Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1223/2024-T
Data da decisão: 2025-06-13  IRS  
Valor do pedido: € 16.655,81
Tema: IRS - Regime de tributação dos residentes não habituais - efeito da apresentação extemporânea do pedido de inscrição.
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SUMÁRIO: I - Não resulta do artigo 16.º do Código do IRS que a aplicação do regime fiscal de residente não habitual dependa de ato de reconhecimento por parte da Administração Fiscal, pelo que, o ato de inscrição do sujeito passivo como residente não habitual tem natureza meramente declarativa, mais devendo a sua constituição reportar-se à data de verificação dos respetivos pressupostos materiais. II - A apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº. 10 do artigo 16.º, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro, i. e. a partir do ano de inscrição como residente não habitual. III - Esse regime de tributação é aplicável aos rendimentos auferidos no ano de 2023, no caso em que a inscrição como residente se tenha efetuado em 2022 e o pedido de inscrição tenha sido apresentado em Janeiro de 2024.

 

DECISÃO ARBITRAL

«A..., NIF..., e B..., NIF..., (doravante designados por Requerentes), casados, com domicílio na Rua ..., n.º..., ...-... Caldas da Rainha, solicitaram a constituição de Tribunal Arbitral e deduziram pedido de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

 

 

I.       Relatório

O pedido formulado pelos Requerentes consiste na declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2024 ... referente ao ano de 2023, no valor total de € 16.655,81.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 31 de janeiro de 2025.

Em 3 de março a Requerida apresentou a sua Resposta, tendo suscitado matéria de excepção sobre a qual os Requerentes se pronunciaram em 25 de março de 2025.

Por despacho deste Tribunal foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.

 

Posição da Requerente

No pedido de pronúncia arbitral os Requerentes alegam que:

i)           Moraram na Suíça entre 1990 e 2022 e aí mantiveram a sua residência fiscal durante esse período. Fixaram a sua morada em Portugal em maio de 2023, tendo comprado um apartamento para o efeito;

ii)         Segundo as indicações da sua contabilista, e representados por esta, inscreveram-se como residentes fiscais em Portugal em dezembro de 2022;

iii)       Deixaram à sua contabilista todas as instruções e documentos necessários para pedir o seu registo como residentes não habituais em janeiro de 2023. Ainda assim, o pedido de inscrição dos Requerentes como residentes não habituais só foi apresentado à Administração Fiscal pela contabilista dos Requerentes em janeiro de 2024;

iv)        Os Requerentes foram notificados do projeto de decisão de indeferimento do pedido de inscrição como residentes não habituais por ofícios não datados, recebidos em fevereiro de 2024. Pronunciaram-se em sede de audição prévia no dia 16 de fevereiro de 2024, instruindo as suas pronúncias com os documentos necessários para a sua fundamentação;

v)          Até à presente data, ainda não houve decisão dos pedidos de inscrição dos Requerentes como residentes não habituais e os Requerentes não receberam qualquer informação sobre o andamento do processo;

vi)        No dia 19 de junho de 2024, os Requerentes apresentaram a respetiva Declaração de IRS (modelo 3) referente ao ano de 2023, composta por um anexo G, um anexo H e dois anexos J;

vii)      No anexo G, os Requerentes declararam a venda de um imóvel, realizada no dia 4 de maio de 2023, pelo montante de € 110.000,00. O imóvel tinha sido adquirido no dia 8 de março de 1998 por € 19.951,92, tendo sido declaradas despesas de € 6.150,00;

viii)    No anexo H, os Requerentes declaram despesas de saúde isentas de IVA ou sujeitas à taxa reduzida no montante total de € 3.884,88 e rendimentos de pensões nos valores de € 21.443,38 e € 18.251,75;

ix)        Os Requerentes foram notificados da Liquidação n.º 2024..., datada de 20 de julho de 2024, ora impugnada, pelo montante de € 16.655,81;

x)          Quando os Requerentes regressaram a Portugal e cá fixaram a sua residência fiscal, já não eram residentes em território português desde 1990, ou seja, há muito mais do que os cinco anos previstos no artigo 16.º n.º 8 do Código do IRS. Consequentemente, adquiriram o direito a ser tributados como residentes não habituais ao abrigo do disposto no n.º 9 do citado artigo 16.º;

xi)        É certo que a sua contabilista, por erro seu, fez a inscrição dos Requerentes como residentes fiscais em Portugal em dezembro de 2022 e só apresentou o pedido de inscrição como residentes não habituais em janeiro de 2024. No entanto, os Requerentes só fixaram efetivamente a sua residência fiscal em Portugal em maio de 2023. Além disso, a inscrição como residente não habitual não tem efeitos constitutivos;

xii)      O direito do contribuinte a ser tributado como residente não habitual resulta ope legis do artigo 16.º, n.º 9, do Código do IRS, desde que se verifiquem os requisitos elencados no n.º 8 do mesmo preceito, conforme resulta da jurisprudência arbitral, designadamente, o processo n.º 777/2020-T:

«Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo. Pelo contrário, o n.º 6 é perfeitamente expresso e inequívoco ao dizer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores. Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem dois requisitos, não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.

São esses requisitos:

·     Ter-se o sujeito passivo tornado fiscalmente residente num determinado ano;

·     Não ter o sujeito passivo sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual é requisito para a aplicação do regime.»

xiii)    Consequentemente, os Requerentes devem ser tributados como residentes não habituais pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residentes em território português, ao abrigo do disposto no artigo 16.º n.os 8 e 9, do Código de IRS. Assim, a liquidação de IRS aos Requerentes sobre os seus rendimentos de 2023 deve ser efetuada aplicando o regime dos residentes não habituais. No entanto, não foi isso que se verificou;

xiv)     Com efeito, a liquidação ora impugnada, apurou aos Requerentes um rendimento global de € 75.558,83 37. Face à declaração de IRS apresentada pelos Requerentes constata-se que esse montante resulta da soma de 50 % da mais-valia efetuada pelos Requerentes, após aplicação do coeficientes de desvalorização da moeda ao valor de aquisição e subtração do valor de despesas e encargos, com os rendimentos de pensões obtidos pelos Requerentes;

xv)       A este montante foi aplicada a dedução específica prevista no artigo 53.º, n.º 1, do Código de IRS para pensões (isto é, 2 x € 4.104,00 = € 8.208,00), desse modo apurando-se o rendimento coletável de € 67.350,83. Aplicando-se o quociente familiar e as taxas de acordo com o disposto nos artigos 68.º e 69.º do Código de IRS, encontra-se a coleta de € 18.321,58;

xvi)     À coleta são feitas as deduções relativas a despesas de saúde dos Requerentes e do benefício municipal aplicável, resultando no imposto apurado de € 16.655,81;

xvii)   A liquidação de IRS sobre os rendimentos dos Requerentes auferidos no ano de 2023 foi apurada sem aplicação do regime dos residentes não habituais, pese embora tivessem direito a ser tributados ao abrigo desse regime;

xviii) Se os Requerentes fossem tributados de acordo com o regime dos residentes não habituais, como é seu direito, o imposto apurado seria significativamente inferior. Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 72.º, n.º 12, do Código de IRS à data em 2023:

Os residentes não habituais em território português são ainda tributados à taxa de 10 % relativamente aos rendimentos líquidos de pensões, incluindo os da categoria H e os previstos na alínea d) do n.º 1 e subalíneas 3) e 11) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º, quando, pelos critérios previstos no n.º 1 do artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português, na parte em que os mesmos, quando tenham origem em contribuições, não tenham gerado uma dedução para efeitos do n.º 2 do artigo 25.º.

xix)     Recalculando-se a coleta de 2023 à luz deste preceito, a mesma fixar-se-ia em € 9.014,96;

xx)       A liquidação impugnada é ilegal, por vício de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, devendo ser anulada e substituída por outra que aplique o regime dos residentes não habituais, de acordo com o disposto nos artigos 16.º, n.os 8 e 9, e 72.º, n.º 12, ambos do Código do IRS.

 

Posição da Requerida

A Requerida apresentou contestação, tendo-se defendido por exceção e por impugnação:

i)           Nos termos do disposto no artigo 2.º do RJAT decorre que a competência do CAAD se circunscreve à declaração de ilegalidade de atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;

ii)         Como taxativamente decorre do PPA, o que os Requerentes pretendem com a presente lide é que lhes seja reconhecido o estatuto de residente não habitual com efeitos a 2023. Pois só depois de ser reconhecido/concedido/aplicado o estatuto de RNH é que a liquidação impugnada poderia ser anulada;

iii)       Porém, nos termos da lei, o reconhecimento pretendido está excluído do âmbito da competência material deste Tribunal Arbitral, não podendo, assim, este conhecer, e/ou pronunciar-se sobre o mesmo. A título meramente exemplificativo, neste mesmo sentido, e a propósito de questão similar, pronunciou-se este Tribunal Arbitral no âmbito dos processos 796/2022-T, 906/2023-T e 651/2024-T, a cuja fundamentação e conclusões se adere in totum:

«(…) nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data do pedido, o direito a ser tributado como residente não habitual adquiria-se com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da AT; O que pressupõe a prática do ato administrativo correspondente e que é, necessariamente, estranho e independente do ato tributário de liquidação, tendo o Requerente sido notificado da possibilidade de reação desta decisão, através de ação administrativa nos termos do artigo 50º e artigo 58.º/1, al.b) do CPTA.

Sendo, assim, o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de aplicação do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais aos rendimentos auferidos pelo Requerente que qualificam para o regime dos residentes não habituais arbitrais.

Porquanto, como se disse e aqui se repete, se trata de questão tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação invocado”.

(…)

Para a composição do litígio o Tribunal necessita de apreciar se o Requerente deveria ou não ser considerado residente não habitual no exercício de 2022, se a decisão da AT que não lhe reconheceu tal estatuto merece ou não censura, questões que ficam a montante da liquidação.

iv)        Neste mesmo sentido também já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão 718/2017:

«(…) o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constitu[ir] um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo (…).

A relação entre os dois atos reside apenas na dependência que intercede entre o efeito produzido o desagravamento do imposto e a circunstância que lhe dá causa o reconhecimento administrativo daquele estatuto, não sendo tal conclusão, de resto, contrariada pelo disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 54.º da Lei Geral Tributária.»

v)          Desta forma, tendo em conta que os únicos vícios ora imputados à liquidação se prendem com a apreciação do preenchimento dos pressupostos para que lhes sejam deferidos os pedidos de inscrição como residente não habitual, é por demais evidente a incompetência material, do CAAD, para apreciar os alegados vícios/ilegalidades que, segundo invocam, ferem de ilegalidade a liquidação;

vi)        Os mesmos argumentos que sustentam a incompetência absoluta do CAAD supra suscitada aplicam-se mutatis mutandis à impropriedade do meio processual, que igualmente se suscita. Ou seja, se o indeferimento do pedido de inscrição como RNH e/ou a condenação à prática do ato que entendem ser devido, só pode ser objeto de impugnação junto do tribunal tributário por via da ação administrativa prevista e regulada no CPTA, como se viu, é inquestionável que o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelos Requerentes não é o meio próprio para fazer valer a sua pretensão. Porquanto existe erro na forma de processo sempre que a forma processual escolhida não corresponde à natureza do processo;

vii)      Ainda que as exceções invocadas não procedam, sempre se teria de concluir que os Requerentes não preenchem os pressupostos para que o pedido de inscrição como residentes não habituais possa proceder como peticionado;

viii)    Compulsado o cadastro fiscal dos Requerentes verificámos que a respetiva residência fiscal em Portugal data de 19/12/2022. Mais se constatou que os Requerentes apresentaram a respetiva declaração de rendimentos do ano de 2022, onde declaram a correspondente residência no nosso país;

ix)        Para que o pedido aqui formulado pudesse proceder, por força do estatuído no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, afigura-se imprescindível que os Requerentes, não tenham sido residentes em Portugal nos cinco anos anteriores a 2023, o que não se verifica in casu, tendo em conta que os Requerentes foram residentes em Portugal em 2022;

x)          Da análise efetuada ao cadastro, e pese embora os Requerentes nada digam a este propósito, igualmente resultou que o Requerente marido constou como residente em Portugal até 11/09/2017;

xi)        Facto que igualmente consubstancia o não preenchimento dos pressupostos para que o Requerente A... possa beneficiar do regime peticionado, nos termos do disposto do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS. Considerando que o Requerente era residente em Portugal no 5.º ano anterior a 2022, em 2017, ano em que se tornou, novamente, residente em território português;

xii)      É, assim, por demais evidente que não assiste a razão aos Requerentes, devendo a presente ação arbitral ser julgada improcedente, absolvendo-se a Requerida dos pedidos.

Os Requerentes pronunciaram-se sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida, tendo considerado que a impugnação não versa sobre o indeferimento do pedido de inscrição como RNH», nem se pede a condenação da Requerida à prática do mencionado ato de inscrição dos Requerentes como residentes não habituais, atribuindo-lhes o direito a serem tributados em conformidade nos anos vindouros.

Pelo que o pedido de pronúncia arbitral não é comparável às decisões arbitrais e ao Acórdão do Tribunal Constitucional citados pela Requerida, sendo o tribunal arbitral materialmente competente para conhecer da ilegalidade da liquidação controvertida.

 

II.        Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído e, como se verá melhor infra, é materialmente competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

Não foram identificadas nulidades ou irregularidades.

 

III.      Prova

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

a)          Os Requerentes residiram na Suíça entre 1990 e 2022. Concretamente, entre 01.11.1990 e 01.12.2022 residiram nas localidade de ... (Suíça);

b)         Em 24.10.2022, os Requerentes registaram, junto das autoridades suíças, a sua saída para Portugal, com efeitos a partir de 01.12.2022;

c)          O Requerente A... não atualizou a sua residência fiscal em Portugal, tendo permanecido, até 11.09.2017, no registo cadastral da AT como fiscalmente residente em Portugal. Nessa data, o cadastro foi alterado para não residente, com nomeação de um representante fiscal em Portugal;

d)         Em Dezembro de 2022, os Requerentes atualizaram os seus dados cadastrais, tendo-se registado como residentes fiscais em Portugal;

e)          Em 12.05.2023 os Requerentes adquiriram, para fins habitacionais, um imóvel no concelho de Caldas da Rainha (“fracção autónoma designada pela letra “F” - correspondente ao segundo andar direito para habitação, tipologia T3 - garagem na cave”, conforme escritura de compra e venda);

f)          Em 29.01.2024 os Requerentes submeteram o pedido de inscrição como residentes não habituais, com efeitos para o ano de 2023. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificou os Requerentes do projeto de decisão de indeferimento desse pedido:

g)         Os Requerentes exerceram o direito de audição prévia, não tendo ainda sido notificados da decisão final da AT;

h)         Em 19.06.2024, os Requerentes apresentaram a respetiva Declaração de IRS referente ao ano de 2023, de que constaram os seguintes elementos:

·     Transmissão onerosa de um imóvel

 

 

 

 

·     Despesas de saúde, formação e educação e encargos com imóveis e com lares

 

·     Rendimentos de pensões obtidas no estrangeiro

i)           Os Requerentes foram notificados da liquidação n.º 2024 ... referente ao ano de 2023 e à declaração por si entregue , de que resultou uma coleta de € 16.655,81:

 

 

 

 

 

 

j)           O apuramento da coleta foi realizado sem considerar o regime dos resistentes não habituais (RNH).

Com relevância para a apreciação do mérito, não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

IV.      Do Mérito 

Das exceções suscitadas

Considera a AT que o pedido dos Requerentes se circunscreve ao reconhecimento do estatuto de RNH e à sua consequente aplicação na liquidação em causa. O estatuto situa-se a montante da liquidação, dela constituindo um ato autónomo e cuja apreciação está fora do âmbito da competência material do tribunal arbitral.

O reconhecimento desse direito à tributação pelo regime dos RNH é sindicável através de uma ação administrativa, nos termos do artigo 50.º e artigo 58.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativo (CPTA).

E se o indeferimento do pedido de inscrição como RNH ou o pedido de condenação à prático do ato de reconhecimento do direito à tributação pelo regime dos RNH apenas pode ser intentado por via da ação administrativa, o pedido de pronúncia arbitral constitui um meio processual impróprio.

A Requerente contestou este entendimento, salientando que o objeto do pedido não se reporta ao reconhecimento do estatuto de RNH. Este é apenas instrumental quanto ao pedido de anulação parcial do ato de liquidação de IRS. Sendo que a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributados recai no âmbito da competência material do tribunal arbitral.

Vejamos.

A competência material é primeiramente conformada pelo pedido e a causa de pedir, dados que estes circunscrevem a apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral.

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD está limitada às matérias consagradas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT):

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; 

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro).

Retomando os autos, a questão aqui colocada versa sobre a impugnação dos atos de liquidação de IRS do ano de 2023, relativamente à qual os Requerentes alegam não ter sido permitida a aplicação do regime de RNH, malgrado o alegado cumprimento dos respetivos requisitos substantivos.

O pedido de inscrição como RNH foi apresentado e mantém-se pendente de decisão final por parte da AT.

No pedido de pronúncia arbitral os Requerentes não solicitam o deferimento desse pedido de inscrição como RNH. Ou que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o seu mérito. O que, a verificar-se, evidenciaria a manifesta incompetência material do tribunal arbitral.

Compreende-se, como bem nota a Requerida, que o pedido de inscrição precede a atribuição do estatuto de RNH. E que este precede as declarações de IRS e consequentes liquidações a cargo da AT.

Todavia, a causa de pedir subjacente ao pedido de impugnação da liquidação de IRS, assenta na alegação de que o regime de RNH opera ope legis uma vez que se verifiquem cumpridos os requisitos materiais constantes do artigo 16.º do Código do IRS.

Dito de outra forma, ao tribunal arbitral é pedida a apreciação da legalidade de uma liquidação de IRS, suscetível de ter desconsiderado a aplicabilidade direta do regime de RNH.

Há uma ampla jurisprudência arbitral sobre esta matéria, designadamente, nos processos n.º 188/2020-T, 815/2021-T e 777/2020-T. Neste último, podemos consultar que:

«Assim, o que interessa aferir nos presentes autos é apenas se o registo como “residente não habitual,” previsto no n.º 8 (à data dos factos) do art.º 16.º, constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respetivo.

Atente-se na redação do n.º 7 do art.º 16º: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.»

Termos em que o pedido de impugnação judicial constitui o meio idóneo à sindicabilidade do ato de liquidação de IRS, sendo o tribunal arbitral materialmente competente.

 

Da legalidade da liquidação de irs de 2023

Esta matéria já foi apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), não se verificando qualquer fundamento para decidir em sentido divergente, atenta a identidade da matéria de facto e o dever do intérprete em contribuir para a unidade de sentido do Direito (conforme o n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil).

 

O artigo 16.º do Código do IRS estabelece o seguinte enquadramento normativo:

8 -   Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 e 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 -   O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato de inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.

 

A obrigatoriedade de inscrição como RNH esta claramente formulada.

A questão central em apreciação consiste em saber se o regime de tributação dos RNH é aplicável após ou independentemente do deferimento do pedido por parte da AT.

Para a Requerida, a verificação dos pressupostos materiais efetua-se mediante a apreciação do pedido de inscrição do sujeito passivo. O deferimento desse pedido constitui condição de aplicabilidade do regime de RNH.

Já para a Requerente, o pedido de inscrição constitui um meio instrumental, que em nada contende com a aplicabilidade direta do regime de RNH, sempre que os correspondentes requisitos materiais se encontrem cumpridos.

Do probatório resulta que em Dezembro de 2022 os Requerentes se inscreveram como residentes fiscais em território nacional. E que nos 5 anos anteriores não foram havidos como residentes em território nacional.

Pese embora o Requerente A... tenha tardiamente promovido a atualização do seu registo como não residente, a matéria de facto junta aos autos é suficiente para permitir a conclusão de que a sua residência fiscal se localizava, desde 1990, na Suíça.

Da conjugação dos n.ºs 8 e 9 do citado artigo 16.º, resulta que do cumprimento destes 2 requisitos substantivos - inscrição como residente fiscal em Portugal em 2022 e inexistência de residência fiscal em Portugal nos últimos 5 anos - decorre a aquisição do direito a ser tributado pelo regime de RNH pelo período de 10 anos consecutivos.

No caso em apreço, os Requerentes apenas solicitaram a sua inscrição em 29.01.2024. Quando o poderiam ter efetuado em até 31.03.2023.

Ou deveriam ter efetuado?

E qual a consequência do cumprimento tardio dessa obrigação de inscrição? Será a inaplicabilidade do regime de RNH apenas para o ano de 2022 ou para todos os anos seguintes?

Conforme resulta do Acórdão do STA de 29.05.2024 (processo n.º 0842/23.9BESNT):

«Na verdade, o transcrito preceito legal apenas estabelece uma data-limite para o cumprimento da obrigação acessória que onera o contribuinte, sobre o qual impende o dever de inscrição da sua qualidade de residente não habitual, inscrição que sempre foi obrigatória para aplicação do regime fiscal, como resulta da redacção inicial da norma, que dispunha “7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos” (Aditado pelo artigo 4º do D.L. nº 249/2009, de 23-09, produzindo efeitos desde 01/01/2009).

Deste modo, temos que o acto de inscrição como residente não habitual é condição de aplicação do respectivo regime fiscal, sendo através desse acto que a AT tem a possibilidade de verificar e controlar os pressupostos legais da atribuição desse estatuto e dos respectivos benefícios fiscais.

No entanto, não resulta das normas supra transcritas que a aplicação do regime fiscal - residente não habitual - dependa de acto de reconhecimento por parte da AT (art. 5º do EBF), pelo que o acto de inscrição do sujeito passivo como residente não habitual tem natureza meramente declarativa nos termos propostos pela ora Recorrente.

Por outro lado, nos termos do artigo 12º do EBF, “O direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respectivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo.»

Não dispondo o Código do IRS sobre a consequência do incumprimento extemporâneo da obrigação de inscrição, importa determinar se deste resulta efeito preclusivo sobre o exercício do direito (à tributação segundo as regras por que se rege o regime de tributação dos RNH) em determinado período.

Retomando o referido Acórdão do STA:

«Como já ficou dito noutra sede, o regime fiscal do residente não habitual não prevê qualquer consequência para o não exercício atempado da inscrição como residente não habitual, mas não podemos deixar de salientar que o regime fiscal embora previsse um prazo de 10 anos, o mesmo inicialmente era renovável (nº 7 do artigo 16º do CIRS, na redacção inicial “7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção -Geral dos Impostos”) e não era um prazo contínuo, já que o direito podia ser gozado de forma interpolada caso o sujeito passivo deixasse de reunir os requisitos de residente em território nacional (nº 12 do artigo 16º do CIRS).

Nesta medida, a partir do momento em que estão reunidos os requisitos para a concessão do estatuto de residente não habitual previstos no nº 8 do artigo 16º do CIRS, os quais são aferidos em função do ano de inscrição como residente (no caso 2018), a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº 10, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro, ou seja, só é aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual.

Tal equivale a dizer que nada obsta à inscrição, em 2022, da ora Recorrente como residente não habitual, ainda que a sua inscrição como residente tenha sido feita em 2018 (…)».

No caso em apreço, tal significa que pese embora o pedido de inscrição tenha sido realizado em 2024, não fica afastada a aplicabilidade do regime de RNH aos rendimentos auferidos em 2023 e nos anos seguintes. Sabendo-se que a contagem do período de 10 anos consecutivos se inicia no ano de 2022, inclusive.

Por fim, e regressando brevemente à apreciação das exceções suscitadas pela Requerida, os citados acórdãos do STA, ao assentarem na aplicabilidade direta do regime dos RNH e no efeito declarativo do pedido de inscrição, permitem concluir pela idoneidade da impugnação como meio de sindicabilidade do ato de liquidação de IRS controvertido e da competência do tribunal arbitral para a apreciação do mérito do pedido.

Face ao exposto, conclui-se que a liquidação de IRS do exercício de 2023 teria de atender à aplicabilidade do regime de tributação dos RNH.

Os Requerentes alegam que da aplicação desse regime resultaria uma coleta de € 9.014,96, sendo certo que formulam um pedido de anulação integral da liquidação controvertida e sua substituição por outra conforme com o regime de tributação dos RNH.

Os tribunais arbitrais não dispõem de competência para determinar os valores apropriados para os atos de liquidação que invalidam. Não lhes cabe substituir-se à Administração Fiscal, que é o órgão competente para a prática dos atos de apuramento do rendimento tributável e de liquidação do IRS.

Caberá à AT, após a anulação da liquidação impugnada, refazer tais cálculos e emitir um novo ato de liquidação.

 

 

V.        Decisão

Face ao exposto, decide-se julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a liquidação adicional de IRS controvertida no valor de € 16.655,81.

 

VI.      Valor do Processo 

Fixa-se ao processo o valor de € 16.655,81, indicado pela Requerente, respeitante ao montante da liquidação de IRS impugnada, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VII.    Custas 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, a cargo da Requerida.

 

13 Junho de 2025

 

José Luís Ferreira