Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 821/2024-T
Data da decisão: 2025-05-15  IVA  
Valor do pedido: € 15.884,36
Tema: IVA – Taxa de IVA reduzida, conservas, verba 1.3.2 da Lista I anexa ao CIVA
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SUMÁRIO: 

1. A taxa reduzida de IVA prevista na verba 1.3.2 da Lista I anexa ao Código do IVA aplica-se a conservas de peixe, com exclusão de algumas espécies e preparações específicas.

2.  O produto comercializado pela Requerente – hambúrguer de atum– deve ser qualificado, à luz da prova pericial e da jurisprudência arbitral existente, como conserva de peixe, para efeitos da verba 1.3.2 da Lista I anexa ao CIVA.

  

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., Contribuinte n.º..., com sede no..., vem, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da referida liquidação adicional de IVA, respeitante à declaração periódica de 11/2023, no valor de € 15.884,36.

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado em 28 de junho de 2024 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida).

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, em 20 de agosto de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

            4. O Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 9 de setembro de 2024, tendo sido a Requerida notificada, no dia 10 de outubro de 2024, para apresentar a sua resposta.

            5. A Requerida apresentou, em 14 de outubro de 2024, resposta e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”). Defendeu que as liquidações dever-se-ão manter na ordem jurídica, na medida em que a Requerente deduziu indevidamente o IVA relativo a serviços acessórios, incluindo despesas com a aquisição de serviços de publicidade.

            6. Como o Requerente arrolou uma testemunha, por despacho de 15 de outubro de 2024, o Tribunal notificou a Requerente para identificar os pontos da matéria de facto sobre os quais incidiria prova testemunhal. 

            7. Por despacho do Tribunal Arbitral de 14 de novembro de 2024, foi designado o dia 16 de janeiro de 2025 para a realização da reunião, reagendada para o dia 28 deste mês, face à impossibilidade do mandatário para estar presente naquela data.

            8. Por requerimento de 24 de janeiro de 2025 veio a Requerente requerer a admissão da prova pericial colegial produzida no âmbito do processo n.º 641/2024-T e a dispensa da produção da prova testemunhal, uma vez que a testemunha iria prestar depoimento sobre a composição do produto, facto sobre o qual os relatórios periciais constituem meio de prova mais decisivo.

            9. Depois de ouvir a Requerida sobre a admissão da perícia, o Tribunal admitiu o aproveitamento da prova pericial produzida no âmbito do processo 621/2024-T, dispensou a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas e prorrogou o prazo da arbitragem por dois meses, por despacho de 18 de fevereiro de 2025.

           10.Apenas a Requerente apresentou alegações.

           11.Por despacho de 5 de junho de 2025, o Tribunal prorrogou o prazo da arbitragem por mais dois meses.

 

II. POSIÇÕES DAS PARTES

 

           12.    A Requerente defende que as liquidações impugnadas devem ser anuladas por erro na qualificação do facto tributário e por violação da verba 1.3.2. da lista I anexa do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”) aprovada pelo Orçamento de Estado para 2023 (redação da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro).

           13.    A pretensão anulatória alicerça-se nos seguintes fundamentos:

a.   Está em causa a aplicação da taxa reduzida de IVA de 6% na transmissão do produto “hambúrguer de atum”, produto comercializado pela Requerente (Bom Petisco Hambúrguer de Atum), e que no entendimento da AT está sujeito à taxa normal de 23%.

b.   A atual verba 1.3.2 da lista I anexa do CIVA, com a redação conferida pelo Orçamento de Estado para 2023, diz o seguinte: “Conservas à base de peixes e moluscos (inteiros, em filetes, pedaços, em água, azeite, óleo ou outros molhos, em caldeirada, escabeche, recheadas e similares, em qualquer embalagem), com teor de peixe ou molusco superior a 50 %, com exceção do peixe fumado, do espadarte e do esturjão, quando secos, salgados ou em conserva e preparados de ovas (caviar) e pastas de atum, cavala e sardinha.​​ (Redação da Lei n.º 82/2023, de 29​ de Dezembro).

c.    Para a Requerente a verba 1.3.2 da lista I anexa do CIVA, na sua redação atual, alargou o conceito de conserva na medida em que esta pode incluir pedaços, molhos variados, nomeadamente caldeirada e escabeche, e qualquer tipo de embalagem, e o produto em apreço cumpre os três requisitos:

(i)             O hambúrguer não é inteiro nem em filetes, mas é em pedaços;

(ii)           Pode ser misturado com água, azeite, óleos ou outros molhos, em caldeirada, escabeche, recheadas ou similares, o que sucede neste caso, pois a enunciação da lei é exemplificativa e não taxativa (por isso se se refere “outros molhos” e “similares”);

(iii)          A embalagem pode ser qualquer uma (ou seja, não tem de ser a típica lata).

d.   Assim, o produto “[…] Hambúrguer de Atum enquadra-se claramente no entendimento de “Conserva de Peixe” pois é um género alimentício de origem animal, mais concretamente um produto de pesca transformado, resultante da mistura dos ingredientes descritos na lista de ingredientes, composto por atum na percentagem de 52%, em fragmentos/pedaços de carne de atum cuja estrutura muscular inicial se mantém.

e.     Destaca a Requerente que, criou uma receita própria que consiste em juntar ao atum em pedaços óleo e água (dois ingredientes que a lei indica), acrescentando ainda mais 9 ingredientes, que se encontram no escabeche ou caldeirada, mas mesmo que não se encontrassem é irrelevante porque a lei tem uma redação aberta (“outro molhos” e “similares”).

f.      E, o hambúrguer de atum, na sua produção industrial é sujeito ao tratamento térmico de esterilização, apresentando-se como uma conserva hermeticamente fechada e comercialmente estéril e não tem de ser confecionado antes de ser consumido. Em suma, é uma conserva hermeticamente fechada que, ademais, se encontra à venda na secção das conservas.

g.     Defende também a Requerente que, na ausência de uma definição legal de “conserva de peixe” para efeitos de IVA, e de uma definição jurídica, o conceito deve tomar-se com o sentido que tem nas correntes de entendimento dos cidadãos a quem a lei os destina, devendo observar-se o disposto no artigo 11.º da LGT e, consequentemente, as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

h.    A Requerente fez apelo a diversos diplomas que regulam o setor:

(i)         Anexo I do Regulamento (CE) N.° 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal, encontramos a definição de produtos da pesca transformados como sendo aqueles que “resultam da transformação de produtos da pesca ou da subsequente transformação desses produtos transformados”.

(ii)       nos Códigos de Boas Práticas do sector encontramos a definição de “Conserva”, descrevendo-a como o processo que consiste em acondicionar os produtos em recipientes hermeticamente fechados e submetê-los a um tratamento térmico suficiente para destruir ou tornar inativos todos os microrganismos suscetíveis de proliferação, qualquer que seja a temperatura a que o produto se destine a ser armazenado.

(iii)     no Regulamento CEE n.° 1536/1992 que fixa as normas comuns de comercialização para as conservas de atum ou de bonito, são estabelecidas as condições para as denominações de venda das conservas de atum ou de bonito, nomeadamente: constarem dos Códigos 1604.10 de Nomenclatura Combinada, serem preparados exclusivamente a partir de determinadas espécies, estabelecendo também no seu ponto 2, 2.° parágrafo que "preparações culinárias à base de carne de atum ou de bonito, que impliquem a desagregação da sua estrutura muscular podem conter carne de outros peixes desde que tenham sido submetidos ao mesmo tratamento, desde que a parte de atum ou de bonito seja, pelo menos, igual a 25% do peso líquido.

O artigo 3.º ponto 2 deste Regulamento estabelece que "é tolerada qualquer outra forma de apresentação diferente das enumeradas no n.° 1 ou qualquer preparação culinária, desde que seja claramente identificada na denominação de venda".

i.      Esclarece a Requerente que, o produto "Hambúrguer de atum […]" é importado para a União Europeia cumprindo todas as disposições legais previstas no âmbito da produção e entrada de géneros alimentícios de origem animal.

j.     Conclui que o produto “[…]Hambúrguer de Atum” é uma conserva de peixe sujeita à taxa de 6%, padecendo a liquidação do vício de violação de lei e consequentemente deve ser determinada a sua anulação.

 

           14. A Requerida apresentou resposta, na qual sustenta, no essencial, que analisada a ficha do produto, ainda que tenha um teor de atum de 52%, trata-se de um transformado à base de atum, e não uma conserva de peixe conforme o descritivo da verba 1.3.2 da lista I anexa ao CIVA, e por isso, continua a ser sujeito à taxa normal de IVA.

a. A liquidação em causa resulta da correção efetuada no âmbito do procedimento inspetivo, realizado pelos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças de Lisboa, incidente sobre o IVA respeitante ao período de novembro de 2023, sob a ordem de serviço n.º OI2024..., aberta na sequência do pedido de reembolso de IVA n.º... .

b.        No relatório de inspeção tributária (RIT) a AT concluiu que a situação de crédito de imposto foi originada, fundamentalmente, pela dedução do IVA suportado com a aquisição de outros bens e serviços e no facto de uma parte das operações ativas ter sido sujeita à taxa reduzida de IVA.

c.        Esclareceu a AT que o orçamento de Estado para o ano de 2023 alterou a redação da verba 1.3.2 da Lista I anexa ao CIVA e, em 05-01-2023, a área de Gestão Tributária do IVA, publicou o ofício circular n.º 30254 (que plasmou o entendimento da Informação Vinculativa n.º 18928 de 26-11-2020) respeitante aos esclarecimentos a efetuar ao Orçamento de Estado para 2023 e à legislação complementar, no qual relativamente à alteração da verba em análise indicou que:

Com a nova redação, beneficiam da aplicação da taxa reduzida do imposto as conservas de peixe ou de moluscos: 

– inteiros, em filetes ou pedaços; 

– em água, azeite, óleo ou outros molhos, em caldeirada, escabeche, recheadas e similares; 

– em qualquer embalagem, desde que possuam um teor de peixe ou molusco superior a 50%. 

Mantêm-se excluídos da verba o peixe fumado, do espadarte e do esturjão, quando secos, salgados ou em conserva e preparados de ovas (caviar). 

Constata-se, assim, que a nova redação dada à verba exclui da aplicação da taxa reduzida as conservas de peixe em pasta. 

Contrariamente, o salmão, quando seco, salgado ou em conserva, que se encontrava excluído na anterior redação da verba, passa a beneficiar da aplicação da taxa reduzida.

d.       Conclui a AT que, para beneficiar da inclusão nesta rúbrica, temos de estar na presença de produtos que:

(i)      Se qualifiquem como conservas de peixe, com exceção do peixe fumado, do espadarte e do esturjão, quando secos, salgados ou em conserva e preparados de ovas (caviar);

(ii)    As conservas de peixe têm de ter um teor de peixe superior a 50%;

(iii)   As conservas de moluscos desde que tenham um teor de molusco superior a 50%; 

(iv)   Estando na presença de conservas (com um teor de peixe ou molusco superior a 50%) estas podem-se apresentar “inteiros”, em filetes ou pedaços, em água, azeite, óleo ou outros molhos, em caldeirada, escabeche recheadas e similares, em qualquer embalagem.

e.        A AT faz notar que a regra geral do direito europeu é obrigatoriedade da taxa normal de IVA, ficando a autorização (e livre margem) conferida ao legislador nacional, para aplicação de uma ou duas taxas reduzidas, circunscrita aos bens e serviços listados no anexo III à Diretiva IVA (v. artigos 98.º e 99.º da Diretiva IVA)

f.        E adianta que os diplomas assinalados pela Requerente não permitem encontrar o que se deve entender por conserva de peixe. 

g.       Na nova redação da verba 1.3.2 da lista I anexa do CIVA, aplicável à data dos factos, alargou-se o âmbito da conserva que passou a incluir pedaços, molhos variados e qualquer tipo de embalagem, mas ficam de fora as pastas de atum, ainda que tenham um teor de peixe superior a 50%.

h.      Ora, o hambúrguer de peixe em apreciação, de acordo com a ficha técnica apresentada pela Requerente, resulta da mistura dos ingredientes descritos na lista de ingredientes (características do produto), ou seja, da mistura de: atum (52%) (Thunnus albacares), água, óleo de girassol, pão ralado, farinha de trigo, cebola, ovo em pó, açúcar, alho em pó, sal, salsa e espessante (goma de guar). Por sua vez, Por sua vez, a conserva de atum vulgarmente conhecida como Atum Bom Petisco tem na sua composição os seguintes ingredientes: “Atum 65%”, azeite 34%, sal”, ou seja, o peixe em pedaços, envolto em azeite, enlatado e com teor de peixe superior a 50%.

i.        Diz a AT que, na conserva temos, assim, um alimento sólido (peixe em pedaços), embalado em conjunto com um meio líquido (azeite), considerando que este último tem apenas um papel acessório relativamente a todo o preparado da embalagem [utilizando os termos do Regulamento (UE) N.º 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2011 relativo à prestação de informação aos consumidores sobre os géneros alimentícios], e que no caso do hambúrguer o alimento sólido é o próprio hambúrguer.

j.        No entanto, o conjunto de ingredientes [água, óleo de girassol, pão ralado, farinha de trigo, cebola, ovo em pó, açúcar, alho em pó, sal, salsa e espessante (goma de guar)] que constituem, com o atum, a composição do hambúrguer, poderiam fazer parte de um molho, como tenta defender a Requerente, mas, não é o caso – é que tais ingredientes são misturados entre si, transformando-o num preparado de peixe único, um hambúrguer.

k.       Por último, entende a AT que a diferença entre pasta de atum e o hambúrguer comercializado pela Requerente não é significativa e, ainda que se admitisse a interpretação de que o hambúrguer de peixe pudesse ser uma mistura/pasta à base de peixe, a alteração à verba 3.1.2, em que foi acrescentado “(…) pastas de atum, cavala e sardinha” foi introduzida pela Lei n.º 82/2023 de 29 de dezembro, ou seja, pelo Orçamento de Estado para 2024.

l.        Termina pugnando pela improcedência do pedido arbitral.

 

III. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é, assim, materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.

O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

i. Fatos provados

a.     A Requerente A...  é uma sociedade comercial anónima que tem por objeto social o exercício da atividade de comércio por grosso de outros produtos alimentares, N.E. (código de CAE 046382) e atividade secundária comércio por grosso de peixe, crustáceos e moluscos (CAE 046381). (Cf. PPA e PA)

b.     As conservas de atum da marca “[…]” são a principal marca comercializada pela […]. Contudo, esta também comercializa conservas de anchovas, cavala, lulas, mexilhões, polvos e sardinha. As marcas vendidas pela […] são “[…]”, “[…]”, “ […]”, “[…]”, “[…]”, “[…]”, “[…]”. (Cf. PA)

c.     Em sede de IVA encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal e, em sede de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), no regime geral de tributação, verificando- se o cumprimento das suas obrigações tributárias, tanto em sede de IVA como em sede de IRC. (Cf. PA)

d.     No ano de 2023 foi efetuada uma ação de inspeção à Requerente, à declaração periódica de IVA respeitante ao mês de novembro de 2023, credenciada pela Ordem de Serviço nº OI[…], para o ano de 2023. (Cf. PPA e PA)

e.      A abertura da ordem de serviço foi motivada pelo pedido de reembolso de IVA n.º […], efetuado pela Requerente, na declaração periódica de IVA de 2023/11, no montante de € 198.980,92 (cento e noventa e oito mil novecentos e oitenta euros e noventa e dois cêntimos). (Cf. PPA e PA)

f.      A AT concluiu que a situação do crédito de imposto resultou da dedução do IVA suportado com a aquisição de outros bens e serviços e no facto de uma parte das operações ativas ter sido sujeita à taxa reduzida de IVA, nos termos da verba 1.3.2 da Lista I – anexo ao Código do IVA, e a outra parte se encontrar isenta de Iva, com direito à dedução, de acordo com a alínea h) do n.º 1 do art. 2º da Lei n.º 17/2023, de 14/04. (Cf. PPA e PA)

g.     O reembolso de IVA solicitado na declaração periódica respeitante ao mês de novembro de 2023 foi no valor de € 198.980,82, mas apenas foi deferido € 183.096,56, o que originou uma correção no montante de € 15.884,36. (Cf. PPA e PA)

h.     No ano de 2023 a Requerente tributou as transmissões de hambúrguer de atum à taxa reduzida de IVA. (Cf. PPA e PA)

i.      Até ao ano de 2022 a Requerente sujeitou a tributação das transmissões deste produto à taxa normal de imposto. (Cf. PPA e PA)

j.       O produto é comercializado sob a denominação de venda "Hambúrguer de Atum". (cf. PPA e PA)

k.     De acordo com a ficha técnica o produto é composto por: Atum (52%)(Thunnus albacares), água, óleo de girassol, pão ralado (contém glúten), farinha de trigo, cebola, ovo em pó, açúcar, alho em pó, sal, salsa, espessante (goma de guar)”. (Cf. PPA e PA)

l.      O "Hambúrguer de Atum" é um género alimentício de origem animal, constituído por atum na percentagem de 52%, constituído por fragmentos/pedaços de carne de atum, cuja estrutura muscular inicial se mantém. (Cf. Relatórios periciais)

m.   O Hambúrguer de Atum" é processado como conserva, uma vez que o produto é introduzido numa embalagem (“pouch”) a qual sofre um processo de cravação, seguida de um tratamento térmico de esterilização e por isso a embalagem apresenta-se hermeticamente fechada e comercialmente estéril, que é estável à temperatura ambiente. (Cf. Relatórios periciais, PPA e PA)

n.     O relatório do perito Pedro Nabais, conclui com base em legislação europeia, que, “O produto em causa é um produto da pesca transformado, que na sua produção industrial é sujeito a um tratamento térmico de esterilização, apresentando-se com uma conserva hermeticamente fechada e comercialmente estéril.” (cfr. Conforme relatório de peritagem)

o.     Relatório do Perito nomeado pela Requerente no âmbito do processo n.º 641/2024-T conclui que, “Relativamente às conservas de atum aplica-se o Regulamento (CEE) n.º 1536/92 do Conselho, de 9 de junho que fixa as normas comuns de comercialização para as conservas de atum e de bonito. Neste Regulamento são enumeradas as formas de apresentação comercial possíveis, as informações que deverão constar nas embalagens, os meios de cobertura possíveis e a relação entre peso de peixe contido no recipiente após a esterilização e o peso líquido, expresso em gramas. (Cfr. Relatório de peritagem)

(…)

No que diz respeito à definição de “conserva” importa ter em conta o disposto na Norma NP 4404-1 de 2002 do Instituto Português da Qualidade, onde uma conserva é definida como um “género alimentício que sofreu tratamento térmico ou outro, capaz de reduzir a flora microbiana a um pequeno número de esporos quiescentes de microrganismos não patogénicos e não toxinogénicos, de inativar enzimas e acondicionado em recipiente estanque à água, ao ar e aos microrganismos, de modo a assegurar a estabilidade em condições normais de armazenamento durante o período de validade estabelecido”. Em relação às pastas de peixe, não havendo nenhuma definição legal estabelecida, poderá ser considerada a descrita na publicação “Produtos Tradicionais Portugueses” da Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural sendo descrita como “produto resultante da moenda de peixes, condimentada com ingredientes variados para realçar o paladar. É uma conserva esterilizada pelo calor, apresentada em embalagens troncocónicas ou cilíndricas, de alumínio ou folha-de-flandres e com um peso de 22 a 50 g”. (Fonte: Produtos Tradicionais Portugueses, Lisboa, DGDR, 2001).

(Cfr. Relatório de peritagem)

p.     No Projeto de Relatório de Inspeção a AT concluiu:

q.     Foi a Requerente notificada do Projeto de Relatório de Inspeção através da caixa postal eletrónica, em 13/02/2024, para efeitos de exercício do direito de audição prévia. (cfr. PPA e PA)

r.      A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, tempestivamente, em 28/02/2024. (cfr. PPA e PA)

s.      A AT manteve as correções propostas com a seguinte fundamentação:

t.      A Requerente apresentou, no dia 28/06/2024, pedido de pronúncia arbitral (sistema informático do CAAD).

 

ii Factos não provados

 

Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.

 

iii Fundamentação da fixação da matéria de facto provada

 

O Tribunal Arbitral tem o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e identificar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão em relação às provas produzidas, na suaíntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autosnomeadamente o processo administrativo constituído essencialmente pelas notificações efetuadas à Requerente, o projeto do RIT e o RIT final, e os dois relatórios periciais que foram determinantes para a prova da composição do produto e respetivo processamento, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

V. MATÉRIA DE DIREITO

 

A questão central, e prévia à subsunção ao direito aplicável, prende-se com o facto de se poder qualificar o produto “hambúrguer de atum” como uma conserva de peixe. 

            Assim, a aplicação da taxa reduzida de 6% depende, em primeira linga, da qualificação do produto comercializado pela Requerente como uma conserva de peixe, por aplicação da verba 1.3.2 da lista I anexa ao CIVA, em vigor à data (Junho e julho /novembro de 2023), caso contrário, aplicar-se-á a taxa geral de 23%.

 

Enquadramento legal

 

A verba 1.3.2 da lista I anexa do Código do IVA, na redação à data dos factos, dispunha que a taxa reduzida de IVA de 6% era aplicável a: 

Conservas à base de peixes e moluscos (inteiros, em filetes, pedaços, em água, azeite, óleo ou outros molhos, em caldeirada, escabeche, recheadas e similares, em qualquer embalagem), com teor de peixe ou molusco superior a 50 %, com exceção do peixe fumado, do espadarte e do esturjão, quando secos, salgados ou em conserva e preparados de ovas (caviar).”

A redação atual “Conservas à base de peixes (…) e pastas de atum, cavala e sardinha - que veio acrescentar as pastas de atum aos bens alimentares sujeitos à taxa reduzida - resulta da Lei n.º 82/2023 de 29 de dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2024.

A estrutura e aplicação da taxa reduzida de IVA ao fornecimento de bens e serviços, com base na lista constante do Anexo III da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (doravante “Diretiva IVA”), insere-se numa matéria harmonizada no quadro do sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado da União Europeia, inicialmente instituído no âmbito da então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Nos termos do artigo 96.º da Diretiva IVA, os Estados-Membros devem aplicar uma taxa normal de IVA a todas as operações tributáveis que não estejam sujeitas a taxas reduzidas, isenções ou regimes especiais. No entanto, o artigo 98.º permite que os Estados-Membros apliquem uma ou duas taxas reduzidas, que não devem ser inferiores a 5%, unicamente às entregas de bens e prestações de serviços enumeradas no Anexo III da referida Diretiva.

O Anexo III enumera categorias de bens e serviços que podem beneficiar de uma taxa reduzida, incluindo, entre outros, os produtos alimentares, como previsto no ponto 1:

Produtos alimentares (incluindo bebidas, mas excluindo bebidas alcoólicas) destinados ao consumo humano e animal (...).”

Cabe aos Estados-Membros, dentro dos limites definidos pela Diretiva IVA, concretizar a aplicação dessas taxas reduzidas na respetiva ordem jurídica interna. Em Portugal, essa transposição foi efetuada através do Código do IVA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro, designadamente no artigo 18.º e nas Listas I e II anexas.

Nos termos do estatuído no artigo 18.º do Código do IVA: 

1 - As taxas do imposto são as seguintes:

a) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma, a taxa de 6%;

b) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista II anexa a este diploma, a taxa de 13%;

c) Para as restantes importações, transmissões de bens e prestações de serviços, a taxa de 23%.

No caso português, a Lista I, anexa ao Código do IVA, identifica os bens e serviços sujeitos à taxa reduzida, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º. O ponto 1.1 da Lista I refere-se especificamente aos “produtos alimentares”, dando execução ao disposto no Anexo III da Diretiva IVA.

Quanto à aplicação e interpretação normal e taxas reduzidas, como referido no acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 9 de novembro de 2017, caso AZ processo C-499/16:

[…]

58 (…) Resulta do artigo 98.º da diretiva IVA que a aplicação de uma ou de duas taxas reduzidas é uma possibilidade reconhecida aos Estados-Membros por derrogação do princípio segundo o qual é aplicável a taxa normal. Além disso, segundo esta disposição, as taxas reduzidas de IVA só podem ser aplicadas às entregas de bens e às prestações de serviços mencionadas no anexo III desta diretiva.

59 No que se refere à interpretação desse anexo, importa recordar, por um lado, que as disposições que têm natureza derrogatória de um princípio são de interpretação estrita (v., neste sentido, acórdãos de 12 de dezembro de 1995, Oude Luttikhuis e o., C399/93, EU:C:1995:434, n.º 23, e de 17 de junho de 2010, Comissão/França, C492/08, EU:C:2010:348, n.º 35).

60 Por outro lado, os conceitos utilizados no anexo III da diretiva IVA devem ser interpretados de acordo com o sentido habitual dos termos em causa (acórdão de 4 de junho de 2015, Comissão/Polónia, C678/13, não publicado, EU:C:2015:358, n.º 46).

[…]

Por seu turno, defende a Requerente que “o conceito deve tomar-se com o sentido que tem nas correntes de entendimento dos cidadãos a quem a lei os destina.

Assim, a avaliação da aplicação da taxa reduzida de IVA a um determinado bem alimentar — como os hambúrgueres de atum da marca “[…]” — exige verificar se esse produto se enquadra objetivamente na tipologia de bens abrangidos pela Lista I, ponto 1.1, do Código do IVA, com interpretação conforme ao direito da União Europeia, nomeadamente ao Anexo III da Diretiva IVA, e à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

A matéria de tributação dos hambúrgueres de peixe à taxa reduzida de IVA, no âmbito de um contexto fático e jurídico idêntico ao dos presentes autos, foi objeto de apreciação no Processo n.º 641/2024-T, decidido em 14 de fevereiro de 2025 por Tribunal Arbitral constituído sob a égide do CAAD.

Nesse processo, que envolveu a mesma Requerente e um produto idêntico, foi também suscitada a qualificação do produto como “conserva de peixe”, nos termos da verba 1.3.2 da Lista I anexa ao Código do IVA, então em vigor.

Conforme consta da referida decisão:

“(...) não decorrendo da lei o que se deve entender por ‘Conservas à base de peixes e moluscos (inteiros, em filetes, pedaços, em água, azeite, óleo ou outros molhos, em caldeirada, escabeche, recheadas e similares, em qualquer embalagem), com teor de peixe ou molusco superior a 50 %, com exceção do peixe fumado, do espadarte e do esturjão, quando secos, salgados ou em conserva e preparados de ovas (caviar)’, e tratando-se de um conceito técnico específico, não se nos afigura que deva competir nem à AT nem tão pouco a este Tribunal perorar sobre conhecimentos técnicos que nos transcendem, pelo que se decidiu pela nomeação de Peritos na matéria.”

Mais adiante, após análise dos elementos periciais constantes dos autos, concluiu-se que:

“(...) resulta inequivocamente da prova pericial produzida que o produto denominado ‘hambúrguer de atum’ comercializado pela Requerente se deve qualificar, em termos técnicos e legais (considerando o disposto na verba 1.3.2 da Lista I anexa ao CIVA), como uma conserva de peixe.”

Nos presentes autos, a prova pericial produzida no acima mencionado processo arbitral foi admitida a requerimento da Requerente, com expressa concordância do Tribunal, tendo sido determinado o aproveitamento da prova pericial já produzida naquele processo, atento o carácter técnico e objetivo da matéria analisada e a plena identidade do objeto e do produto comercializado.

Com efeito, os Relatórios Periciais constantes do processo n.º 641/2024-T, elaborados por peritos independentes nomeados pelo Tribunal e pela Requerida, mantêm inteira validade e aplicabilidade, porquanto:

  • dizem respeito ao mesmo produto (hambúrguer de atum da marca “Bom Petisco”);
  • foram produzidos com base em análise técnica da composição e do processo de fabrico do produto;
  • refletem conclusões coincidentes quanto à qualificação do produto como “conserva de peixe”, nos termos e para os efeitos da verba 1.3.2 da Lista I anexa ao Código do IVA.

Não se vislumbrando qualquer facto novo ou elemento distintivo que justifique a repetição da prova pericial, considera-se, assim, plenamente válida e suficiente a fundamentação técnica e factual já produzida nos referidos Relatórios, que este Tribunal adota como sua base probatória para a decisão da matéria em causa

Destaca-se, ademais, que os relatórios periciais produzidos pelo perito nomeado pelo Tribunal e pelo perito da própria requerida (AT) foram coincidentes quanto à qualificação técnica do produto.

Face ao exposto, e com base na prova pericial junta aos autos — cuja validade e relevância técnica foram reconhecidas por este Tribunal, nos termos já expostos —, considera-se provado que o produto comercializado pela Requerente, identificado como “hambúrguer de atum da marca […]”, deve ser tecnicamente qualificado como “conserva de peixe”, para efeitos da verba 1.3.2 da Lista I anexa ao Código do IVA.

Qualificado o produto como “conserva de peixe”, a aplicação, por parte da Administração Tributária, da taxa normal de 23% ao fornecimento do produto em causa revela-se, assim, materialmente ilegal, por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do Código do IVA, em conjugação com a verba 1.3.2 da Lista I anexa ao mesmo Código.

Importa, por conseguinte, julgar procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação da liquidação adicional de IVA impugnada, na parte respeitante à tributação do produto referido à taxa normal.

 

Valor das circulares administrativas

 

Na sua Resposta, a Requerida sustenta a legalidade da liquidação com base numa informação vinculativa e no Ofício Circulado n.º 30254, emitidos pela própria Administração Tributária.

Contudo, importa sublinhar que, conforme reiteradamente afirmado pela doutrina e jurisprudência, as circulares e orientações administrativas da AT não têm força de lei, não vinculam os tribunais e não constituem interpretação autêntica da norma legal, podendo sempre ser objeto de sindicância jurisdicional.

As circulares são instrumentos de orientação interna, com eficácia meramente administrativa, visando uniformizar a atuação dos serviços. Tal como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2009, de 18 de novembro:

A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT) às orientações genéricas constante de circulares [...] não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa.”

No mesmo sentido, as informações vinculativas apenas produzem efeitos jurídicos no plano da relação entre a AT e o contribuinte requerente, nos termos do artigo 68.º da Lei Geral Tributária, não tendo valor normativo geral nem relevância direta para casos em que não sejam expressamente aplicáveis.

Em face do exposto, a invocação destes instrumentos pela AT não afasta o dever de conformação da liquidação ao regime legal aplicável, sendo esta sindicável à luz da prova produzida e da correta interpretação da norma — matéria que, como se viu, conduz à qualificação do produto como “conserva de peixe” e à aplicação da taxa reduzida de IVA.

            

VI. DECISÃO

Termos em que se decide, julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nessa medida:

a)     Anular s liquidação adicional de IVA objeto dos presentes autos;

b)    Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), fixa-se ao processo o valor de € 15.884,36.

 

VIII. CUSTAS

Nos termos da Tabela I, anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 918,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do RCPAT. 

Notifique-se.

Lisboa, 15 de maio de 2025

O Árbitro 

 

Cristina Coisinha