Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1270/2024-T
Data da decisão: 2025-06-05  IRS  
Valor do pedido: € 8.863,65
Tema: IRS; Rendimentos Prediais; Arrendamento; Taxa especial; Aplicação da Lei no Tempo; Benefícios Fiscais; Retrospetividade; Segurança Jurídica; Tutela da Confiança.
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Sumário:

I – A aplicabilidade da redação conferida aos n.os 2 a 5 do artigo 72.º do Código do IRS 
pela Lei  n.º 119/2019, de 18 de Setembro, aos rendimentos prediais gerados após a entrada em vigor de tal lei (1 de outubro de 2019), mas decorrentes de contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes desse momento, deve ser apreciada casuisticamente, no quadro jurídico-constitucional de aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

II – É, em regra, defensável que aos rendimentos derivados dos contratos de arrendamento não habitacional celebrados no domínio da Lei n.º 3/2019 se aplicam as taxas reduzidas previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 72.º do Código do IRS na redação daquela Lei, por aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança;

III – Porém,  no caso concreto, sendo os contribuintes, simultaneamente, senhorios e arrendatários, únicos proprietários dos imóveis a título pessoal e únicos gerentes/sócios da sociedade arrendatária, é manifesto que têm total domínio sobre os contratos de arrendamento, podendo modificá-los ou revogá-los quando e como entenderem, não sendo, por isso, ao abrigo daquela que tem sido a metodologia de aplicação dos referidos princípios, titulares de uma expectativa legítima digna de proteção quanto à manutenção do benefício fiscal em causa, relativamente aos rendimentos gerados posteriormente à entrada em vigor da lei.

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.     RELATÓRIO

1.A..., número de identificação fiscal ..., e B..., com número de identificação fiscal ..., ambos com domicílio na Rua ... n,º..., ...-... Vila Viçosa, (doravante, os “Requerentes”), vieram nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “IRS”) com o n.º 2024..., relativo ao ano de 2023, da qual resultou um valor de € 6.523,49 a ser reembolsado, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida à restituição aos Requerentes do valor do imposto indevidamente cobrado em excesso através de retenção na fonte, ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal e a condenação da Requerida nas custas do processo.

2.De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

3.O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 10 de fevereiro de 2025, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

4.Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 17 de março de 2025, defendendo-se por exceção e por impugnação.

5.Os Requerentes alegam, em síntese, que:

5.1.       A 24 de junho de 2019 celebraram dois contratos de arrendamento não habitacional com a sociedade C..., Unipessoal, Lda., ambos com a duração de 20 anos, com início em 1 de julho de 2019 e termo em 31 de julho de 2039.

5.2.      Entendem que aos rendimentos prediais com fonte nos dois contratos acima referidos deveria ser aplicável o benefício de redução de taxa de imposto em 18 pontos percentuais, ao abrigo do disposto no n.º 5, do artigo 72.°, do Código IRS, na redação dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, que não previa qualquer distinção quanto à natureza do arrendamento em causa. 

5.3.      Foi o mencionado benefício e a expectativa gerada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, que levou os Requerentes a celebrar dois contratos de arrendamento pelo prazo de 20 anos. 

5.4.      À data da celebração dos contratos de arrendamento, à data da declaração dos contratos junto da AT e à data do início de vigência dos contratos, estava em vigor a redação do artigo 72.º, n.º 5 do Código do IRS imposta pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro.

5.5.      A Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, não se limitou a esclarecer dúvidas sobre o conteúdo da Lei n.º 3/2019, mas veio sim alterar, inovar e modificar a norma, ao restringir os benefícios fiscais aos contratos de arrendamento para habitação permanente, em vez de os mesmos se aplicarem a qualquer tipo de arrendamento. 

5.6.      A Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, entrou em vigor a 1 de outubro de 2019, ou seja, em data posterior à celebração e início de vigência dos contratos de arrendamento. 

5.7.      E portanto entendem os Requerentes que a Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, se aplica a todos os contratos de arrendamento, independentemente do seu fim, uma vez que o legislador não restringiu a aplicação das referidas reduções de taxa a uma espécie específica de arrendamento, e que,

5.8.      Existe um erro de aplicação de lei no tempo quando a AT aplica o regime introduzido pelo artigo 2.º da Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, a todo o ano de 2019, e anos subsequentes, substituindo ex tunc aquele que foi introduzido  pelo artigo 2.º da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro.

6.       A Requerida opõe-se a este entendimento, essencialmente com base no facto de que o benefício em causa foi aprovado no contexto do programa Mais Habitação e de que a alteração de redação do artigo 72.º do Código do IRS se aplica aos contratos existentes aquando da sua entrada em vigor, não existindo qualquer legítima expectativa a tutelar. 

7.       Ao abrigo do princípio da livre condução do processo e dado que o dissenso é de natureza essencialmente jurídica, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e dada oportunidade aos Requerentes de se pronunciarem sobre a exceção dilatória de caso julgado material deduzida pela Requerida, tendo-se os Requerentes pronunciado pela improcedência da mesma. 

 

II.   QUESTÃO PRÉVIA – Da exceção de caso julgado material

8.       Notificada para apresentar Resposta, veio a Requerida defender-se por exceção e por impugnação. 

9.          No que à exceção diz respeito, a Requerida invoca a exceção do caso julgado material, alegando, de forma resumida que: 

9.1.      Correram termos no TAF de Beja, tendo transitado em julgado dia 3 de outubro de 2024, os processos com os números, 340/20.2BEBJA, 389/21.8BEBJA, 463/22.3BEBJA, 301/23.0BEBJA, todos intentados pelos aqui Requerentes contra a aqui Requerida. 

9.2.      As ações terão tido por objeto as liquidações de IRS respeitantes, respetivamente, aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, na parte atinente aos rendimentos da categoria F provenientes dos contratos acima identificados.

9.3.      Em todos sendo invocada a mesma causa de pedir – aquela que ora se discute na presente ação. 

9.4.      Em todos os processos foi proferida sentença que, conhecendo do mérito, julgou não assistir razão aos Requerentes.

9.5.      Assim, não se compreenderia que o mesmo facto jurídico – o rendimento predial adveniente dos contratos em apreço – à luz do mesmo ordenamento jurídico, viesse a ter tratamento distinto.

10.    Notificados para o efeito, vieram os Requerentes pronunciar-se sobre a exceção, alegando, de forma resumida que: 

10.1.   Ao contrário do alegado pela Requerida, os processos n.º 340/20.2BEBJA, 389/21.8BEBJA, 463/22.3BEBJA, 301/23.0BEBJA não se encontram transitados em julgado.

10.2.   Os Requerentes recorreram dos mesmos, tendo interposto recurso em cada um dos processos mencionados, tendo os mesmos sido admitidos, não existindo, para o efeito, decisão transitada em julgado. 

10.3.   Não existindo nenhuma decisão com força de caso julgado, não se poderá considerar preenchidos os pressupostos do caso julgado material e, consequentemente, deve a exceção invocada improceder. 

11.    Por se tratar de uma questão prévia, cuja decisão de procedência impediria o conhecimento do restante mérito, será a mesma tratada antes de se iniciar o conhecimento da matéria de facto. 

12.    Conforme já exposto e comprovado pelos Requerentes através da junção aos autos dos comprovativos de apresentação e subsequente admissão dos recursos, foram interpostos, em cada um dos processos identificados, os respetivos recursos em 4 de dezembro de 2024, tendo todos sido admitidos em 7 de abril de 2025.

13.    Mais concretamente, no processo n.º 340/20.2BEBJA, no processo n.º 389/21.8BEBJA, no processo n.º 463/22.3BEBJA e no processo n.º 301/23.0BEBJA, os recursos foram apresentados na mesma data e admitidos na mesma ocasião, conforme demonstrado nos elementos juntos aos autos.

14.    Tendo em consideração os elementos documentais juntos aos autos, dos quais resulta inequivocamente que os recursos nos processos n.º 340/20.2BEBJA, 389/21.8BEBJA, 463/22.3BEBJA e 301/23.0BEBJA foram tempestivamente interpostos e posteriormente admitidos, conclui-se que tais processos não se encontram transitados em julgado.

15.    Nestes termos, e por não se encontrarem reunidos os pressupostos legais da exceção de caso julgado ao abrigo dos artigos 577.º, alínea i) e 580.º do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi o disposto no artigo 2.º, alínea e) do CPPT, julga-se a exceção improcedente.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

16.    Os Requerentes são casados sob o regime de comunhão de adquiridos – facto público constante do pacto social da sociedade. C..., Unipessoal, Lda., o qual é de livre acesso através do Portal de Publicações de Atos Societários e de Outras Entidades.

17.    A Requerente A... era, em 2019 e em 2023 (ano em causa), sócia única da sociedade C..., Unipessoal, Lda., titular do NIPC ... – facto público consultável no mesmo Portal.

18.    No ano de 2019 ambos os Requerentes eram gerentes da sociedade C..., Unipessoal, Lda. – facto público consultável no mesmo Portal.

19.    A Requerente A... celebrou, na qualidade de senhoria, contrato de arrendamento não habitacional com a sociedade C..., Unipessoal, Lda., pelo prazo de 20 anos, com início em 1 de junho de 2019 e termo em 31 de julho de 2039, que tem como objeto o imóvel a que corresponde o artigo matricial ..., da freguesia de ... e ..., concelho de Vila Viçosa, e Distrito de Évora, do qual os Requerentes são proprietários – provado através do contrato de arrendamento junto com o Processo Administrativo Instrutor.

20.    Este contrato foi assinado pela mesma Requerente A... na qualidade de gerente da já mencionada Sociedade arrendatária.

21.    No dia 24 de junho de 2019 o referido contrato foi registado junto da AT para efeitos de Imposto do Selo – facto admitido por acordo.

22.    O Requerente B... celebrou, na qualidade de senhorio, contrato de arrendamento não habitacional com a mesma C..., Unipessoal, Lda., pelo prazo de 20 anos, com início em 1 de junho de 2019 e termo em 31 de julho de 2039, que tem como objeto o imóvel a que corresponde o artigo matricial  ..., da freguesia de ..., concelho de Redondo, e Distrito de Évora – provado através do contrato de arrendamento junto com o Processo Administrativo Instrutor.

23.    Este contrato foi assinado pela aqui Requerente A... na qualidade de gerente da já mencionada Sociedade arrendatária.

24.    No dia 24 de junho de 2019 o referido contrato foi registado junto da AT para efeitos de Imposto do Selo – facto admitido por acordo.

25.    No dia 25 de maio de 2024, os Requerentes submeteram a declaração de IRS referente ao ano de 2023, com os Anexos A, E, F, H, e J – provado por declaração de IRS junta aos autos e admitido por acordo.

26.    No Anexo F da declaração de IRS relativa ao ano de 2023 os Requerentes declararam no quadro 4. “Rendimentos Obtidos e Gastos Suportados e Pagos” o seguinte:

26.1.   Contratos de arrendamento que não beneficiam do regime de redução de taxa previsto no artigo 72.º do Código do IRS”, traduzindo-se um valor ilíquido total de € 51.043,16.

26.2.   Contratos de arrendamento para habitação permanente que beneficiam do regime de redução de taxa previsto no artigo 72.º do Código do IRS - Anos 2019 e seguintes”, traduziram-se num valor ilíquido total de € 9.000,00.

(provado através da declaração de IRS junta aos autos).

27.    Os Requerentes declararam relativamente aos dois contratos de arrendamento supra identificados, um rendimento ilíquido de € 49.243,16 – provado através da declaração de IRS junta aos autos.

28.    A 4 de setembro de 2024 os Requerentes foram notificados da liquidação n.º 2024..., relativamente ao ano de 2023 – facto admitido por acordo.

29.    Da liquidação mencionada resultou o valor de € 6.523,49 a ser reembolsado – provado através da liquidação de IRS junta aos autos.

30.    Não foi aplicada a taxa reduzida de IRS prevista no artigo 72.º, n.º 5, do Código do IRS aos rendimentos provenientes dos dois contratos de arrendamento acima referidos – facto admitido por acordo.

 

A.2. Factos dados como não provados

31.Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

32.Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão, aceder a factos públicos em cumprimento do princípio do inquisitório e da livre condução do processo e apreciação dos factos previsto no artigo 16.º do RJAT, e de discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

33.Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

34.Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, bem como os factos públicos que o tribunal considerou essenciais à descoberta da verdade material, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

35. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

 

IV. DO DIREITO

36.No seu pedido, vieram os Requerentes pedir que este Tribunal Arbitral declarasse parcialmente ilegal o ato de liquidação de IRS, no que tange aos rendimentos prediais obtidos nos contratos de arrendamento já identificados, considerando que aos mesmos deve ser aplicada a taxa reduzida que se encontrava em vigor no momento da celebração dos contratos de arrendamento. 

Ora vejamos, 

37.A Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio alterar o Código do IRS, criando condições de acesso a incentivos fiscais, alterando, com relevo para o nosso caso, o artigo 72.º daquele diploma, que passou a conter a seguinte formulação, nos seus números 2 a 5: 

2 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dois anos e inferior a cinco anos, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

3 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento celebrados com duração igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

4 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dez anos e inferior a 20 anos, é aplicada uma redução de catorze pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

5 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração superior a 20 anos, é aplicada uma redução de dezoito pontos percentuais da respetiva taxa autónoma” (destaque nosso).

38.Ou seja, segundo a letra desta norma, os rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração superior a 20 anos são sujeitos a uma taxa especial de IRS de 10%, uma vez que é aplicada uma redução de 18% à respetiva taxa especial (que à data era de 28%).

39.Nos termos do artigo 2.º, n.os 1 e 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), e na esteira da doutrina de Nuno Sá Gomes, esta redução de taxa, prevista nos n.os 2 a 5, do citado artigo 72.º, do Código do IRS, constitui um benefício fiscal e não um mero desagravamento estrutural (qualificação que pode ser atribuída à taxa especial – à data de 28% - aplicável à generalidade dos contratos de arrendamento), na medida em que é excecional e lhe assiste um fundamento extrafiscal[1] (qual seja o de promover o mercado de arrendamento e o de incentivar os senhorios a anuírem na celebração de contratos de arrendamento de longa duração,  como decorre, com maior ou menor detalhe, das exposições de motivos dos projetos e propostas de lei que deram origem a estas normas, nomeadamente o Projeto de Lei n.º 1046/XIII/4).

40.A citada Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, entrou em vigor no dia seguinte à sua publicação, produzindo efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019 e aplicava-se a novos contratos de arrendamento e respetivas renovações contratuais, bem como às renovações de contratos de arrendamento verificadas a partir de 1 de janeiro, como resulta do respetivo artigo 5.º. 

41.A Lei n.º 3/2019 previa ainda no seu artigo 4.º, que, no prazo de 60 dias a contar da data da sua entrada em vigor, o governo regulamentaria os termos em que se verificariam as reduções de taxa previstas no artigo 72.º do Código do IRS, na sua nova redação. 

42.Em consequência, a 12 de abril de 2019 – i.e., anteriormente à celebração dos contratos de arrendamento aqui em causa – é publicada a Portaria n.º 110/2019, com efeitos a 1 de janeiro de 2019, que no seu preâmbulo estabelece que “[c]om o objetivo de estimular uma oferta de habitação para arrendamento habitacional que responda a necessidades de habitação de longo prazo em condições adequadas ao desenvolvimento da vida familiar em situação de estabilidade, a Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio alterar o artigo 72.º do Código do IRS no sentido de criar condições favoráveis à celebração de novos contratos, ou à renovação de contratos existentes, por períodos longos, estabelecendo, assim, reduções da taxa autónoma de tributação do IRS prevista para os rendimentos prediais, em função da duração desses contratos de arrendamentos”. 

43.Posteriormente, cerca de dois meses e meio após a celebração dos contratos de arrendamento que estão na origem do presente dissídio, foi publicada a Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, que, através do seu artigo 2.º, veio alterar o artigo 72.º, do Código do IRS, passando o mesmo a ter a seguinte redação: 

2 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a dois anos e inferior a cinco anos, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

3 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente celebrados com duração igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

4 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a dez anos e inferior a vinte anos, é aplicada uma redução de catorze pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

5 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a vinte anos, é aplicada uma redução de dezoito pontos percentuais da respetiva taxa autónoma” (destaque nosso).

44.Ou seja, a alteração operada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, aos n.os 2 a 5 do artigo 72.º, do Código do IRS, consistiu, para o que aqui interessa, na adição da expressão “para habitação permanente” a seguir a “arrendamento” em todos aqueles números.

45.De acordo com o respetivo artigo 26.º, n.º 1 e n.º 2 a contrario, esta Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, entrou em vigor, nesta parte, a 1 de outubro de 2019.

46.Posteriormente, a Lei n.º 2/2020, de 31 de março, veio prever, no seu artigo 330.º, que “[c]onsiderando que as alterações aos artigos 22.º, 58.º, 72.º, 81.º e 119.º do Código do IRS aprovadas pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, se destinaram ao aperfeiçoamento do novo regime introduzido pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, e que este diploma visou a criação de condições para o arrendamento habitacional acessíveltêm as mesmas natureza interpretativa” (sublinhados e destaques nossos).

47.O que é dizer que, em termos estritamente literais, por força da norma que resulta das disposições conjugadas do artigo 2.º, da Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, com o artigo 330.º, da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, a redução de 18% da taxa especial terá passado a aplicar-se a rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento apenas com vista à habitação permanente com duração igual ou superior a 20 anos, desde 1 de janeiro de 2019, data de entrada em vigor da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro.

48.Como vimos, entendem os Requerentes que, por terem celebrado os contratos de arrendamento durante a vigência da Lei n.º 3/2019, aos mesmos deve, pelo período de 20 anos, ser aplicada a taxa reduzida. 

49.Em sentido diverso, defende a Requerida que embora a Lei n.º 3/2019 não limite expressamente o seu âmbito aos contratos de arrendamento para habitação permanente, é claro o seu objetivo de incentivar a celebração de contratos duradouros com esse fim e, mais, que a Portaria n.º 110/2019 veio, de forma expressa, consignar esse objetivo da Lei n.º 3/2019, definindo os termos em que se verificam as reduções das taxas previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 72.º do Código do IRS.

50.Sendo o IRS caracterizado na sua generalidade como um imposto de formação sucessiva, cujo facto gerador ocorre a 31 de dezembro de cada ano, importa saber se a redação dos n.os 2 a 5, do artigo 72.º, do respetivo Código, dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, pode ser aplicada a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, num quadro constitucional que proíbe a retroatividade, protege a segurança jurídica e tutela confiança legítima dos particulares na atuação do Estado-Administração e do Estado-Legislador. 

51.Dito de outra forma, é necessário verificar se, neste caso concreto, a posição jurídica de um particular merece tutela perante a alteração ex nunc dos termos de um benefício fiscal. 

 

a.     Segurança jurídica e proteção da confiança no contexto dos benefícios fiscais 

52.No domínio do Direito Tributário, o princípio da segurança jurídica assume relevância significativa e continua a ter autonomia, não obstante a expressa consagração constitucional do princípio da não retroatividade dos impostos previsto no artigo 103.º, n.º 3 da Lei Fundamental (neste sentido, cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6.ª Ed., Coimbra (2010), pp. 144-145)

53.Este princípio da segurança jurídica, também aplicável ao domínio fiscal, desdobra-se em duas dimensões complementares: uma vertente formal, assente na estabilidade e previsibilidade das normas jurídicas[2] e na proibição de retroatividade da lei fiscal,[3] e uma vertente material, que se concretiza no princípio da proteção da confiança, 

54.Como salienta Sérgio Vasques, o princípio da segurança jurídica “radicado no artigo 2.º da Constituição da República, [se] dirige[-se] a todas as áreas da intervenção legislativa e da prática da administração, é evidente que no domínio tributário ele reveste redobrada importância, desde logo porque os tributos representam uma ablação coactiva do património. Ao planear a sua actividade e ao gerir o seu quotidiano, famílias e empresas precisam de poder confiar na lei tributária e nas orientações da administração, fundando nestas muitas decisões cujos efeitos económicos se prolongam no tempo. A previsibilidade e a constância da lei, que se dirão sempre aconselháveis em qualquer área do ordenamento jurídico, tomam-se de superlativa importância quando lidamos com taxas, contribuições e impostos”.[4]

55.E, no caso das normas fiscais retrospetivas – entendida a retrospetividade como o fenómeno que se dá “quando a lei nova, dispondo embora quanto a factos futuros, lesa expectativas fundadas no passado” – são “[…] casos especialmente delicados aqueles em que a lei encoraja um acto dispositivo com efeitos duradouros por parte do contribuinte que, confiando num regime fiscal mais favorável, adquire um imóvel ou realiza uma aplicação financeira, para mais tarde ser surpreendido por alteração legislativa que sujeita a posse do imóvel ou os rendimentos resultantes da aplicação a regime fiscal mais gravoso. Nestes casos, aplicando-se embora a lei fiscal apenas a factos futuros - a posse do imóvel nos anos seguintes à sua entrada em vigor, os rendimentos de capitais gerados após a sua entrada em vigor - é evidente que podem resultar gravemente frustradas as expectativas que os contribuintes formaram com base na própria lei. Estes são casos que aconselham o uso de cláusulas de salvaguarda com vista a proteger os contribuintes que tomaram opções de investimento confiando na lei anterior, solução que o legislador, no entanto, nem sempre tem o cuidado de adoptar”- (cfr. Sérgio Vasques, op. cit., pp. 349 e 350, sublinhados nossos).

56.Prossegue o mesmo Autor, a p. 351 da obra que vimos citando, referindo que “[o] problema da retrospectividade da lei fiscal coloca-se com maior acuidade ainda nos casos de eliminação de benefícios fiscais. Através da criação de benefícios o legislador encoraja directamente certo comportamento por parte do sujeito passivo, considerado meritório por razões variadas de ordem extrafiscal. O contribuinte não pode ter a expectativa de que se mantenham intocados para todo o sempre os benefícios de que aproveita, amarrando-se o legislador a um princípio continuidade {Kontinuitdtsgebot) incompatível com a evolução da economia, da sociedade e do sistema político. Mas é verdade que a eliminação súbita de benefícios fiscais pode acarretar uma lesão grave das expectativas dos contribuintes, com consequências económicas de relevo” (sublinhados nossos).

57.Este é o quadro teórico de análise que vamos utilizar na decisão deste caso. 

58.De facto, os particulares devem, como ponto de partida, poder olhar para o ordenamento jurídico e encontrar nele uma linha condutora clara e coerente, que lhes permita antecipar com segurança o enquadramento jurídico das suas situações, como defende a doutrina clássica do Direito Fiscal, que encontramos por exemplo em Alberto Xavier no seu Manual de Direito Fiscal[5]. Contudo, do outro lado temos o poder-dever do Estado-Legislador de dispor de modo diferente sobre a realidade, sempre que o justifique a mudança das vontades ou passagem do tempo.

59.     Este princípio da confiança, assente na boa-fé, tal como salientado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 25 de setembro de 2012, no âmbito do processo n.º 0168/12[6], “[…] enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito, protege a confiança na actuação dos poderes públicos, exigindo um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas legítimas de cada um em face das autoridades públicas. Estas, pelo próprio poder que podem exercer, têm de assegurar um mínimo de continuidade nas respectivas posições em face dos particulares”.

60.     A este propósito, entendem Jorge Miranda e Rui Medeiros que “[s]e estivermos perante uma medida legislativa desfavorável aos contribuintes em matéria de benefícios fiscais (ex.: revogação de uma isenção de imposto), a jurisprudência constitucional filia esta questão no princípio da segurança jurídica e não propriamente na proibição geral da retroatividade da lei fiscal, fazendo-se apelo ainda assim a um teste de proporcionalidade, de modo a ponderar quer o grau de expectativa criado no contribuinte quer o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa (AcTC n.º 128/2009).

Estamos perante retroatividade (autêntica ou própria) se a lei nova for aplicada a um facto tributário que na vigência de uma lei anterior teve o seu início e produziu todos os seus efeitos. Caso a lei nova seja aplicada a facto tributário com início no passado mas cujos efeitos ainda perduram no presente fala-se então em retrospetividade (retroatividade inautêntica ou imprópria), sendo então proibida a aplicação da nova lei mas apenas se for violada a proteção da confiança”.[7]

61.Ora, quando o legislador optou por consagrar um benefício fiscal cujo pressuposto era a existência de um contrato de arrendamento com a duração mínima de 20 anos, estabeleceu uma condição exigente que, por si só, implica um compromisso de longo prazo por parte dos particulares – compromisso longo esse que quis incentivar.

62.Negociar e vincular-se perante outrem através de um contrato com essa duração representa uma decisão jurídica e económica relevante, que pressupõe estabilidade normativa e confiança nas regras em vigor no momento da celebração.

63.É certo que, em 12 de abril, foi publicada a Portaria n.º 110/2019, cujo preâmbulo refere que o benefício fiscal visava “estimular uma oferta de habitação para arrendamento habitacional que responda a necessidades de habitação de longo prazo em condições adequadas ao desenvolvimento da vida familiar em situação de estabilidade”, sendo que “a Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio alterar o artigo 72.º do Código do IRS no sentido de criar condições favoráveis à celebração de novos contratos, ou à renovação de contratos existentes, por períodos longos, estabelecendo, assim, reduções da taxa autónoma de tributação do IRS prevista para os rendimentos prediais, em função da duração desses contratos de arrendamentos” (destaques nossos). 

64.Não há dúvida de que a Portaria, enquanto ato normativo infra legislativo, não tem força para alterar, restringir ou densificar elementos essenciais de normas tributárias definidos por lei – como seja o âmbito de incidência de imposto ou elementos essenciais de um benefício fiscal – , sob pena de violação do princípio da legalidade fiscal, na sua dupla vertente de reserva de lei material e formal, consagrado no artigo 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa.

65.Isto, porém, não quer dizer que esta circunstância não tenha relevância de todo, como veremos abaixo, uma vez que a mesma é suscetível de informar sobre o espírito da lei.

66.A questão é pois a de saber se uma lei nova pode atingir os termos de um benefício fiscal obtido ao abrigo de um contrato duradouro celebrado antes da sua entrada em vigor. Não se trata de aplicar a nova lei a parte dos rendimentos de 2019 obtidos antes da sua entrada em vigor – caso que em nosso entender corresponderia a uma aplicação retroativa constitucionalmente proibida da norma[8] – mas antes de saber se é possível aplicá-la a rendimentos gerados em 2023, após a sua entrada em vigor, tendo esses rendimentos uma fonte contratual prévia a esse momento.

67.Com efeito, como vimos, à luz do princípio da proteção da confiança, que decorre do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP, os particulares têm o direito de contar com a estabilidade e previsibilidade do regime jurídico em vigor à data em que adotam decisões com relevância económica e jurídica — como a celebração de contratos de arrendamento de longa duração.

68.O facto de a Lei n.º 119/2019 vir alterar, mesmo que para o futuro, os pressupostos de acesso a um benefício fiscal após os contribuintes já se terem vinculado a contratos de 20 anos com base na lei anterior é em abstrato algo suscetível de comprometer expectativas e de frustrar o planeamento económico dos particulares, em possível violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

69.A promessa de um regime fiscal mais favorável terá motivado a celebração de contratos de arrendamento de longa duração, com características exigentes e, muitas vezes, de forma geral, de difícil alteração ou cessação, dada a sua rigidez estrutural.

70.Importa, por isso, reconhecer que a expectativa (legítima ou não, veremos adiante) criada pela norma inicial que prossegue uma certa direção afeta potencialmente todo o conteúdo contratual — incluindo o valor da renda, cláusulas de renovação, de atualização e de cessação, bem como o prazo e outros termos em abstrato possivelmente negociáveis entre as partes.

71.A revogação ou restrição posterior desse benefício, sem acautelar adequadamente os efeitos sobre as situações jurídicas previamente constituídas, é passível de representar uma quebra da confiança legítima dos particulares, em possível violação do princípio da segurança jurídica.

72.Esta é a posição que que tem sido defendida na jurisdição arbitral sobre estas normas, nomeadamente nos processos n.º 398/2020-T e 618/2023-T, e com a qual, em tese e de forma abstrata concordamos. Mas nos quais encontramos elementos fulcrais que nos levam a divergir do seu sentido decisório. Vejamos.

73.No processo n.º 398/2020-T estavam em causa rendimentos do ano de 2019, ano das alterações legislativas (e portanto encontrava-se o tribunal arbitral perante uma situação de retroatividade em sentido próprio) e que, no caso do processo n.º 618/2023-T, o tribunal não elencou em sede de factos provados entre quem foram celebrados os contratos ali em causa, o que indicia que eventualmente não se estava, como estamos aqui, em sede de contratos celebrados entre partes relacionadas, tendo mesmo nessa decisão sido expressamente referido que “da jurisprudência do Tribunal Constitucional, mas também da doutrina (vide Ana Paula Dourado – “Direito Fiscal, Lições” 3º Edição, Almedina, 2018, pag.191) percebemos que a  legalidade ou ilegalidade da retroatividade inautêntica (retrospetividade),  questão relevante nomeadamente nos impostos  periódicos de formação sucessiva, como seja o IRS, exige um juízo casuístico do nível de possível violação da proteção da confiança. Em outras palavras, percebemos que a solução jurídica radica num juízo sobre o princípio da proteção da confiança”.  

74.Efetivamente, o facto de o legislador ter sentido necessidade de, posteriormente (cerca de cinco meses depois, através do já mencionado artigo 330.º, da Lei n.º 2/2020, de 31 de março) atribuir natureza interpretativa à nova redação do artigo 72.º do Código do IRS dada pela da Lei n.º 119/2019, com o fito de clarificar o âmbito de aplicação do benefício fiscal em causa, é revelador da insuficiência na redação original, que, ao não delimitar com precisão os seus destinatários e condições de aplicação, deu lugar a dúvidas e expectativas que julgamos abstratamente atendíveis, não por se estar perante um caso de retroatividade autêntica, mas, ao invés, num quadro de retrospetividade, analisável casuisticamente do ponto de vista dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

75.Gerou-se uma situação em que o legislador parece não ter dito o que queria, e assim que se apercebeu tomou todos os esforços de correção (a Portaria, a lei interpretativa, a configuração dos modelos declarativos). Aliás, a abrangência do benefício foi objeto de notícias à data que se referiam ao facto de, ao contrário do que inicialmente se supunha, a redução da taxa ser aplicável à generalidade dos contratos de arrendamento.[9]

76.Porém, olhando à occasio legis, conseguimos entender que o legislador quis que o benefício fiscal dissesse respeito ao arrendamento habitacional por entender que se justificava, num contexto de escassez de soluções de habitação, especialmente a custos acessíveis e de forma estável para as famílias, estimular os potenciais senhorios a colocar as suas casas no mercado, beneficiando de tributação reduzida quando conferissem estabilidade ao arrendamento, como resulta das exposições de motivos da generalidade dos projetos e proposta de lei que estiveram na origem da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, de que são exemplo os Projetos de Lei n.º 847/XIII/3 e 1046/XIII/4 (já referido acima) e a Proposta de Lei  128/XIII/3.

77.E, com efeito, a própria Lei n.º 119/2019 tem origem num procedimento legislativo iniciado pelo Governo, com a Proposta de Lei 180/XIII/4, apresentada no Parlamento logo em 1 de fevereiro desse mesmo ano, ou seja nem um mês após a entrada em vigor da Lei n.º 3/2019. As alterações aqui em causa não constavam, é certo, da redação inicial da proposta, mas em sede de Comissão foram inseridas alterações propostas pelo Grupo Parlamentar do PS, apresentadas em 14 de junho, com a seguinte justificação “Retificações que se tornaram necessária em virtude das alterações efetuadas ao CIRS pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, designadamente corrigindo remissões a referência à taxa aplicável a contratos com duração igual a 20 anos[10].

b.    A tutela da confiança no caso concreto

78.A admissibilidade das normas fiscais retrospetivas deve ser aferida casuisticamente e no contexto do teste de proporcionalidade proposto pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 410/95, de 26 de junho de 1995 cuja doutrina sumaria Sérgio Vasques, no seu Manual de Direito Fiscal que já vimos citando, ao referir que “[e]ste [a retrospetividade] é um problema sobre o qual o nosso Tribunal Constitucional se debruçou já por mais que uma vez, sempre sustentando a tese de que este problema escapa à proibição da retroactividade e deve antes ser ajuizado em face do princípio da segurança jurídica resultante do artigo 2.º da Constituição da República. Em face deste princípio, a lesão das expectativas dos contribuintes deve considerar-se inadmissível sempre que (a) estejamos perante uma alteração da ordem jurídica com a qual os destinatários das normas razoavelmente não possam contar e (b) essa alteração não seja ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Com base neste teste de proporcionalidade, o tribunal tem sustentado que para que uma medida seja censurada é necessário «em primeiro lugar, que o estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados 'expectativas' de continuidadedepois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do 'comportamento' estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa»” (cfr. p. 352 e notas de rodapé aí constantes, destaques nossos).

79.Ou seja, entendemos que a aplicabilidade da redação conferida aos n.os 2 a 5 do artigo 72.º do Código do IRS pela Lei  n.º 119/2019, de 18 de Setembro, aos rendimentos prediais gerados após a entrada em vigor de tal lei (1 de outubro de 2019) mas decorrentes de contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes desse momento, deve ser apreciada casuisticamente, no quadro jurídico-constitucional de aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

80.Como já escrevemos, o princípio da proteção da confiança “deve ser visto de um ponto de vista subjetivo”.[11]

81.Como é possível ler no Acórdão do Tribunal Constitucional de 12 de março de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 772/2007,  para que exista uma tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, é necessário que se encontrem preenchidos os seguintes “critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) [que] são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas  ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa[12].

82.Neste sentido, importa avaliar se, no caso concreto, existe ou não uma confiança por parte dos Requerentes que deva ser efetivamente tutelada pelo Direito. 

83.Estamos em crer que não.

84.De facto, importa sublinhar que um dos Requerentes é o sócio único da entidade arrendatária dos imóveis objeto de ambos os contratos de arrendamento e que ambos os Requerentes são gerentes daquela mesma entidade.

85.E que, do mesmo passo, são proprietários dos imóveis que originam os rendimentos cuja tributação está aqui em causa. 

86.Ou seja, estamos perante uma situação em que as duas partes dos contratos coincidem, substancialmente, nas mesmas pessoas, operando apenas sob diferentes formas jurídicas. 

87.Esta realidade evidencia que não existe aqui uma verdadeira contraposição de interesses ou de vontades negociais autónomas, mas antes uma substancial identidade de vontade, decisão e direção contratual.

88.Para o que nos importa, não há uma situação de irreversível sujeição contratual, de imutabilidade negocial, que eventualmente seria, aplicando a doutrina que acima se expôs, suscetível de proteção e tutela jurídicas, como se decidiu nos processos do CAAD acima referidos.

89.Relembre-se que os Requerentes alegaram que confiaram numa determinada leitura do regime legal que os levou a celebrar um contrato com a duração de 20 anos.

90.Sendo ou não verdadeira essa intenção, por se tratar substancialmente das mesmas pessoas, teriam sempre ao seu dispor os meios para alterar o conteúdo dos contratos, nomeadamente a sua existência ou duração, sem depender da vontade ou do acordo de um terceiro efetivamente autónomo — uma vez que a entidade arrendatária se encontra sob o controlo total dos Requerentes. Podiam aí, sem qualquer sacrifício imposto por uma penalização contratual, escolher o que fazer com os imóveis: arrendá-los, a partes relacionadas ou não, negociando novos termos (valor da renda, duração) tendo em conta o benefício fiscal então vigente. 

91.A configuração concreta desta relação contratual — em que quem propõe, quem aceita e quem beneficia são, no essencial, as mesmas pessoas — impede que se reconheça a existência de uma confiança que mereça tutela jurídica, nos termos em que o princípio da proteção da confiança tem sido desenvolvido pela jurisprudência constitucional e fiscal.

92.O princípio da proteção da confiança permite distinguir situações que merecem ou não tutela, tendo em conta, nomeadamente o sacrifício imposto pela alteração dos pressupostos do benefício fiscal.

93.Assim, não existe um sacrifício relevante ou irreversível que justifique a tutela da confiança no caso presente, uma vez que a estrutura dos contratos em causa foi integralmente decidida pelos Requerentes, usando os seus dois chapéus, de senhorios e arrendatária. Liberdade de vontade que mantiveram depois da celebração.

94.Os Requerentes, na qualidade de senhorios e arrendatária poderiam, caso tivessem desejado fazê-lo, ter terminado o contrato, ou alterado livremente os seus termos, nomeadamente a duração contratual, aquando da entrada em vigor da nova lei que alterou o benefício fiscal, reduzindo o seu âmbito de aplicação a arrendamentos destinados a habitação permanente – o que, presume-se, ainda podem fazer.

95.A invocação de uma confiança lesada merecedora de tutela, nestes moldes, não encontra respaldo factual nem jurídico.

96.Em suma, ainda que se possa aceitar que a Lei n.º 3/2019 criou um benefício fiscal associado à celebração de contratos de longa duração, o que pode ter gerado uma expectativa inicial de manutenção desse regime (verificando-se, assim, o primeiro critério do teste da proteção da confiança), e ainda que os Requerentes tenham celebrado contratos de arrendamento com duração de 20 anos, o que pode sugerir alguma organização de planos de vida com base nessa expectativa (satisfazendo, em parte, o segundo critério), a invocação da proteção da confiança não pode, no entanto, ser acolhida no caso concreto pela razões aduzidas.

97.De forma geral e abstrata, a alteração superveniente de um benefício fiscal pode, em certas circunstâncias, justificar a aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança — sobretudo quando estejam em causa benefícios com impacto duradouro e compromissos assumidos a longo prazo, como os tratados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 175/2018 e 210/2024, relativos à alteração das condições em que ocorreria a caducidade de isenções de IMT e Imposto do Selo aplicáveis à aquisição de imóveis por fundos e sociedades de investimento imobiliário, quando a aquisição de tais imóveis houvesse sido feita na vigência da lei anterior, até 31 de dezembro de 2013, tendo tal alteração sido julgada inconstitucional por violação do princípio da proteção da confiança. 

98.Era o que se passaria se o legislador decidisse agora aplicar um alargamento do prazo dos contratos para arrendamento para habitação permanente suscetíveis de beneficiar de redução de taxa, de 20 anos para 30 anos, sujeitando os contratos de 20 anos à taxa normal ou apenas ligeiramente reduzida. Ou até se decidisse reduzir a percentagem da redução de taxa para contratos a 20 anos. A sua aplicação aos contratos para habitação permanente celebrados antes da entrada em vigor da norma seria, na maior parte dos casos, ilegal por corresponder a uma aplicação substancialmente – mesmo que não formalmente – retroativa da lei. Aplicação essa que poria em causa a confiança dos particulares que, em geral, seria suscetível de tutela constitucional.

99.Nestes termos, fica claro que, no caso concreto, essa tutela não se justifica pelas razões elencadas, e, por essa razão, não pode o pedido ser julgado procedente.

 

V.    DO PEDIDO DE REEMBOLSO DAS QUANTIAS PAGAS E DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS 

100.Improcedendo o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação que é objeto de impugnação, ficam prejudicados os pedidos deduzidos pelos Requerentes em vista ao reembolso das quantias pagas e ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI. DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. julgar improcedente a exceção dilatória de caso julgado material deduzida pela Requerida;
  2. julgar integralmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2023, e por inerência julgar improcedentes os pedidos de reembolso e pagamento de juros indemnizatórios; e, em consequência,
  3. condenar os Requerentes nas custas do processo.

 

VII.                VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 8.863,654 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

 

VIII.              CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelos Requerentes, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se. 

Lisboa, 5 de junho de 2025

 


O Árbitro, 

 

 

 

João Taborda da Gama



[1] Cfr. Teoria Geral dos Benefícios Fiscaisin Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (165), CEF, Lisboa 1991, pp. 37-38 e 104.

[2] A que se refere J.L. Saldanha Sanches, no seu Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra (2007), pp. 169-170 e a que também nos referimos, em termos idênticos, no Manual de Direito Fiscal Angolano, Coimbra (2010), p. 98, que escrevemos em co-autoria com aquele Professor.

[3] Sendo certo que se “[i]mpõe […] reconhecer que a proibição do artigo 103.º da Constituição abrange qualquer espécie de retroactividade e que, no tratamento da lei fiscal retroactiva, não devemos sobrevalorizar a distinção, apenas formal, entre retroactividade «forte» ou «fraca», «própria» ou «imprópria», «autêntica» ou «inautêntica», numa jurisprudência de conceitos que acaba por passar ao lado da questão essencial.” - Cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª Ed., Coimbra (2018), p. 345.

[4] Cfr. Sérgio Vasques, op. cit., p. 340, doutrina também adotada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido a 11 de julho de 2024, no âmbito do processo n.º 00185/23.8BEPNF, disponível em: Acordão do Tribunal Central Administrativo Norte.

[5] Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, Reimpressão, Lisboa (1981), pp. 116 a 125.

[6] Disponível em www.dgsi.pt. 

[7] Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, Universidade Católica Editora, 2.ª Ed., Lisboa (2018), p. 215.

[8] Quanto a esta questão, reitero, como escrevi em declaração de voto de vencido que juntei ao processo n.º 302/2016-T, que “[a]dmitir normas interpretativas retroativas em matéria fiscal não apenas viola a proibição constitucional expressa de retroatividade em matéria fiscal como distorce os termos de um princípio de justiça fiscal e de igualdade tributária no contexto da atual conformação da relação jurídica tributária, assente nos deveres de cooperação dos contribuintes. Com efeito, e para mais num contexto estrutural de forte pressão orçamental, legitimar o uso de normas fiscais interpretativas-retroativas não pode deixar de funcionar como um incentivo ao legislador orçamental para, e sabendo-se o papel  de direito e de facto da Administração e do Governo na feitura das leis fiscais, a coberto de elaboradas distinções doutrinárias de âmbito geral sobre o que sejam normas (apelidadas de) verdadeiramente interpretativas, afastar, com efeitos retroativos, o sentido interpretativo de normas fiscais que não maximize a cobrança de receita. Escolhendo um sentido que, como legislador, não exprimiu corretamente no momento certo, porque não soube, ou não quis.”

[9]  Vejam-se as notícias publicadas a este propósito a 2 de abril de 2019, por exemplo, nas seguintes páginas da internet, consultadas a 3 de junho de 2025: Arrendamento de longa duração também vai beneficiar as lojas e alojamento local – Observador e em Rendas comerciais também vão ter desconto no IRS - Expresso

[11] Cfr. o nosso Promessas Administrativas, Coimbra (2008), p. 164.

[12] Acórdão do Tribunal Constitucional, de 12 de março de 2009, no âmbito do processo n.º 772/2007, disponível em: TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 128/2009 .