SUMÁRIO:
I – No domínio do regime fiscal aplicável aos residentes não habituais, a inscrição a que se refere o n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS assume natureza meramente declarativa e não constitutiva do direito a ser tributado nos termos de tal regime.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Susana Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 24.12.2024, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., com o número de identificação fiscal ..., residente na ..., n.º..., ...-... ... (“o Requerente”), veio, em 14.10.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista (1) à declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), n.ºs 2024... e 2024..., relativos ao período de tributação de 2022 e 2023, respetivamente, dos quais resultou o valor a pagar de imposto de €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) e de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), respetivamente, e (2) à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
2. O Requerente juntou 20 (vinte) documentos, arrolou uma testemunha e requereu a produção de declarações de parte.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerida em 15.10.2024.
4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
5. Em 04.12.2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação de árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 24.12.2024.
7. Por despacho datado de 26.12.2024, foi a Requerida notificada, nos termos do artigo 17.º, do RJAT, para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar aos autos o processo administrativo (“PA”) e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.
8. Em 03.02.2025, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual invocou as exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral, de inimpugnabilidade do ato de liquidação e, de caducidade do direito à ação (no que respeita ao ato tributário relativo ao período de tributação de 2022), defendeu-se por impugnação e, juntou aos autos o PA.
9. Por despacho datado de 11.02.2025, foi o Requerente notificado para, querendo, se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, sobre a matéria de exceção contida na resposta da Requerida.
10. No dia 28.02.2025, o Requerente apresentou requerimento, no qual se pronunciou quanto às exceções deduzidas pela Requerida, pugnando pela improcedência das mesmas.
11. Em 24.03.2025, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, com o seguinte teor:
Dado que já foi exercido o contraditório quanto à matéria de exceção, que será apreciada a final, e considerando que as questões que subsistem são apenas de direito, não se vislumbra qualquer utilidade na produção de prova testemunhal e de declarações de parte que o Requerente havia peticionado no pedido de pronúncia arbitral, pelo que se dispensa a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
Faculta-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, no prazo simultâneo de 15 dias contados da data da notificação do presente despacho. Em idêntico prazo deverá o Requerente proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente e à junção aos autos do respetivo comprovativo.
Indica-se o dia 24.06.2025 como prazo limite para prolação da decisão arbitral.
12. Em 25.03.2025, o Requerente peticionou, através de requerimento, que lhe fosse concedido o prazo de 20 (vinte dias), ao invés do prazo de 15 (quinze) dias, para alegar, o que lhe foi deferido, nesse mesmo dia, mediante despacho arbitral.
13. Em 28.04.2025, o Requerente apresentou as suas alegações finais.
14. A Requerida não apresentou alegações finais.
I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES
15. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de IRS aqui em crise, invoca o Requerente, de entre o mais, o seguinte:
a) Conforme expresso de forma inequívoca no n.º 8, do artigo 16.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”), os requisitos para beneficiar do regime do residente não habitual (“RNH”) são: (i) o contribuinte tornar-se residente fiscal em Portugal e; (ii) não ter sido qualificado como residente fiscal em Portugal em qualquer dos cinco anos anteriores;
b) A aferição da residência fiscal do contribuinte, em território português, depende do cumprimento de um dos requisitos constantes do n.º 1, do artigo 16.º, do CIRS, e o Requerente cumpre ambos, uma vez que: (i) no ano de 2022 permaneceu em território português por um período superior a 183 dias e; no mesmo exercício, teve uma habitação disponível em condições de ser considerada como residência habitual;
c) Quanto ao segundo requisito, legalmente estabelecido, para beneficiar do regime de RNH, o Requerente também cumpriu, uma vez que se qualificou como residente, para efeitos fiscais, em França, de 2017 a 2021, isto é, nos cinco anos anteriores a 2022 (anos relevantes para efeitos de registo como RNH);
d) Desta feita, o Requerente preencheu os requisitos materiais necessários para ser considerado RNH em território português, desde a data em que se registou como residente fiscal em Portugal, (i.e, desde 2022);
e) Nos termos da lei, bem como da jurisprudência reiterada do CAAD, o pedido de inscrição em cadastro não constitui um requisito necessário à tributação do sujeito passivo na qualidade de RNH, nem prejudica o reconhecimento desse direito, nem a inscrição do mesmo em cadastro;
f) Em síntese, têm vindo a entender os diversos Tribunais Arbitrais que a solicitação da inscrição cadastral como RNH é um procedimento meramente “declarativo”, não conferindo o direito a ser tributado de acordo com o regime dos RNH;
g) No seu entender, o direito a ser tributado ao abrigo do regime dos RNH resulta do cumprimento dos requisitos materiais acima referidos, os quais são verificados “automaticamente” e não estão sujeitos a apreciação discricionária;
h) Em conclusão, para os diversos tribunais arbitrais constituídos no CAAD, a realização do pedido de inscrição fora do prazo legal não deve ser relevante para efeitos de tributação, desde que os requisitos materiais do regime estejam preenchidos. Pelo contrário, o enquadramento legal dos pedidos intempestivos de RNH devem sim constituir uma violação de um dever declarativo e, eventualmente, resultar na aplicação de uma coima por cumprimento tardio;
i) Veja-se, entre outras, as Decisões Arbitrais n.ºs 391/2023-T, de 25.01.2024; 581/2022-T, de 19.05.2023; 777/2020-T, de 15.12.2021; 705/2022-T, de 30.07.2023; 76/2023-T, de 08.09.2023; 815/2021, de 29.08.2022; 319/2022-T, de 02.12.2022; 188/2020-T, de 24.09.2021, bem como o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 0842/23.9BESNT, de 29.05.2024;
j) Face ao exposto, uma vez que ficou efetivamente demonstrado pelos factos evidenciados que o Requerente reunia no exercício de 2022 todas as condições essenciais para ser considerado RNH, exercendo uma atividade de elevado valor acrescentado – Diretor de Serviços –, os rendimentos provenientes dessa atividade devem ser tributados à taxa de 20%.
16. Por sua vez a AT contra-argumenta com base nos seguintes fundamentos:
a) O Requerente tornou-se residente fiscal em Portugal no ano de 2022, pelo que teria, nos termos do n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, até 31.03.2023, para solicitar o estatuto de RNH, com efeitos ao ano de 2023;
b) O pedido de inscrição como RNH formulado pelo Requerente apenas foi efetuado em 29.12.2023 (suporte papel), sendo, assim, extemporâneo, atento o disposto no aludido n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS;
c) Tal prazo, trata-se de um prazo peremtório que, pela sua natureza, faz precludir o direito;
d) A interpretação jurídica invocada pelo Requerente, e plasmada em algumas decisões do CAAD, sobre o alegado efeito meramente declarativo do artigo 16.º, n.º 10, do CIRS, constitui uma manifesta violação das regras de interpretação das normas jurídicas fiscais, previstas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 11.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”) e do artigo 9.º do Código Civil (“C.C”);
e) Esta interpretação limita-se a referir que, pelo facto de a obrigação da supra citada inscrição se inserir noutro número (n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS), que não seja o n.º 8, do artigo 16.º, do CIRS, é suficiente para lhe afastar o caráter constitutivo;
f) A doutrina tem referido ser de atender a três elementos designados como elementos “extra-literais” da interpretação de normas jurídicas, a saber: o elemento sistemático, o elemento histórico e o elemento teleológico;
g) De facto, o legislador pretendeu, com este regime, criar um forte incentivo para que um conjunto limitado de pessoas, com determinadas caraterísticas, deslocalizasse a sua residência para Portugal, demonstrando-se essencial conseguir distinguir entre quem deslocalizou a sua residência para Portugal por conta dos incentivos, de quem nem sequer conhecia o regime e os seus respetivos prazos;
h) Para tal o legislador além de criar um regime, fixou um procedimento obrigatório que exige o cumprimento de um prazo imperativo, apelando a uma inscrição obrigatória para a obtenção de um estatuto jurídico, e não de uma mera declaração, encontrando-se desde já o nosso elemento sistemático;
i) É do nosso entendimento que a inscrição é um ato formal que tem por consequência o início ou a alteração de uma situação jurídica, e um enquadramento legal para uma pessoa ou um bem;
j) Ainda quanto ao elemento sistemático, diga-se que não é por acaso que a disposição do n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, se encontrava na secção das normas de incidência subjetiva do CIRS.
k) Ademais, o legislador poderia ter optado por formular uma regra de prazo remanescente para os 10 anos de duração do regime de RNH, para aqueles que efetuassem o pedido fora do prazo, o que não sucedeu. Pelo contrário, fixou expressamente um limite temporal para o acesso ao regime de RNH;
l) Assim, só podemos depreender que esta disposição é condição formal e constitutiva do regime jurídico do benefício fiscal;
m) Mesmo com a alteração efetuada, em 2012, à primeira formulação do n.º 7, do artigo 16.º, do CIRS – em que não há dúvida de que o sentido original dado pelo legislador foi o de conferir à inscrição em sede de RNH um caráter constitutivo, estando aqui encontrado o nosso elemento histórico –, não podemos negar que existe um limite temporal para a apresentação do pedido, com um prazo limite definido, e cujo incumprimento faz precludir o direito;
n) Podemos afirmar que, sem margem para dúvidas, o benefício fiscal que advém da atribuição do estatuto de RNH é um benefício cuja atribuição carece da ação do interessado;
o) Mesmo que consideremos que estamos perante um benefício fiscal automático, parece-nos correto afirmar que esse facto não exclui o ónus de o interessado declarar à AT a verificação dos respetivos pressupostos, dentro de um prazo determinado. Nada obsta a que a automaticidade seja condicionada pela atuação do interessado, dentro de um prazo fixado, provando, se necessário, a verificação dos requisitos que levam à atribuição do benefício;
p) Se a atribuição do regime de RNH dependesse apenas e só do preenchimento dos requisitos do n.º 8, do artigo 16.º, do CIRS, então o n.º 10 não teria qualquer razão prática de existência;
q) E mais, a mera aplicação automática do artigo 16.º, n.º 8, do CIRS, desconsiderando o n.º 10, conduziria a que fossem considerados RNH todos os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes não tivessem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, mesmo que não tivessem seguido o procedimento voluntário de inscrição expressamente previsto, ou no limite, mesmo que desconhecessem por completo o regime. Este entendimento é claramente violador do caráter de submissão voluntária ao regime e até do próprio princípio da capacidade contributiva;
r) Quanto ao elemento teleológico, refira-se que se o legislador pretendesse a atribuição do estatuto de RNH pela mera aplicação do n.º 8, necessariamente que teria previsto no n.º 12, que em caso de ausência superior a 5 (cinco) anos, o regime de suspensão caducaria, aplicando-se novamente o disposto no n.º 8;
s) O que logicamente faz sentido é que uma vez efetuada validamente a inscrição como RNH existe a possibilidade de beneficiar deste regime durante 10 anos, e a ausência do território nacional no decurso deste período por 5 (cinco) ou mais anos não renova ou atribui o regime por mais 10 (dez) anos, por força do n.º 8, do artigo 16.º, do CIRS, mas apenas possibilita usufruir do mesmo pelo período remanescente até atingir os 10 anos;
t) Por outro lado, a interpretação de que a aplicação do regime de RNH se basta com a verificação das condições previstas no n.º 8, não dependendo do pedido de inscrição, atenta diretamente contra a coerência da aplicação do sistema de benefícios fiscais, designadamente com o “Programa Regressar”, previsto no artigo 12.º-A, do CIRS;
u) Em síntese, é inevitável concluir que a correta aplicação do regime de RNH, de forma sistematizada e atendendo aos princípios jurídicos a que subjaz, é a que exige a inscrição dentro do prazo expressamente determinado na lei;
v) Veja-se as Decisões proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 13.04.2024, Processo n.º 284/20.8BEVIS; pelo Tribunal Tributário de Lisboa, de 03.02.2023, Processo n.º 2972/15.1BELRS; pelo Tribunal Arbitral, de 05.08.2024, Processo n.º 906/2023-T; pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 27.01.2023, Processo n.º 406/14.8BELRS; pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, Processo n.º 208/21.5BELRA; pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, Processo n.º 842/23.BESNT;
w) Impõe-se, assim, afirmar que, atento o consagrado na lei, foi fixado um prazo peremtório para o exercício do direito, o qual não sendo observado atempadamente determina a caducidade do mesmo;
x) Caso assim não se entenda, por mera hipótese académica, e se considere que o desrespeito do prazo fixado para a apresentação do pedido de registo de RNH, previsto no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, não detém como consequência a preclusão total do direito de beneficiar do aludido estatuto, o que não se concede, ter-se-á, pelo menos, de concluir pela imperiosa necessidade do contribuinte apresentar um pedido de RNH, que habilite a Administração Fiscal a aferir os pressupostos da sua aplicação, sendo o regime apenas aplicável para o futuro e pelo remanescente do prazo, atento o disposto no artigo 12.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2024, Processo n.º 842/23.9BESNT; Decisões Arbitrais n.º s 893/2023-T e 653/2024-T –;
y) Em conclusão, sendo a inscrição como RNH, um requisito prévio necessário à concessão do estatuto/benefício de RNH (ou, caso assim não se entenda, pelo menos, para a sua aplicação), e não tendo este sido concedido, não se verifica qualquer ilegalidade das liquidações contestadas;
z) Por fim, saliente-se, ainda que a interpretação dada pelo Requerente quanto ao efeito meramente declarativo da inscrição obrigatória prevista no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS é manifestamente inconstitucional, para além de ser ilegal, e viola claramente os artigos 3.º, n.º 3, 103.º, n.º 2, 267.º, n.º 2 e 2.º, todos da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
II. SANEAMENTO
17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos do n.º 1, do artigo 10.º, do RJAT.
18. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
19. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
20. O processo não enferma de nulidades.
21. As exceções suscitadas pela Requerida serão apreciadas após determinada a matéria de facto.
II.1 QUESTÃO PRÉVIA – DA CUMULAÇÃO DE PEDIDOS –
22. O Requerente alega que, nos termos do artigo 3.º, do RJAT, a cumulação de pedidos é, no caso dos autos, admissível.
23. Dispõe o artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, que: “a cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”
24. Como tem sido entendimento dominante, para que a cumulação de pedidos seja admissível basta que seja essencialmente idêntica a questão jurídico-fiscal a apreciar e que a situação fática seja semelhante nos pontos que relevam para a decisão. Os factos serão essencialmente os mesmos quando forem comuns às pretensões dos autos, de forma a que se possa concluir que, se se provarem os alegados relativamente a um ato, existirá o suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência das pretensões de todos os pedidos.
25. É isso que sucede no caso dos autos: as liquidações controvertidas, independentemente do ano a que respeitam (2022 e 2023), reportam-se a idêntica factualidade e a questão jurídico-fiscal a apreciar é exatamente a mesma, pelo que existe identidade para efeitos do artigo 3.º, do RJAT, sendo, assim, de admitir a cumulação de pedidos (anulação dos aludidos atos tributários, referentes ao período de tributação de 2022 e 2023).
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
26. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
A. O Requerente, de nacionalidade francesa, residiu em França, desde 2017 até ao final do ano de 2021 (Cfr. Documento n.º 7 junto ao PPA).
B. Posteriormente, o Requerente deslocou a sua residência para Portugal, tornando-se residente fiscal, no nosso país, desde o dia 04.05.2022 (Cfr. Documento n.º 8 junto ao PPA).
C. Em 29.07.2022, o Requerente adquiriu um imóvel sito em Portugal, que destinou a sua habitação própria e permanente (Cfr. Documento n.º 20 junto ao PPA).
D. Desconhecendo a existência do regime dos RNH, o Requerente procedeu à entrega, em 26.05.2023, da Declaração de Rendimentos - IRS (Modelo 3), liquidada em 27.05.2023, com a referência ..., relativa ao período de tributação de 2022, sem o anexo L – “RESIDENTE NÃO HABITUAL” – (Cfr. Documento n.º 9 junto ao PPA e PA).
E. Da Declaração referida em D., resultou a liquidação n.º 2023..., sendo a data limite de pagamento do imposto apurado – €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) – de 31.08.2023 (Cfr. PA).
F. Após ter tomado conhecimento do aludido regime, e entendendo que cumpria os requisitos para dele usufruir, apesar de já não ser possível realizar o respetivo pedido de inscrição como residente não habitual, com produção de efeitos à data de 01.01.2022, através do Portal das Finanças, o Requerente apresentou, em 28.12.2023, um requerimento, junto da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, no qual fez tal pedido (Cfr. Documento n.º 10 junto ao PPA).
G. Nessa sequência, o Requerente entregou outra Declaração de Rendimentos - IRS (Modelo 3), relativa ao período de tributação de 2022, agora, com o aludido anexo L, que não deu origem a qualquer liquidação (Cfr. Documento n.º 11 junto ao PPA).
H. Em 14.06.2024, o Requerente submeteu, novamente, uma Declaração de Rendimentos - IRS (Modelo 3), relativa ao período de tributação de 2022, liquidada em 06.07.2024, com o n.º ...-2022-..., idêntica à primitiva Declaração (referida em D.), ou seja, sem o anexo L, da qual resultou a liquidação aqui contestada, n.º 2024..., com igual montante a pagar – €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) – (Cfr. Documentos n.º s 15 e 1 juntos ao PPA).
I. Em data não concretamente apurada, o Requerente entregou uma Declaração de Rendimentos – IRS (Modelo 3), referente ao período de tributação de 2023, com o anexo L, que não deu origem a qualquer liquidação (Cfr. Documento n.º 12 junto ao PPA).
J. Em 28.06.2024, o Requerente submeteu uma Declaração de Rendimentos - IRS (Modelo 3), com o n.º ...-2023-..., referente ao período de tributação de 2023, sem o anexo L, a qual deu origem, em 11.07.2024, à liquidação também aqui impugnada n.º 2024..., com o valor de pagar de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos) (Cfr. Documentos n.ºs 16 e 2 juntos ao PPA).
K. Aquando da submissão das Declarações referidas em G. e em I., foi o Requerente alertado, da existência de erros: “SE NIF TITULAR NÃO É RESIDENTE NÃO HABITUAL (L55) (...) NÃO CONSTA COMO RNH ANTES DO PERIODO PREVISTO (L56)” (Cfr. Documentos n.ºs 13 e 14 juntos ao PPA).
L. O Requerente, no que respeita às Declarações referidas em H. e J., demonstrou a sua total discordância, através do Portal das Finanças, onde expôs o seu entendimento de que reunia todas as condições para usufruir do regime dos RNH (Cfr. Documentos n.ºs 17 e 18 juntos ao PPA).
M. O Requerente efetuou o pagamento do imposto devido, nos montantes de €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) e de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos) (Cfr. Documentos n.ºs 3 e 4 juntos ao PPA).
N. O Requerente auferiu:
· no ano de 2022: rendimentos provenientes de trabalho dependente prestado em Portugal, nesse mesmo ano, à entidade B..., Unipessoal Lda., num montante total de €89.848,00 (oitenta e nove mil e oitocentos e quarenta e oito euros) (Cfr. Documentos n.º s 9, 11 e 15 juntos ao PPA);
· no ano de 2023: rendimentos provenientes de trabalho dependente prestado em Portugal, nesse mesmo ano, à entidade B..., Unipessoal Lda., num montante total de €98.218,00 (noventa e oito mil e duzentos e dezoito euros)(Cfr. Documentos n.º s 12 e 16 juntos ao PPA).
O. Os rendimentos referidos supra e declarados pelo Sujeito Passivo, relativos ao período de tributação de 2022 e 2023, são decorrentes do desempenho, pelo Requerente, da função de Diretor de Serviços na B..., Unipessoal Lda., com sede em Portugal, conforme consta do contrato de trabalho sem termo entre eles celebrado junto ao PPA como Documento n.º 19.
P. Nos termos do aludido contrato de trabalho, o Requerente, na qualidade de Diretor de Serviços, irá “implementar a política global de industrialização da Empresa; gerir as entidades relacionadas com a produção (manutenção, fabrico, logística, etc.), as relações com os clientes e os aspectos administrativos, económicos, contabilísticos e financeiros da sua fábrica; assegurar o desenvolvimento de planos de investimento e a utilização adequada ao orçamento.”
Q. O requerimento entregue, em 28.12.2023, pelo Requerente, a solicitar a inscrição como residente não habitual, com produção de efeitos à data de 01.01.2022, não obteve qualquer pronúncia da AT até à apresentação do presente PPA – 14.10.2024 –, tendo sido objeto de projeto de decisão de indeferimento, por despacho do Sr. Diretor da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, de apenas 31.01.2025 (Cfr. Documento n.º 10, junto ao PPA; Sistema informático do CAAD e; PA).
III.2 FACTOS NÃO PROVADOS
27. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
28. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
29. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
30. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
31. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
32. O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
33. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1 DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL
34. A competência material dos tribunais é de ordem pública, o seu conhecimento procede o de qualquer outra matéria e constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, tudo conforme resulta dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável ex vi alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT.
35. Sustenta a Requerida que o tribunal arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pelo Requerente, uma vez que, a seu ver, a causa de pedir assenta na condição de residente não habitual do Sujeito Passivo.
36. Ou seja, a Requerida considera que o que está em causa nos autos é um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual e, que tal pedido não comporta a apreciação da legalidade de nenhum ato concreto de liquidação de imposto, concluindo, assim, pela incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria.
37. Conforme consabido, a competência do tribunal, como pressuposto processual, é aferida pela forma como o demandante conforma o pedido e a respetiva causa de pedir, determinando-se, pois, pelos termos em que a ação é configurada pelo autor e em que são expostos a pretensão deduzida em juízo e os factos com relevância jurídica (Cfr. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.11.2019, processo n.º 44/19.9BCLSB e de 07.04.2022, processo n.º 56/21.2BCLSB).
38. Em consequência, para terminação da competência material do Tribunal, cabe atender, assim, à articulação da causa de pedir e da pretensão jurídica formulada pelo Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral.
39. O PPA em apreço, como resulta do petitório final, visa a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de IRS n.ºs 2024 ... e 2024 ..., relativos ao período de tributação de 2022 e 2023, dos quais resultou o valor a pagar de imposto de €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) e de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), respetivamente, invocando o Requerente, como fundamento da pretensão deduzida, o excesso de quantificação da matéria tributável para efeitos de IRS, em virtude da não aplicação das regras de tributação na qualidade de residente não habitual.
40. Ora, a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, compreende a apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta[1];
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”
41. Desta feita, como o Requerente deduz a pretensão, é manifesto que o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar as liquidações impugnadas nos autos, atento o citado preceito normativo.
42. Contra esta conclusão, não colhe a Decisão Arbitral, de 11.09.2023, proferida no processo n.º 796/2022-T, invocada pela Requerida, em que a factualidade é distinta da dos autos, bem como o próprio pedido: “(...) A) Que se ordene a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da AT como residente não habitual, com efeitos a partir do ano de 2020, com a anulação do ato de indeferimento do pedido que havia formulado nesse sentido; e ainda em consequência; B) A anulação desse ato administrativo em matéria tributária, assente na anulação dos atos tributários de liquidação de IRS para os anos em crise (...), que geraram os atos liquidatários em crise; e consequentemente, (...)”.
43. Assim, e sem mais delongas, leia-se o excerto da Decisão Arbitral, de 30.07.2023, proferida no processo n.º 705/2022-T, que transcrevemos e com o qual concordamos:
“Sucede que, se é certo que o Requerente questiona na sua PI a natureza da inscrição no registo dos contribuintes da condição de residente não habitual para efeitos da aplicação do competente regime, os termos da configuração do pedido de pronúncia arbitral, pelos quais se afere a competência, não correspondem ao que assim indica a Requerida, sendo claro que se impugna a liquidação de IRS em crise, à qual se imputa o vício de erro sobre os pressupostos por não aplicação das regras de tributação dos residentes não habituais que corresponderia à situação tributária do Requerente. Por outras palavras, o objeto do presente processo não é a inscrição autónoma e específica no registo da condição de residente não habitual do Requerente (...), mas a legalidade da liquidação de IRS em atenção à regulação jurídica aplicável.”
44. Face ao exposto, improcede a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral aduzida pela Requerida.
IV.2 DA INIMPUGNABILIDADE DO ATO DE LIQUIDAÇÃO COM FUNDAMENTO NO SUPOSTO ESTATUTO DE RNH
45. Invoca, também, a Requerida a ocorrência de caso decidido/inimpugnabilidade do ato com fundamento no suposto estatuto de RNH, alegando a necessidade de impugnação autónoma e imediata de eventual indeferimento de pedido de reconhecimento da condição de residente não habitual, através da ação administrativa, sob pena de formação de caso decidido.
46. Apela a Requerida, em abono da sua pretensão, ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, proferido no Processo n.º 723/2016, de 15.11.2017, bem como ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 014/19.7BALSB, de 04.11.2020.
47. Apreciando o caso dos autos, há que salientar, desde logo, que, aquando da apresentação do presente PPA – 14.10.2024 –, ainda não havia qualquer resposta/decisão administrativa de indeferimento, respeitante ao pedido formulado, em 28.12.2023, pelo Requerente, de inscrição como residente não habitual, com produção de efeitos à data de 01.01.2022.
48. Conforma consta dos factos provados, à data do PPA (14.10.2024), e da emissão das liquidações ora controvertidas (06.07.2024 – liquidação de 2022; 11.07.2024 – liquidação de 2023), não existia nenhum ato administrativo-tributário de não reconhecimento da condição de RNH para o ano pretendido pelo Sujeito Passivo (Cfr. Factos Provados elencados nos pontos H., J. e Q.).
49. Decorre daqui que não existia, àquelas datas (do PPA e da emissão das liquidações aqui em crise), qualquer ato de não inscrição cadastral ou de não reconhecimento como RNH, com produção de efeitos à data de 01.01.2022, que pudesse operar como ato autónomo, prévio e destacável, relativamente aos atos de liquidação de imposto ora sindicados, que são, assim, os únicos atos tributários com que o Requerente foi, efetivamente, confrontado, e contra os quais foi possível, com oportunidade, suscitar, como ato lesivo, a sua impugnação.
50. Para além de que, veja-se, a posição vertida na Decisão Arbitral, de 30.07.2023, proferida no processo n.º 705/2022-T:
“(...) a situação dos autos não possui comparação com o caso que esteve na base do processo arbitral n.º(...), do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017 e do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 014/19.7BALSB (o qual, diga-se, não se pronunciou sobre a substância do tema, já que, por estar em causa decisão arbitral que não conheceu do mérito, não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência), espécies jurisprudenciais que são invocadas pela AT na sua resposta em apoio da alegação em apreço (...).
Por outro lado, deve-se ainda assinalar que esta jurisprudência respeitou a liquidação relativa ao ano de 2010, cujo cenário normativo não coincide com o aqui em consideração, por se reportar à regulação originariamente introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23.09 (anterior, pois, às alterações ocorridas com a Lei n.º 20/2012, de 14.05, e com o Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08), em que o n.º 7 do art. 16.º do Código do IRS (CIRS) dispunha: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos” (cfr. o atualmente disposto no n.º 9 do art. 16.º do CIRS).
No mais, antecipando o que a seguir se expõe em sede de apreciação do mérito, entende-se que o n.º 10 do art. 16.º do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08 (: “O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território”), ao impor a solicitação, por via eletrónica, da inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual, não consagra, para além da imposição de um dever acessório (art. 31.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária – LGT), um procedimento autónomo ou um momento procedimental interlocutório dirigido a um ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, prévio e prejudicial, sem o qual estaria inviabilizada a aplicação em cada ano dos benefícios fiscais a isso associados. Trata-se, aliás, de entendimento que está em consonância com a orientação estabelecida na Circular n.º 4/2019 da Diretora-Geral da AT (n.º 1) segundo a qual as medidas resultantes do regime dos residentes não habituais “consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)”.
Assim, face à regulação legal aplicável, abaixo melhor examinada, julga-se que a inscrição cadastral como residente não habitual do sujeito passivo de imposto não constitui ato autónomo ou destacável em relação ao procedimento de liquidação do imposto para efeitos de impugnação contenciosa, que obriga, em derrogação do princípio da impugnação unitária (art. 54.º do CPPT), à impugnação direta e autónoma, no prazo e pelo meio legalmente previsto, de uma eventual decisão de indeferimento, sob pena de estabilização da situação mediante caso decidido ou caso resolvido e de decorrente preclusão da impugnação da liquidação de imposto nessa base.”
51. Nesta senda, não assiste razão à Requerida, quanto à exceção por ela invocada.
52. Mais alegou a AT – utilizando a fundamentação acima expendida – que o erro na forma de processo era manifesto.
53. Ora, o erro na forma de processo, consagrado no artigo 193.º, do CPC, consiste em ter o autor usado de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão, pelo que o acerto ou o erro na forma de processo se tem de aferir pelo pedido formulado na ação[2].
54. Quer isto dizer, que a correção ou incorreção do meio processual empregue pelo autor (nomeadamente no que concerne ao tipo de ação por si escolhido para atingir o fim por si visado) afere-se pela pretensão de tutela jurisdicional que o mesmo pretende atingir; e a chamada inadequação ou inidoneidade do meio processual utilizado consiste, precisamente, na discrepância ou desarmonia entre a espécie processual de que se lançou mão e o propósito que, com ela, processualmente se visava atingir.
55. Por isso, com o fundamento de que as causas de pedir invocadas não são adequadas ao pedido formulado poderá decidir-se no sentido da improcedência da ação (eventualmente, até do indeferimento liminar da petição inicial), mas não no sentido da verificação do erro na forma do processo.
56. Lida a petição inicial e o pedido que nela é formulado, verifica-se que o que o Requerente pretende é a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de IRS n.ºs 2024... e 2024 ..., relativas ao período de tributação de 2022 e 2023, dos quais resultou o valor a pagar de imposto de €10.948,12 (dez mil novecentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos) e de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), respetivamente.
57. Ora, o pedido de que sejam anuladas as liquidações é típico do processo de impugnação judicial, pelo que tal pedido adequa-se perfeitamente ao processo arbitral de que se socorreu o Requerente.
58. Face a todo exposto, improcede, assim, a exceção da inimpugnabilidade do ato invocada pela Requerida, não se verificando tampouco o erro na forma de processo.
IV.3 DA CADUCIDADE DO DIREITO À AÇÃO – LIQUIDAÇÃO DE IRS de 2022 –
59. Diz, por fim, a Requerida que, no que concerne à liquidação de IRS de 2022, o pedido ao Tribunal Arbitral afigura-se intempestivo, na medida em que a primeira Declaração de Rendimento de IRS (Modelo 3), relativa a esse ano, foi submetida, pelo Requerente, em 26.05.2023, liquidada em 27.05.2023, sendo a data de limite de pagamento do imposto apurado de 31.08.2023, e o PPA só foi apresentado em 14.10.2024.
60. Sendo essa, no seu entender, a liquidação relevante, considerando que, nos termos do n.º 6, do artigo 59.º, do CPPT, a apresentação da declaração de substituição não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do ato tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas.
Vejamos,
61. Dispõe o n.º 6, do artigo 59.º, do CPPT que: “Da apresentação das declarações de substituição não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do acto tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas.”
62. Se bem interpretada a norma em apreço, deve entender-se que fica impedida a instauração de impugnação judicial, nas situações em que tal poderia ocorrer em função da apresentação da primeira declaração. Ou seja, quanto aos factos que podiam já ter sido considerados na primeira declaração.
63. Com efeito, só quando haja factos novos declarados na declaração de substituição é que é possível ao contribuinte, deduzir impugnação judicial, mas apenas em relação a esta nova factualidade.
64. Interpretar o preceito em causa de outra forma, seria deixar a norma desprovida de sentido, pois, então, estar-se-ia a admitir a ampliação de um prazo que o preceito expressamente impede que possa ser ampliado.
65. Volvendo ao caso dos autos, verifica-se que a declaração de substituição, que deu origem à liquidação controvertida, é exatamente igual à declaração primitiva, que deu origem à liquidação n.º 2023 ... (ambas entregues sem o anexo L).
66. Recordando o referido pelo Requerente, constata-se que: (i) a declaração primitiva foi submetida sem o anexo L, em virtude de desconhecer o regime dos RNH; (ii) posteriormente, entregou uma declaração com o anexo L, que não deu origem a qualquer liquidação e; por fim, (iii) submeteu, novamente, uma declaração sem o anexo L, que deu origem à liquidação aqui impugnada, por considerar que a AT não iria proceder à emissão de liquidação sem a respetiva submissão da declaração de substituição, sem o anexo L.
67. Como é bom de ver, as declarações, repita-se, são exatamente iguais (a primitiva e a de substituição, que deu origem à liquidação aqui contestada), foram entregues por iniciativa do Sujeito Passivo e tiveram por base os seus conhecimentos (ou falta deles) – quanto à primeira –, e as suas perceções – quanto à última –, o que, como é evidente, não pode, em caso algum, ser imputado à AT.
68. Dito tudo isto, a conclusão só pode ser uma, a de que a liquidação a considerar, para efeitos de impugnação judicial, é a primeira (n.º 2023..., emitida em 27.05.2023).
69. Ora, sendo a data limite de pagamento do imposto apurado (€10.948,12) de 31.08.2023 e tendo o PPA sido apresentado em 14.10.2024, não restam dúvidas de que o PPA é intempestivo, porquanto, encontra-se largamente ultrapassado o prazo de 90 (noventa dias), contado a partir do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias (Cfr. artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT).
70. Face ao exposto, julga-se procedente a exceção dilatória de intempestividade da prática do ato processual, no que concerne à impugnação do ato de liquidação de IRS de 2022, e absolve-se a Requerida da instância, nesta parte, tudo ao abrigo do disposto da alínea k), do n.º 4, do artigo 89.º, do CPTA, aplicável ex vi alínea c), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT.
IV.4 DA DELIMITAÇÃO DAS QUESTÕES A APRECIAR
71. Considerando a factualidade exposta, bem como as pretensões e posições do Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar as seguintes questões:
a) Se o Requerente preenchia os pressupostos para ser tributado como residente não habitual, com produção de efeitos à data de 01.01.2022;
b) Se a atividade exercida pelo Requerente se enquadra como atividade de elevado valor acrescentado;
c) Se a interpretação da Requerente sobre o efeito meramente declarativo da inscrição prevista no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS é inconstitucional;
d) Se o Requerente tem direito à restituição do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.
IV.4.1.1 DO REGIME DOS RESIDENTES NÃO HABITUAIS
72. A questão a analisar e decidir nos presentes autos passa por aferir se o Requerente, a despeito de não ter, no prazo previsto na lei, requerido o seu registo como residente não habitual, ao abrigo do disposto no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, preenchia (ou não) os pressupostos para ser tributado como residente não habitual, com produção de efeitos à data de 01.01.2022.
73. Ou seja, surge, aqui, como questão a resolver, saber se a inscrição no registo da condição de residente não habitual possui, não uma natureza meramente declarativa, mas eficácia constitutiva, no sentido de que se trata nessa inscrição cadastral de pressuposto específico sem o qual não é possível beneficiar das reduções ou isenções fiscais que são conferidas ao contribuinte em razão dessa condição de RNH.
74. Tal questão foi já objeto de apreciação pela jurisprudência, que deve aqui ser considerada por força da obrigação resultante do artigo 8.º, n.º 3, do C.C, que determina que “o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.
75. Neste sentido, vejamos, antes de mais, o enquadramento legal de tal regime e, desde logo, o preceituado no artigo 16.º, do CIRS, em vigor à data dos factos, nos termos do qual:
“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. (Redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto)
11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.”
76. Da análise dos n.ºs 8 a 11, do artigo 16.º, do CIRS, é possível apreender que os pressupostos para a aplicação do regime dos RNH são os seguintes: (i) O Sujeito Passivo se torne fiscalmente residente em Portugal, em conformidade com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 e 2, do artigo 16.º, do CIRS e; (ii) O Sujeito Passivo não tenha sido considerado residente em território nacional em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano em que se deva considerar residente nos termos do n.º 1 e 2 da referida norma.
77. Daqui resulta inequivocamente que o legislador fez depender, para efeitos da aplicação deste regime, do preenchimento dos pressupostos consagrados no artigo 16.º, n.º 8, do CIRS, e não da inscrição formal como residente não habitual.
78. Conforme já foi observado pela jurisprudência arbitral, a redação dos n.ºs 8 e 9, do artigo 16.º, do CIRS, dispõe, de forma clara, no sentido de que se trata, nessa inscrição no cadastro do contribuinte, de um registo declarativo, cuja não realização não impede a aplicação, verificados os pressupostos materiais exigidos, dos benefícios fiscais em causa.
79. Mais, o conteúdo do n.º 11, do artigo 16.º, do CIRS, é manifesto ao fazer depender para a aplicação de tal regime da circunstância factual de o sujeito passivo se ter inscrito (e assim ser considerado) como residente em território português e não da sua inscrição formal enquanto residente não habitual.
80. Assim, para que o sujeito passivo seja “considerado residente não habitual” e adquira o direito a ser tributado como tal, a lei não inclui a inscrição no registo como residente não habitual, que surge no n.º 10 do citado artigo apenas como um dever do sujeito passivo (“deve solicitar a inscrição”), como requisito constitutivo dessa condição e do direito à correspondente situação tributária vantajosa.
81. Aliás, “esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral de Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo de contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRSe não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.
(...)
O pedido de inscrição como residente não habitual imposto pelo n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se a um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT) que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do benefício fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos, sendo, porém da verificação desses requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como residente não habitual.” (Cfr. Decisão arbitral, de 30.07.2023, proferida no processo n.º 705/2022-T) (negrito nosso)
82. Efetivamente, a falta ou a intempestividade da inscrição como residente não habitual dificulta a gestão tributária e o correto processamento das liquidações de IRS pela AT, mas não determina, repita-se, a exclusão do regime correspondente.
83. Aqui chegados, o presente Tribunal, sustentado pela ampla e dominante jurisprudência arbitral nesta matéria, entende, também, que o regime do RNH é um regime jurídico-fiscal cujo direito se verifica ope legis, sem depender do registo formal da qualidade de RNH.
84. Vistos os requisitos dos quais o legislador faz depender a aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais e o efeito que o pedido de inscrição enquanto RNH reveste no ordenamento jurídico, importa apurar se no caso do Requerente, o mesmo reúne os pressupostos para a aplicação de tal regime, com produção de efeitos à data de 01.01.2022.
85. Conforme resulta da matéria de facto dada como provada, o Requerente passou a ser residente para efeitos fiscais em Portugal a partir de 04.05.2022 (Cfr. facto provado B.), sendo que igualmente se provou que o mesmo não se encontrou inscrito como residente fiscal em Portugal nos cinco anos imediatamente anteriores a 2022 (Cfr. facto provado A.).
86. Face a todo o exposto, e à luz dos factos dados como assentes e do respetivo direito aplicável, conclui o Tribunal Arbitral no sentido de que o Requerente cumpria os necessários pressupostos consagrados no n.º 8, do artigo 16.º, do CIRS – os quais são os únicos requisitos exigidos por lei para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime dos RNH –, para usufruir daquele regime especial no ano de 2022 e de 2023 (Cfr. n.ºs 9 e 11, do artigo 16.º, do CIRS).
IV.4.1.2 DA QUALIFICAÇÃO DA ATIVIDADE EXERCIDA PELO REQUERENTE E DA TRIBUTAÇÃO DOS SEUS RENDIMENTOS
87. Não obstante o supra exposto, impõe-se, ainda, verificar se ao Requerente assistia o concreto direito a ser tributado nos termos do n.º 10, do artigo 72.º, do CIRS (em vigor à data dos factos), naqueles anos de 2022 e 2023, o qual estabelecia o seguinte: “Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %.”.
88. O citado artigo previa, assim, que qualquer atividade de elevado valor acrescentado, que pudesse beneficiar desta taxa especial, deveria ser definida por portaria.
89. Concretizando a aludida disposição normativa, foi publicada, num primeiro momento, a Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, que aprovou a “tabela de atividades de elevado valor acrescentado”.
90. Tal portaria elencou através da aprovação daquela tabela a identificação de cada atividade de elevado valor acrescentado, referindo no seu n.º 2 que: “Todas as dúvidas interpretativas respeitantes ao âmbito e ao alcance das actividades constantes da presente tabela devem ser enquadradas nos códigos de actividade económica (CAE) vigentes à data da entrada em vigor da presente portaria.”
91. Contudo, a portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, foi, entretanto, alterada pela portaria n.º 230/2019, de 23 de julho, que procedeu à alteração das atividades anteriormente indicadas.
92. Assim, para o que aqui releva, a tabela passou a incluir, designadamente, o código “12 – Diretores de serviços administrativos e comerciais”, em conformidade com a Classificação Portuguesa de Profissões (“CPP”).
93. Se antes os códigos listados pela portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, não tinham por referência a CPP, sendo as respetivas definições e conteúdos funcionais imprecisos, agora, por força das alterações introduzidas pela Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho, os novos códigos são dotados, indiretamente, de conteúdo explicativo, delimitando as profissões aí elencadas, por remissão para o disposto nos termos da CPP.
94. De harmonia com a CPP a atividade desenvolvida pelo Sujeito Passivo terá de compreender as tarefas e funções dos diretores de serviços administrativos (financeiro, recursos humanos, de planeamento, etc.) e dos serviços comerciais (diretor de vendas, de marketing, de relações públicas, de investigações, de desenvolvimento, etc.) em empresas ou na Administração Púbica.
95. Ora, recordando os factos provados, que para aqui relevam, o Requerente auferiu:
· no ano de 2023: rendimentos provenientes de trabalho dependente prestado em Portugal, nesse mesmo ano, à entidade B..., Unipessoal Lda., num montante total de €98.218,00 (noventa e oito mil e duzentos e dezoito euros)
(Cfr. Facto Provado N.).
96. Os rendimentos referidos supra e declarados pelo Sujeito Passivo, nas suas Declarações de Rendimentos – IRS (Modelo 3), relativas ao período de tributação de 2023, são decorrentes do desempenho, pelo Requerente, da função de Diretor de Serviços na B..., Unipessoal Lda., com sede em Portugal, conforme consta do contrato de trabalho sem termo entre eles celebrado junto ao PPA como Documento n.º 19 (Cfr. Facto Provado O.).
97. Nos termos do aludido contrato de trabalho, o Requerente, na qualidade de Diretor de Serviços, irá “implementar a política global de industrialização da Empresa; gerir as entidades relacionadas com a produção (manutenção, fabrico, logística, etc.), as relações com os clientes e os aspectos administrativos, económicos, contabilísticos e financeiros da sua fábrica; assegurar o desenvolvimento de planos de investimento e a utilização adequada ao orçamento.” (Cfr. Facto Provado P).
98. Dito isto, é manifesto que o Requerente logrou provar qual o conteúdo funcional das tarefas por si desempenhadas para a referida entidade, as quais se inserem na tabela de atividades de elevado valor acrescentado, designadamente, no código “12 – Diretores de serviços administrativos e comerciais”.
99. Face a todo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, conclui o Tribunal Arbitral que ao Requerente lhe deveria ter sido aplicada a taxa de tributação especial anteriormente prevista no artigo 72.º, n.º 10, do CIRS, quanto aos rendimentos por si auferidos e pagos pela dita entidade –B..., Unipessoal Lda. –, na importância de €98.218,00, no que respeita ao ano de 2023, uma vez que o PPA foi considerado intempestivo, operando a exceção dilatória da caducidade do direito à ação no que concerne à impugnação do ato de liquidação de IRS de 2022, tendo a Requerida sido absolvida da instância quanto a esta parte.
IV.4.1.3 DA ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO INVOCADA PELO REQUERENTE SOBRE O EFEITO MERAMENTE DECLARATIVO DA INCRIÇÃO PREVISTA NO N.º 10, DO ARTIGO 16.º, DO CIRS
100. Por último, diga-se, ainda, que não colhe o argumento aduzido, a final, pela Requerida de que a interpretação invocada pelo Requerente – de que a inscrição prevista no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, tem um efeito meramente declarativo –, é inconstitucional, porquanto, consubstancia uma violação frontal aos princípios da Legalidade, do Sistema Fiscal e da Segurança Jurídica (Cfr. artigos 3.º, n.º 3; 103.º, n.º 2; 267.º, n.º 2 e 2.º, todos da CRP).
101. Ora, quanto a esta questão, saliente-se, desde logo, que a “bondade” de uma norma legal e sua interpretação não envolve, forçosamente, uma questão inconstitucional, pois, há, por princípio, que respeitar a liberdade de configuração normativa do legislador ordinário.
102. Ou seja, o facto da Requerida se insurgir quanto à interpretação dada à aludida norma não faz dela inconstitucional.
103. Conforme afirma a própria Requerida, a obrigação da inscrição prevista no n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS é o resultado de várias alterações legislativas, em que a redação inicial, aquando da criação do regime do RNH, implicava uma verdadeira manifestação de interesse por parte do contribuinte em beneficiar do referido regime.
104. Contudo, no caso dos autos não está em causa, como é bom de ver, a interpretação da citada norma na sua redação inicial, uma vez que o cenário normativo não coincide com o aqui em consideração.
105. Pois, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo de contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes, nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do CIRS, e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.
106. Para além de que a Requerida não específica qual a dimensão da violação dos aludidos princípios constitucionais e em que é que essa violação consiste, limitando-se a esgrimir argumentos contra a interpretação dada ao aludido preceito normativo – de que o n.º 10, do artigo 16.º, do CIRS, consagra apenas a imposição de um dever acessório –, o que, só por si, repita-se, não basta para que a dita norma seja declarada inconstitucional.
107. Assim sendo, falece, também, esta linha argumentativa invocada pela Requerida.
IV.4.1.4 DO DIREITO AO REEMBOLSO DO IMPOSTO PAGO E A JUROS INDEMNIZATÓRIOS
108. Peticiona, ainda, o Requerente que lhe seja reconhecido o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
109. Determina a alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º, do RJAT, que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários”, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (Cfr. n.º 5, do artigo 24.º, do RJAT).
110. De igual modo, o n.º 1, do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário, por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
111. O restabelecimento da situação, que existiria se o ato tributário (de liquidação de IRS n.º 2024 ..., relativo ao período de 2023) apreciado nos autos não enfermasse de ilegalidade, obriga, por um lado, à restituição do imposto pago indevidamente, no valor de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos) e, por outro lado, ao pagamento de juros indemnizatórios.
112. O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
113. Ora, a Requerida não considerou o estatuto de RNH quando procedeu à liquidação de IRS relativamente ao Requerente, em violação da lei fiscal aplicável.
114. É certo que o erro da Autoridade Tributária resulta da apresentação intempestiva do pedido de inscrição como RNH no cadastro do Requerente.
115. Contudo, dado que a Requerida emitiu a liquidação impugnada por sua iniciativa com a ilegalidade verificada – não aplicando ao Requerente aquele estatuto especial (RNH) –, é-lhe imputável tal situação.
116. Face ao exposto, verificando-se a existência de erro em ato de liquidação de tributo, imputável aos serviços da AT, e daí resultando o pagamento de tributo em montante superior ao legalmente devido, deverá proceder o pedido do Requerente, i.e., ser-lhe reconhecido o direito a juros indemnizatórios e condenar-se a AT ao reembolso do imposto indevidamente pago, no que respeita à liquidação de IRS n.º 2024 ..., relativa ao período de 2023, da qual resultou o valor de imposto a pagar de €13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos), ao abrigo do disposto nos artigos 43.º e 100.º, da LGT e 61.º do CPPT.
V. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente a exceção dilatória da caducidade do direito à ação no que respeita à impugnação do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao período de tributação de 2022;
b) Julgar improcedente o pedido de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao período de tributação de 2022;
c) Julgar procedente o pedido de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação n.º 2024..., relativo ao período de tributação de 2023;
d) Condenar a AT a reembolsar ao Requerente o excesso de imposto pago, respeitante ao ano de 2023, no montante de 13.323,45 (treze mil trezentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos) e ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento do reembolso (nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
VI. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de €24.271,57 (vinte e quatro mil duzentos e setenta e um euros e cinquenta e sete cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.530,00 (mil e quinhentos e trinta euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida na percentagem de 54,89% e a cargo do Requerente na percentagem de 45,11%, em razão da proporção do decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 06 de maio de 2025
A Árbitra,
Susana Mercês de Carvalho
[1] “Embora na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT apenas se faça referência explícita à competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiros graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações.” (Cfr. Comentário ao regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p.121)
[2] (Cfr., entre outros, RODRIGUES BASTOS, in “Notas ao Código de Processo Civil”, 3ª ed., 1999, pág. 262; ANTUNES VARELA, in RLJ 115, pág. 245 e segs; Acórdão do STJ de 12/12/2002, no Rec. nº 3981/02, in Sumários, 12/2002; Acórdão da R.Coimbra de 14/3/2000, in BMJ 495, pág. 371; Ac. R.Évora de 12/11/98, in Col.Jur. Ano XXIII, T5, pág. 256; Acórdão da R.Lisboa de 19/1/1995, in Col.Jur. Ano XX, T1, pág. 95, e Acórdão da R.Porto de 5/7/1990, in Col.Jur. Ano XV, T4, pág. 201.).