SUMÁRIO:
Inexistindo, no caso em análise, um ato administrativo a conceder um benefício fiscal, isto é, um ato administrativo em matéria tributária sujeito ao prazo de revogação de atos administrativos constitutivos de direitos previsto no artigo 168.º, n.º 2, do CPA, não pode, naturalmente, ocorrer a violação desta norma.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Susana Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 18.02.2025, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A... UNIPESSOAL, LDA., NIPC..., com sede em ..., n.º ..., ...-... ... (“a Requerente”), veio, em 06.12.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista (1) à declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação do Adicional do Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) n.º 2021..., referente ao ano de 2021; n.º 2022..., relativo ao ano de 2022 e; n.º 2023..., respeitante ao ano de 2023, no valor global de €28.535,40 (vinte e oito mil quinhentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos).
2. A Requerente juntou 3 (três) documentos.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 09.12.2024 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
4. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a ora signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
5. A 29.01.2025 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
6. Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 18.02.2025.
7. Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 18.02.2025 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo (“PA”) e, querendo, requerer a produção de prova adicional.
8. No dia 26.03.2025, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual invocou a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, defendeu-se por impugnação e, juntou aos autos o PA.
9. Em 28.03.2025, a Requerente apresentou requerimento, no qual se pronunciou quanto à exceção deduzida pela Requerida, pugnando pela improcedência da mesma.
10. Em 09.04.2025, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, no qual: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT; (ii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias; notificou a Requerente para proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente e à junção aos autos do respetivo comprovativo e; (iii) indicou o prazo limite para proferir a decisão final arbitral.
11. A Requerente e a Requerida não apresentaram alegações finais escritas.
12. Em 14.04.2025, a Requerente juntou aos autos o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES
13. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de AIMI aqui em crise, invoca a Requerente, de entre o mais, o seguinte:
a) Face ao comunicado pretende-se fazer cessar um benefício concedido em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), com reporte a partir do ano de 2021, ou seja, pretende-se praticar um ato administrativo tributário que revogue o ato anterior;
b) O ato administrativo tributário de concessão do benefício de isenção de IMI é claro e manifestamente um ato constitutivo de um direito, o que significa que é proibida a revogação do ato administrativo que concede um benefício fiscal (bem como a rescisão unilateral do respetivo acordo de concessão ou a diminuição, por ato unilateral da administração tributária, dos direitos adquiridos) salvo se houver inobservância das obrigações impostas imputável ao beneficiário, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que o ato pode ser revogado – Cfr. artigo 14.º, n.º 4, Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) –;
c) Tal preceito visa conceder aos contribuintes a garantia de que as decisões administrativas de reconhecimento ou de concessão de benefícios fiscais não serão alteradas a não ser nas hipóteses aí referidas, permitindo-lhes assim efetuar as suas opções económico-financeiras com segurança. E essas hipóteses são apenas duas: (i) a inobservância das obrigações impostas pela lei ou pelo ato reconhecedor do benefício e que constituíram o pressuposto da sua motivação legal ou funcional; (ii) a indevida concessão do benefício por erro nos pressupostos em que o ato assentou;
d) Dado que nestes autos está precisamente em causa a indevida concessão de um benefício fiscal por erro nos pressupostos em que o ato concedente assentou, a questão que urge resolver é a de saber qual é o prazo em que o ato de concessão do benefício fiscal pode ser revogado, uma vez que o citado preceito legal não o identifica, mas que terá de constar necessariamente da lei;
e) A Lei Geral Tributária (“LGT”) prevê especificamente a possibilidade legal de revogação de atos administrativos em matéria tributária no seu artigo 79.º, diferenciando-a, assim, da possibilidade legal de revisão dos atos tributários constantes do artigo 78.º;
f) Mas nem esse diploma – LGT – nem o Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) contém qualquer norma sobre o prazo para a aludida revogação, pelo que tal prazo só pode ser o constante das regras do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) – diploma que constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário (artigos 2.º, alínea c), da LGT e 2.º, alínea d), do CPPT – e que devem ser aplicadas no direito tributário de acordo com a natureza do caso omisso, mais precisamente as regras que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos nos artigos 165.º e seguintes, do CPA;
g) Assim, o prazo para a revogação de tal ato administrativo de concessão da isenção de IMI só pode ser o constante nas normas do CPA, que não o relativo ao prazo previsto para a revisão do ato de liquidação daquele imposto;
h) Dito isto, conclui-se que os atos impugnados, ao destruir ex tunc os efeitos do ato que concedeu a isenção de IMI, são ilegais por violação do artigo 168.º, n.º 2, do CPA[1];
i) Não obstante o referido, e sem prescindir, foi, ainda, violado o princípio do inquisitório do dever de fundamentação e de audiência prévia no âmbito do procedimento.
14. Por sua vez, a AT contra-argumenta com base nos seguintes fundamentos:
a) Neste imposto, não estão legalmente previstos quaisquer benefícios fiscais, consagrando a alínea a), do n.º 3, do artigo 135.º-C, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“CIMI”), que os valores dos prédios que estavam isentos ou não sujeitos a IMI no anterior (à data do facto tributário deste imposto – 31.12.ano), não são somados ao valor tributável ao AIMI;
b) Resulta das consultas às aplicações informáticas que as liquidações identificadas pela Impugnante foram efetuadas em 13.11.2024, em decorrência da atualização das inscrições matriciais realizadas no Serviço de Finanças de Coimbra-..., em 12.11.2024, que possuem o motivo de alteração (MA) com o código 26 - ISENÇÃO - PERDA OU CANCELAMENTO POR EVENTO DETERMINANTE (ART. 14, N. 1 AL. G));
c) Através dessas alterações, foram removidas as isenções com o código 16 – P – Permanente PRÉDIOS CLASSIFICADOS, que tinham sido inscritas em 2020, produzindo os seus efeitos desde 2019;
d) A utilização deste código pelo Serviço de Finanças de Coimbra-... indicia que, relativamente ao prédio urbano com partes suscetíveis de utilização independente, foi aplicada a isenção do IMI, prevista na alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do EBF para:
«Os prédios classificados como monumentos nacionais e os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável»;
e) Esta isenção era, até 31.12.2022, de carácter automático, operando mediante comunicação da classificação do imóvel como monumento nacional (MN) ou da classificação individualizada como imóvel de interesse público (IIP) ou de interesse municipal (IIM) feita pela Direção-Geral do Património Cultural ou pelos municípios, de acordo com a categoria de classificação;
f) Configurada como isenção automática, não está legalmente prevista a existência de um procedimento de reconhecimento de benefício fiscal pelo qual o órgão da AT declare/constitua o direito à isenção;
g) O direito resulta diretamente de lei e da classificação do imóvel como MN, IIP ou IIM;
h) Consultado o sistema de informação geográfica de suporte ao Atlas do património classificado e em vias de classificação[2], verifica-se que a Rua ..., onde se situa o prédio da impugnante, está localizada em área considerada Zona Especial de Proteção, uma área envolvente do imóvel classificado como MN com a denominação «... » (conforme documento SIG-PatrimónioCultural R ... );
i) Em verdade, essa rua não integra o imóvel classificado como Monumento Nacional e apenas é contígua aos limites territoriais do imóvel classificado;
j) Por essa razão, os prédios situados nessa rua não integram o Monumento Nacional;
k) Face ao exposto conclui-se que o prédio do Requerente não reúne os pressupostos para
aplicação da isenção antes referida;
l) Por outro lado, nos artigos 14.º a 28.º, a Requerente enuncia vários princípios de direito, referências abstratas sem qualquer indiciação ao caso concreto, nem junta qualquer prova documental relativa ao procedimento relativo ao reconhecimento do benefício fiscal, pelo que não é possível exercer cabalmente o contraditório;
m) Ainda assim, é, hoje, pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência firmada sobre esta matéria, que uma decisão, ou um ato, estarão devidamente fundamentados sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões que a sustentaram, permitindo-lhe apreender o itinerário valorativo e cognoscitivo seguido pelo autor do ato;
n) Ou seja, o que releva em sede de fundamentação é a efetiva possibilidade de um destinatário normal ficar habilitado, através do ato e da documentação que o suporta, a conhecer as razões pelas quais se decidiu em determinado sentido, e bem assim as normas jurídicas aplicadas que conduziram àquele resultado;
o) O teor do pedido de pronúncia arbitral evidencia claramente, - se dúvidas houvesse -que a Requerente apreendeu claramente os fundamentos de facto e de direito da matéria sub júdice;
p) Acresce ainda que a Requerente não identifica quais os elementos novos que por ela foram suscitados no âmbito do exercício de audiência prévia e sobre os quais alega ter a Requerida o dever de se pronunciar;
q) Por fim, no caso em apreço sempre caberia em última instância à Requerente a prova dos factos de que emerge o direito à isenção do Adicional ao IMI, o que não logrou fazer;
r) Em face de tudo quanto se aduziu impugna-se por infundado todo o aduzido no pedido de pronúncia arbitral que contrarie todo o exposto, devendo decidir-se a final que os atos impugnados não padecem dos vícios que lhe foram assacados nem de nenhuns outros.
II. SANEAMENTO
15. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
16. As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
17. O processo não enferma de nulidades.
18. A exceção – da incompetência material do Tribunal Arbitral –, suscitada pela Requerida será apreciada após determinada a matéria de facto.
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
19. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente foi notificada dos atos tributários de liquidação do AIMI n.º 2021..., referente ao ano de 2021, no valor de €9.488,08 (nove mil quatrocentos e oitenta e oito euros e oito cêntimos); n.º 2022..., relativo ao ano de 2022, no montante de €9.488,08 (nove mil quatrocentos e oitenta e oito euros e oito cêntimos) e; n.º 2023..., respeitante ao ano de 2023, na importância de €9.559,24 (nove mil quinhentos e cinquenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), tudo no valor global de €28.535,40 (vinte e oito mil quinhentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos) (Cfr. Documentos n.ºs 1, 2 e 3, juntos ao PPA):



B. As liquidações já melhor identificadas supra foram efetuadas em 13.11.2024, em virtude da atualização das inscrições
ciais realizadas no Serviço de Finanças de Coimbra-..., em 12.11.2024, cujo motivo de alteração (“MA”), corresponde ao código 26 - ISENÇÃO - PERDA OU CANCELAMENTO POR EVENTO DETERMINANTE (ART. 14, N. 1 AL. G));
C. Através das alterações indicadas em B., foram removidas as isenções com o código 16 – P – Permanente PRÉDIOS CLASSIFICADOS, que tinham sido inscritas em 2020, produzindo os seus efeitos desde 2019;
D. A utilização deste código pelo Serviço de Finanças de Coimbra-... significa que, relativamente ao prédio urbano com partes suscetíveis de utilização independente (identificado nas liquidações aqui em crise), foi aplicada a isenção do AIMI, prevista na alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do EBF, aplicável ex vi artigo 135.º-C, n.º 3, alínea a), do CIMI, para: «Os prédios classificados como monumentos nacionais e os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável»;
E. Segundo o sistema de informação geográfica de suporte ao Atlas do património classificado e em vias de classificação[3], a Rua..., onde se situa o prédio da Requerente, está localizada em área considerada Zona Especial de Proteção, uma área envolvente do imóvel classificado como MN com a denominação «... » (conforme documento SIG-PatrimónioCultural R...);
F. A referida rua não integra o imóvel classificado como Monumento Nacional, sendo apenas contígua aos limites territoriais do imóvel classificado como tal;
G. Por não concordar com as liquidações controvertidas, que removeram a isenção do AIMI, prevista na alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do EBF, aplicável ex vi artigo 135.º-C, n.º 3, alínea a), do CIMI, a Requerente apresentou o PPA que deu origem ao presente processo arbitral, em 06.12.2024 (Cfr. Sistema informático do CAAD).
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
20. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
21. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
22. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
23. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
24. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
25. O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
26. Por fim, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV. 1 DA INCOMPETÊCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL
27. A competência material dos tribunais é de ordem pública, o seu conhecimento procede o de qualquer outra matéria e constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, tudo conforme resulta dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável ex vi alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT.
28. Sustenta a Requerida que o tribunal arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pela Requerente, uma vez que, a seu ver, a sua pretensão assenta em vícios do procedimento de cessação de um benefício fiscal.
29. Aduz, assim, a Requerida que, no âmbito da competência dos tribunais arbitrais, constituídos ao abrigo do RJAT, não se inclui a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária ou de outros atos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
30. Conforme consabido, a competência do tribunal, como pressuposto processual, é aferida pela forma como o demandante conforma o pedido e a respetiva causa de pedir, determinando-se pelos termos em que a ação é configurada pelo autor e em que são expostos a pretensão deduzida em juízo e os factos com relevância jurídica (Cfr. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.11.2019, processo n.º 44/19.9BCLSB e de 07.04.2022, processo n.º 56/21.2BCLSB).
31. Em consequência, para terminação da competência material do Tribunal, cabe atender à articulação da causa de pedir e da pretensão jurídica formulada pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral.
32. O PPA em apreço, como resulta do petitório final, visa a “(...) anulação dos atos de liquidação (...)”.
33. De facto, como a Requerente deduz a pretensão é manifesto que o que está em causa é a apreciação das liquidações aqui impugnadas, não existindo sequer nos autos, como será bom de ver, qualquer ato administrativo de indeferimento ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais (atos esses, que, efetivamente, escapam à competência desta jurisdição arbitral, como refere a Requerida).
34. Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta[4];
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”.
35. Desta feita, é inequívoco que o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar as liquidações controvertidas, improcedendo, assim, a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida.
IV.2 DA DELIMITAÇÃO DAS QUESTÕES A APRECIAR
36. Considerando a factualidade exposta, bem como as pretensões e posições da Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar se:
a) as liquidações em apreço são ilegais, por ter sido revogada, fora do prazo para o efeito, a isenção do AIMI, prevista na alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do EBF, aplicável ex vi artigo 135.º-C, n.º 3, alínea a), do CIMI;
b) e, subsidiariamente, se foi violado o princípio do inquisitório, do dever de fundamentação e de audiência prévia no âmbito do procedimento (procedimento esse que o Tribunal desconhece a que se refere, por não constar qualquer elemento sobre ele junto aos autos).
IV.2.1 DA REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO FISCAL – ISENÇÃO FISCAL DE AIMI –
37. Dispõe o artigo 135.º-A, n.º 1, do CIMI, que “São sujeitos passivos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis as pessoas singulares e coletivas que sejam proprietários, usufrutuários ou superficiários de prédios urbanos situados no território português.”
38. Outra disposição relevante é o artigo 135.º-C, do CIMI, referente à determinação do valor tributável, para efeitos de AIMI, cujo n.º 3 contém uma norma de exclusão de tributação com a seguinte redação: “Não são contabilizados para a soma referida no n.º 1 do artigo 135.º-B[5]: a) O valor dos prédios que no ano anterior tenham estado isentos ou não sujeitos a tributação em IMI;”
39. A referência a “prédios que no ano anterior tenham estado isentos ou não sujeitos a tributação em IMI” remete-nos para a isenção aqui em discussão, designadamente, para o artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF,
40. segundo o qual, estão isentos de imposto municipal sobre imóveis “os prédios classificados como monumentos nacionais (...), nos termos da legislação aplicável.”
41. Esclarecendo o seu n.º 2, quanto ao momento da tributação, que “as isenções a que se refere o número anterior iniciam-se (...) d) relativamente às situações previstas na alínea n), no ano, inclusive, em que ocorra a classificação ou se verifique o reconhecimento da isenção pelo município, consoante os casos.”
42. Por outro lado, o n.º 5 do mesmo preceito normativo, referindo-se à distinção entre benefícios fiscais[6]de caráter automático e dependentes de reconhecimento, diz que “isenção a que se refere a alínea n) do n.º 1 vigora mesmo que os prédios venham a ser transmitidos e é:
a) Automática e comunicada pela Direção-Geral do Património Cultural à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos casos das classificações como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público.”(negrito nosso)
43. Esta isenção já era, até 31.12.2022, de caráter automático, operando mediante comunicação da classificação do imóvel como monumento nacional ou da classificação individualizada como imóvel de interesse público ou de interesse municipal feita pela Direção-Geral do Património Cultural ou pelos municípios, de acordo com a categoria de classificação.
44. Analisado o referido preceito legal – quer na redação vigente até 31.12.2022, quer na redação atual –, não há qualquer dúvida que a isenção aqui em crise é de caráter automática, o que significa, de acordo com o artigo 5.º, n.º 1, do EBF, que a isenção não depende de um “reconhecimento”, ato pelo qual o órgão competente avalia se a pessoa ou situação preenchem os requisitos que a lei impõe como condição para a atribuição da isenção.
45. Assim, atribuída a classificação do prédio como “monumento nacional”, o mesmo fica imediatamente, i.e., ope legis, isento de IMI (e, consequentemente, de AIMI – Cfr. alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do EBF, aplicável ex vi artigo 135.º-C, n.º 3, alínea a), do CIMI –).
46. Ou seja, não há nenhum ato a reconhecer a isenção em causa, a qual, repita-se, é atribuída automaticamente.
47. Desta feita, o aludido benefício não opera a pedido do interessado, isto é, através de requerimento autónomo dirigido especificamente à sua obtenção e com a inevitável instauração e decisão de procedimento próprio para o efeito (como acontece com os benefícios dependentes de reconhecimento – Cfr. artigo 5.º, do EBF), inexistindo, por conseguinte, ato administrativo de reconhecimento em procedimento tributário próprio e autónomo.
48. Volvendo ao caso dos autos, é manifesto que a causa de dissenso entre as partes não se prende com o facto do prédio (de que o Sujeito Passivo é proprietário) não reunir os pressupostos para ser classificado como “monumento nacional” e, consequentemente, para beneficiar da dita isenção.
49. Pois, conforme refere a própria Requerente: “(...) nestes autos está precisamente em causa a indevida concessão de um benefício fiscal por erro nos pressupostos em que o ato concedente assentou, a questão que urge resolver é a de saber qual é o prazo em que o acto de concessão do benefício fiscal pode ser revogado, (...)” (negrito e sublinhado nosso)
50. Concluindo que: “(...) os actos impugnados, ao destruir ex tunc os efeitos do acto que concedeu a isenção de IMI, é ilegal por violação do artigo 168.º, n.º 2, do CPC”, que refere que: “Salvo nos casos previstos nos números seguintes, os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão.”
51. Ora, a resposta a esta questão passa pela natureza dos benefícios, se automática ou dependente de reconhecimento,
52. pois, como já foi referido a isenção em apreço opera direta e imediatamente da lei, o que significa que a AT não procedeu sequer a qualquer ato de revogação, pela simples razão que não existe qualquer ato administrativo que tenha reconhecido, previamente, a existência do benefício em causa.
53. Assim, inexistindo um ato administrativo em matéria tributária – sujeito ao prazo de revogação de atos administrativos constitutivos de direitos previsto no artigo 168.º, n.º 2, do CPA –, não pode ocorrer, naturalmente, a violação desta norma legal.
54. De facto, sendo o aludido benefício automático não tem qualquer aplicabilidade, para efeitos da alteração da situação de isenção, com fundamento em erro nos respetivos pressupostos de facto, o regime da revogabilidade previsto no CPA.
55. Porém vindo a administração tributária a verificar, posteriormente, que não se encontram preenchidos os pressupostos para isenção de que haviam beneficiado de forma automática, mas indevida, aquela tem o poder/dever de proceder, como procedeu, à liquidação do tributo devido, por não ter caducado o direito a essa liquidação à luz da norma que estabelece o prazo para o efeito – artigo 45.º e 46.º, ambos da LGT –, não havendo, por conseguinte, que convocar quaisquer normas e prazos previstos no CPA.
56. Neste sentido, conclui o Tribunal Arbitral que estamos perante um benefício automático, que não implica, pois, qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, carecendo, assim, de materialidade o invocado em torno da alegada revogação ilegal, dado que não houve qualquer ato da administração revogado.
57. Assim, face ao supra exposto, julga-se improcedente o pedido arbitral formulado pela Requerente.
***
58. Por outro lado, veio, ainda, a Requerente alegar, a título subsidiário, que foi violado o princípio do inquisitório, do dever de fundamentação e de audiência prévia no âmbito do procedimento.
59. Ora, diga-se, desde já, que desconhece o Tribunal Arbitral a que procedimento se refere a Requerente, não existindo junto aos autos qualquer elemento de prova que identifique minimamente aquele (e a respetiva tramitação).
60. A Requerente limita-se a enunciar vários princípios de direito, fazendo referências meramente abstratas, não demonstrando a correlação com o caso concreto.
61. Também não foi junto aos autos qualquer documento respeitante ao alegado exercício de audiência prévia exercido pela Requerente, pelo que Tribunal ignora se este foi, efetivamente, exercido e quais foram os supostos elementos novos trazidos pelo Sujeito Passivo sobre os quais a Requerida tinha o dever de se pronunciar.
62. Por fim, e como refere a Requerida “é hoje, pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência firmada sobre esta matéria, que uma decisão, ou um ato, estarão devidamente fundamentados sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razoes que o sustentaram, permitindo-lhe apreender o itinerário valorativo e cognoscitivo seguido pelo autor do ato.”,
63. e, lido o teor do pedido de pronúncia arbitral, o mesmo evidencia, como foi bom de ver, que a Requerente compreendeu nitidamente os fundamentos de facto e de direito da matéria aqui em discussão,
64. pelo que falece, também, este segmento argumentativo da Requerente, devendo os atos de liquidação do AIMI aqui sindicados manter-se na ordem jurídica.
V. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente, mantendo na ordem jurídica os atos tributários de liquidação do AIMI impugnados, e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.
VI. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de €28.535,40 (vinte e oito mil quinhentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 23 de maio de 2025
Susana Mercês de Carvalho
(A Árbitra)
[1] “Salvo nos casos previstos nos números seguintes, os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão.”
[2] (https://culturaportugal.gov.pt/pt/saber/2020/04/atlas-do-patrimonioclassificado-e-em-vias-de-clas sificacao-dgpc/).
[3] (https://culturaportugal.gov.pt/pt/saber/2020/04/atlas-do-patrimonioclassificado-e-em-vias-de-clas sificacao-dgpc/).
[4] “Embora na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT apenas se faça referência explícita à competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiros graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações.” (Cfr. Comentário ao regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p.121)
[5] “O adicional ao imposto municipal sobre imóveis incide sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbano situados em território português de que o sujeito passivo seja titular.”
[6] “Consideram-se benefícios fiscais as medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impendem.”