Sumário:
I. O Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para decidir sobre as decisões de rejeição de procedimento, quer em sede de reclamação graciosa, quer em sede de revisão oficiosa;
II. A incompetência material do Tribunal Arbitral consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, que obsta ao conhecimento do pedido e à absolvição da instância da Requerida.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., titular do número de identificação fiscal (“NIF”) ... e residente na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ... (“Requerente”), requereu, ao abrigo do artigo 2.º, 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), a constituição de tribunal arbitral para pronúncia arbitral do despacho de rejeição de procedimento de reclamação graciosa, ao qual foi atribuído o número de oficio .../2024, bem como do despacho de rejeição de procedimento de revisão oficiosa, ao qual foi atribuído o número de ofício .../2024 e que resultam dos processos executivos contra si instaurados e aos quais foram atribuídos os números ...2023..., ...2023... e ...2023..., que correm termos no Serviço Local de Finanças de Odemira.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
A) Constituição do Tribunal Arbitral
O pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).
Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral em 10-12-2024, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.
B) História Processual
O pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente tem por objeto as decisões de rejeição de procedimento, quer em sede de reclamação graciosa (...2024...), quer em sede de revisão oficiosa (...2024...), procedimentos esses apresentados contra os processos de execução fiscal (“PEF”) instaurados com os n.os ...2023..., ...2023... e ...2023..., para cobrança coerciva, no montante total de € 6.561,64, a correr termos no Serviço de Finanças de Odemira, com origem nas seguintes liquidações de Imposto do Selo:
i) N.º ..., de 15-02-2017, no valor de € 1.666,67 (correspondente à declaração modelo 1 de Imposto do Selo n.º ...);
ii) N.º ..., de 16-02-2017, no valor de € 1.666,67 (correspondente à declaração modelo 1 de Imposto do Selo n.º ...);
iii) N.º..., de 15-02-2017, no valor de € 1.666,67 (correspondente à declaração modelo 1 de Imposto do Selo n.º ...).
No pedido de pronúncia arbitral o Requerente peticiona a procedência da ação, bem como, consequentemente, seja condenada a AT «(…) a retirar o nome do contribuinte da Lista de Devedores bem como dar como extintos os processos executivos.»
Como fundamento da sua pretensão, o Requerente alega, em suma, o seguinte:
«a) As decisões agora impugnadas preteriram formalidades legais, designadamente, falta de citação, preterição esta que consubstancia nulidade insanável, nos termos da alínea a) do n.º 1 do Artigo 165.º do CPPT;
b) Ademais, aquando da instauração dos respetivos processos de execução fiscal e não tendo sido o contribuinte notificado da nota de liquidação para pagamento do imposto de selo que declarou, de forma tempestiva, já havia sido ultrapassado o prazo de quatro anos, a que alude o n.º 1 do Artigo 45.º da LGT, devendo operar o direito a caducidade do direito à liquidação, nos termos e com as respetivas consequências legais.»
Foi proferido despacho arbitral, tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
A Requerida apresentou a sua resposta, tendo aí alegado, por exceção, a incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar o presente pedido de pronúncia arbitral, porquanto a impugnação da rejeição liminar da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa, apresentados contra os PEF instaurados com os n.os ...2023..., ...2023... e ...2023..., deveria ter sido efetuada através de ação administrativa. Alega, ainda, a Requerida, por exceção, que deve este Tribunal Arbitral abster-se de apreciar quaisquer questões relativas aos processos de execução com os n.ºs ...2023..., ...2023... e ...2023..., a correr termos no Serviço de Finanças de Odemira, porquanto a AT não se encontra vinculada à jurisdição arbitral no âmbito da matéria relacionada com o processo executivo. A Requerida alega que, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido deduzido em consequência da rejeição liminar daquele pedido de revisão e sendo este intempestivo, igualmente se mostra o presente pedido de pronúncia arbitral intempestivo, tendo os atos de liquidação de Imposto de Selo se consolidado na ordem jurídica, verificando-se a exceção de inimputabilidade dos mesmos, enquadrada na categoria das exceções dilatórias, nos termos do artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea i) do CPTA, e dos artigos 278.º, n.º 1, 576.º e 608.º do CPC, aplicáveis ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT. A Requerida defende, por impugnação, que o Requerente foi devidamente notificado das liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral no dia 27-02-2017 e que a citação levada a efeito pelo órgão de execução fiscal sob a forma de citação postal obedeceu à forma legal e por isso não padece da nulidade. Por fim, refere a Requerida que, tendo o ora Requerente sido notificado, em 27-02-2017, impõe-se concluir que o exercício do direito à liquidação, naquela data, ainda não tinha caducado, pelo que, deve improceder as alegações do Requerente sobre esta questão.
Concluiu a Requerida dever ser julgada procedente as exceções de incompetência material do presente Tribunal Arbitral com a consequente absolvição da instância da Requerida. Caso assim não se entenda, subsidiariamente peticiona a Requerida que deve o presente Tribunal Arbitral julgar procedente a exceção da inidoneidade do meio processual com a consequente absolvição da Requerida da instância e, sem prescindir, caso assim não se entenda, subsidiariamente, deve o Tribunal Arbitral julgar procedente a inimpugnabilidade dos atos tributários e a consequente caducidade do direito de ação, absolvendo a Requerida da instância. Por fim, caso assim não se entenda, pede que o pedido do Requerente seja julgado improcedente por falta de sustentação legal.
II. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Como referido anteriormente, a Requerida invocou exceções suscetíveis de obstar o conhecimento do mérito da impugnação deduzida no pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente e que cabe apreciar e decidir.
O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto as decisões de rejeição de procedimento, quer em sede de reclamação graciosa (...2024...), quer em sede de revisão oficiosa (...2024...), procedimentos esses apresentados contra os PEF instaurados ao Requerente com os n.os ...2023..., ...2023... e ...2023..., para cobrança coerciva, no montante total de € 6.561,64, a correr termos no Serviço de Finanças de Odemira.
Fundamentando a exceção defende a Requerida, em síntese, que o pedido de pronúncia arbitral não tem como objeto mediato qualquer ato tributário de liquidação. Assim, defende a Requerida que se está perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade de um ato de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial ou arbitral, como pretende o Requerente. Com efeito, a ação administrativa constituiria o meio processual adequado quando o ato impugnado é relativo a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, pelo que nessa medida, nessa parte, este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar o presente pedido de pronúncia arbitral.
Portanto, alega a Requerida que tal facto comporta uma exceção dilatória que se traduz na incompetência do tribunal quanto às liquidações de Imposto do Selo aqui em questão, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição, nessa parte, da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Vejamos então a questão:
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, que enuncia os critérios de determinação material da competência dos tribunais arbitrais nos seguintes termos: «A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.»
Assim, deve-se entender que a competência dos tribunais arbitrais «restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT» (cf. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 105).
Ou seja, a apreciação da competência do tribunal arbitral envolve um juízo sobre a adequação ao caso sub judice do meio processual da ação administrativa especial ou do processo de impugnação judicial, em atenção ao disposto no artigo 97.º do CPPT, que procede à definição dos respetivos campos de aplicação distinguindo a «impugnação dos atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação» (alínea d) do n.º 1) e o «recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação» (alínea p) do n.º 1), sendo que, nos termos do n.º 2 do artigo 97.º, o «recurso contencioso dos atos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação, da autoria da administração tributária, compreendendo o governo central, os governos regionais e os seus membros, mesmo quando praticados por delegação, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos».
Para concretizar tal distinção entre o âmbito de aplicação destes meios processuais, que, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, possui relevo na definição da competência dos tribunais arbitrais tributários, constitui orientação jurisprudencial consolidada que «a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (atualmente ação administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA) depende do conteúdo do ato impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/ação administrativa especial» (cfr. acórdão do STA de 25-06-2009, processo n.º 0194/09).
Como ensina Jorge Lopes de Sousa «Há actos em matéria tributária que são impugnados através da acção administrativa especial, como resulta da alínea p) e do n.o 2 do art.o 97.o do CPPT. Destas normas resulta que a acção administrativa especial é o meio processual adequado quando o acto a impugnar seja de indeferimento total ou parcial de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, e outros actos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um acto de liquidação. Deste artigo [artigo 97.o, do CPPT] resulta claramente que, nos casos em que o acto a impugnar é um acto de liquidação ou um acto que comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação o meio adequado é o processo de impugnação.»
Ora como claramente resulta dos autos, está aqui em causa os despachos de rejeição liminar da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa apresentados pelo Requerente com fundamento em impropriedade do meio processual utilizado.
Ou seja, estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade dos atos de liquidação reclamados, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 2.º do RJAT.
Nestes termos, julga-se o presente Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar o presente pedido de pronúncia arbitral, o que consubstancia uma exceção dilatória que se traduz na incompetência do Tribunal Arbitral, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, determinando-se a absolvição da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
III. Questões de conhecimento prejudicado
Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, «as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)».
Em face da procedência da exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido, fica prejudicado o conhecimento das restantes exceções invocadas pela Requerida e, bem assim, impedido de conhecer e decidir sobre o mérito da causa.
IV. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente a invocada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para decidir sobre as decisões de rejeição de procedimento, quer em sede de reclamação graciosa, quer em sede de revisão oficiosa, mantendo-se estas na ordem jurídica;
b) Absolver a Requerida da instância;
c) Condenar o Requerente no pagamento das custas arbitrais.
V. Valor do processo
Fixa-se ao processo o valor de € 6.561,64, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VI. Custas arbitrais
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 612,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo do Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de junho de 2025
O Tribunal Arbitral,
Sérgio Santos Pereira