Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 976/2024-T
Data da decisão: 2025-06-09  IRS  
Valor do pedido: € 124.709,10
Tema: IRS – Venda de participações sociais abaixo do valor contabilístico ou do balanço – Presunção do valor da venda – Ilisão – Artigo 52º, do CIRS
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SUMÁRIO:

I   Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão onerosa de quotas duma sociedade comercial, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação nos termos do artigo 52º-3, do CIRS.

II.    O sujeito passivo pode ilidir a presunção prevista no citado artigo 52ª, do CIRS, demonstrando que o preço de venda das quotas abaixo do valor contabilístico ou de balanço se justificou por razões subjetivas atendíveis como sejam, designada e principalmente o facto de o adquirente ser sócio minoritário da sociedade e o único que tem o controlo dos sobreditos e  principais ativos, intangíveis, daquela sociedade e o sujeito passivo e alienante das quotas ter 75 anos de idade e não ter aquele controlo, anteriormente detido pelo seu falecido marido e antecessor.

III.   Para manter o contrato de concessão, principal ativo intangível da sociedade, a concessionária impunha como “conditio sine qua non”  a permanência na sociedade e com controlo desta do sócio minoritário e adquirente das quotas.

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em Tribunal Arbitral:

 

I. RELATÓRIO

1. A..., titular do n.º de identificação fiscal..., com domicílio  na Rua ..., ..., ...-... ..., apresentou, em 19-8-2024, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa. 

 

2. O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto:

(i) a anulação/revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2023... e

(ii) a anulação, por alegada ilegalidade, da liquidação de IRS nº 2023..., de 17-6-2023, relativa ao ano de 2020 no valor de €124.709,10. 

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida). 

4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT. 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, al. a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo devido. 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar [cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD], pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28-10-2024.

7. Em 4-11-2024, o Tribunal Arbitral proferiu despacho a determinar a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17º do RJAT). 

8. Em 3-12-2024, a Requerida apresentou Resposta e remeteu cópia do processo administrativo. 

8-A. Tendo sido reiterado, pela Requerente, o pedido de produção de prova testemunhal e por declarações de parte, entendeu o Tribunal deferir esse pedido agendar data para a reunião do Tribunal com as partes e realização das citadas diligências adicionais de prova.

8-B. Não havendo exceções ou outras questões a debater na mencionada reunião, procedeu-se à produção de prova testemunhal e por declarações de parte,  conforme ata de 7-3-2025, após o que se concedeu prazo a ambas as partes para apresentações de alegações finais por escrito e se designou o dia 28-4-2025, para a prolação da decisão final.

9. Ambas as partes apresentaram alegações em 21-3-2025 (a Requerida)  e 25-3-2025 (a Requerente).

9-A. Por despacho de 27-4-2025 foi decidida a prorrogação justificada do prazo para a decisão, previsto no artigo 21º, do RJAT.

 

A posição das partes

10. Compulsados o PPA, a resposta e as alegações, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

A – Os fundamentos invocados pela Requerente

(a) Os Serviços de Inspeção da Direção de Finanças de Aveiro emitiram a liquidação de IRS nº 2023..., em resultado de correções aos rendimentos declarados pela Requerente no anexo G, da declaração mod 3, no âmbito de ação inspetiva realizada;

(b) Considerou a AT a existência de irregularidades na declaração das mais-valias provenientes da alienação das quotas que a Requerente detinha n sociedade comercial,  B..., Lda. e que correspondiam a 80% do capital social dessa sociedade, repartido por três quotas representativas de 40%, 30% e 10%, desse capital social;

© A sobredita alienação foi declarada pela Requerente no Anexo G1, tendo, desse modo, ficado excluída de tributação;

(d) Considerando haver divergências entre o valor de realização declarado e o valor contabilístico da entidade transmitida, divergências alegadamente indiciadoras de erros ou omissões praticados na declaração de rendimentos passíveis de levar a AT à correção/alteração do valor da transmissão presumindo-o com base no balanço do ano anterior (artigo 52º, do CIRS), a AT solicitou à Requerente o envio dos contratos de compra e venda das sobreditas participações sociais e prova dos meios de pagamento utilizados, bem como a apresentação de justificação para a declaração das vendas por valor abaixo do valor de balanço da sociedade B..., Lda (abreviada e ulteriormente também designada apenas por “sociedade”);

(e) A Requerente, acedendo a estes pedidos da AT, remeteu os contratos de compra e venda das participações sociais (escritura pública de divisão e cessão de quotas)  e cópias dos meios de pagamento utilizados (cheques);

(f) Esclareceu ainda a Requerente que os principais ativos da sociedade B..., Lda., eram e são de caráter intangível, constituídos por: (i) contrato de agência e representação com a empresa “C... Lda.”, no sentido de representar a marca de camiões ...; (ii) a sua carteira de clientes;

(f)  A Requerente, sócia maioritária e a sociedade não controlavam as participações sociais objeto da alienação correspondentes a 80% do capital da sociedade; 

(g)D..., marido da Requerente, falecido em 9-12-2012, era quem controlava os sobreditos ativos;

(h) Após 9-12-2012, a atividade da sociedade prosseguiu sob a direção e controlo de facto da única pessoa habilitada para o efeito: o sócio minoritário E..., sendo este que assegurou e manteve a confiança de clientes, fornecedores e, muito especialmente, da entidade representada;

(i) Sob a direção efetiva desse sócio minoritário entre 31-12-2012 e 31-12-2019, os capitais próprios da sociedade passaram de €1.493.025,89 para €3.419.942,26;

(j) A Requerente teve de prescindir de parte substancial dos direitos que detinha sobre a sociedade como forma de assegurar a manutenção do sócio minoritário E... ao serviço da sociedade, garantindo e mantendo assim a confiança de clientes, fornecedores e, sobretudo, da entidade representada; 

(k) Foi assim que a Requerente aceitou ceder 66% dos 90% de direitos aos lucros que então detinha na sociedade, pelo valor de €320.000,00; 

(l) O sócio minoritário adquirente não dispunha de meios financeiros que lhe permitissem adquirir de forma direta as participações sociais alienadas...

(m) ... e por isso é que entre a Requerente e esse sócio minoritário foi constituída uma sociedade veículo – a F..., Lda., NIF ... -, em que a Requerente detinha 20% e o citado sócio minoritário 80% no respetivo capital social...

(n) ...sendo uma das quotas da sociedade, no valor nominal de €69.951,92, vendida à sociedade veículo por €160.000,00 e...

(o) ... a outra quota de €69.951,92, foi dividida em duas: (i) uma no valor nominal de € 52.463,94, também alienada pela Requerente ao identificado sócio minoritário, pelo valor de €120.000,00 e (ii) outra de valor nominal de €17.087,98, alienada diretamente ao sócio minoritário, por €40.000,00;

(p) Daí não ser de estranhar que, a troco da continuidade de uma participação relevante na estrutura societária e do direito a lucros futuros, a Requerente estivesse disponível e aceitasse transferir boa parte da sua participação societária para o controlo do outro sócio, por um valor acentuadamente inferior ao valor da participação resultante da contabilidade da sociedade; 

(q) A não ser assim, ficaria em causa ou gravemente comprometida a continuidade da sociedade;

(r) Foram estas as razões da Requerente e que a Requerida não aceitou

 

B – Os fundamentos da Requerida

§  A Requerida, confrontando “a modelo 3” com a declaração “modelo 4”, constatou que a participação da Requerente na sociedade, havia sido adquirida, em  parte,  por via sucessória, designadamente após a morte do marido;

§  Por ter sido adquirida em data posterior a 1989, essa parte não está abrangida pela exclusão prevista no artigo 5º, do DL nº 442-A/88;

§  Daí que os SIT inscrevessem a parcela das quotas adquiridas em 2012, no Quadro 9, do Anexo G;

§  Além desta correção e com base nos elementos contabilísticos (balanço e demonstração de resultados) concluíram os SIT que o valor da realização declarado pela Requerente não correspondia ao valor real da transmissão;

§  Assim é que, os SIT, fundados no disposto no artigo 52º, do CIRS e nas razões invocadas no relatório da inspeção – pgs 13 e 14, procederam à correção dos valores declarados pela Requerente;

§  Considera a AT que a aplicação do disposto no artigo 52º, do CIRS, basta-se com a convicção fundamentada de que o valor declarada pode divergir do valor real;

§  No caso, a convicção da AT fundou-se, no essencial, na análise dos balanços e das demonstrações de resultados, desde 2017 a 2020, da sociedade comercial,  B..., Lda.; 

§  Dessa análise resultou para a AT a conclusão de que os capitais próprios que cabiam à Requerente correspondiam a €3.077.948,03 (...) e que desses (capitais próprios) corresponde às quotas alienadas o valor de €2.735.953,81 (...) sendo tal valor notoriamente superior ao declarado na alienação das citadas quotas;

§  Esta fundamentação revela possuir necessária racionalidade económica para a conclusão de que o valor declarado pela Requerente poder não coincidir com o valor real da operação;

§  Tem, por conseguinte, de haver um fundamento económico que justifique que o preço declarado seja inferior ao que resulta do valor patrimonial/contabilístico, fundamento que, no caso, não existe; 

§  A correção do valor declarado para € 1.367.976,90 (artº 52º-3, do CIRS), resulta da presunção de que o valor da alienação é o correspondente ao apurado com base no último balanço, ...

§  ... presunção que a Requerente não ilidiu como lhe competia;

§  Considera ainda a AT que não houve violação do dever de fundamentação, ao contrário do que pretende a Requerente, compreendendo esta bem o raciocínio seguido pela Requerida para efetuar a correção;

§  Os princípios do inquisitório e da justiça fiscal, sendo certo que os SIT notificaram a Requerente para apresentar documentação comprovativa do valor declarado e para exercer o seu direito de audição em sede de inspeção, nada tendo aquela dito ou requerido nesse âmbito;

§  Não tem igualmente fundamento a violação do princípio da capacidade contributiva, louvando-se a Requerida no entendimento espelhado na decisão proferida no processo do CAAD nº 411/2022-T

§  Conclui pela manutenção, in totum, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e da liquidação de IRS nº 2023... .

 

II – Saneamento

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo [cf. artigos 2, n.º 1, a) e 5 do RJAT].

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, al. a), do RJAT,  as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade,  encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

12. O processo não enferma de nulidades. 

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir. 

 

III – Fundamentação

Matéria de facto

 

A - Factos provados

Estão provados os seguintes factos:

a)    A Requerente alienou, em 17-1-2020, as participações que detinha na sociedade comercial “B..., Lda”, com sede na ..., ...-... Arouca...

b)    ...que  se dedica à manutenção e reparação de veículos automóveis, especializada no ramo de camiões de marca “...”;

c)     Os principais ativos desta sociedade, com caráter intangível, são:

(i)             Um contrato de agência e representação com a empresa “C...” para representação no norte do país daquela marca de camiões e

(ii)            Uma carteira de clientes

d)    Após o óbito, em 9-12-2012, do marido e antecessor da Requerente, D... (também conhecido por D...), sócio e gerente da “B..., Lda.”, a atividade desta prosseguiu sob a direção de facto do sócio minoritário, E..., detentor de 10% do capital social daquela empresa;

e)    Após aquela data  (9-12-2012), a atividade da sociedade B..., Lda. prosseguiu sob a direção e controlo de facto da única pessoa habilitada para o efeito: o sócio minoritário E... ...

f)     ...sendo este quem assegurou e manteve a confiança de clientes, fornecedores e, muito especialmente, da entidade representada;

g)    Foi este sócio minoritário que passou a assegurar e manter a confiança dos clientes e fornecedores da sociedade...

h)    ...e muito especialmente da sociedade representada (C...), assumindo funções de “gerente de facto”;

i)      E sob  a direção dele os capitais próprios da sociedade passaram de € 1.493.025,89 para € 3.419.942,26;

j)      Para assegurar a continuidade da sociedade, a Requerente teve de prescindir de parte substancial dos direitos que formalmente detinha sobre aquela sociedade e...

k)    ... alienar parte das participações sociais que detinha; 

l)      A Requerente, com 75 anos de idade em 2020, detinha na sociedade 3 quotas: duas no valor nominal de € 69.951,92 e uma no valor nominal de € 17.087,98, todas representando 90% do capital social;

m)  O citado sócio minoritário e gerente de facto,  E..., detinha 10% do capital social;

n)    Como forma de evitar a saída desse sócio minoritário e gerente de facto, a Requerente acordou com este vender-lhe 66% dos 90% do capital social que detinha, pelo preço de €320.000;

o)    Porque aquele sócio minoritário não dispunha dos necessários meios financeiros para concretizar a sobredita operação, a Requerente acordou com ele na constituição de uma  “sociedade veículo”, F..., LDA., NIF ..., em que a Requerente detinha 20% e o E... 80%;

p)    Ulteriormente a Requerente alienou a esta sociedade uma das quotas no valor nominal de €69.951,92, pelo preço de €160.000,00 e...

q)    ....a outra quota, no valor nominal de € 69.951,92, foi dividida em duas: uma, no valor nominal de €52.463,94 (30%) alienada àquela sociedade por €120.000,00 e...

r)     ...outra, no valor nominal de €17.087,98, alienada diretamente ao sócio minoritário pelo preço de €40.000,00;

s)     Se não procedesse do modo descrito supra [alíneas j) a r)] ficaria em causa ou gravemente comprometida a continuidade da sociedade;

t)     Em 5-6-2023, a Requerente foi notificada do relatório final do procedimento inspetivo levado a cabo pela Requerida e de que resultou a correção dos rendimentos declarados pela Requerente no Anexo G, da declaração mod. 3 e a consequente liquidação adicional de IRS nº 2023..., relativa ao ano de 2020, no valor de €124.709,10, a respetiva demonstração ode acerto de contas nº 2023 ... de 21-6-2023, no valor de €124.657,72;

u)    Os SIT concluíram, face à informação retirada dos documentos contabilísticos da empresa (balanço e demonstração de resultados), que o valor de realização

declarado pela requerente não correspondia ao valor real da transmissão;

v)     Do relatório dos SIT consta o seguinte (pgs 13/14): “(...) tendo em conta tudo o que foi referido ao longo dos pontos anteriores, conclui-se estarem reunidos os fundamentos para considerar que existe divergência entre o valor de realização declarado e o valor real da transmissão no caso da alienação das quotas da sociedade B..., Lda., o que permite à AT proceder à respetiva determinação, de acordo com o n.º 1 do artigo 52. ° do CIRS. Resumem-se, de seguida, os fundamentos que levam a concluir que estão reunidas as condições para a aplicação do artigo 52. ° do CIRS:As demonstrações financeiras, sobretudo o balanço, proporcionam informação acerca da posição financeira, do desempenho e das alterações na posição financeira de uma entidade e destinam-se a um vasto leque de utentes, entre os quais possíveis investidores;conforme prevê o n.º 1 do artigo 15. ° do Código do Imposto do Selo, o balanço é também o elemento que serve de base à determinação do valor tributável para efeitos do Imposto do Selo, no caso de transmissões gratuitas de quotas, quer seja por doação ou por herança;no caso da B..., Lda., o capital próprio da sociedade é superior ao seu capital social, existindo reservas acumuladas de anos anteriores por distribuir. A sociedade tem ainda uma elevada liquidez que demonstra a existência de meios financeiros disponíveis para solver os seus compromissos.Conforme se relatou, a sociedade B..., Lda. tem vindo a acumular reservas (em 2019 as reservas livres ascendiam a mais de 2,3 milhões de Euros) e apresenta resultados transitados positivos. Não é plausível que A... tenha abdicado das quotas que detinha na B..., Lda., representativas de 80% do seu capital, passando a sócia minoritária, por um preço muito inferior ao que resulta do balanço de 2019;em 17/01/2020, A... aliena 2 quotas de valor nominal de €69.951,92, uma das quais é dividida em duas quotas de €52.463,94 e €17.487,98, representativas, respetivamente, de 40%, 30% e 10% do capital social da B..., LDA. As duas quotas representativas de 40% e 30% do capital da sociedade foram alienadas à F..., Lda. e a de 10% a E..., tendo sido declarados como valores de realização, €160.000,00. €120.000,00 e €40.000,00, respetivamente;a quota parte dos capitais próprios da sociedade, transmitidos por A... em 2020, era de €2.735.953,81 (€3.419.942,26 x 80%); com a aquisição das quotas, e tendo pago valores substancialmente inferiores aos que resultam do balanço de 2019 (e que, por definição, espelham a posição financeira da sociedade), os compradores adquiriram o direito à quota parte do capital próprio que inclui um elevado valor de reservas e resultados acumulados distribuíveis, gerados em anos anteriores;os argumentos apresentados pelo SP como justificação pela divergência dos valores de realização declarados e os valores contabilísticos das quotas transmitidas não têm fundamento e foram devidamente refutados, conforme consta do ponto V.4.;Em resumo, perante os factos e elementos apresentados não se equaciona nenhuma razão aceitável que justifique que o SP tenha alienado as quotas que detinha na sociedade B..., Lda e que tenha abdicado de receber os dividendos correspondentes, como retorno do capital investido, em benefício de terceiros e sem uma contrapartida compatível com o real valor da sociedade (...)”

w)   Os SIT procederam assim à correção dos rendimentos declarados pela requerente, inscrevendo no quadro 9, do anexo G, os valores das mais-valias resultantes da alienação em questão, da qual resultou a liquidação de IRS n.º 2023..., aqui contestada;

 

B. FACTOS NÃO PROVADOS

Não está provado:

- que o valor da realização declarado pela Requerente – EUR 320.000,00 [ 66% dos 90% do capital social que detinha – cfr supra, n), dos factos provados] não correspondesse ao valor real da transmissão.

 

C. Motivação para a fixação do sobredito quadro factual. 

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida na audiência de 7-3-2015, designadamente  as declarações prestadas pelo gerente da sociedade e adquirente das quotas em causa,  E..., conjugadas com os depoimentos das testemunhas, G..., CEO da empresa H... (anterior “C..., SA”, a concessionária “...” referida nos autos), consideram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

Em especial, considerou o Tribunal não haver fundamento para considerar não ter sido real o valor acordado para a venda das participações da Requerente  porquanto se consideraram demonstradas as razões para a fixação do preço abaixo dos valores do balanço e que tinham a ver com a absoluta necessidade de manter na sociedade o adquirente dessas participações atendendo que era ele, sócio minoritário da sociedade,  quem, depois do óbito do marido da Requerente,  detinha, em exclusividade, os ativos mais relevantes da sociedade.

Ou seja: a presunção prevista no artigo 52º, do CIRS, mostra-se ilidida.

 

II.             FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

O Direito

Dispõe o art. 52º do CIRS, na redação em vigor no período a que se reportam os factos objeto do presente pedido de pronúncia arbitral:

“ 1- Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 - Se a divergência referida no nº anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data

      da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;

b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas

corresponda, apurado com base no último balanço”.

 

A norma do citado nº 1, do artigo 52º, basta-se com a demonstração de que “possa existir” divergência entre os valores declarado e real, situação que não se confunde com a efetiva existência dessa divergência: “possibilidade de existir” e “efetiva existência” são coisas ou situações bem distintas, como distintos são os encargos probatórios para demonstrar uma situação e outra, matéria que, no entanto, não foi suscitada pelas partes.

Esta norma implica, por conseguinte,  a possibilidade de divergência entre o valor real e o valor declarado com base em critérios objetivos, sendo essa situação pressuposto de aplicação do método indireto previsto no citado art. 52º,  nº 1 em que, uma vez verificado esse pressuposto, a determinação do valor da transmissão, é feita de acordo com os critérios referidos no nº 2 do citado normativo.

São assim esses, brevitatis causa,  os dois momentos distintos de aplicação do art. 52º e que devem ser refletidos na fundamentação da decisão das correções a efetuar pela inspeção tributária, sob pena de tal fundamentação poder ser considerada deficiente ou incompleta.

É a Adminsitraçã oTributária que  tem o ónus de fundamentar a divergências entre o valor declarado e o valor real da transmissão, mas não essas divergências e,  cumprindo esse ónus, fica legitimada para corrigir o valor da transmissão aplicando o critério legal único, previsto no nº 2 do art. 52º do CIRS. 

A Administração Fiscal não cumpre esse ónus se, para fundamentar a divergência de valores, se limita a contrapor ao valor declarado na transmissão, aquele que resulta do último balanço.

Na prática, o entendimento oposto a este, conduziria a que a administração fiscal estivesse sempre legitimada a corrigir o valor da transmissão da quota uma vez verificada a divergência de valores comparando-os com o valor resultante do último balanço, recaindo sobre o sujeito passivo o ónus da prova do valor real (cfr, v. g.,  decisões arbitrais do CAAD nºs 735/2020-T, 5/2022-T e 144/2022-T)

É hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.9, do C.Civil; artº.11, da LGT; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. Edição , 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989,pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e sgs. .).

E, recorde-se, o intérprete e aplicador da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vetores de interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr. nºs 2 e 3 doartº.9º do C.Civil).

Subsumindo:

No caso concreto, as quotas foram vendidas abaixo do valor contabilístico, situação que justificou que a Autoridade  Tributária e Aduaneira, no alegado uso da faculdade prevista no artigo 52º-1, do CIRS, tivesse considerado “fundadamente” haver divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão e procedesse à respetiva determinação, fundamento que não parece ter sido contestado.

Assim é que, na situação, o critério para a determinação, pela AT,  do valor real da transmissão de ações ou outros valores mobiliários foi previsto em 2. e 3., do citado artigo 52º traduzido, tratando-se de quotas, presumir que o valor da alienação foi ou terá sido o correspondente ao apurado com base no último balanço.

É sabido, com efeito, como chama a atenção, por exemplo, a Decisão Arbitral nº 156/2021- T, que o balanço e a demonstração de resultados são os documentos de síntese que melhor refletem a situação da empresa e a formação de lucros, proporcionando informação sobre a empresa, sem prejuízo, no entanto, dos aperfeiçoamentos introduzidos a essa informação através da aplicação do método EBITDA.

Acontece, porém, que nos encontramos no domínio duma presunção “juris tantum”,ilidível, por conseguinte, pelo sujeito passivo considerando que não estão em causa relações especiais em que o valor de realização das mais-valias é apurado obrigatoriamente com base no valor de mercado, não sendo ilidível neste causa a presunção do nº 2, do art. 52º.

Essa elisão depende da adequada justificação da diferença entre o preço declarado e o que resulta do critério presuntivo da Lei.

Pois bem, no caso,  pelas razões expostas e factos provados e não provados, resulta evidente a realidade do preço declarado e das razões que o justificaram.

Daí a total procedência do pedido.

 

III. DECISÃO

Com base no exposto, decide este Tribunal Arbitral Coletivo:

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e, em consequência, 

b)    Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa objeto dos autos e

c)     Anular igualmente a liquidação de IRS nº 2023 ... de 17-6-2023, relativa ao ano de 2020, no valor de EUR 124.709,10;

d)    Julgar prejudicadas as demais questões suscitadas e

e)      Condenar a Requerida nas custas atento o seu decaimento.

 

VALOR DO PROCESSO

            Fixa-se ao processo o valor de € 124.709,10 de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.

CUSTAS

            Custas no montante de 3.060,00, a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. 

·      Notifique-se.

Porto, 9 de junho de 2025

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

                                                           

Marisa Isabel Almeida Araújo

(Árbitro Adjunto)

 

 

Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho

(Árbitro Adjunto)