Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1247/2024-T
Data da decisão: 2025-05-22  IRC  
Valor do pedido: € 169.944,65
Tema: IRC de 2021– Tributação autónoma. Artigo 88.º n.º 1 do CIRC.
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SUMÁRIO:

I. Para que haja lugar a tributação autónoma de despesas não documentadas, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, é necessário que sejam preenchidos os pressupostos de que as despesas ocorreram efectivamente e que o destinatário dessas despesas não é conhecido nem cognoscível.

II. A prova desses pressupostos como fundamento do acto administrativo de liquidação do tributo devido cabe à Administração Fiscal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam os Árbitros, Professora Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dr. Manuel da Fonseca Benfeito e Dr. Augusto Vieira (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral constituído em 4-2-2025, na seguinte:

 

1. Relatório

A..., LDA., NIPC..., com sede no ..., ...- ...-... Lisboa, doravante designada por A..., (doravante designado de “Requerente”), tendo sido notificada da liquidação adicional de IRC, relativo ao período de 2021, a que se refere a Demonstração de liquidação n.º 2024..., no montante de € 169 944,65, com data-limite de pagamento em 31-08-2024, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pediu a constituição de um Tribunal Arbitral, apresentando o correspondente pedido de pronúncia arbitral (PPA).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (AT).

 

A Requerente termina pedindo ao Tribunal Arbitral que “declare a ilegalidade da contestada liquidação adicional de IRC”.

O pedido de constituição do tribunal arbitral (PPA) foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à AT em 28-11-2024.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 16-01-2025 as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 04-02-2025.

Por Despacho Arbitral de 04-02-2025, notificado em 07-02-2025, nos termos do previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, foi notificada a AT para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando dever ser remetido ao tribunal arbitral cópia do Processo Administrativo.

A Requerida apresentou, em 10-03-2015, a sua Resposta e, na mesma data, remeteu cópia do Processo Administrativo (PA).

Na sua resposta a AT não invocou qualquer questão prévia ou excepção.

Por despacho de 04-04-2025 foi dispensada a reunião de partes e foi fixado prazo de 20 dias para a apresentação de alegações escritas facultativas.

Apenas o Requerente apresentou alegações em 16-04-2025, rebatendo a posição da AT expressa na Resposta e pugnando pela procedência do PPA.

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo, face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A)            A Requerente é uma sociedade comercial por quotas com o objecto social de “prestação de cuidados médicos” [CAE Principal 86220-R3], com um capital social de 5 000,00 €, distribuído por duas quotas de igual valor, pertencente uma a B... e a outra a C... e está sob a jurisdição fiscal do serviço local de Finanças de LISBOA-....

B)            No âmbito do despacho DI2021..., foi feita uma contagem física ao saldo de caixa do sujeito passivo, em 28-10-2021; (cfr. RIT).

C)            Dessa contagem física foi elaborado o Termo de Declarações e Contagem, que apurou o saldo de caixa nesse dia, no montante 1 000,00€, como consta do RIT, como anexo III.

D)           A coberto da Ordem de Serviço nº OI2022..., determinada por despacho de 18-03-2022 e aberta com âmbito parcial para o ano de 2021, foi realizada à Requerente uma acção inspectiva que teve como foco principal a verificação do saldo contabilístico de caixa não coincidente com o efetivamente encontrado à data da contagem, em 28-10-2021; (cfr. RIT).

E)            Nesse procedimento inspectivo, a AT teve como objectivo apurar e verificar todos os factos inerentes á diferença encontrada entre o valor existente, aquando da contagem, comparativamente com os valores declarados pelo sujeito passivo na Informação Empresarial Simplificada e Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal (IES-DA), ao longo dos anos; (cfr. RIT).

F)            De acordo com a IES (primeira declaração) relativa ao exercício de 2020, o saldo contabilístico de Caixa, escriturado, à data de 31-12-2020, era de 325 649,60 €; (cfr. RIT).

G)           Em 17-3-2022, a Requerente apresentou, uma Declaração de Substituição da IES do ano de 2020, corrigindo o saldo de Caixa para 455,91 €, por débito da conta “Accionistas/Sócios”, na importância de 315 000,00 €, tendo como suporte contabilístico a Acta n.º 28, de 20 de Novembro de 2016 e um contrato de mútuo oneroso, celebrado, sob a forma escrita, entre a Requerente e os seus sócios, C... e B..., de 19 de Novembro de 2016.

H)            Em 30-04-2024 foi remetido à Requerente o Projecto de Relatório de Inspecção para efeitos do exercício do direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT e, não tendo o sujeito passivo exercido o seu direito de audição, a AT manteve-o, em 27-05-2025, como Relatório Final (RIT), procedendo às correcções nele propostas, liquidando, posteriormente, sobre aquele valor de 315 000,00 € a tributação autónoma à taxa de 50%, daí resultando um imposto a pagar de 157 500,00 €; (cfr. RIT).

I)              No RIT elaborado pelos Serviços de Inspecção da AT e que foi junto com a Resposta da Requerida vêm referidos os factos e fundamentos que levaram àquelas correcções à matéria colectável, em sede de tributações autónomas, a saber:

“... as alterações efetuadas pelo SP entre 2021 e 2022, nomeadamente a alteração da contabilidade e a entrega de nova declaração IES para o ano de 2020, refletindo as alterações de valores efetuadas em 2021 pelo SP na conta caixa, no valor de € 315.000,00 não estão justificadas: os documentos apresentados pelo SP (ata e contrato de mútuo) como suporte aquele movimento, apenas pretendem aparentar a existência de empréstimos aos sócios, como ficou demonstrado e provado: e cujos principais fundamentos voltamos a afirmar:

Conforme consulta ás IES entregues pelo SP, o saldo de caixa foi formado ao longo dos anos conforme se pode constatar no quadro seguinte, que retrata a evolução do saldo da conta caixa ao longo dos últimos anos:

Em 17/03/2022 o SP entregou uma declaração de substituição da IES/DA relativo ao ano de 2020 (2ª declaração) através da qual alterou os valores relativos ao saldo contabilístico da conta de caixa no final de 2020 e com influência nos anos posteriores. Verificaram-se igualmente alterações no saldo da conta Acionistas/sócios, utilizada como contrapartida dos movimentos de caixa, como podemos verificar no quadro seguinte:

Tendo como objetivo a descoberta da verdade material, na observância do princípio do inquisitório previsto no art.º 58.º da LGT e na sua relevância como princípio constitucional da tributação, realizámos todas as diligências necessárias nomeadamente a análise de todos os documentos/informação disponível (interna e externa), audição através de termo de declarações, realizámos termo de contagem e o SP foi notificado pessoalmente e via email, por várias ocasiões, para apresentar todos os elementos/esclarecimentos de que disponha que serviam de suporte a estes movimentos. Os documentos que o SP apresentou foram um documento com o nome "contrato de mútuo oneroso" e uma ata avulsa.

O que se verifica é que entre 29/07/2021 (data entrega da 1ª a declaração IES) e o dia 28/10/2021 (data da contagem de caixa) o SP fez as referidas alterações contabilísticas, baseadas numa ata avulsa a deliberar esses empréstimos datada de 20/11/2016 e num "contrato de mutuo" com a data de 19/11/2016, que não estavam refletidos na contabilidade, nem nas declarações obrigatórias (IES) entregues até 2020 (se tivessem as declarações anuais IES comunicadas á AT seriam outras, já que estas se baseiam na contabilidade do SP).

Em 28/10/2021 o sócio-gerente do SP, C... NIF ..., quando questionado sobre "A que se devem as diferenças de valores declaradas na IES de 2020 em "caixa e depósitos bancários" e accionistas/sócios" em comparação com o balancete de 31/12/2020?" (O SP tinha-nos, entretanto, fornecido um balancete de 2020 com os valores diferentes daqueles que tinha declarado através da IES), o SP respondeu "Foi detectado um erro na contabilidade e o mesmo foi corrigido". (Termo de declarações - anexo 4).

Ou seja, entre o dia 29/07/2021, data entrega da 1ª declaração IES, e o dia 28/10/2021, o SP refere que deteta um erro na contabilidade e faz as alterações contabilísticas mencionadas no quadro 8, retirando o valor de € 315.000,00 do saldo de caixa, e apresenta como justificação a existência de um documento com o nome "contrato de mútuo oneroso” e uma ata avulsa.

Através das declarações anuais entregues (IES) verifica-se que o saldo da conta caixa em 31/12/2019 era € 309 849,12 e em 31/12/2020 de € 325 649.60(antes alteração do SP).

Nos termos do nº 5 do artigo 121º do CIRC, os elementos constantes das declarações (Declaração anual de informação contabilística e fiscal), devem concordar exatamente com os obtidos na contabilidade ou registos de escrituração.

A contabilidade continua a constituir um elemento fulcral e legalmente obrigatório na esfera societária, determinante para apurar a situação patrimonial e fiscal da sociedade, conforme dispõe os artigos 3º e 17º do CIRC, existindo ainda uma presunção legal de boa-fé, quer quantos aos dados inscritos na contabilidade, executada e aprovada pela gerência, quer nas declarações fiscais entregues pelo SP ao longo dos anos, conforme dispõe o artº 75º nº 1 da LGT.

Apesar do SP apresentar apenas algumas atas, nomeadamente as atas nº 28, 32 e 33, através das declarações anuais entregues (IES), podemos ver no quadro 07, respeitante á deliberação de aprovação de contas, que as contas dos vários exercícios foram aprovadas, por unanimidade em assembleia geral regularmente convocada, e no quadro 08 que foram elaborados o relatório de gestão e as contas do exercício/período e que o relatório de gestão e as contas do exercício foram assinadas por todos os membros da gerência/administração, e essa prestação de contas foi alvo do registo anual na Conservatória do Registo Comercial, conforme consta da Certidão Permanente do SP (anexo 9)

Com base nas normas contabilísticas e declarativas, sem comprovação contrária, as declarações apresentadas pelo sujeito passivo consideram-se verdadeiras e de boa-fé.

A referência a um erro na contabilidade, por parte do SP, não põe em causa a presunção referida, já que o SP se baseia em dois documentos, que como já foi analisado e como reafirmaremos nesta conclusão, não são documentos de prova válidos.

Os factos tributários apurados são baseados em todos a informação existente, e nos elementos que de uma forma mais legal, lógica, óbvia, natural e comprovável resultam da contabilidade do sujeito passivo, e das declarações por ele entregues (veja-se a persistência no tempo de saldo do "Caixa" como observámos na evolução do saldo de caixa nos últimos anos quadro 4).

Da contabilidade resulta que ao longo dos anos sempre existiu um valor elevado registado em caixa.

O valor apurado na contagem de caixa efetuada no dia 28/10/2021, foi de € 1.000,00 (anexo 3). Através das declarações anuais entregues (IES) verifica-se que o saldo da conta caixa em 31/12/2019 era € 309 849,12 e em 31/12/2020 de € 325 649,60 (antes das alterações do SP).

O SP apresenta as atas 32 e 33 elaboradas em 2019, e refere que perdeu o livro anterior. Nessa altura e após abrir um novo livro de atas em 2019, através da ata nº 33, integra a ata avulsa nº 32, mas curiosamente apresenta uma outra ata avulsa que designa como nº 28 datada de 2016, que não tem qualquer numeração, e que não foi integrada no livro em 2019, como aconteceu com a ata nº 32. Além disso o SP afirma que "não conseguimos encontrar o primeiro livro de atas", no entanto a única ata que apresenta anterior a 2019 é esta de 2016, não existe qualquer outra ata nem antes de 2016 nem depois e até 2019, mas o SP apresenta esta data (considera-se “ata”) nº 28 datada de 2016 onde supostamente é deliberado empréstimo/mutuo da sociedade aos sócios C... e B..., por prazo indeterminado, o que nos parece ser uma tentativa de á posteriori, tentar justificar saídas de valores da conta caixa no valor de € 315.000,00 para as quais não foram apresentados quaisquer documentos de suporte válidos que permitam saber a natureza, origem e finalidade daqueles valores.

Procura o SP justificar através do contrato de mútuo apresentado com a data de 19/11/2016, as saídas de caixa e as alterações contabilísticas efetuadas pelo SP entre 29/07/2021 (data entrega da 1 a declaração IES) e o dia 28/10/2021 (data da contagem de caixa), no entanto, como já ficou devidamente fundamentado, a saída do valor de € 315.000,00 do saldo de caixa, não foi efetuada ao abrigo desse alegado contrato.

Quando o exercício de 2020 (e os dos anos anteriores) foi encerrado e as contas aprovadas, não tinha sido contabilizado qualquer contrato de mútuo sendo que, nas assembleias gerais de aprovação de contas estiveram presentes os sócios a quem o contrato de mútuo se refere terem sido concedidos empréstimos pelo que, a existirem de facto os empréstimos nas datas que o contrato refere, esses sócios teriam obviamente conhecimento (até porque eram uma das partes desse contrato). Tendo as contas sido aprovadas até 2020, sem incluir qualquer valor dos empréstimos apenas se pode concluir que, apesar do contrato estar datado de 2016, à data de encerramento e aprovação das contas dos exercícios de 2016 a 2020 0 contrato não existia,

Esta situação foi também confirmada pela contabilista certificada (CC) do SP entre 05/01/2015 e 30/01/2020, D... , com o NIF ... que em termo de declarações (anexo 8), afirmou em 12/01/2024, que não teve conhecimento de nenhum empréstimo da sociedade a algum dos sócios da sociedade no período em que exerceu funções como CC e que não reconhece o documento que lhe foi exibido, denominado "Contrato de mútuo oneroso" datado de 19/11/2016? , e acrescentou que "se reconhecesse os valores em questão teriam sido reconhecidos como empréstimos e desreconhecidos de caixa”.

O SP apresenta um documento com o nome contrato de mútuo, mas como se provou não se verifica o cumprimento das clausulas do contrato: não demonstrou que tenham sido feitas pela sociedade e a favor dos sócios quaisquer entregas de dinheiro (transferências bancárias, ou qualquer outra situação), não cumprindo o "empréstimo anual" definido na clausula 1 a de onde decorre que o declarado nos contratos não corresponde à realidade quanto às datas e valores das alegadas entregas das quantias neles indicadas.

Apesar das várias ocasiões, em que notificámos o SP para apresentar todos os elementos/esclarecimentos que ajudassem a esclarecer as alterações contabilísticas efetuadas pelo SP, nomeadamente quaisquer elementos de que dispusesse que serviam de suporte ao contrato de mútuo oneroso do qual apresentou cópia, nomeadamente extratos contabilísticos (caixa, sócio etc.), guia do imposto de selo pago, assim como outros documentos que tenham servido como suporte a esses registos contabilísticos, assim como foi solicitado para demonstrar quais as "disponibilidades monetárias" emprestadas (valor e datas) no âmbito daquele contrato, o SP nada esclareceu ou enviou.

O SP não cumpriu com o estipulado em diversos normativos, como seja o artº 123º nº 2 e 3 do CIRC, que refere que:

2 — Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte:

a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário;

b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos.

3 — Não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam.

E, não cumpre igualmente o disposto no artº 63ºC da LGT "1 - Os sujeitos passivos de IRC estão obrigados a possuir, pelo menos, uma conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida. 2 - Devem, ainda, ser efetuados através da conta ou contas referidas no nº 1 todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos." (sublinhado acrescentado);

Caso se aquele contrato existisse em 2016 e caso se cumprisse o que lá estava descrito, que o SP emprestava anualmente as disponibilidades monetárias de caixa que e se existirem, aos, segundo e terceiro contraente, na proporção de 4/5 para o segundo e de 1/5 para o último, como já vimos anteriormente no quadro 6, a terem existidos quaisquer saídas de dinheiro da conta caixa do SP para cada um dos sócios estes valores seriam, logo no 1º ano, superiores a € 25.000,00 (€ 170.481,12 para o sócio C... e € 42.620,28 para o sócio B...) que, a terem sido entregues a título de empréstimos, teriam de ser comprovadas através de escritura pública (artigo 1143º do Código Civil), pelo que não pode ser dado relevo probatório a documentos particulares.

O SP não refere sequer quando e porque que valores foram materializados esses alegados empréstimos; o SP nunca apresentou quaisquer esclarecimentos/documentos que confirmem esses exfluxo financeiros a favor dos sócios beneficiários dos mútuos, mesmo depois de questionado/notificado para o fazer.

A circunstância do alegado contrato de mútuo oneroso ser assinado pelo sócio gerente em representação da sociedade e como mutuário (além de serem assinados por outro sócio) facilitou a elaboração deste documento, que pode ter sido redigido e assinado em qualquer altura. Além do mais, não teve lugar o pagamento do imposto de selo, aquando da formalização do contrato.

Todos estes factos apresentados permitem afirmar com segurança que através da apresentação destes documentos (ata e contrato de mútuo) o SP tenta aparentar a existência de empréstimos, pretendendo justificar a saída do valor de € 315.000,00 retirado contabilisticamente da conta caixa em 2021 sem qualquer documento de suporte que o justifique.

A explicação do SP, para a alteração de valores que foram declarados na IES de 2020 (entregue em 29/07/2021) face ao balancete analítico reportado a 31/12/2020 com as alterações efetuadas pelo SP nos valores de "caixa e depósitos bancários" e "acionistas/sócios", foi que "Foi detetado um erro na contabilidade e o mesmo foi corrigido" (anexo 4).

Como já demonstrámos, nem sequer se pode alegar que se trata apenas de um erro contabilístico, ou de um registo tardio, todos os documentos/esclarecimentos recolhidos como ficou demonstrado os documentos apresentado pelo SP (ata e contrato) padecem de várias incongruências, de várias situações que não apresentam nenhum razoabilidade e que principalmente não cumprem vários normativos comerciais e fiscais, não existindo nenhuma evidência do destino, natureza e finalidade do valor que se encontrava em saldo de caixa em 31/12/2019 e em 31/12/2020 (antes da alteração do SP) e que o SP confirma que não existe em caixa, e que a AT confirmou através da contagem física efetuada em 28/10/2021 que não existe.

Não é normal, e por isso não é credível, que uma empresa obrigada a manter contabilidade organizada (artigo 123º CIRC), que dispõe de especialista em contabilidade (Contabilista certificado), incorra em tão grande número de omissões de contabilização de valor elevado: para a dimensão da empresa.

Como já se verificou, um erro na contabilidade que consiste na omissão de contabilização de um alegado contrato de mútuo, e de uma ata, ambos de 2016, não é credível não só pela anormalidade da quantidade de omissões em que se traduziria o «erro», assim como não é razoável nem credível, o tempo que demorou a detetar o "erro" (de 2016 a 2021), para além, de como já vimos, a CC à data afirmar que nunca teve conhecimento de qualquer contrato.

Conclui-se que se está perante uma tentativa de formalização de empréstimos, a posteriori, pretendendo o SP justificar as alterações contabilísticas por ele efetuadas entre o dia 29/07/2021, data entrega da 1 a declaração IES do ano 2020, em que reflete o apuramento através da contabilidade que o saldo de caixa era em 31/12/2020 de € 325 649,60 (logo em 01/01/2021 o saldo inicial da conta caixa seria de € 325.649,60) e o dia 28/10/2021 (data da contagem de caixa)) em que o valor de caixa era de € 1.000,00.

Com a correção contabilística no valor de € 315.000,00 no saldo da conta de caixa, o SP pretende corrigir o valor de caixa que não existe em 28/10/2021 (data da contagem) e que cuja saída de caixa o SP não consegue justificar com documentos de suporte válidos, que justifiquem a efetiva saída de valores de caixa.

É todo este conjunto de factos verificados e fundamentados, que levam a desconsiderar a existência de eventuais mútuos, apenas utilizados pelo SP para tentar justificar saídas injustificadas da conta de caixa no valor de € 315.000,00 no ano de 2021.

Como salientado no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 08-05-2019 no âmbito do processo nº 1119/16.1 BELRA “1). Despesas não documentadas são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique”.

Conforme se expôs e demonstrou verificou-se uma saída efetiva de valores monetários no exercício de 2021, desprovida de suporte documental que permita apurar o seu destino, natureza e finalidade, pelos motivos já amplamente expostos.

Estamos assim perante despesas não documentadas com as consequências em termos de tributação explanadas no nº 1 do artº 88º do CIRC: «As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 por cento, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artº 23º do CIRC.”

J)             A AT, em 25-6-2024, emitiu a nota de liquidação n.º 2024..., num total de 169 944.65 €, correspondendo 157 500,00 € a tributação autónoma e 12 444,65 € a juros compensatórios, proveniente da liquidação sobre IRC e decorrente do procedimento inspectivo credenciado pela sobredita OI2022..., notificando a Requerente para pagamento até 31-08-2024 ou impugnação, nos termos da lei.

K)           Em 27-11-2024 a Requerente entregou no CAAD o presente PPA conforme registo do SGP.

 

1.2.         Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, competindo-lhe antes selecionar os factos relevantes para a decisão da causa, recortados em função da sua pertinência jurídica e adequação às várias soluções plausíveis da questão de Direito a decidir, nos termos da aplicação conjugada do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do  n.º 1 do  artigo 596.º e n.º 3 do artigo 607.º, estes do CPC, aplicáveis por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, como aliás o admite o Tribunal Central Administrativo Sul, no seu Acórdão, proferido em 25-6-2019, no Processo nº. 2459/14.0BESNT e disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/1b5cfb9fdf24abb08025842400486a8b?OpenDocument,  que, no seu sumário, refere:

 “1. Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta pedido formulado pelo autor (cfr.artºs. 596, nº.1 e 607, nºs. 2 a 4, do C.P. Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artº.123, nº.2, do C.P.P. Tributário).

 2. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº.607, nº.5, do C.P. Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6). 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artº.371, do C. Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação”. (itálico nosso) 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na convicção formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º CPC, apenas cedendo à força probatória plena dada pelos documentos autênticos, nos termos do artigo 371.º CC.

 

3.             Posição das Partes

3.1. Requerente

i.Considera que porque não se está perante nenhuma saída de caixa ocorrida em 2021, no montante de 315 000,00 € não se está perante uma despesa não documentada e muito menos um facto tributário.

ii.Considera que não corre qualquer facto tributário pois que “o facto tributário que está na génese da tributação autónoma a que se reporta o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, ocorre quando a despesa tida como não documentada é realizada e não quando, através de uma contagem física do saldo, se presume a sua existência”, pelo que a diferença de caixa que a contabilidade da Requerente não evidenciava, de per si, não constitui facto tributário, no momento da contagem física de Caixa, estando, nessa medida, ferida de ilegalidade a contestada liquidação feita pela AT.

iii.Que a AT não poderia desconsiderar aquela contestada diferença de caixa como uma despesa não documentada, tributando-a, por força do prescrito no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, quanto à presunção de veracidade e da boa-fé das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, uma vez que a Requerente invoca a NCRF 4, a qual permite aos sujeitos passivos corrigir, contabilisticamente, erros de períodos anteriores nas suas demonstrações financeiras, quando haja omissões e declarações incorretas.

iv.Que cometia à AT, o que não fez, demonstrar que os factos controvertidos consubstanciam uma despesa não documentada e assim sendo, para que fosse aplicado o regime da tributação autónoma haveria que demonstrar que: (1) Ocorreu uma despesa não documentada; (2) No ano de 2021 e (3) No montante de 315 000,00 €, não cumprindo o ónus da prova ou dissipação da dúvida sobre o facto tributário.

 

3.2. Requerida

Na resposta a Requerida reproduz os argumentos constantes da fundamentação do RIT que constituição a fundamentação do acto de liquidação impugnado.

 

4.             Matéria de direito

A única questão a decidir, reside em saber se, em resultado da existência do saldo contabilístico de caixa à data de 31-12-2020, no montante de 325 649,60 € e da contagem física de Caixa, operada em 28-10-2021, no montante de 1 000,00 €, se está perante uma despesa não documentada sujeita a tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, que dê causa a uma liquidação adicional de IRC para o a económico de 2021.

 

A - O regime da tributação autónoma por despesas não documentadas

1. O n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, na redacção vigente, estabelece que “As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”, não se encontrando, neste Código, uma definição do que seja despesas documentadas e não coincidente com o que o artigo 23.º do mesmo CIRC define como gastos, devendo, por isso, ser atribuído àquelas despesas o sentido e alcance que têm na linguagem corrente, de saída de meios financeiros do património de uma empresa.

2. O STA no Acórdão n.º 0204/10, de 07-07-2010, refere a esse propósito:

No que concerne às expressões «despesas não documentadas» e «encargos não devidamente documentados», embora em termos literais esta expressão seja de alcance mais vasto (pois abrangerá além das despesas relativamente às quais não existem documentos também aquelas referenciadas em documentos mas que não obedecem aos requisitos exigidos por lei), não haverá um alcance jurídico distinto uma vez que, para efeitos jurídicos, já se deveriam considerar como despesas não documentadas as que não estivessem devidamente documentadas.

E assim, “(…)  tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o”, pelo que “A apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa”.

 

3. Mais recentemente, o mesmo STA, na sua jurisprudência, não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para efeitos da determinação do lucro tributável, como ressalta do teor do Acórdão n.º 505/15, de 31-03-2016, ao dizer:

O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável.

Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC”. [Itálico e negrito da nossa responsabilidade].

4. Na Jurisprudência Arbitral, destacamos o entendimento do Professor Manuel Pires, que no Processo 7/2011-T, de 20-09-2012, apresenta a mesma posição, ao referir:

“(…) atentos a letra e espírito do artigo 88.º n.º 1 CIRC, devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas”. [Itálico e negrito da nossa responsabilidade].

5. E o Tribunal Central Administrativo Sul, no seu Acórdão proferido no Processo n.º 1119/16.1BELRA, de 8 de Maio de 2019, ao definir, no seu Sumário, que transcrevemos, o que sejam despesas não documentadas e despesas indevidamente documentadas, distinguindo:

«Despesas não documentadas» são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique. «Despesas indevidamente documentadas» são aquelas que têm suporte documental, mas o mesmo, só por si, não permite identificar, em termos quantitativos e qualitativos quais os bens ou serviços que determinaram certo pagamento a determinada entidade”,

fixa os pressupostos da tributação das despesas não documentadas e que são: 

i.          As despesas ocorreram efetivamente;

ii.        O respetivo beneficiário não é conhecido nem cognoscível.

“1) «Despesas não documentadas» são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique.

2) «Despesas in[de]vidamente documentadas» são aquelas que têm suporte documental, mas o mesmo, só por si, não permite identificar, em termos quantitativos e qualitativos quais os bens ou serviços que determinaram certo pagamento a determinada entidade.

3) As despesas não documentadas ou despesas confidenciais são sujeitas a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º/1, do CIRC. Por seu turno, as despesas não devidamente documentadas apenas são consideradas custos não dedutíveis – artigo 23.º-A/1/c), do CIRC.

4) O objectivo da tributação autónoma das despesas confidenciais parece ser o de tentar evitar (atenuando ou anulando a “vantagem” delas resultante em IRC) que, através dessas despesas, o sujeito passivo utilize para fins não-empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis; ou que sejam pagas remunerações a terceiros com evasão aos impostos que seriam devidos por estes. A realização de tais despesas implica um encargo fiscal adicional para quem nelas incorre porque a lei supõe que, assim, outra pessoa deixa de pagar imposto.

5) A distinção entre despesas indevidamente documentadas e despesas não documentadas tem outras consequências, nomeadamente, no que respeita ao ónus da prova da efectividade da despesa.

6) No que respeita às despesas não devidamente documentadas, o juízo de não suficiência de suporte documental da despesa é meramente negativo, reportando-se a uma constatação do incumprimento de um ónus contabilístico do sujeito passivo.

7) Já o reconhecimento de uma despesa como não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma enquanto tal, não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma.

8) Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma.

9) A situação de indistinção patrimonial, financeira e contabilística entre a impugnante e as outras empresas do grupo tornou possível a ocorrência de saídas de numerário, sem contrapartida e sem suporte documental. Tais fluxos, do ponto da vista da contabilidade da recorrente, constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.

10) Tais despesas não têm destinatário conhecido ou cognoscível, dado que não existem documentos discriminativos da forma, local, data, pessoa em que foram realizados”. [O itálico e negrito da transcrição do aresto é da nossa responsabilidade].

6. O Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2021, publicado no DR – I Serie - n.º 110, de 8 de Junho de 2021, sustenta que, na tributação autónoma, é a realização da despesa que constitui o facto tributário autónomo e, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa. 

(…) «a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento, mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal». Nesse sentido, como aí se acrescenta, «[a] despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa».

(…)  o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas.

(…)  A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário (…). A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.

 

7. Assim, e na linha desta acautelada Jurisprudência será de fixar que as despesas não documentadas a que se refere o n.º 1 do artigo 88.º CIRC sejam aquelas despesas que se refiram a saídas de meios financeiros do património de uma empresa ou entidade sem qualquer documento justificativo ou de suporte e que não lhes permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário, ou seja, para que haja lugar à tributação autónoma de despesas não documentadas, as mesmas têm de ocorrer na realidade e o seu beneficiário não é conhecido nem cognoscível.

 

B – Da existência de despesas não documentadas

1. Assim, e no que diga respeito à tributação de despesas não documentadas, terá a AT de demonstrar que:

i. As despesas em questão ocorreram efectivamente; e

ii. O respectivo beneficiário não é conhecido, nem cognoscível.

 

Feito este enquadramento, a questão que se nos suscita consiste em saber se, no caso dos presentes Autos, a AT, no RIT, logrou fazer a prova da verificação dos aludidos pressupostos da tributação autónoma das despesas em causa.

A recorrente considera que tal demonstração não foi feita.

Vejamos o que nos diz o RIT.

A respeito do movimento de caixa no período de 2020-2021, AT afirma que “em 2021 o saldo de abertura da conta caixa é de 10 649,60 (saldo devedor) e o saldo contabilístico em 28/10/2021 é de 455,91 €, sem que se verifiquem neste período de tempo (2020-2021) saídas de valores de caixa (Valores a crédito) que justifiquem aquela diferença no valor de € 324.649,60”. [Itálico e negrito nossos].

E, com a entrega das declarações alterativas, verificaram-se as alterações no saldo da conta «Sócios-Accionistas», onde a contrapartida daqueles movimentos de caixa foi aquela conta, através dos quais a Requerente regularizou a quantia de 315 000,00 €.

E, a respeito do destinatário dessas quantias, a AT refere que o sujeito passivo “apresentou uma ata e um documento intitulado “Contrato de Mútuo oneroso” que procuram justificar estas estas alterações contabilísticas. Estes documentos serão analisados nos pontos seguintes”.

 

 

 

Ora, apesar desse contrato de mútuo não ter sido celebrado por escritura pública, e que, segundo a AT, a Requerente “apenas pretendeu aparentar a existência de empréstimos aos sócios”, o certo é que a  Requerida AT não deixou de fazer a repartição desses mesmos empréstimos aos sócios, como “Se aquele contrato existisse em 2016 e caso se cumprisse o que lá estava descrito, que o SP empresta anualmente as disponibilidades monetárias de caixa que e se existirem, aos, segundo e terceiro contraente, na proporção de 4/5 para o segundo e de 1/5 para o último”, onde o resultado seria o que fez constar no Quadro que elaborou e se transcreve:

 

 

 

B...

C...

 

 

2. Ora, tal valerá por dizer que, não obstante as reservas apontadas pela AT, ela mesma não deixou de conhecer e de reconhecer que os destinatários da verba em apreço, foram os sócios C...  e B... e na proporção de 4/5 e 1/5.

3. Sobre o contrato de mútuo e os seus efeitos, convém convocar o artigo 1143.º do Código Civil (CC) que o define como o “contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”, sendo a sua consequência mais relevante, desde logo na sua celebração, a transferência de propriedade para o mutuário da coisa mutuada – aqui, o dinheiro -, nos termos do artigo 1144.º CC, levando assim a que a doutrina e a jurisprudência mais proeminentes o qualifiquem, na sua construção jurídica e natureza intrínseca, como um contrato real ou quoad constitutionem, pelo que o contrato consuma-se com a entrega do dinheiro que é desde logo usado pelo mutuário que o mantém para dele tirar proveito. 

Sobre esta questão pronunciou-se o STJ, no seu Acórdão, de 13-02-2007, proferido no processo 07A079, fixando:

Sendo o contrato de mútuo um contrato real quod constitutionem, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC.

Embora nulo, o contrato sempre poderia ser convertido num outro, em homenagem ao princípio do favor negotii, desde que tivesse sido possível apurar a vontade conjectural ou hipotética das partes, como resulta do art. 293º do Código Civil”.

Ora, o que aconteceu, no caso em análise, foi que os mutuários, ao longo dos anos beneficiaram do dinheiro da sociedade, não obstante e apesar de o contrato ter sido outorgado mais tarde e reduzido a escrito, mas sem a observância da forma legal: a escritura pública, em violação de uma formalidade ad substanciam, cuja inobservância implicaria uma invalidade insanável, atento o disposto no artigo 220.º CC.

Contudo, e porque no caso dos presentes autos, há uma realidade fáctica insofismável que deverá ser valorizada, pois o negócio existiu, por declaração negocial das partes e teve objecto mediato – o quid – e, nesta vertente, produziu efeitos jurídicos, desde logo a transferência da propriedade da coisa mutuada (esta foi transferida do património do mutuante, a sociedade, para  património dos mutuários, os sócios e, da parte dos mutuários, o seu direito de propriedade sobre a coisa mutuada deu lugar a uma pretensão de restituição) ou mais cautelosamente, tivemos vários contratos de mútuo, desde, pelo menos 2014 até 2020, desconhecendo-se o seu número e os montantes mutuados em cada um. E tudo isso imporia que se procurasse uma solução jurídica que minimize os efeitos dessa declaração de nulidade por incumprimento da forma prescrita, cerceando os seus efeitos legais, num melhor entendimento do n.º 1 do artigo 289.º CC, pelo qual as partes se constituem na obrigação de restituírem tudo o que tiver sido prestado, ou o valor equivalente, se a restituição em espécie não for possível, cumprindo-se as suas obrigações, de acordo com o artigo 290.º CC, na melhor conciliação dos interesses das partes, que permitam aproveitar os efeitos válidos do contrato, se eventualmente celebrados no cumprimento da formalidade própria, e evitar efeitos indesejáveis, no âmbito da modernização do regime da forma consistente com o reforço do consensualismo e do favor negottii, através de uma sondagem, tão aprofundada quanto possível, do estado subjetivo das partes.

Se voltarmos à anulação derivada da invocação da inobservância da forma prescrita para o negócio a que doutrina chama de "inalegabilidades formais" e para a qual o eminente Professor Meneses Cordeiro citado no Acórdão do STJ n.º 148/06.8TBMCN.P1. S1, de 27-05-2010, afirma que esta "figura das inalegabilidades não tem margem directa de concretização" porque "postularia a possibilidade de redução teleológica das normas formais, o que não é técnicamente possível",admitindo e aceitando, ex bona fide que haja uma obrigação de indemnizar e que, no limite, essa "a indemnização" consistisse na "obrigação de convalidar o negócio".

E assim, poder-se-ia cogitar a questão da conversão do negócio nulo, de mútuo, para uma confissão de dívida, como resulta da leitura do artigo 293.º CC, apurando-se a vontade conjectural ou hipotética das partes, porquanto se houve transferência de meios financeiros do património da sociedade para a esfera particular dos seus sócios e tal não ficou, ao longo dos tempos, registado, natural será, no interesse de ambas as partes, que se assumisse uma dívida dos sócios para com a sociedade, por confissão extrajudicial, como se firmou no Acórdão do STJ n.º 1771/21.6T8PVZ.P1.S1, de 08-02-2024, cujo sumário transcrevemos:

I - A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.

II - Tendo resultado provado que a dívida confessada emerge de empréstimos ao longo dos anos, não permite concluir que nos encontremos perante um contrato de mútuo nulo por vício de forma nos termos do art. 1143º do CCivil, uma vez que não se provou que alguma das quantias sucessivamente emprestadas excedesse os valores ali referidos”.

 

4. Acresce dizer, ainda e a propósito desse contrato de mútuo que não observou a forma legal com a consequente invalidade, na forma de nulidade, que isso não significaria que, antes dessa invalidade ser declarada, as partes não o possam redigir na forma legal exigida e, assim, à luz o princípio da autonomia privada, realizem a renovação do negócio que, segundo a  melhor doutrina, consiste na possibilidade de as partes refazerem um negócio jurídico que antes haviam celebrado, concluindo sobre o seu objecto um novo negócio, destinado a absorver o conteúdo daquele e a substituí-lo para futuro -, e sem que se esqueça que as partes poderão outorgar a eficácia retroactiva dessa renovação, como o veio a reconhecer o Supremo Tribunal de Justiça, no Processo n.º 5575/06.8TBSTS-A. P1.S1, de 15-12-2011, quando refere:

“(…) nem sempre a renovação do negócio nulo se fundará numa efectiva vontade das partes, podendo basear-se numa vontade hipotética ou conjectural. (..) Na falta de vontade directa que a manifeste, a renovação contratual operada há-de conjecturar-se, legitimamente (artº217º,1, 2ª parte do CC) perante a estreita correlação de ambos os contratos celebrados, saliente não só na identidade de seus outorgantes, mas também na circunstância de comungarem do mesmo objecto -a quantia que foi mutuada, objecto de entrega aos mutuários na data do primeiro de tais contratos e considerada já entregue aos mesmos mutuários, à data da realização do segundo. Conjectura que, afinal, se molda à renegociação que teve lugar e está subjacente ao clausulado deste último, onde se dá conta da falta da restituição do tantundem (de outro modo não se entenderia que seu objecto incidisse sobre a mesma quantia) e da necessidade de fixação de um prazo limite para o cumprimento dessa restituição.

Conclui-se, deste modo que face à absorção do primeiro pelo segundo dos contratos de mútuo a que se vem fazendo referência, dúvidas não parecem subsistir de que se está perante uma situação de renovação de contrato nulo, com rectificação da forma legalmente exigida, ao tempo da emissão da declaração, inexistindo, por isso, fundamento de nulidade, renovação esta que se limita aos efeitos ‘ex nunc’, porquanto se não demonstrou nem as partes contratantes quiseram a sua eficácia retroactiva.

(…).

E

Sumariando:

I - Outorgado, verbalmente, contrato de mútuo para cuja validade seria necessário documento assinado pelo mutuário, autoriza o princípio da autonomia privada que as partes, posteriormente, possam reduzir a escrito o contrato.

II - Enquadra-se a situação na chamada renovação do negócio, solução que permeabiliza a sua validade pois implica uma nova conclusão do mesmo, absorvendo daquele o seu conteúdo e substituindo-o para futuro.

III - Não tendo os respectivos outorgantes prevenido a sua eficácia retroactiva inter partes, a renovação do negócio nulo apenas produz efeitos a partir da data de sua conclusão ou de outra, posterior, nele prevista”. [itálico e negrito nossos].

 

5. Perante o que ficou dito, não logrou a AT fazer prova da verificação dos pressupostos da tributação autónoma das despesas não documentados, ou seja, de que ocorreram despesas, e quando ocorreram, para além de que, a própria AT acaba por reconhecer que os seus beneficiários são conhecidos: os sócios C... e B... e na proporção, respectivamente, de 4/5 e 1/5.

Com efeito, a AT não apurou a que se deveu a divergência entre o valor que deveria existir na caixa física e o que existia, à data da contagem, se se tratou de pagamentos feitos sem a emissão de documentos efectuados a alguém, se foram lucros distribuídos ou adiantamentos por conta de lucros efectuados aos sócios ou de apropriações destes, se a falta ou retardamento na contabilização de documentos relativos a gastos da sociedade que, ainda, não foram contabilisticamente registados ou pagamentos que aguardem a remessa do respectivo documento de quitação ou se se tratou de erros ou de irregularidades contabilísticas que, como o afirma a Requerente, esta “corrigiu relativamente ao exercício de 2020, o elevado saldo que estava em Caixa, reconhecendo a existência de um mútuo, no montante de 315 000,00 €, que reconheceu a débito da conta «Accionistas/Sócios»” que a “contabilidade evidenciava ao dia 28-10-2021, data em que ocorreu a contagem física de caixa, um saldo de 455,91 €” e que “Portanto, no ano de 2021 não houve qualquer despesa não documentada”, acabando por reconhecer a correção contabilística do saldo de caixa por débito da conta de accionistas-sócios, no montante de 315 000,00 €, que a Requerente reportou ao ano de 2020, como se alcança dos quadros a seguir transcritos e coincidente na última coluna do seu quadro 6 «valor anual do empréstimo” com o quadro que elaborámos sobre a variação anual [acréscimo] desses saldos, de 2014 a 2020.

 

 

 

B...

C...

 

C - Do momento da ocorrência das despesas e o facto tributário

1. No RIT, a Requerida alega que o Sujeito passivo, com aquela correcção, no valor de 315 000,00 €, no saldo da conta de Caixa, pretendeu corrigir o valor de caixa que não existe, à data da contagem – 28-10-2021 – para tentar justificar as saídas da conta de caixa, no ano de 2021.

2. No articulado 53 da sua douta contestação, quanto ao momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do nº. 1 do artigo 88.º do CIRC, alega a Requerida que este é o da verificação da falta de meios financeiros, revelada pelo crédito da conta Caixa efectuada àquela data de 28-10-2021.

3. E a Requerente defende que, pelo facto de um dos sócios ter assumido em confissão que aquela diferença de caixa foi devida a despesas pessoais ao longo dos anos e que não foi reflectida, ao longo desses anos, na contabilidade da empresa, mas aí reconhecida em 2020, não a podia a AT ter considerado, como uma saída de caixa, em 2021, admitindo, porém, que aquela verba de 315 000,00 € pudesse ter sido considerada como um adiantamento por conta de lucros reconhecido em 2020, mas nunca em 2021.

4. A Administração Tributária questiona, além do mais, que, pelo desconhecimento da natureza e origem as operações subjacentes, seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios ou da periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, defendendo que as despesas devem ser imputadas ao exercício em que foi detectada a divergência entre o saldo de caixa e a realidade.

5. A este propósito convirá esclarecer que, como decorre do artigo 18.º CIRC, o princípio da especialização dos exercícios se reporte especificamente à periodização do lucro tributável, as tributações autónomas têm, também, de ser efectuadas relativamente ao período fiscal em que ocorreram, porquanto às tributações autónomas, em sede de IRC, aplicam-se todas as normas do CIRC, que não sejam incompatíveis, como sejam as regras relativas à apresentação de declarações, autoliquidação, liquidação adicional e todas as demais que sejam necessárias à sua aplicação, pois elas incluem-se no CIRC, como, aliás, decorre do teor da alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.

6. E, por isso, quanto às tributações autónomas previstas no CIRC vigora o princípio da anualidade enunciado no artigo 8.º CIRC que estabelece que “1 — O IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das excepções previstas neste artigo”.

Por isso, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b) e 120.º do CIRC e a respectiva liquidação reporta-se a cada período fiscal. Em abono deste entendimento revela expressamente o artigo 88.º CIRC, no seu n.º 14, a conexão das tributações autónomas com o período de tributação do rendimento em que ocorrem os factos que lhe são subjacentes.

7. Ora, in casu, dos factos constantes no RIT não é possível concluir que todas as despesas que estão subjacentes à falta de meios financeiros correspondentes aos saldos de caixa, num total de 315 000,00 €, tenham ocorrido no ano de 2021,como o alega a requerida, ou em 2020, como o defende a Requerente, mas, pelo contrário, os indícios que emergem do facto de aquela conta de caixa já apresentar saldos devedores elevados desde 2014 apontam no sentido da falta dos meios financeiros ter ocorrido antes daquele ano de 2021 ou 2020, dando credibilidade à confissão do sócio C...: “despesas pessoais ao longo dos anos”.

8. Aliás, a tese defendida pela AT, quanto à consideração do ano de 2021, não é consistente com o preenchimento do mapa de afectação anual desse saldo de caixa de 325 649,60 €, já transcrito.  ou com aquele que elaboráveis a partir das IES declaradas e aceitas pela AT, de 2014 a 2020.

9. Isso significa que a presunção de apropriação sistemática de valores de caixa física que resulta da contagem conduz-nos à conclusão de que a diferença entre o saldo da conta caixa constatada em 28-10-2021 e a realidade não corresponde a apropriações – despesas - ocorridas, em 2021, mas antes nos sucessivos anos anteriores, pelo menos na sua maior parte, como ressalta da evolução dos saldos de caixa transpostos para as Declarações de 2014 a 2020, nos montantes anais constantes do mapa que elaborámos. Em todo o caso, e quanto a esta quantificação do facto tributário, está-se, num mínimo de razoabilidade, perante uma fundada dúvida que decorre dessa forte presunção de que nem todas as despesas evidenciadas pelo saldo devedor da conta caixa ocorreram em 2021 e pelo contrário, ocorreram antes de 2020, o que, por si, justifica a anulação da liquidação feita pela AT, por força do artigo 100.º, n.º 1 do CPPT que determina: “1 - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado

Ademais, diga-se que,

10. São coisas diferentes a existência de despesas e o momento em que ocorrem e a prova da sua existência e o momento em que a prova é obtida.

11. Ora o facto tributário que justifica a tributação de despesas, é a existência de despesas, o qual não se confunde com a prova da sua ocorrência.

12. Na tese da Requerida, o momento da ocorrência do facto tributário seria aquele em que foi feita a contagem física de caixa - 28-10-2021 -, o que nos reconduziria à possibilidade de uma multiplicação ilimitada de factos tributários, pois sempre que se fizesse uma contagem, em momentos diferentes, e fosse detectada uma falta de valores em caixa, estar-se-ia perante um novo facto tributário. E, assim, uma mesma apropriação daria assento a uma multiplicidade de tributações autónomas, todas as vezes que fosse efectuada uma contagem física e se verificasse que continuava a faltar aquele valor em caixa, o que nos reconduziria a uma hipotética solução legislativa desacertada, desproporcionada e não consentânea com o que dispõe o artigo 9.º do Código Civil.

Tal tese para além de contrariar o texto do n.º 1 do artigo 88.º CIRC que identifica as despesas e não a contagem física de caixa como facto tributário sujeito a tributação autónoma é, também, incompatível com o seu n.º 14 que impõe a conexão das despesas com determinado período de tributação, para além de que, ao prescindir do momento da realização das despesas para efeitos da sua tributação autónoma, incompatibiliza-se com o regime de caducidade do direito de liquidação, que, em sede de tributações autónomas, impõe a irrelevância fiscal de factos ocorridos em períodos fiscais além dos quatro anos anteriores àquele em que se emite a liquidação.

Por outro lado, essa tese, ao permitir tributar por tributações autónomas, despesas ocorridas em momentos do passado, desde que a contagem se fizesse dentro do prazo de caducidade é, também, incompatível com a proibição da retroactividade da lei fiscal, a que se alude o n.º 3 do artigo 103.º da CRP, no limite, tributando despesas realizadas antes da sua introdução neste sistema jurídico e aplicar taxas actuais a despesas que foram realizadas quando as taxas eram menores.

Por relevante, em nosso entender,

13. Não queremos deixar de nos referir à possibilidade legal de a AT, no presente procedimento, ter podido poder laçar mão de métodos indirectos, como o admite a Requerente no articulado 77 do seu douto petitório e que a requerida parece contrariar tal possibilidade da leitura do articulado 77 da sua douta contestação, ao dizer que “Na ausência de contabilização das despesas não documentadas, só é possível apurar a sua ocorrência mediante contagem física das existências de meio monetários seguida (ou não) da regularização do saldo de caixa, como fez a Requerente, não se configurando outra forma de deteção de saídas (não documentadas nem registadas) [de] ativos monetários do património social”. [itálico, negrito e realce nossos].

14. Ora, como resulta do teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT, os métodos indirectos são utilizáveis em caso de “Impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”. O legislador ao referir “determinação da matéria tributável” não a restringe à determinação do lucro tributável, como resulta do facto de se prever a sua utilização relativamente a «qualquer imposto» e não apenas os que incidam sobre o lucro, havendo, mesmo, uma previsão expressa da utilização de métodos indirectos, em sede de IVA, o n.º 1 do artigo 90.º do CIVA, que estabelece: “Sem prejuízo do disposto no presente Código, a liquidação do imposto com base em presunções ou métodos indirectos efectua-se nos casos e condições previstos nos artigos 87.º e 89.º da lei geral tributária, seguindo os termos do artigo 90.º da referida lei” e nessa mesma linha de aceitação o artigo 89.º-A da LGT, conjugado com a alínea d) do n.º 1 do artigo 87.º da mesma LGT que prevê a utilização de métodos indirectos aí elencados para a determinação do rendimento, em sede de IRS: “1 - A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de (…) d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificada, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89º-A”.

15. Acresce, ainda e a este propósito, salientar o que a Jurisprudência arbitral toma como assente, citando-se, aqui, o que, no Processo Arbitral n.º 7/2011, de 20-09-2012, do CAAD, vem referido:

52. Tudo ponderado, no caso em análise, as irregularidades na contabilidade do sujeito passivo, incluindo a existência de dúvidas, resultantes dessas irregularidades, sobre se certas despesas foram incorridas ou não (se há dúvidas sobre se elas foram incorridas, também não há documentação relevante), não podem cair na categoria de despesas não documentadas, mas são antes pressupostos de aplicação de métodos indiretos nos termos do art.º 87.º al. b) e 88.º da LGT”.

 

Assim, por tudo o que se deixou dito, impõe-se concluir que não estão preenchidos os pressupostos, de facto e de direito, da tributação autónoma a que se refere o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC pelo que a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ao imputar ao exercício de 2021 despesas, que qualificou como não documentadas, no montante de 315 000,00€, vício que justifica a anulação da liquidação, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável por força da alínea c) do artigo 2.º da LGT.

 

***

 

5.             Decisão

Termos em que se acorda, neste Tribunal Arbitral, o seguinte:

 

a)             Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado pela Requerente e anular a liquidação adicional impugnada de IRC, supra identificada, quanto ao montante total de 169 944,65 € €, sendo a importância de 157 500,00 € a título de tributações autónomas e 12 444,65 €, a título de juros compensatórios.

b)             Condenar a Requerida AT nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

6.             Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do Código do Processo Civil e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 169 944,65 €.

 

7. Custas

Tendo em conta o valor da causa acima fixado, e nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código do Processo Civil, por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o montante das custas é fixado em 3 672.00 € (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a cargo da Requerida, pelo decaimento.

Notifique-se

 

Lisboa, 22 de Maio de 2025

 

Os Árbitros 

 

 

 

 

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(Regina de Almeida Monteiro - Presidente)

 

 

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(Manuel da Fonseca Benfeito – Adjunto e Relator)

 

 

(Augusto Vieira – Adjunto)

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro [RJAT], regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, com excepção das citações)