Sumário
I. O artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
II. A Derrama Municipal, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, é um imposto que incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes em território nacional, bem como não residentes com estabelecimento estável em Portugal, que aqui exerçam atividade comercial, industrial ou agrícola.
III. Os rendimentos gerados fora do território nacional, nomeadamente rendimentos de juros dívida estrangeira, devidos por entidades não residentes em território nacional e sem estabelecimento estável em Portugal ao qual aqueles sejam imputáveis, devem ser excluídos da base de cálculo da Derrama Municipal.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (presidente), Dr. Marcolino Pisão Pedreiro e Prof.ª Doutora Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 11 de fevereiro de 2025, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., S.A., doravante designada por “Requerente”, sociedade com sede na Rua ... n.º..., ...-..., Lisboa, com o número único de pessoa coletiva e de matrícula..., veio, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
A Requerente pretende a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra os atos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, e, bem assim, a anulação parcial destes atos tributários na parte respeitante à Derrama Municipal incidente sobre rendimentos obtidos no estrangeiro, no valor global de € 216.979,47 (€ 173.166,66 respeitantes a 2019 e € 43.812,81 relativos a 2020).
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 4 de dezembro de 2024 e, de seguida, notificado à AT.
Após nomeação de todos os árbitros, os mesmos comunicaram, em prazo, a aceitação do encargo.
O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 23 de janeiro de 2025, não tendo sido manifestada oposição.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 11 de fevereiro de 2025.
Em 14 de março de 2025, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, tendo junto o processo administrativo (“PA”).
A Requerente exerceu o contraditório sobre a matéria de exceção em 31 de março de 2025, tendo o Tribunal Arbitral, por despacho de 3 de abril de 2025, dispensado a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (v. artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). As Partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações simultâneas e para pagarem a taxa arbitral subsequente, tendo sido fixado o prazo para a decisão até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
Apenas a Requerente apresentou alegações em 23 de abril de 2025, nas quais reitera a posição expressa no requerimento inicial.
Posição da Requerente
A Requerente alega que o regime da Derrama Municipal, que consta do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“RFAL”), em concreto do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, estipula que o seu cômputo se efetue por referência aos rendimentos gerados na área geográfica de um determinado município. Assim, a Derrama Municipal corresponde à proporção do rendimento gerado na área geográfica do(s) município(s) em que o sujeito passivo tenha presença/exerça a sua atividade.
Daqui retira a Requerente que os rendimentos gerados fora do território nacional devem ser desconsiderados no apuramento da Derrama Municipal, conclusão a que também chegou o Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021, e diversa jurisprudência arbitral que cita. Mais invoca que, se assim não fosse, resultariam violados os princípios da igualdade e da capacidade contributiva (v. artigos 13.º e 104.º da Constituição).
Alega que, na situação concreta, a Derrama Municipal foi por si calculada considerando rendimentos de capitais obtidos no estrangeiro, que estão refletidos no resultado líquido dos períodos de tributação em causa e não foram expurgados porque o formulário e sistema de preenchimento da declaração Modelo 22 não o permite.
A Requerente defende que o “erro imputável aos serviços” previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) é aplicável a atos de autoliquidação, apesar de ter sido revogada a presunção que constava do n.º 2 da referida norma. Isto, desde que o erro do contribuinte em autoliquidação derive de uma atuação em sintonia com as orientações da AT, como foi o caso. Na situação vertente, o contribuinte não teve a possibilidade de indicar na declaração fiscal Modelo 22 o lucro tributável líquido/expurgado dos rendimentos obtidos no estrangeiro, o que se pode constatar das instruções de preenchimento da Modelo 22 e do sistema informático usado para a submissão daquela declaração. Tal erro não pode deixar de ser enquadrado como erro dos serviços logo no momento da submissão da declaração de rendimentos.
Em consequência, a Requerente alega ter suportado um excesso de Derrama Municipal no valor de € 216.979,47 e peticiona juros indemnizatórios sobre este montante.
Conclui pelo pedido de anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado e de anulação parcial dos atos de (auto)liquidação de IRC, no segmento referente à Derrama Municipal, com a inerente restituição do imposto que quantifica em € 216.979,47, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
Posição da Requerida
A Requerida começa por suscitar a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria para apreciar o indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, pois estando em discussão atos de autoliquidação, a ação teria de ser precedida de reclamação graciosa, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de março, que exclui da jurisdição arbitral as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, sem que aí seja mencionada a revisão oficiosa.
Considera ainda que, por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito, da Separação dos Poderes e da Legalidade, não pode aceitar-se uma interpretação que amplie a vinculação da Requerida à tutela arbitral fixada legalmente (v. artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição).
Por impugnação, a Requerida invoca que, no âmbito da atividade seguradora exercida em Portugal, a Requerente é obrigada a afetar investimentos pelo total das provisões técnicas, de acordo com os limites estabelecidos pela sua Autoridade reguladora, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (“ASF”). Para esse efeito, necessita de investir num portfólio diversificado de ativos, entre eles os ativos mobiliários tendo em vista minimizar os riscos, manter a estabilidade financeira e cumprir suas obrigações para com os segurados. São precisamente os rendimentos brutos obtidos por esta via que estão em análise nos presentes autos, pelo que são inequivocamente rendimentos diretamente conexos com a atividade por si exercida em território português. Sublinha que para a consecução dos rendimentos obtidos no estrangeiro contribui toda a estrutura e organização da Requerente sediada em Portugal com os consequentes gastos suportados tendo em vista a obtenção daqueles rendimentos.
Assinala ainda que cabia à Requerente comprovar o valor da componente do lucro tributável obtida fora do território nacional (v. artigo 74.º, n.º 1 da LGT), o que devia ser feito com documentos externos. Porém, afirma que os elementos constantes do processo não permitem qualquer validação do cálculo do diferencial da derrama municipal cuja anulação é pretendida, que não se basta com uma simples operação aritmética de subtração do valor dos rendimentos obtidos no estrangeiro.
Por outro lado, argumenta que, se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração à coleta – que inclui a Derrama Municipal – a que alude o artigo 91.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRC, com suporte no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020 (a que também alude o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de novembro de 2021, processo n.º 0255/17.1BESNT), é porque os rendimentos obtidos no estrangeiro e gastos inerentes também estão incluídos na base de cálculo da Derrama. Refere ainda que para a maioria das Convenções para a Evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento (“CDT”) celebradas por Portugal a Derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento.
Para a Requerida, a Derrama Municipal recai sobre o lucro tributável global do sujeito passivo e deve abranger os rendimentos e gastos relativos a operações económicas realizadas no estrangeiro. Alicerça este entendimento no disposto no artigo 18.º, n.º 1 do RFAL, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, segundo o qual a Derrama Municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, não existindo qualquer norma que disponha que os rendimentos provenientes do exterior devam ser excluídos de tributação.
Num segundo plano, acrescenta que a Derrama é um imposto dependente do IRC, pelo que ambos devem comungar das mesmas normas de incidência. O artigo 18.º, n.º 1 da Lei n.º 73/2013, ao prever que a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, remete-nos para o apuramento do lucro tributável estipulado no artigo 17.º, n.º 1 do Código do IRC. E neste estão incluídos os rendimentos obtidos em território português e os obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos, tal como previsto no artigo 4.º, n.º 1 do Código deste imposto.
Assim, em relação ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de janeiro de 2021, proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT0924/17, a Requerida assume divergir do mesmo.
Por outro lado, a operação de subtração dos rendimentos obtidos no estrangeiro preconizada pela Requerente esquece que naquele lucro estão incluídos encargos subjacentes a esses mesmos rendimentos o que conduz, no limite, à dedução de gastos em montante superior ao devido. Desta forma, a ser admitida a tese da Requerente e para efeitos de cálculo da Derrama Municipal, teriam, de igual modo, de ser excluídos os gastos suportados para a obtenção dos rendimentos de fonte estrangeira.
Sobre os juros indemnizatórios, afirma que o apuramento do imposto foi efetuado pela Requerente e que as liquidações contestadas não provêm de qualquer erro imputável aos serviços, decorrendo diretamente da lei, pelo que aqueles juros não devem ser reconhecidos. Ad cautelem, defende que, mesmo em caso de procedência do pedido de juros indemnizatórios, o seu cômputo teria como termo inicial a data da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado (v. artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT) e que, como não decorreu mais de um ano entre a data do pedido e a da decisão, não são devidos quaisquer juros.
À face do exposto, pugna pela procedência da exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral ou pela improcedência do pedido.
posição da requerente sobre a matéria de exceção
A Requerente considera improcedente a exceção de incompetência suscitada, porque a pretensão anulatória parcial das (auto)liquidações de IRC objeto dos autos tem enquadramento no disposto no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Acrescenta que, em linha com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, independentemente de o meio administrativo ter sido a revisão oficiosa, o que interessa é que a petição do contribuinte tenha por objeto a apreciação da legalidade da liquidação do imposto, como sucede in casu.
Apela, de igual modo, à jurisprudência daquele Supremo Tribunal sobre o artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), para o qual remete o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, segundo a qual, o procedimento de revisão oficiosa deve ser abrangido pelo âmbito da norma [artigo 131.º do CPPT], pois a finalidade visada é a de garantir que a administração tem a possibilidade de se pronunciar previamente à abertura da via contenciosa. O que importa é, pois, que o acesso à via contenciosa seja precedido de um meio administrativo e este pode ser a revisão oficiosa.
Por fim, conclui pela aplicabilidade do prazo de quatro anos para a revisão oficiosa, por estarmos perante um erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT.
* * *
Tendo sido suscitada pela Requerida matéria de exceção relativamente à incompetência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento tem caráter prioritário, procede-se à fixação da matéria de facto relevante, com vista à subsequente apreciação desta questão prévia.
II. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:
A. A A..., S.A., aqui Requerente, é um sujeito passivo de IRC, sob a forma de sociedade anónima sediada em Portugal, e tem por objeto social o exercício de atividades de seguro e resseguro dos ramos Vida e Não Vida – cf. provado por acordo – Documento 7.
B. No ano 2019, a Requerente, no exercício da sua atividade, apurou um lucro tributável de € 45.089.701,96, o qual inclui rendimentos de juros obtidos no estrangeiro, no montante de € 12.048.649,47 – cf. Documentos 8 e 9.
C. No ano 2020, a Requerente, no exercício da sua atividade, apurou um lucro tributável de € 58.076.166,75, o qual inclui rendimentos de juros obtidos no estrangeiro, no montante de € 10.328.787,27 – cf. Documentos 10 e 11.
D. Com referência ao período de tributação de 2019, a Requerente apresentou, em 28 de julho de 2020, a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC, na qual apurou e reportou o lucro tributável de € 45.089.701,96 e Derrama Municipal de € 648.042,19 (v. campo 364 do quadro 10) – cf. Documentos 1 e 2 – declaração com o código de identificação n.º ... e demonstração de liquidação de IRC n.º 2020... .
E. Em relação ao período de tributação de 2020, a Requerente apresentou, em 16 de julho de 2021, a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC, na qual apurou e reportou o lucro tributável de € 58.076.166,75, e Derrama Municipal de € 246.348,38 (v. respetivo campo 364 do quadro 10) – cf. Documentos 3 e 4 – declaração com o código de identificação n.º ... e demonstração de liquidação de IRC n.º 2021 ... .
F. Os montantes de € 648.042,19 e de € 246.348,38 declarados pela Requerente a título de Derrama Municipal dos anos 2019 e 2020, respetivamente, foram calculados considerando a totalidade dos rendimentos obtidos por aquela em território nacional e no estrangeiro – cf. Documentos 1 a 4 e provado por acordo.
G. O modelo oficial da declaração Modelo 22 de IRC disponível no portal da AT impõe, para efeitos de apuramento da Derrama Municipal, nos termos do Anexo A, a consideração do lucro tributável total apresentado no campo 302 do quadro 09, pelo que, com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020 aqui em causa, a Requerente não podia apurar/declarar este imposto de forma distinta, atentas as limitações do formulário declarativo (Modelo 22) e do sistema informático da Requerida – cf. https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/apoio_contribuinte/modelos_formularios/irc/Pages/imposto-sobre-o-rendimento-das-pessoas-colectivas--658.aspx
H. Em 6 de junho de 2024, a Requerente, por considerar indevida a inclusão dos rendimentos (por si) obtidos no estrangeiro nos anos 2019 e 2020 na base de incidência da Derrama Municipal, conforme resulta dos atos de autoliquidação de IRC correspondentes a esses anos, apresentou pedido de revisão oficiosa parcial dessas autoliquidações, pedindo o reembolso da Derrama Municipal que considerou excessivamente suportada, na importância de € 216.979,47 – cf. Documento 5.
I. Em 8 de julho de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da revisão oficiosa, em que a AT sustenta não resultar do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais, nem de qualquer outra legislação, a possibilidade de exclusão do lucro tributável dos rendimentos obtidos fora de Portugal – cf. Documento 6.
J. Fundamenta ainda a AT que a posição sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 13 de janeiro de 2021, processo n.º 3652/15.3BESNT, que preconiza a exclusão da base de incidência da Derrama Municipal dos rendimentos obtidos no estrangeiro, não teve em conta o princípio da universalidade e o facto de o lucro tributável integrar componentes de várias naturezas e resultar de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e ajustamentos devidos, positivos e/ou negativos – cf. Documento 6.
K. Não tendo exercido o direito de audição, o projeto convolou-se em decisão definitiva de indeferimento, da qual a Requerente foi notificada em 5 de setembro de 2024, tendo em conta o disposto no artigo 39.º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) – cf. Documento 7.
L. Inconformada, em 2 de dezembro de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem à presente ação, visando a declaração de ilegalidade parcial dos atos de autoliquidação de IRC reportados a 2019 e 2020, na parte em que, para cálculo da Derrama Municipal, foram considerados os rendimentos obtidos no estrangeiro e, bem assim, a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que, nessa parte, manteve tais atos – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
2. Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes, com exceção dos documentos juntos pela Requerente em fase de alegações, por não serem supervenientes e a sua junção extemporânea, pelo que não foram tidos em conta por este Tribunal.
Em relação ao valor dos rendimentos de fonte estrangeira que este Tribunal julga provados, além da presunção de veracidade das declarações do contribuinte, estabelecida no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, a que adiante se fará referência, a Requerida, apesar de colocar em causa, na sua resposta, a prova do concreto montante dos rendimentos de fonte estrangeira referidos nos pontos B e C supra, não invoca qualquer factualidade – direta ou indiciária – para fundar o seu afastamento. Sublinha-se que, na fundamentação da decisão do pedido de revisão oficiosa, cuja legalidade é aqui sindicada, a Requerida não suscita qualquer dúvida sobre os montantes de rendimentos estrangeiros alegados pela Requerente, pelo que estamos perante um argumento que não integra a fundamentação daquele ato de indeferimento.
Acresce que constam dos autos listagens dos suportes dos registos contabilísticos da Requerente (“ledger” ou livro-razão), com a descrição sumária do tipo de produto (“IINV_C_NAMEX”), os valores dos rendimentos correspondente e a indicação da proveniência, bem como os saldos das contas do razão, elementos que se reputam suficientes, não vendo este Tribunal razão para não considerar comprovados os montantes de rendimentos auferidos no estrangeiro.
Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
III. Saneamento
1. Sobre a (In)Competência Material do Tribunal Arbitral
A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
O âmbito de competência dos tribunais arbitrais é delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, compreendendo exclusivamente a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável que não deem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais. Este recorte da jurisdição arbitral em razão da matéria corresponde, de um modo geral, às pretensões que são sindicáveis nos Tribunais Tributários por via da impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1 do CPPT.
Que a ação arbitral foi conformada pelo legislador como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, ressalta, de igual modo, do disposto no artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3‐B/2010, de 28 de abril (Lei do Orçamento do Estado para 2011), que consagrou a autorização legislativa ao Governo para introdução da arbitragem tributária, segundo o qual “O processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial […]”.
Paralelamente, a Requerida vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida pelo artigo 2.º do RJAT, nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, previsão não pode deixar de abranger o IRC e a Derrama Municipal.
Sendo o objeto da ação a apreciação da (i)legalidade de atos de autoliquidação de IRC e respetiva anulação na parte referente à Derrama Municipal, não subsistem dúvidas, quanto a este ponto, de que estamos perante tarefa que cabe a este Tribunal Arbitral.
A Requerida vem suscitar a incompetência material do Tribunal Arbitral, alegando que este não pode conhecer da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa. Interessa começar por notar, a este respeito, que a circunstância de, em simultâneo, ser impugnada a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que manteve as autoliquidações de IRC[1], não prejudica ou compromete a apreciação do pedido essencial também deduzido que é, como acima referido, o de anulação (parcial) daqueles atos tributários.
Com efeito, de harmonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que aqui se segue, é indiferente se a reação contenciosa contra os atos tributários foi precedida de prévia pronúncia administrativa sobre os mesmos, bem como é indiferente o teor – formal ou material – da decisão dos atos administrativos que sobre aqueles tenha recaído. Desde que seja pedida pronúncia sobre a (i)legalidade do ato de liquidação, estamos no domínio do meio processual da impugnação judicial, e, portanto, por identidade de razões, da ação arbitral, cujo objeto se recorta na apreciação da legalidade do ato tributário – v., acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR e de 18 de novembro de 2020, processo n.º 0608/13.4BEALM 0245/18. Sobre questão análoga, v. ainda a decisão no processo arbitral n.º 832/202-T, de 15 de setembro de 2022.
Deste ponto de vista, cabe na competência dos Tribunais Arbitrais a apreciação das autoliquidações de IRC controvertidas, ainda que a sua impugnação ocorra na sequência do ato de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa. Aliás, no caso de autoliquidações, o contribuinte só pode mesmo aceder à fase contenciosa se tiver previamente impulsionado um procedimento administrativo que tenha esses atos por objeto, pois a lei impõe o prévio recurso à via administrativa. Nestas situações, a ação arbitral terá de ser necessariamente proposta na sequência do indeferimento (expresso ou presumido) do meio administrativo. Isto, sem prejuízo de, em última análise, o objeto da ação ter de ser inevitavelmente o ato tributário ilegal e a sua remoção.
Resulta do exposto que o entendimento sufragado pela Requerida, além de contrário à norma aplicável (v. artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março), conduziria ao resultado paradoxal e inaceitável de a lei exigir o prévio recurso à via administrativa como condição de acesso à ação arbitral e, a um tempo, recusar esse mesmo acesso porque a ação não poderia apreciar o indeferimento administrativo do pedido de anulação dos atos de autoliquidação. Posição que não se perfilha, quer por ser desprovida de suporte legal, quer por implicar um conflito normativo insanável e, por fim, a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, quando o desígnio legislativo expresso no artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril (que contém a autorização legislativa do regime da arbitragem tributária), foi precisamente o de “reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes”.
A Requerida também suscita a incompetência do Tribunal Arbitral por considerar que o pedido de revisão oficiosa não é enquadrável no “recurso à via administrativa”, que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 exige, com remissão para o disposto no artigo 131.º do CPPT, segundo o qual a “impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”.
Discordamos, contudo, desta posição, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa e, no caso, foi apresentado previamente à propositura da ação arbitral, como postula o comando legal.
Que a revisão oficiosa deva ser entendida como um meio administrativo alternativo ou complementar, à disposição do contribuinte, foi há longa data reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. V. a título de exemplo, com as necessárias adaptações, o acórdão de 9 de novembro de 2022, processo n.º 087/22.5BEAVR, em cujo sumário se lê:
“IV - O indeferimento, expresso ou tácito, do pedido de revisão, mesmo nos casos em que [este] não é formulado dentro do prazo da reclamação administrativa mas dentro dos limites temporais em que a Administração tributária pode rever o acto com fundamento em erro imputável aos serviços, pode ser impugnado contenciosamente pelo contribuinte [art. 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da L.G.T.].
[…]
VI - O meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do acto de liquidação).”
Não se ignora que o artigo 131.º do CPPT, para o qual remete a Portaria n.º 112-A/2011, faz referência à reclamação graciosa, sem mencionar revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, não pode deixar de ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.
O legislador tributário consagrou a via administrativa como condição necessária e prévia do recurso à via jurisdicional, porquanto os atos de autoliquidação (assim como, para este efeito, os atos de retenção na fonte e de pagamento por conta) decorrem da iniciativa do contribuinte, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a AT ainda não tomou posição, pelo que se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia. Este é, de igual modo, o entendimento expresso nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.
Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid[a]s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se a um procedimento administrativo prévio e não, como parece entender a AT, à reclamação graciosa. Por outro lado, quanto à previsão do artigo 131.º do CPPT, sempre se dirá que seria incoerente e antissistemático que revestisse distinto significado consoante estivesse a ser aplicado nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.
Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011 – v. neste sentido a decisão proferida no processo arbitral n.º 245/2013-T, de 28 de março de 2014.
De igual modo se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”), admitindo o recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação – v., a título ilustrativo, os acórdãos de 27 de abril de 2017, processo n.º 08599/15, e de 25 de junho de 2019, processo n.º 44/18.6BCLSB, de 11 de julho de 2019, processo n.º 147/17.4BCLSB, de 13 de dezembro de 2019, processo n.º 111/18.6BCLSB, de 11 de março de 2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB, de 26 de maio de 2022, processo n.º 97/16.6BCLS, e de 12 de maio de 2022, processo n.º 96/17.6BCLSB.
O entendimento assente também foi apreciado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 244/18, de 11 de maio de 2018, processo n.º 636/17, que versou sobre a norma “que resulta da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, no sentido de considerar os casos em que ocorreu um «pedido de revisão oficiosa» equivalentes aos pedidos «precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”, decidindo não julgá-la inconstitucional (v. neste sentido Jorge Lopes de Sousa, “Guia da Arbitragem Tributária”, Coord. Nuno Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira, 2.ª Ed., Almedina, pp. 103-109).
Por outro lado, ao contrário do invocado pela Requerida, não se verifica qualquer alargamento da vinculação da AT à tutela arbitral. Em consequência, é manifestamente improcedente a arguição, pela Requerida, de vícios de inconstitucionalidade, desde logo, por falta do seu pressuposto-base, pois, como referido, inexiste qualquer ampliação da jurisdição arbitral.
De salientar que, juridicamente, o problema deve ser analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da inimpugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.). Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer – v. decisão do processo arbitral n.º 397/2019-T, de 12 de junho de 2020.
Em qualquer caso, atentas as razões expostas e independentemente da qualificação jurídica da exceção suscitada pela Requerida, a mesma é improcedente, por estar preenchida a condição estabelecida no artigo 2.º, alínea a) da citada Portaria n.º 122-A/2011, do prévio recurso à via administrativa. Conclui-se, assim, ser este Tribunal Arbitral competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com a referida Portaria n.º 112-A/2011, para conhecer do pedido de anulação parcial dos atos de autoliquidação de IRC – Derrama Municipal, com as legais consequências sobre a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa que (nessa parte) os manteve.
2. Demais Pressupostos Processuais
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, contado da notificação à Requerente da decisão de indeferimento (expresso) do pedido de revisão oficiosa (v. artigo 279.º do Código Civil, por remissão dos artigos 20.º, n.º 1 do CPPT e 3.º-A do RJAT).
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
IV. Do Direito
A questão decidenda reside em saber se os rendimentos obtidos no estrangeiro devem ser excluídos do cálculo da Derrama Municipal da Requerente, subtraindo-os ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC.
1. Derrama Municipal – Exclusão de Rendimentos de Fonte Estrangeira
A posição preconizada pela Requerente suporta-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de janeiro de 2021, relativo ao processo n.º 03652/15.3BESNT0924/17, que também se pronuncia sobre a posição fundamental da Requerida, que aqui se transcreve na parte relevante:
“Numa formulação sintética, a discórdia reside na questão de saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal incidente, consensualmente, sobre “o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)” (Cf. art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias portuguesas.
[…]
É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, [a derrama municipal] se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (…)”.
Posto isto e realçando, sobretudo, este cariz de tributo autónomo relativamente ao IRC, para solucionar a questão que nos ocupa, importa começar por mencionar que a comparação dos quadros legais (sucessivos), enformadores da cobrança de derrama(s) municipal(ais), permite extrair, com objetividade, estas premissas:
- sempre (nas Leis n.ºs 42/98, 2/2007 e (73/2013)) esteve (e está) presente a previsão e exigência, de o IRC sobre que recai a percentagem de derrama seja a proporção correspondente “ao rendimento gerado na sua (do município) área geográfica”; […]
[…] o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …
Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
[…]
Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).
[…] Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”
O entendimento exposto tem sido seguido em diversas decisões proferidas pelos tribunais arbitrais, nos seguintes processos que se enumeram, a título exemplificativo: 554/2021-T, de 15 de março de 2022; 720/2021-T, de 27 de maio de 2022; n.º 234/2022-T, de 28 de novembro de 2022; 211/2023-T, de 17 de julho de 2023; 170/2023-T, de 22 de novembro de 2023; 948/2023, de 19 de abril de 2024; 958/2023-T, de 23 de abril de 2024; 29/2024-T, de 3 de julho de 2024; 28/2024-T, de 2 de setembro de 2024; 31/2024-T, de 9 de setembro de 2024; 315/2024-T, de 29 de outubro de 2024; e 654/2024, de 28 de março de 2025.
Importa, neste âmbito, ter presente o princípio de que a aplicação do direito não pode ser alheada dos valores da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, pressupostos da própria legitimação da decisão, como emana do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, segundo o qual, “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, não podendo deixar de considerar-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo supra citada.
Retomando a análise do caso, convém relembrar que o princípio essencial que preside à criação da Derrama (v. artigo 3.º, alínea j) do RFAL, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro[2]) é o da justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias locais, que o artigo 10.º desenvolve, no respeito pelo princípio da estabilidade das relações financeiras entre o Estado e as autarquias locais, devendo ser garantidos os meios adequados e necessários à prossecução do quadro de atribuições e competências que lhes é cometido nos termos da lei. Por sua vez, a participação de cada autarquia local nos recursos públicos é determinada nos termos e de acordo com os critérios previstos na referida lei, visando o equilíbrio financeiro vertical e horizontal.[3]
Por tudo isto, dispõe o n.º 1 do artigo 18.º do referido regime que os municípios podem deliberar lançar uma derrama, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
Resulta inequívoco do próprio elemento literal que existe uma dependência entre a área geográfica onde são gerados os rendimentos e o montante da Derrama que pode ser cobrada para prosseguir o designado equilíbrio financeiro vertical e horizontal.
Os impostos municipais são a expressão do princípio de autotributação ao nível local e surgem como resposta aos encargos municipais, apresentando-se como fontes de financiamento adicionais ao Orçamento Geral do Estado. Estes encargos variam de acordo com uma multitude de fatores, tais como as caraterísticas territoriais e a dimensão dos municípios, mas entre estes também se encontram as condições estruturais dadas às unidades empresariais para nestes se implementarem e prosperarem. É a conexão da manifestação da capacidade contributiva que a Derrama Municipal visa tributar com a área geográfica do município sede do sujeito passivo que determina a legitimidade desta tributação.
Não é, assim, possível deixar de considerar o imposto municipal como um suporte financeiro prestado pelas unidades empresariais, ao impacto que provocam nas estruturas económicas municipais. Sem essa presença económica no município, um tributo, como a Derrama Municipal, deixa de fazer sentido.
Como assinala a decisão arbitral no processo 950/2024-T, a Derrama Municipal, tradicionalmente havida como um imposto acessório, dependente do IRC, com características de excecionalidade, teve o seu arquétipo alterado a partir de 2007 e passou a revestir a natureza de adicionamento, a ser calculada com base no lucro tributável, apurado segundo as regras do IRC, e não com base na coleta deste imposto. O que significa que pode haver lugar a tributação em derrama sem haver lugar ao pagamento de IRC, perdendo o atributo de “dependência” que a AT reclama.
Na situação sub iudice, estamos perante rendimentos provenientes do estrangeiro, pelo que se afigura que, independentemente de beneficiarem uma entidade que tem sede e direção efetiva em território nacional [a Requerente], à luz da referida jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, não manifestam o elemento de conexão territorial essencial de incidência da Derrama Municipal: a ligação à circunscrição municipal.
Isto, sem prejuízo de serem rendimentos obtidos no âmbito da atividade desenvolvida pela Requerente e que resultam de investimentos financeiros que visam acautelar a solvabilidade e os riscos inerentes ao negócio segurador realizado em Portugal, que constitui o seu objeto. Tais rendimentos não só são pagos por entidades não residentes em território nacional, como são originados e produzidos por atividades empreendidas fora desse território, tendo a sua fonte financeira e económica fora de Portugal. Se o primeiro critério, do país do pagamento, não se afigura, para este efeito, decisivo, o mesmo já não se poderá dizer do segundo, relativo à fonte económico-financeira do rendimento, localizada fora do território português e, portanto, dos seus municípios.
Sobre o argumento da Requerida de que não foi cumprido [pela Requerente] o ónus da prova relativo ao valor dos rendimentos obtidos no estrangeiro (v. artigo 74.º, n.º 1 da LGT), importa assinalar que tal asserção é inválida, como resulta da matéria de facto provada e da sua fundamentação, tendo a Requerente junto cópia dos elementos de suporte das demonstrações financeiras contendo o detalhe suficiente das operações, nomeadamente o seu valor e a sua origem, nacional e estrangeira.
Acresce que, mesmo que aqueles documentos não tivessem sido juntos, de acordo com o estatuído no artigo 75.º, n.º 1 da LGT “[p]resumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”. Ou seja, a documentação fiscal e contabilística da Requerente goza da presunção de veracidade consagrada na citada norma.
Como referido na decisão arbitral n.º 29/2024-T, de 3 de julho de 2024:
“[…] a AT tem que aceitar os dados constantes da contabilidade do sujeito (e não é questionado terem os documentos juntos ao requerimento inicial serem documentos contabilísticos) salvo se – através de procedimento inspetivo feito nos termos legais, acrescentamos – lograr por em causa a correspondência à verdade de determinados registos contabilísticos e, consequentemente, das declarações do sujeito passivo nelas baseadas.
Mais, nunca a AT, em momento anterior à sua resposta neste processo, pôs em causa a não correspondência à verdade dos elementos factuais em causa, tal como declarados pelo sujeito passivo. A fundamentação da reclamação graciosa [no nosso caso do pedido de revisão oficiosa], que, como já referimos – traduz a primeira tomada de posição da AT sobre a questão – não refere qualquer questão de prova. O indeferimento surge fundamentado apenas em razões de direito.
Assim sendo, há que concluir que a Requerente cumpriu com o ónus da prova relativamente aos factos que, por essa razão foram dados como provados […]”[4].
Na situação vertente, a Requerente quantifica os rendimentos obtidos no estrangeiro com base nos registos contabilísticos, encontrando-se organizados de acordo com a legislação comercial e fiscal, ponto que a Requerida não contesta.
Nos casos em que a AT disponha de indícios que possam abalar a presunção de veracidade da escrita e das declarações do contribuinte, nomeadamente os elencados no n.º 2 do artigo 75.º da LGT, cabe efetivamente ao sujeito passivo demonstrar os pressupostos que o levaram a conferir um dado tratamento contabilístico e fiscal às suas operações.
No entanto, não é essa a situação em presença. As declarações Modelo 22 foram preparadas com base na contabilidade da Requerente. E a Requerida, em momento algum, colocou em crise a referida contabilidade e as declarações fiscais com base na mesma apresentadas, ou apresentou elementos que em relação àquelas pudessem suscitar dúvidas fundadas. Nem tão-pouco solicitou elementos ou informações sobre alguma(s) rubrica(s) de rendimentos da Requerente, ou sobre qualquer outra matéria.
Apesar de ter decorrido um procedimento administrativo impulsionado pela Requerente, no âmbito do qual a AT, que dirigiu esse procedimento, poderia, se assim o entendesse, suscitar ou invocar as questões de facto que entendesse pertinentes, não o fez. Não dirigiu qualquer pedido de informação ou esclarecimento à Requerente, decidindo singelamente o indeferimento da sua pretensão com base no entendimento – jurídico – de que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e arbitral é errónea, pelo que os rendimentos gerados no estrangeiro devem ser incluídos na base de cálculo da Derrama Municipal.
Concretamente, na fundamentação do pedido de revisão oficiosa não existe qualquer menção à produção de prova ou a eventuais deficiências da mesma. A justificação para o indeferimento fundamenta-se exclusivamente, como acima dito, em razões de direito, pelo que a argumentação da AT deve ser, neste ponto, votada ao insucesso.
Em síntese, a veracidade da documentação fiscal e contabilística da Requerente nunca foi questionada, nem se verifica nenhuma das situações previstas no artigo 75.º, n.º 2 da LGT suscetíveis de afastar tal presunção de veracidade. Por conseguinte, os factos refletidos na informação fiscal e contabilística da Requerente devem ser tomados por assentes, fidedignos e verdadeiros, como ficou provado.
Sobre a questão do cálculo do valor da Derrama Municipal imputável aos rendimentos de fonte estrangeira, estamos perante a aplicação de operações aritméticas que, revestindo alguma complexidade, não cabem aos tribunais, devendo a Requerida, a quem cumpre a execução voluntária do julgado anulatório, neste caso parcial, proceder à quantificação, fundamentada, do reembolso a que a Requerente tem direito.
Adicionalmente, argumenta a Requerida que, retirando apenas os rendimentos obtidos no estrangeiro, não se respeita o balanceamento contabilístico (matching principle) entre esses rendimentos e os gastos necessários para a sua geração, o que provoca, do ponto de vista de tributação, uma dupla subtração à base de incidência do imposto.
Importa aqui ter em conta que os rendimentos em causa são juros, cuja obtenção é passiva, pelo que, de acordo com as regras da experiência comum, eles já se apresentam com natureza “líquida”. Deste modo, tais rendimentos não têm associados gastos ou, no limite, apenas o têm de forma muito residual. Por outro lado, novamente se salienta que se trata de questão não suscitada no procedimento, nem constituiu fundamento do indeferimento do pedido de revisão oficiosa pela Requerida, pelo que improcede a sua arguição.
Noutra perspetiva, a Requerida vem invocar que, se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração à coleta a que alude o artigo 91.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRC, é porque os rendimentos obtidos no estrangeiro e gastos inerentes também estão incluídos na base de cálculo da Derrama. Todavia, trata-se de questão distinta daquela sob apreciação nos presentes autos e que, nos moldes enunciados pela AT, enferma de um vício de raciocínio, pois parte da conclusão para justificar a premissa, pelo que se julga improcedente. De notar que, também aqui, este é um argumento inovador, que não constituiu fundamento da decisão da Requerida que denegou a pretensão da Requerente no pedido de revisão oficiosa.
Sobre a mesma questão, pronunciou-se no mesmo sentido a decisão arbitral proferida no processo n.º 1130/2024-T, de 24 de fevereiro de 2025, de que se transcreve o seguinte excerto ilustrativo “[…] o que a Autoridade Tributária e Aduaneira refere sobre o artigo 91.º do CIRC e a inclusão da derrama no conceito de «fração de IRC» aí utilizado, não tem qualquer relação com o caso em apreço, pois não está em causa dedução de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional. De qualquer modo, sempre se dirá, a título de obter dictum, que o que aí esta em causa é a definição do âmbito do conceito de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, para efeitos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, em que a jurisprudência citada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem considerado englobada a derrama municipal, adoptando um conceito lato de IRC, abrangendo a globalidade dos impostos sobre rendimento. Mas, desta inclusão da derrama no valor global do «imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas» a considerar para este efeito, nada tem a ver com a origem dos rendimentos, pois, independentemente dessa origem, esse valor global, em que se inclui o valor da derrama, pode ser utilizado, com limites, para efeitos de dedução de crédito por dupla tributação jurídica internacional […]”.
À face do exposto, deve a presente ação ser julgada procedente e anuladas (parcialmente) as autoliquidações de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, na parte referente à Derrama Municipal que incidiu sobre rendimentos de fonte estrangeira, por erro de direito na determinação da base de incidência deste imposto, da qual têm de ser excluídos os rendimentos gerados fora do território nacional, não o tendo sido (v. artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo).
2. Sobre o Pedido de Juros Indemnizatórios
A Requerente peticiona juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT, que, no seu n.º 1, postula que estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro [de facto ou de direito] imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT, dos artigos 43.º e 100.º da LGT e da jurisprudência consolidada. Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.
Na situação vertente, estamos perante atos de autoliquidação de IRC. No entanto, não se pode concordar com a posição da Requerida no sentido de que foi a Requerente que errou no preenchimento das declarações fiscais, pelo que não lhe seria [à AT] imputável qualquer erro, nem, em consequência, devidos juros. Resulta dos autos que, em termos similares aos descritos na decisão do processo arbitral 31/2024-T, apesar de a AT não ter tido intervenção na emissão das liquidações contestadas, influenciou de forma inevitável o seu resultado, dando azo à verificação do erro de direito.
Por um lado, porque na declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22 não é possível ao contribuinte, sem que tal circunstância lhe seja imputável, indicar o lucro tributável expurgado da componente atribuída ao estrangeiro. Por outro lado, porque é a própria AT que nas instruções de preenchimento da Modelo 22 indica que se tem de utilizar como base de cálculo o lucro tributável apurado em sede de IRC, o que implica utilizar no cálculo da Derrama Municipal a totalidade do lucro tributável, independentemente da respetiva proveniência ou afetação geográfica. Por conseguinte, conclui-se pela existência de erro imputável aos serviços, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos para que tivesse sido deferido o pedido da Requerente.
Interessa notar que o artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT institui uma disciplina específica (uma lex specialis) para os casos de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, como sucede nos presentes autos, constituindo-se a obrigação de indemnizar na esfera da Requerida somente depois de decorrido um ano a contar do pedido de revisão – v. acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 11 de dezembro de 2019, processo n.º 051/19.1BALSB[5].
Tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 6 de junho de 2024, a contagem dos correspondentes juros indemnizatórios, calculados com base no valor de Derrama Municipal pago sobre rendimentos provenientes do estrangeiro, com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020, só se inicia em 7 de junho de 2025.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
II. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedente a exceção de incompetência material suscitada pela Requerida;
b) Julgar a ação procedente a anular parcialmente as (auto)liquidações de IRC, referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, na parte referente à Derrama Municipal, devendo esta ser recalculada excluindo da sua base os rendimentos obtidos no estrangeiro, bem como anular a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que as teve por objeto;
c) Reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, a contar de 7 de junho de 2025.
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 216.979,47 (duzentos e dezasseis mil novecentos e setenta e nove euros e quarenta e sete cêntimos) indicado pelo Requerente e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Custas no montante de € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de junho de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins, Relatora
Marcolino Pisão Pedreiro
Marta Vicente
[1] Pedindo a Requerente a anulação da decisão do pedido de revisão oficiosa, bem como das liquidações de IRC (na parte aplicável).
[2] Na redação à data dos factos.
[3] As autarquias gozam de um amplo quadro de autonomia local (v. artigo 238.º da Constituição), sendo dotadas de património e finanças próprios. “As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços”, podendo dispor de “poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.” Desta forma, “o que legitima a atribuição de poderes tributários às autarquias locais é, fundamentalmente, o seu nível de estruturação política e administrativa, pois, tal como sucede com as regiões autónomas, elas têm como base uma representação directa dos cidadãos eleitores”. Pelo que, “Só assim se pode entender que a Lei das Finanças Locais possa atribuir às Assembleias Municipais algum espaço de decisão, alguma autonomia no sentido próprio de auto-governo, em matéria tributária quanto à criação de taxas e no lançamento de derramas.” - Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2002, p. 40.
[4] Em termos similares se pronunciou também o Tribunal Arbitral no processo 720/2021-T, de 27 de maio de 2022:
“[f]ace ao regime de repartição do ónus da prova, não basta que a AT enuncie uma situação de dúvida, de resto não fundamentada, sobre os documentos apresentados pela Requerente relativos ao apuramento dos rendimentos sujeitos a IRC obtidos em território nacional e nas suas sucursais no estrangeiro, que aliás se encontram suportados pela Declaração Modelo 22 junta ao processo administrativo, e respetivos anexos.
[…] as suspeições da AT devem assentar em factualidade de que se possa extrair um juízo fundado de dúvida de que as declarações do sujeito passivo não refletem uma realidade tributária verosímil. Por conseguinte, não tendo sido apresentados elementos idóneos pela AT que permitam afastar a presunção estabelecida no artigo 75º, nº 1, da LGT, entende-se que a documentação existente nos autos, comprova de modo suficiente o montante de Derrama Municipal correspondente ao lucro tributável gerado em território nacional (cálculo a título individual), […] bem como o total de Derrama Municipal, incidente quer sobre o lucro tributável gerado quer em território português, quer no estrangeiro, […], devendo para todos os efeitos ser estes os valores a considerar.”
[5] No mesmo sentido, v. os Acórdãos de 28/01/2015, no processo n.º 0722/14, de 11/12/2019, no processo n.º 058/19.9BALSB, de 20/05/2020, no processo n.º 05/19.8BALSB, de 04/11/2020, processo n.º 038/19, e de 26/05/2022, no processo n.º 159/21.3BALSB, todos do Supremo Tribunal Administrativo.