecionada não teria tido quaisquer ofertas de agricultores ou sociedades agrícolas para o arrendamento de tais terrenos rústicos.

 

aa)   Mesmo que o valor da renda por tais terrenos rústicos fosse diminuto, nenhuma entidade independente estaria disposta a despender milhares de euros para tornar o solo apto para cultivo.

 

bb)   Portanto, a Requerente não alterou os termos e condições aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

 

cc)   Inversamente, face aos avultados investimentos realizados pela G..., Lda., e os quais contribuíram para a valorização de tais terrenos, a Requerente logrou obter um benefício muito superior àquele que poderia obter junto de uma entidade independente.

 

dd)   Inexistiu assim qualquer violação das regras da concorrência. Consequentemente, nenhuma correção deve ser efetuada na matéria coletável para efeitos de IRC, nem retificação das declarações de IVA.

 

ee)   Sem prejuízo, caso se considere que, numa situação comparável com uma entidade independente, seria devido o pagamento de renda por força do arrendamento rural dos prédios rústicos, desde já se adianta que o valor apurado pela Requerida é surreal e completamente desfasado da realidade, tendo em conta as características dos terrenos, a localização, a aptidão e a finalidade dos solos.

 

ff)     A Requerida entendeu que o método mais apropriado aos factos e às circunstâncias específicas da operação em causa é a imputação dos gastos suportados pela Requerente relacionados com a atividade de exploração agrícola exercida pela sociedade G..., Lda.

 

gg)   Porém, para além deste método de imputação dos custos suportados conduzir a um resultado paradoxal e desproporcional, o mesmo não tem qualquer correspondência com uma situação comparável com uma entidade independente.

 

hh)   Em primeiro lugar, a Requerida olvidou o facto de a Requerente, para além dos prédios rústicos cedidos, ser ainda proprietária e possuidora de mais 26 prédios rústicos, com uma área total de 23,70 hectares. E que tais prédios rústicos necessitam de manutenção e conservação, situação que justifica os gastos registados na contabilidade da Requerente.

 

ii)     Ademais, impõe-se verificar se foram estabelecidas condições diferentes daquelas que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o resultado apurado com base na contabilidade seja diverso do que se apuraria na ausência das relações especiais.

 

jj)     No caso em concreto, considerando que se tratou de um contrato de comodato de prédios rústicos, entendemos que, para cumprir o disposto no artigo 63.º, n.º 3 do CIRC, a Requerida deveria ter indagado qual o valor normal de renda de um prédio rústico para a zona em causa. Esta sim seria a operação de natureza idêntica que poderia ocorrer entre pessoas independentes.

 

kk)   Sendo que não seria necessário um grande esforço por parte da Requerida para apurar o valor de renda rural praticado na zona, já que a mesma dispõe de uma base de dados com os registos de contratos de arrendamento rurais e, ainda, pela análise das declarações anuais de rendas, podendo facilmente verificar os valores de renda rural praticados na zona. Ou, caso não tivesse dados disponíveis para a zona em causa, porque efetivamente é uma zona em que a maioria dos terrenos são baldios, poderia alargar o campo de pesquisa para o todo o distrito de Viana do Castelo e Braga.

 

ll)     O método da imputação dos gastos suportados pela Requerente relacionados com a atividade de exploração agrícola pela sociedade G..., Lda. é um método desajustado, na medida em que não assegura a exigência de um grau de comparabilidade numa situação similar entre entidades independentes.

 

mm)      A Requerida olvidou-se de que são prédios rústicos, do tipo de solo existente no local, da falta de aptidão agrícola e da localização dos mesmos.

 

nn)   Seguindo o raciocínio da Requerida, teria sido possível à Requerente arrendar os terrenos rústicos inóspitos, improdutivos e sem quaisquer infraestruturas ou equipamentos, pelo valor anual de 64.392,80 €.

 

oo)   Se a Requerida efetuasse uma pesquisa na sua base de dados dos registos de contratos de arrendamento rurais e das declarações anuais de rendas perceberia que tal valor é completamente descabido.

 

pp)   Contudo, tendo a Requerida junto posteriormente aos autos informação sobre os arrendamentos na base de dados, a Requerente pronunciou-se, entendendo que “não consta nenhum contrato de arrendamento rural na freguesia dos prédios rústicos cedidos”, que “os valores dos contratos de arrendamento no distrito de Viana do Castelo são bastante díspares” e que “o valor do arrendamento estará relacionado com a localização, qualidade do solo e tipo de cultura”.

 

qq)   É do conhecimento empírico que, atualmente, uma grande parte dos prédios rústicos são cedidos gratuitamente apenas para que o terreno se mantenha limpo, sendo cada vez menos frequente conseguir ter um arrendatário disposto a pagar renda.

 

rr)     Por conseguinte, face ao exposto e porque a operação em causa não se reveste de nenhuma singularidade que pudesse justificar a aplicação do método aplicado pela Requerida para fundamentar a correção de preços de transferência, conclui-se que a correção efetuada enferma de ilegalidade por erro nos pressupostos de facto.

 

ss)    A Requerente entende que nenhuma correção deve ser efetuada na matéria coletável para efeitos de IRC, em virtude de não se verificarem os pressupostos para a aplicação do regime de preços de transferência. 

 

tt)     Por fim, sempre se dirá que a cedência a título gratuito de prédios rústicos está isenta de IVA, ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.º 29 do CIVA.

 

uu)   A cedência dos 9 prédios rústicos à sociedade G..., Lda., não comportou a cedência ou utilização dos bens ou equipamentos da propriedade da Requerente, mas tão-só a cedência dos bens imóveis.

 

vv)   Por conseguinte, é errónea a interpretação da Requerida quando considera que ocorreu uma cessão de exploração, na medida em que o contrato de comodato não incluía a utilização dos bens ou equipamentos da propriedade da Requerente.

 

ww)Com efeito, estar-se-ia sempre perante uma situação equiparável à locação de bens imóveis e nunca uma cessão de exploração.

 

xx)   Assim sendo, mesmo na mera hipótese de se considerar que a Requerente deveria cobrar uma renda pelos terrenos rústicos, estar-se-ia perante uma locação de bens imóveis, a qual está isenta nos termos do artigo 9.º, n.º 29 do CIVA.

 

yy)   A Requerente conclui que soçobram todos os argumentos invocados pela Requerida para fundamentar a aplicação do regime de preços de transferência e, consequentemente, a correção da matéria coletável para efeitos de IRC, bem como a correção ao IVA liquidado. 

 

zz)   Concludentemente, as liquidações adicionais de IVA e a liquidação de IRC, do ano de 2020, enfermam de erro, impondo-se a sua anulação.

 

2.    Requerida

 

a)      Conforme demonstrado no relatório da inspeção tributária, e considerando o respetivo valor probatório, existem óbices substanciais que votam o PPA ao insucesso.

 

b)      A questão central referente às correções efetuadas pela AT prende-se com a existência de um contrato de comodato celebrado entre a Requerente e a sociedade G..., Lda., com quem aquela mantém relações especiais, nomeadamente relações de parentesco entre os sócios de ambas.

 

c)      Este contrato consubstancia uma operação comercial realizada entre entidades relacionadas (e, como tal, designada por operação vinculada), pelo que as condições praticadas deveriam estar em conformidade com o princípio de plena concorrência e a sua natureza revestida de onerosidade.

 

d)      Dada a preterição destas imposições legais, a AT procedeu às correções efetuadas em sede de procedimento de inspeção das quais discorda a Requerente, dispondo, para as mesmas, dos mecanismos prescritos pelo artigo 63.º do CIRC.

 

e)      Em concreto, procedeu à imputação dos gastos suportados pela Requerente relacionados com a atividade de exploração agrícola exercida pela sociedade G... por entender não ser possível aplicar nenhum dos métodos vertidos nas alíneas a) e b) do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

f)       Face ao exposto, é possível realçar que, do que decorre do peticionado pela Requerente, no presente processo está em causa aferir se, ao caso em pleito: a) foram corretamente aplicados os termos legalmente prescritos pelo princípio da plena concorrência e regras dos preços de transferência para operações vinculadas; e, se b) para a fixação do preço, os Serviços de Inspeção Tributária se serviram de factos e do método mais acertados.

 

g)      Quanto a este ponto, face à factualidade dada como provada e constante do RIT, e atendendo a que os pressupostos que estiveram presentes na ação inspetiva se mantém válidos, não assiste razão à Requerente, devendo ser necessariamente mantidos na ordem jurídica os atos de liquidação de IRC aqui em causa, relativos ao período de tributação de 2020.

 

h)      Na data da celebração do contrato de comodato entre as mencionadas sociedades, verificava-se uma situação de relações especiais, à luz do disposto no artigo 63.º do CIRC, facto que, de resto, a Requerente não põe em causa na presente sede.

 

i)       E, perante essa observação, entenderam os SIT que a operação de cedência dos prédios rústicos entre a sociedade Requerente e a sociedade G... deveria ser sujeita a condições substancialmente idênticas às que normalmente seriam contratadas, aceites e praticadas entre entidades independentes em operações comparáveis.

 

j)       Pese embora a sua tese de que não seria de aplicar o regime dos preços de transferência ao caso em apreço, a Requerente não logrou fazer prova suficiente do reduzido valor económico do bem objeto do referido contrato que justificasse a gratuitidade do contrato celebrado.

 

k)      Preterindo assim as regras subjacentes ao seu ónus de prova, nos termos que resultam do artigo 74.º da LGT.

 

l)       De resto, as afirmações que faz sobre o (reduzido) valor dos terrenos são diretamente contraditadas pelo interesse que a G... neles encontrou e que, presumivelmente, poderia também ter interessado a outros operadores.

 

m)    Pelo contrário, a Requerente não poderia afirmar, porque desconhece, ou pelo menos não logrou demonstrar, que nenhum outro operador económico, com a mesma atividade, se interessaria pelo arrendamento dos prédios rústicos e realização de algum investimento, ainda que a título de benfeitorias, se dele retirasse rendimento através de exploração agrícola.

 

n)      É evidente que, pese embora as características dos mesmos, os terrenos possuíam, à data da celebração do contrato de comodado, valor económico suscetível de gerar interesse no mercado.

 

o)      Contudo, dado que a Requerente não pratica a mesma operação com entidades independentes e não ter sido possível a obtenção de informação disponível publicamente que envolva serviços similares e operações realizadas entre entidades independentes, não foi possível obter preços comparáveis externos que possam ser utilizados, pelo que o método do preço comparável de mercado, nesta situação, não pode ser considerado como o método mais apropriado.

 

p)      Acresce que, quanto aos gastos utilizados pelos SIT para o cálculo do potencial rendimento obtido por referência aos prédios rústicos cedidos, tendo a empresa incorrido em gastos ligados ao exercício de uma atividade agrícola, seria coerente que existisse algum rendimento obtido com essa atividade e que fosse declarado igualmente nas demonstrações financeiras. Porém, tal não se verificou, tendo sido justificado por parte do sócio gerente com o contrato de comodato celebrado com a entidade G... .

 

q)      Ou seja, a operação teve contornos concretos que não seriam replicáveis numa relação comercial entre entidades independentes, já que a Requerente incorria em gastos relacionados com a exploração dos prédios rústicos cedidos gratuitamente, não cobrando qualquer renda pelos mesmos.

 

r)       Num cenário como este, o preço a praticar numa tal operação nunca poderia ser extrapolado a partir do arrendamento de prédios rústicos entre sociedades independentes – o que, por si só, basta para rejeitar o argumento da Requerente.

 

s)      O contrato de comodato celebrado afasta-se das condições que poderiam ser contratadas com uma entidade independente, em favorecimento da relação especial que une as sociedades contratantes.

 

t)       Mais, dada a identidade de sócios de ambas as sociedades, poder-se-ia dizer que se confundem as atividades de exploração de ambas, o que se constata pela referida afetação de gastos.

 

u)      Os SIT, na sequência do procedimento inspetivo, concluíram que estamos na presença de um contrato de exploração, ainda que a título gratuito, quer de bens móveis, quer de bens imóveis, necessários a essa mesma atividade, que não aproveita de qualquer isenção prevista legalmente, estando as mesmas sujeitas e não isentas de IVA, de harmonia com o artigo 4.º, n.º 2 do Código do IVA.

 

v)      Acresce que poder-se-ia desde logo colocar em discussão a natureza gratuita do contrato celebrado entre as duas sociedades, dado a própria Requerente ter referido que como contrapartida da cedência dos terrenos recebeu “a valorização desses terrenos por força dos investimentos que esta empresa iria efetuar nos mesmos”, a título de “benfeitorias permanentes”.

 

w)    É a própria Requerente que afirma que teria sido esta a expectativa quando celebrou o contrato de comodato, o que, justamente, sugere uma natureza sinalagmática da operação. 

 

x)      Verificamos que a jurisprudência comunitária considera que a isenção em apreço apenas abrange a mera colocação do imóvel à disposição do locatário, mediante a contrapartida de uma retribuição e que não seja acompanhada de qualquer prestação de serviços que extravase a locação.

 

y)      São, assim, de excluir da isenção, todas as situações que, apesar de partilharem alguns dos elementos essenciais do contrato de locação, se caracterizam por integrarem outras prestações de serviços conexas à fruição do imóvel e que implicam uma exploração ativa dos bens imóveis, para além do simples gozo temporário do bem.

 

z)      Tendo os SIT constatado que a Requerente incorreu em gastos ligados ao exercício de uma atividade agrícola alheia, não estamos perante uma locação de bens imóveis, porquanto se verificaram outro tipo de serviços prestados pela Requerente.

 

aa)   Não obstante não ser cobrada qualquer renda de exploração, a Requerente incorreu em gastos associados ou relacionados com essa própria exploração.

 

bb)   Na medida em que a operação realizada pela Requerente se trata de um contrato de cedência à exploração, e não de mera locação de imóveis, é inequívoco não ser de aplicar a isenção prevista na alínea 29) do artigo 9.º do Código do IVA.

 

III.  Saneamento

 

O Tribunal Arbitral é competente, encontra-se regularmente constituído e o pedido é tempestivo, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1 e 10.º do RJAT.

 

A cumulação de pedidos é admissível, nos termos do artigo 3.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

O processo não enferma de nulidades. Não há assim qualquer obstáculo à apreciação da causa. 

 

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

 

IV.   Matéria de facto

 

1.    Factos provados

 

a)      A Requerente é uma sociedade comercial com sede em Viana do Castelo, que declarou o respetivo início de atividade em 01-01-1987 e tem por objeto social, nomeadamente, a compra e venda de bens imobiliários, a cultura de frutos e produtos hortícolas, a silvicultura e o turismo rural.

 

b)      A Requerente tem o CAE 68100 – Compra e venda de bens imobiliários como CAE principal da sociedade.

 

c)      A Requerente é proprietária de 37 prédios, incluindo 35 prédios rústicos em..., Viana do Castelo, com total de 66,56 hectares.

 

d)      A Requerente encontra-se abrangida pelo regime geral de tributação em sede de IRC e pelo regime normal de periocidade trimestral em sede de IVA.

 

e)      A estrutura societária da Requerente inclui 3 sócios, designadamente H..., com participação maioritária, I... e J..., ambos com participações minoritárias no capital social.

 

f)       O sócio H... é gerente da Requerente.

 

g)      O sócio H... é pai dos sócios I... e J..., seus filhos.

 

h)      Os sócios I... e J... são gerentes e titulares de participações sociais de 50% cada no capital social da sociedade G..., Lda.

 

i)       Com data de 7 de março de 2018, foi celebrado um contrato de comodato entre a Requerente e a sociedade G..., Lda., tendo o sócio gerente H... assinado em representação da Requerente e os sócios gerentes I... e J... assinado em representação da sociedade G... .

 

j)       O contrato de comodato foi celebrado entre as partes pelo prazo de 10 (dez) anos e abrange 9 prédios rústicos da Requerente, num total de 42,86 hectares.

 

k)      O contrato de comodato celebrado entre as partes não estipula qualquer pagamento pela sociedade G... como contrapartida da disponibilização dos prédios rústicos da Requerente.

 

l)       Os terrenos objeto de contrato de comodato eram declivosos, com solo pedroso e vegetação, num estado pouco propício à imediata exploração para fins agrícolas.

 

m)    Os terrenos objeto de contrato de comodato tinham características específicas de aptidão para plantação de pomar e produção de kiwi, bem como para exploração de pecuária e produção florestal.

 

n)      Os terrenos objeto de contrato de comodato temporário foram alvo de investimentos permanentes pela sociedade  G...incluindo trabalhos no solo, instalação de equipamentos e a preparação da plantação da respetiva cultura.

 

o)      A Requerente é proprietária de diversos prédios rústicos, mas não dispõe atualmente de qualquer exploração agrícola ativa.

 

p)      A Requerente adquiriu e custeou a limpeza de terrenos adjacentes aos prédios objeto de contrato de comodato, visando proteger o pomar da sociedade G... .

q)      A Requerente construiu e custeou a construção de pavilhão de apoio para utilização na área de influência dos terrenos objeto de contrato de comodato.

 

r)       No exercício de 2020, o montante declarado de vendas e de serviços prestados pela Requerente foi nulo, registando unicamente como rendimentos o montante relativo a juros obtidos de um depósito a prazo realizado junto de banco.

 

s)      No exercício de 2020, o resultado líquido da Requerente foi negativo, atingindo 112.837,74 €.

 

t)       No exercício de 2020, o prejuízo fiscal declarado pela Requerente ascende a 68.229,14 €, conforme declaração modelo 22 de IRC.

 

u)      A Requerente foi notificada, por carta aviso datada de 22-06-2023, que os técnicos dos Serviços de Inspeção da Requerida se iriam deslocar à sede da empresa, com vista a dar início ao procedimento externo de inspeção.

 

v)      O procedimento externo de inspeção, com âmbito parcial, iniciou-se em 24-07-2023, na sede da Requerente, com a notificação pessoal da credencial n.º OI2022... ao respetivo sócio gerente, H... .

 

w)    Face à alteração do âmbito da ação inspetiva para geral, através do despacho do Diretor de Finanças, em suplência, de 01-09-2023, foi dado conhecimento à Requerente, por via postal, através do ofício n.º ..., de 04-09-2023.

 

x)      Em 25-01-2024, por transmissão eletrónica de dados, a Requerente foi notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária.

 

y)      Em 09-02-2024, a Requerente exerceu o respetivo direito de audição prévia, remetendo articulado por correio eletrónico.

 

z)      Os atos de inspeção foram concluídos em 14-02-2024, com o envio por via postal da nota de diligência com a ref.ª... .

 

aa)   Em 26-02-2024, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspeção Tributária, tendo a Requerida mantido o entendimento constante no respetivo projeto.

 

bb)   Nos termos do Relatório de Inspeção Tributária: 

 

– “as empresas em questão possuem sócios comuns, com relações de parentesco, sendo as funções de gerência exercidas também por pessoas com relações de parentesco, havendo, portanto, relações especiais entre as duas, nos termos das alíneas b) e d) do n.º 4 do artigo 63.º do CIRC, não sendo cobrada, por parte do SP, qualquer renda imobiliária ou de cedência de exploração, situação que não aconteceria se estivéssemos perante entidades independentes, atendendo a que o objetivo de uma empresa é gerar lucro que permita atribuição de um rendimento aos seus sócios detentores do capital”.

 

– “efetuada uma verificação da contabilidade, partindo-se dos registos contabilísticos para os documentos de suporte, utilizando a técnica de vouchingconstatamos que os gastos reconhecidos (…) relacionam-se com a atividade de exploração agrícola, atividade não exercida pelo sujeito passivo”.

 

– “esta opção difere da que seria adotada caso se tratasse de entidades independentes, violando o princípio de plena concorrência previsto no n.º 1 do artigo 63.º do CIRC e n.º 1 do artigo 1.º da referida Portaria”.

 

– “Dado o SP não praticar a mesma operação com entidades independentes e não ter sido possível a obtenção de informação disponível publicamente que envolva serviços similares e operações realizadas entre entidades independentes, não obtivemos comparáveis externos que possam ser utilizados, pelo que o método do preço comparável de mercado, nesta situação, não pode ser considerado como o método mais apropriado”.

 

– “outro critério por nós considerado mais apropriado aos factos e às circunstâncias especificas da operação em causa, conforme previsto nas referidas alíneas b), do n.º 3 do artigo 63.º do CIRC e do n.º 3 do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001, nomeadamente, a imputação dos gastos suportados pelo SP relacionados com a atividade de exploração agrícola exercida pela G...”.

 

– “concluímos com a violação do princípio da plena concorrência por parte do SP, uma vez que efetua a cedência da exploração, a uma entidade com relações especiais, não cobrando qualquer renda de exploração, mas incorrendo em diversos gastos relacionados com essa própria exploração, opção que difere da que seria normalmente adotada caso se tratasse de entidades independentes. Em face do exposto, consideramos que o valor mínimo do rendimento obtido no período de 2020 com a cedência de exploração da atividade agrícola entre entidades independentes numa operação não vinculada, seria o equivalente aos gastos suportados pelo SP diretamente relacionados com essa atividade de exploração agrícola”.

 

– “todos os bens e serviços adquiridos não tiveram utilização por parte do SP, uma vez que não exerceu em concreto qualquer atividade neste período, em face do contrato de cedência celebrado, mas sim a empresa G..., o mesmo sucedendo com a utilização dos ativos fixos reconhecidos na contabilidade e que foram geradores de gastos de depreciação calculados no período em exame”.

 

– “uma vez que não foi declarada a obtenção de qualquer rendimento no período de 2020, consideramos que o rendimento a relevar seria o equivalente ao montante dos gastos indicados (…), concretamente, 64 392,80 €”.

 

– “são consideradas prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens. Por sua vez o n.º 2, alínea b), do mesmo artigo vem assimilar, entre outras, a prestações de serviços a título oneroso as prestações de serviços efetuadas a título gratuito pela empresa com vista às necessidades dos sócios, administradores, gerentes, do pessoal, ou, em geral, a fins alheios à mesma”.

 

– “tratando-se no caso em concreto de cedência à exploração, ainda que a titulo gratuito, quer de bens móveis, quer de bens imóveis, necessários a essa mesma atividade, operação que não aproveita de qualquer isenção prevista na lei fiscal, estão as mesmas sujeitas e não isentas de IVA”.

 

– “o valor tributável será constituído pelo valor normal do serviço”.

 

cc)   Em conformidade com as conclusões do Relatório de Inspeção Tributária, a Requerida corrigiu a matéria tributável em sede de IRC e as declarações periódicas de IVA.

 

dd)   A Requerida emitiu e notificou à Requerente a liquidação adicional de IRC n.º 2024..., respeitante ao ano de 2020, no valor de 4.234,63 €.

 

ee)   A Requerida emitiu e notificou à Requerente das liquidações adicionais de IVA n.º 2024..., do 1.º trimestre de 2020, n.º 2024..., do 2.º trimestre de 2020, n.º 2024..., do 3.º trimestre de 2020, e n.º 2024..., do 4.º trimestre de 2020.

 

2.      Factos não provados

 

a)      Os terrenos objeto de contrato de comodato não tinham valor económico, nem qualquer aptidão agrícola ou valência para qualquer outra atividade comercial.

 

b)         Os terrenos objeto de contrato de comodato não mereciam qualquer interesse de terceiros para qualquer forma de exploração ou rentabilização económica, nomeadamente arrendamento rural.

 

c)      Os terrenos objeto de contrato de comodato não podiam ser arrendados ou exploradores por terceiros, mediante contrapartida pecuniária ou onerosa, apenas sendo possível a respetiva disponibilização gratuita.

 

d)      O comodato de terrenos permitiu a efetiva redução de despesas incorridas pela Requerente, nomeadamente ao nível da manutenção e limpeza de terrenos.

 

e)      Os terrenos objeto de contrato de comodato foram disponibilizados sem qualquer equipamento ou serviços associados, custeados pela Requerente, incluindo, nomeadamente o pavilhão de apoio e a limpeza de terrenos.

 

f)       Os custos constantes na contabilidade da Requerente respeitam exclusivamente a manutenção e limpeza de outros terrenos não objeto de contrato de comodato, não representando despesas associadas ou relacionadas, direta e/ou indiretamente, com a exploração agrícola da sociedade G... .

 

Não se verificaram outros factos com relevância para a decisão da causa que não tenham sido considerados provados.

 

3.      Motivação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada, nos termos do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão em relação às provas produzidas na sua convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência e conhecimento, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC e regras gerais do CC. 

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra estabelecida na lei é que o princípio da livre apreciação não domina na apreciação das provas produzidas. 

 

Em concreto, a convicção do Tribunal fundou-se na prova produzida nos autos, incluindo os documentos e processo administrativo juntos pelas partes, bem como as declarações de parte e prova testemunhal, tendo em consideração os respetivos ónus de alegação e prova das partes, nos termos legais.

 

V.     Matéria de Direito

 

1.      Objeto 

 

Face às posições assumidas pelas partes, vertidas nos respetivos articulados, cabe ao Tribunal Arbitral apreciar e decidir sobre a (i)legalidade dos atos tributários impugnados nos presentes autos em sede de IRC e IVA.

 

2.    Apreciação 

 

IRC

 

Atendendo ao objeto dos autos, importa proceder a um breve enquadramento do regime aplicável aos preços de transferência vigente no período de tributação de 2020.

 

Nos termos do artigo 63.º, n.º 1 do CIRC, nas “operações efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis”.

 

Este “princípio de plena concorrência” aplica-se a “operações vinculadas”, ou seja, operações realizadas entre “entidades relacionadas”, incluindo “entidades residentes em território português sujeitos passivos de IRC”, ao abrigo dos artigos 1.º e 2.º, alínea c) da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Existem “relações especiais” entre “duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre: (…) b) entidades em que os mesmos titulares do capital, respetivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto; (…) d) entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta”, nos termos do artigo 63.º, n.º 4 do CIRC.

 

Em conformidade com o disposto no artigo 63.º, n.º 2 do CIRC, as “operações” abrangem “operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens tangíveis ou intangíveis, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de um qualquer acordo, designadamente de partilha de custos e de prestação de serviços intragrupo, bem como operações financeiras e operações de reestruturação ou de reorganização empresariais, que envolvam alterações da estruturas de negócio, a cessação ou renegociação substancial dos contratos existentes, em especial quando impliquem a transferência de bens tangíveis, intangíveis, direitos sobre intangíveis, ou compensações por danos emergentes ou lucros cessantes”.

 

Conforme exposto na decisão arbitral de 18-08-2023, no âmbito do processo n.º 771/2022-T, acessível em www.caad.pt, “visa-se com este regime impedir que os sujeitos passivos utilizem abusivamente a especial relação que os une para diminuírem a tributação, garantindo que aqueles praticam preços que respeitam o princípio da plena concorrência”.

 

“O princípio de plena concorrência visa colocar empresas relacionadas e empresas independentes em igualdade de circunstâncias para efeitos fiscais, servir como princípio geral de igualdade e neutralidade, evitar distorções de concorrência e promover a troca internacional e o investimento, afastando razões fiscais de decisões económicas”, como disposto na decisão arbitral de 28-12-2020, no âmbito do processo n.º 828/2019-T, acessível em www.caad.pt.

 

Para efeitos de “determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o sujeito passivo deve adotar qualquer dos métodos” previstos no artigo 63.º, n.º 3 do CIRC, “tendo em conta, entre outros aspetos, a natureza da operação, a disponibilidade de informações fiáveis e o grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, efetuadas entre entidades independentes”.

 

Deve ser adotado “o método mais apropriado a cada operação ou série de operações, tendo em consta o seguinte: a) o método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado; b) o método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro método apropriado aos factos e às circunstâncias específicas de cada operação que satisfaça o princípio enunciado (…), quando os métodos referidos (…) não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam”, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Considera-se como método mais apropriado “aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis”, nos termos do artigo 4.º, n.º 2 da Portaria.

 

O “grau de comparabilidade” entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os fatores de comparabilidade mencionados no artigo 5.º da Portaria mencionada.

 

A adoção do “método do preço comparável” requer “o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes”, podendo ser utilizado, designadamente, quando “o sujeito passivo (…) realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares” e quando “uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares”, em conformidade com o disposto no artigo 6.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria.

 

Caso não possam ser aplicados os métodos expressamente previstos na Portaria, como seja o “método do preço comparável”, poderá ser aplicado “outro método apropriado aos factos e às circunstâncias específicas de cada operação que satisfaça o princípio”, bem como “devido ao carácter único ou singular das operações ou à falta ou escassez de informações e dados comparáveis fiáveis relativos a operações similares entre entidades independentes”, nos termos do CIRC e da referida Portaria.

 

Esta metodologia alternativa não constitui um método de avaliação indireta da matéria tributável, pelo que as correções derivadas do regime dos preços de transferência não consubstanciam um tipo de avaliação por métodos indiretos. Na verdade, os ajustamentos realizados por aplicação do princípio da plena concorrência fundam-se em critérios técnicos e avaliação direta, nos termos do CIRC e da Portaria aplicável.

 

Por força do disposto no n.º 9 do artigo 63.º do CIRC, sempre que “as regras enunciadas (…) não sejam observadas, a Autoridade Tributária e Aduaneira pode efetuar as correções na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente ao que teria sido obtido se as operações se tivessem efetuado numa situação normal de mercado.”

 

Essas correções devem ser “imputadas ao período ou períodos de tributação em que os efeitos das operações se tornem relevantes para efeitos da determinação do lucro ou do rendimento tributável dos sujeitos passivos de IRC”, nos termos do artigo 63.º, n.º 10 do CIRC.

 

Considerando o caso concreto em crise nos presentes autos, não se afigura controvertido que entre a Requerente e a sociedade G... se configuram “relações especiais”, na medida em que o sócio gerente da Requerente é pai dos sócios gerentes da sociedade G..., os quais também são sócios minoritários da Requerente. 

 

Estas relações societárias e familiares tornam a Requerente e a referida sociedade G... como “entidades relacionadas” para efeitos do regime de preços de transferência.

 

Também conforme factualidade provada nos autos, a Requerente e a sociedade G... celebraram contrato de “comodato” no âmbito das respetivas atividades.

 

Juridicamente, o comodato é o “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”, nos termos do artigo 1129.º do Código Civil. 

 

O comodato não se trata, assim, de um contrato tipicamente sinalagmático, dado que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.

 

Considerando que a Requerente, enquanto sociedade comercial, exerce “certa actividade económica” para obtenção de “lucros resultantes dessa actividade”, através da “prática de actos de comércio”, nos termos do artigo 980.º do Código Civil e do artigo 1.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, é questionável a celebração de contratos de comodato, cuja característica essencial corresponde à disponibilização de património ao comodatário sem qualquer contrapartida remuneratória.

 

É certo que a celebração de contratos de comodato por sociedades comerciais não é ilícita per si, mas suscita naturalmente a aplicação do regime de preços de transferência, à luz do princípio de plena concorrência decorrente do disposto no artigo 63.º do CIRC e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Embora o contrato de comodato não seja impossível na atividade de sociedades comerciais, a atividade lucrativa da Requerente supõe a onerosidade das respetivas operações, devendo refletir as condições que seriam praticas entre entidades independentes.

 

Estando em causa uma operação vinculada, sujeita ao regime de preços de transferência entre entidades relacionadas, compete à AT demonstrar que a operação não traduz um “preço que cumpra o princípio da plena concorrência” (cf. decisão arbitral de 19-09-2024, no âmbito do processo n.º 71/2024-T, acessível em www.caad.pt).

 

No âmbito da ação inspetiva e do respetivo Relatório de Inspeção Tributária, a Requerida expôs e demonstrou a factualidade e o enquadramento jurídico aplicável, defendendo a verificação dos pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência, averiguando a existência de relações especiais entre a Requerente e a sociedade G..., bem como as características da operação e se se afastou do que ocorreria entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência.

 

Cumpre à Requerente, por sua vez, o ónus de prova de que “os pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência não estavam verificados” (cf. decisão arbitral de 18-08-2023, no âmbito do processo n.º 771/2022-T, acessível em www.caad.pt) e/ou que “houve erro ou manifesto excesso na quantificação” pela Requerida (cf. decisão arbitral de 13-07-2021, no âmbito do processo n.º 223/2020-T, acessível em www.caad.pt).

 

Conforme artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, o ónus de prova “dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuinte recai sobre quem os invoque”, sendo que a prova “dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”, nos termos gerais.

 

Nesse sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-05-2021, no âmbito do processo n.º 0766/11.2BEAVR, acessível em www.dgsi.pt, que aqui se transcreve: “Compete à Fazenda Pública o ónus da prova da existência dessas relações especiais, bem como os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, devendo o acto ser anulado se tal prova não for feita. (…) A determinação da situação de condições especiais, diferentes das que seriam normalmente acordadas entre empresas independentes, poderá ser feita pela AT com uma certa margem de discricionariedade técnica desde que adopte um método legítimo e devidamente fundamentado (…). Face à presunção de veracidade da contabilidade e das declarações do contribuinte (art. 75º da LGT), cabe à AT o ónus de prova dos pressupostos que justificam a correcção, bem como do valor do preço de plena concorrência (…).”

 

Também o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26-12-2020, no âmbito do processo n.º 1882/14.4BENST, acessível em www.dgsi.pt, defende que: “Cumpre à Autoridade Tributária e Aduaneira a verificação dos pressupostos de aplicação da norma relativa a preços transferências, averiguando da existência de relações especiais entre o contribuinte e as entidades envolvidas, e que as operações efetuadas se afastaram das que ocorreriam entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência. (…) Cabe ao sujeito passivo a demonstração de que foram respeitados os princípios inerentes aos preços de transferência, (…) para justificar que as aquisições dos bens foram efetuadas ao valor de mercado.”

 

Pelo que, conforme exposto na decisão arbitral de 30-11-2022, no âmbito do processo n.º 186/2022-T, acessível em www.caad.pt, “Tendo a AT observado a verificação dos pressupostos de aplicação da norma relativa a preços de transferência, averiguando da existência de relações especiais entre a Requerente e o interveniente na aquisição e que o preço praticado se afastou do que ocorreria entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência, cabia à Requerente a prova do contrário”.

 

Ora, a Requerente alega que é proprietária de 35 prédios rústicos, com uma área total de 66,56 hectares, e que cedeu gratuitamente 9 desses prédios rústicos, integrando apenas terrenos com reduzido valor económico e sem infraestruturas ou equipamentos, com uma área total de 42,86 hectares, à sociedade G..., os quais se localizam numa zona remota e extremamente desfavorecida, com solo xistoso, pedras e declives acentuados, sem aptidão para uso agrário, tendo aquela investido mais de 850.000 mil euros para transformação permanente dos solos inóspitos e improdutivos em solos aráveis e aptos para plantação de pomar e produção de kiwi.

 

Em sede de declarações de parte, o Senhor H..., sócio gerente da Requerente, e pai dos sócios gerentes da sociedade G..., que também são sócios minoritários da Requerente, confirmou que a Requerente é proprietária de diversos terrenos, destacando os prédios rústicos disponibilizados à sociedade G..., bem como outros terrenos envolventes ao “pomar” plantado pela referida sociedade e uma mata de “carvalhos e castanheiros”, todos situados em ..., Viana do Castelo.

 

Pela utilização dos prédios rústicos da Requerente, o sócio gerente da Requerente confirmou que a sociedade G... não paga qualquer retribuição à Requerente, utilizando-os gratuitamente. 

 

De acordo com o sócio gerente da Requerente, a gratuitidade decorreu de os terrenos objeto de comodato serem “virgens”, com pedras e impróprios para agricultura, numa área acidentada e precária, com mato e infestantes, não havendo qualquer interesse de terceiros no arrendamento ou aquisição daqueles terrenos.

 

Não obstante a gratuitidade alegada pela Requerente, o sócio gerente da mesma assume, como “contrapartida”, os investimentos da sociedade G... na transformação e melhoria daqueles terrenos, incluindo infraestruturas, para cultivo e produção de kiwi, atendendo às “aptidões” específicas daqueles terrenos para essa cultura.

 

Na falta de interesse de terceiros no arrendamento, atendendo às características dos prédios rústicos em causa (que também foram abordadas pelas testemunhas inquiridas no processo), o sócio gerente da Requerente expressou que, pelo menos, com a “cedência” dos terrenos à sociedade  G... poderia evitar custos com a manutenção e limpeza daqueles terrenos.

 

Contudo, o Tribunal Arbitral não se pode olvidar de apontar algumas incongruências e insuficiências nas alegações da Requerente e, em particular, nas declarações de parte produzidas no processo.

 

Em primeiro lugar, a Requerente alega e procura demonstrar que os terrenos em causa não eram aptos a agricultura; mas, afinal tinham aptidões específicas que favorecem a produção de kiwi. 

 

Por outro lado, o sócio gerente da Requerente também admitiu que, em alternativa, aqueles prédios rústicos seriam adequados para “pastorícia” e “floresta”. 

 

Então, pese embora as alegadas características primitivas dos terrenos em causa, os mesmos mantinham virtualidades que permitiam eventualmente a exploração onerosa de atividades económicas (não apenas agrícolas) em benefício da Requerente.

 

Em segundo lugar, o sócio gerente da Requerente alega, conforme referido acima, que a utilização dos terrenos pela sociedade G... é gratuita. 

 

Contudo, assume alguma sinalagmaticidade da operação, quando concebe os avultados investimentos da sociedade  G... naqueles terrenos como valorização permanente dos mesmos e como beneficio para a Requerente.

 

Em terceiro lugar, o sócio gerente da Requerente expressou, também, que a Requerente não dispõe atualmente de qualquer exploração agrícola e que apenas perspetiva eventual projeto de “agroturismo”. Sem prejuízo, admite que adquiriu e conserva vários terrenos envolventes aos prédios rústicos “cedidos” à sociedade G..., com o objetivo de “proteção” do pomar de kiwi daquela sociedade.

 

O sócio gerente da Requerente esclareceu ainda que as despesas da Requerente, que não tem pessoal empregado, são referentes à manutenção dos terrenos, em especial dos terrenos envolventes aos prédios rústicos cedidos à sociedade G..., não concretizando outras despesas não relacionadas com a atividade daquela sociedade. 

 

Ou seja, a Requerente suportou custos com a atividade agrícola da sociedade G..., sem qualquer retorno registado na esfera da Requerente, o que contraria os princípios da racionalidade económica e da sã gestão empresarial.

 

Se, como declara o sócio gerente da Requerente, o comodato visaria evitar custos com a limpeza dos terrenos cedidos, não se compreende que custos são efetivamente evitados ao proceder à aquisição e limpeza dos terrenos adjacentes, com o objetivo declarado de “proteção” do pomar cujos terrenos cedeu à sociedade G... . 

 

Em quarto lugar, notamos, também, que o sócio gerente da Requerente mencionou, no decurso das suas declarações de parte, que os terrenos foram “alugados” à sociedade G..., através de “arrendamento” por “tempo indeterminado”. Embora não seja exigível que o mesmo conheça e empregue termos jurídicos corretamente, a utilização de tais termos, em linguagem comum, pode fazer supor uma materialidade prática diferente da resultante do enquadramento jurídico do contrato de comodato alegado nos autos, o que também faz supor a falta de independência, bem como uma estreita relação e alguma confundibilidade entre as empresas e as respetivas atividades.

 

Afigura-se, aliás, que a Requerente terá meramente suposto a falta de interesse de terceiros independentes, porque “à partida ninguém procura um terreno” com aquelas alegadas condições não aráveis – conforme declarações prestadas pelo sócio gerente da Requerente –, não demonstrando a procura infrutífera ou essa falta efetiva de interessados em eventual arrendamento (ou aquisição) daqueles terrenos.

 

Na verdade, a própria Requerente, embora alegue essa falta de interesse, admite a hipótese de arrendamento dos terrenos, mas com valor “diminuto” de renda, de onde decorre que, afinal, o arrendamento não seria impossível.

 

Ora, não haveria supostamente interessados no arrendamento rural daqueles prédios, nem a longo prazo, para fins de agricultura, pecuária ou floresta; mas, não se compreende como, em condições normais, a sociedade G... arriscaria um investimento avultado naqueles terrenos (que supostamente outros não teriam interesse em explorar), ao abrigo de um mero contrato temporário de comodato, com duração limitada de 10 anos, perdendo todo o investimento em infraestruturas e benfeitorias (que supostamente outros não teriam interesse em efetuar) com o termo do contrato.

 

Afigura-se, assim, uma situação de algum facilitismo e aproveitamento da relação familiar no âmbito da atividade das empresas em causa, quase como investimento “comum”, sem descurar o futuro sucessório entre os mesmos, como sugestionado pelo sócio gerente da Requerente em declarações prestadas ao Tribunal Arbitral.

 

Em quinto lugar, a Requerente alega que o comodato abrange apenas os terrenos em causa, sem qualquer infraestrutura ou equipamento; mas, o sócio gerente da Requerente não afastou a possibilidade de os terrenos incluírem, por exemplo, um pavilhão construído pela própria Requerente e a ser utilizado aparentemente pela sociedade G..., conforme defendido pela Requerida.

 

Face à prova produzida, o Tribunal Arbitral considera que a Requerente não demonstrou suficientemente que apenas a cedência gratuita daqueles prédios rústicos, através de comodato, refletiria as condições normais decorrentes do princípio da plena concorrência consagrado no âmbito do regime de preços de transferência.

 

Relativamente às declarações de parte do sócio gerente da Requerente e aos depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente, o Tribunal Arbitral assimila-os como genericamente credíveis, mas não pode ignorar as incongruências explanadas, nem as insuficiências probatórias que não sustentam as alegações da Requerente.

 

Desde logo, a Requerente não demonstrou a total falta de interesse ou impossibilidade no arrendamento rural ou outras formas onerosas de exploração remunerada ou rentabilização dos terrenos para fins agrícolas ou agroflorestais, independentemente do eventual valor diminuto da renda, nem a total inaptidão e o reduzido valor económico dos prédios rústicos objeto de contrato de comodato, conforme exposto.

 

Acresce que a prova por documentos, através de fotografias não datadas, não identificáveis ou relacionáveis com os terrenos em causa, não assumem per si especial relevância na apreciação do Tribunal Arbitral quanto às características dos terrenos e alegados investimentos da sociedade G..., os quais foram genericamente relatados pelas testemunhas inquiridas. 

 

A Requerente também não demonstrou especificamente qualquer causa não relacionada com a atividade da sociedade G... para todas e cada uma das despesas incorridas pela Requerente com “atividade agrícola” que não exerce. A Requerente não produziu prova bastante que permita concluir que as despesas incorridas são (total ou parcialmente) alheias à atividade da sociedade G... . Ou seja, a fruição dos ativos em causa foi atribuída à sociedade comodatária, que recolhe os respetivos proveitos económicos, e a Requerente, sem rendimentos, assumiu despesas associadas ou relacionadas (direta ou indiretamente) a esses mesmos ativos. 

 

Conforme exposto no Relatório de Inspeção Tributária, analisadas as demonstrações financeiras elaboradas pela Requerente para o período em exame e pelos procedimentos inspetivos realizados, os resultados foram negativos, registam-se múltiplas despesas e o montante declarado de vendas e serviços prestados no período foi nulo, inscrevendo unicamente como rendimentos juros obtidos de depósito a prazo.

 

Considerando o Relatório de Inspeção Tributária, afigura-se que a Requerida demonstrou (i) a existência de relações especiais, (ii) que os termos e condições da operação realizada entre as entidades relacionadas não respeitam o princípio de plena concorrência, (iii) que esse afastamento do princípio de plena concorrência se deveu à existência dessas relações especiais, e que (iv) por se terem acordado condições diferentes das que se verificariam entre entidades independentes, o resultado fiscal também se revelou diferente, através da exposição de razões de facto e de direito que justificaram a decisão de forma acessível, clara, congruente, suficiente e completa.

 

Competia à Requerente contradizer e demonstrar com  elementos objetivos (não apenas o contrato de comodato e a prova produzida nos autos, mas, também, por exemplo, estudos de mercado, relatórios de peritagem, etc.) que suportassem inequivocamente a gratuidade praticada e os demais termos e condições da operação em causa, incluindo que terrenos não teriam qualquer interesse ou aptidão económica e que não poderiam ser ou não haveria mercado para serem arrendados ou explorados onerosamente, nomeadamente por terceiros independentes.

 

Na ausência de prova bastante que suporte as alegações da Requerente, é forçoso concluir que o regime de preços de transferência se aplica à operação em causa.

 

Tratando-se de uma operação com motivações e características específicas, que não se afiguram replicar em operações comparáveis com terceiros independentes, o critério alternativo aplicado pela Requerida também se parece justificado. 

 

Não tendo sido produzida prova bastante que permita concluir que as despesas consideradas pela Requerida não são referentes (ou apenas parcialmente e em que medida) a despesas relacionadas com a atividade da sociedade G..., cujos custos foram assumidos pela Requerente com o propósito declarado de proteger o pomar e os investimentos da sociedade G..., sem qualquer rendimento imediatamente associado na esfera da Requerente, entendemos que não substituem razões para afastar o critério utilizado pela Requerida no Relatório de Inspeção Tributária.

 

Em particular, o método do preço comparável de mercado pressupõe a comparação do preço praticado numa operação vinculada com o preço praticado, em circunstâncias comparáveis, numa operação não vinculada, o que no caso não se afigura possível.

 

Desde logo, a Requerente não apresenta operações comparáveis com terceiros independentes. Nem se configura o comodato em causa, atendendo às suas especificidades, como benfeitorias associadas, como comparável a qualquer outra situação de arrendamento rural com terceiros independentes.

 

Acresce que, pese embora o argumentário constante no PPA, a própria Requerente, após junção de informação da base de dados da Requerida, admite que não consta nenhum contrato de arrendamento rural na União de Freguesias de ..., ... e ..., onde se situam os prédios rústicos cedidos gratuitamente à sociedade G..., sendo que os valores dos contratos de arrendamento no distrito de Viana do Castelo são bastante díspares, incluindo contratos com rendas de cerca de um euro por hectare/ano a mil e oitocentos euros por hectare/ano, o que coloca em causa os fundamentos que a própria Requerente invocou para defender que a Requerida deveria aplicar o preço “justo” de arrendamento.

 

Não obstante, a prova produzida nos autos não permite, com convicção, comprovar os factos alegados pela Requerente. 

 

Na impossibilidade de aplicação do método de preço comparável, como a própria Requerente aparenta admitir posteriormente nos autos, o método alternativo aplicado pela Requerida afigura-se justificado, atento o escopo lucrativo da Requerente. 

 

As alegações genéricas e a diminuta prova produzida pela Requerente não podem assim surtir o efeito de demover o critério aplicado, considerando a assunção de despesas associadas ou relacionadas com a atividade e exploração dos terrenos pela sociedade G... e a ausência de rendimentos respetivos na esfera da Requerente.

 

Em face do exposto, verifica-se que a operação em causa se afasta das condições que seriam praticadas entre entidades independentes, configurando-se uma violação do artigo 63.º do CIRC. Não tendo a Requerente logrado cumprir com o ónus da prova que lhe incumbia, a correção efetuada pela AT é legítima, bem como o critério alternativo aplicado, na impossibilidade de recurso ao critério do preço comparável, devendo improceder o pedido de anulação do ato tributário impugnado nos autos.

 

IVA

 

Atendendo ao objeto dos autos, importa ainda proceder a um breve enquadramento do regime aplicável em sede de IVA no período de tributação de 2020.

 

Nos termos do artigo 1.º do CIVA, estão “sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado” as “prestações de serviços efectuadas no território nacional”.

 

Em concreto, o comodato poderá configurar uma operação sujeita a IVA, na medida em que as “prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma” encontram-se abrangidas pelo artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CIVA, assimilando-se, para estes efeitos, como “prestações de serviços a título oneroso”.

 

Quando o comodante seja sujeito passivo de IVA, o “valor normal (…) do serviço” para determinação do valor tributável da operação é o “preço (…) que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efectuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a (…) prestador independente, no tempo e lugar em que é efectuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter (…) o serviço ou um (…) serviço similar”. Na falta de serviço similar, “o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços”, nos termos do artigo 16.º, n.ºs 2, alínea c) e 4 do CIVA.

 

Cumpre afirmar que o regime de preços de transferência em sede de IRC não implica automaticamente correções em sede de IVA, aplicando-se um regime jurídico próprio. 

 

Contudo, considerando a factualidade provada nos autos, afigura-se que o “comodato” em causa corresponde a um “prestação de serviços”, para efeitos de IVA, que não se assemelha a mera “locação” ou disponibilização passiva da “nua” propriedade da Requerente, mas sim a disponibilização de terrenos para exploração dos mesmos, incluindo equipamentos, como seja um pavilhão, e fruição dos respetivos frutos pela sociedade G... .

 

Acresce que a Requerente reconhece contrapartidas no âmbito do comodato, o que desvia a alegada gratuitidade do mesmo, bem como assume expressamente custos operacionais com a aquisição e limpeza de terrenos adjacentes aos cedidos à sociedade G... para proteção de investimentos alheios e do pomar cultivado pela referida sociedade, cujos elementos descaracterizam a operação como equivalendo a mera locação, excluindo-se, por conseguinte, a alegada isenção.

 

Não obstante o contrato de comodato celebrado entre as partes, e conforme jurisprudência nacional e eurocomunitária em matéria de isenção da locação em sede de IVA, a operação em causa não preenche os requisitos para poder beneficiar da isenção de IVA constante no artigo 9.º, alínea 29) do CIVA, por não se tratar de mera colocação passiva à disposição dos prédios pela sociedade G..., conforme Relatório de Inspeção Tributária.

 

Improcedendo a pretensão anulatória, os atos impugnados na ordem jurídica mantêm-se inalterados, nos termos legais.

 

VI.   Decisão

 

Face ao exposto, decide este Tribunal Arbitral:

 

a)      Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)      Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

VII.    Valor

 

Fixa-se o valor do processo em 19.044,99 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII.   Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.224,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de junho de 2025

 

 

A Árbitra

 

 

 

Dra. Adelaide Moura