Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1022/2024-T
Data da decisão: 2025-06-02  IRC  
Valor do pedido: € 41.088,15
Tema: IRC – Cláusula Geral Anti-abuso – Art. 38.º, n.º 2, da LGT; elemento intelectual. Preços de transferência – art. 63.º do CIRC.
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            SUMÁRIO:                                                                

 

I  -  A cláusula geral antiabuso não deve ser aplicada se não se verifica um dos pressupostos de facto de que depende a sua aplicação, que é o acto ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios de idêntico fim económico, ou seja, se não se demonstra o elemento intelectual, dado que os requisitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT são cumulativos.

 

II – Acresce que, à luz do mesmo normativo, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo também indispensável que a obtenção destas tenha sido um objectivo essencial ou principal visado pelos sujeitos passivos. 

 

III -  Não há lugar à aplicação da norma que rege os “preços de transferência”, quando o que está em causa é uma comissão de intermediação estabelecida entre duas empresas do mesmo “Grupo”, no âmbito da estratégia comercial delineada para potenciar o conhecimento e a notoriedade internacional da respectiva marca, sem se que tenha demonstrado haver uma operação comparável praticada entre entidades independentes. 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I. RELATÓRIO

 

            A..., UNIPESSOAL, LDA, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., freguesia de ..., ...-... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o n.º ... (doravante Requerente), notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., que apreciou a legalidade da demonstração de liquidação de IRC n.º 2022 ..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2022 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., do ano de 2018, veio, nos termos do disposto no artigo 2º n.º 1 alínea a), 5º n.º 2 alínea a), 6º n.º 1, 10.º n.º 1 alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102º n.º 1, alínea b) do CPPT, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, com vista à declaração de ilegalidade daqueles atos tributários.

 

            É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”. 

 

            Em 04 de Setembro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.

 

            Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro deste Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

 

            As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c),do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).

 

            O Tribunal Arbitral ficou constituído em 13 de Setembro de 2024. 

 

            Em 18-12-2024, a Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo.  

            A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) defendeu-se por excepção, invocando a incompetência do Tribunal Singular em razão do valor, e por impugnação, concluindo que deve ser julgada procedente a exceção, absolvendo-se em conformidade a Requerida da instância.

            Por despacho de 19-12-2024, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório relativamente à matéria da exceção suscitada, tendo-o exercido por requerimento apresentado em 10-01-2025, no qual defendeu a improcedência da excepção invocada pel AT.

            

            Ponderando as posições de ambas as partes e as normas aplicáveis, pelo despacho arbitral 15-01-2025 (que aqui se dá por integrado) determinou-se que que o valor atendível para a fixação do valor desta causa é o da importância da liquidação cuja anulação a Requerente vem pedir, ou seja 41.088,15 €, em linha com a interpretação que do artigo 97.º , nº 1, als. a) e b), do CPPT vêm expressando, consistentemente, a Doutrina e a Jurisprudência maioritárias, ali citadas. Na decorrência, julgou-se improcedente a excepção dilatória da incompetência do Tribunal em razão do valor do litígio e ordenou-se que o mesmo prosseguisse para a apreciação do mérito da causa.

            

            Por despacho de 16-01-2025, foi agendada para 06-02-2025 a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. 

 

            Na reunião, a Requerente requereu que a Requerida procedesse à junção dos documentos de certificação legal sobre o balanço intercalar do revisor de contas, bem como o relatório que a testemunha B... protestou juntar aquando da sua prestação de declarações, a 15-06-2022, documentos esses que foram juntos nos 5 dias posteriores na Direção de Finanças de Braga, mas que não constam do Processo Administrativo. 

            O Representante da requerida não se opôs ao requerido, sugerindo e requerendo que fosse o SP a juntar tais documentos por eventualmente a eles ter mais fácil e rápido acesso, invocando o princípio da celeridade e informalidade instituídos no RJAT.

            O Tribunal deferiu ambos os requerimentos, tendo a reunião prosseguido com a inquirição das testemunhas C... e D... .

            Seguidamente, determinou-se que as partes dispunham de prazos sucessivos de 15 dias para oferecerem alegações, de modo a que o Representante da Requerida pudesse, no respectivo prazo, exercer o contraditório quanto à anunciada junção de documentos. 

            Ambas as partes apresentaram alegações escritas, nelas tendo mantido, essencialmente, as posições já por si expressas nos articulados. 

            Com as alegações, a Requerida juntou quatro documentos, a saber: Certidão permanente da Requerente, válida até 26-04-2023; Documento particular que titula a cessão quotas de E... a F..., em 31-12-2020; Lançamento contabilístico cessão quotas; Ata nº 13: consentimento da cessão de quotas manutenção do nome e designação novo gerente. 

            Notificada, por depacho de 11-03-2025, para exercer, querendo, o contraditório quanto a tais documentos, a Requerente nada pronunciou.

 

            A 06-05-2025, proferiu-se despacho de prorrogação do prazo para a Decisão Arbitral, nos termos do artigo 21.º do RJAT.        

 

            II. SANEAMENTO

 

            O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer das liquidações aqui postas em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

            As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

            Não foram identificadas outras questões que obstem ao conhecimento do mérito. 

 

            III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

            

            1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

            Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:

 

A. A Requerente, A..., Unipessoal, Lda, à data dos factos e até 07-03-2023 denominada G..., Unipessoal, Lda, dedica-se ao comércio por grosso de têxteis, estampagem e comércio a retalho por correspondência ou via internet (PA, Certidão Permanente junta com as Alegações da Requerida e incontrovertido).

 

B.  A Requerente foi sujeita a uma ação inspetiva externa e de âmbito parcial, referente ao exercício de 2018, motivada pelo controlo de benefícios fiscais, com início a 06-10-2021, ao abrigo da OI2021... (PA e incontrovertido).

 

C. O total do capital próprio da Requerente, em 2017, era de € -672.077,85, tendo passado a € 365.344,76, em 2018, dectectando os SIT que este incremento de € 1.348.173,39, resultou da cobertura dos prejuízos acumulados (€ 722.077,85), da constituição de outros instrumentos de capital próprio (€ 525.000,00) e de outras variações no capital próprio (€ 101.095,54) - (Resposta, PA e incontrovertido). 

 

D. Da análise da contabilidade da Requerente, foi possível concluir que a variação patrimonial positiva no valor de € 1.247.077,85 – que permitiu a cobertura dos prejuízos acumulados e a constituição de outros instrumentos de capital próprio e que não concorreu para a formação do lucro tributável, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do CIRC – teve origem na constituição de suprimentos no valor de € 165.000,00 e ainda € 900.000,00, que acrescem ao saldo credor do período anterior no valor de € 365.474,84 (Resposta, PA e incontrovertido). 

 

E. Os suprimentos no valor de € 165.000,00 foram recebidos, em 08-02-2016, por transferência bancária, sendo a ordenante, H..., mãe de I..., o único sócio e gerente da Requerente à data dos factos (Respoata, PA e incontrovertido). 

 

F. Relativamente aos suprimentos de € 900.000,00, a 30 de junho de 2018, foram celebrados três contratos de cessão do crédito, de igual montante, detido sobre a Requerente, entre entidades do mesmo grupo empresarial denominado “J...”, designadamente:

       •          K... SA (detentora original do crédito e, doravante, denominada K...) cedeu este crédito à L... SGPS, SA (doravante, denominada L... SGPS), pelo preço de € 900.000,00 que a cessionária pagaria à cedente, por compensação de saldo credor do mesmo montante que a cedente tinha na cessionária;

       •          L... SGPS cedeu o crédito a H..., acionista e administradora das duas sociedades anteriormente referidas, pelo preço de € 900.000,00 que a cessionária pagaria à cedente, por compensação de saldo credor do mesmo montante que a cedente tinha na cessionária;

       •          H... doou este crédito ao seu filho, I... (Resposta, PA, designadamente os contratos constantes do Anexo II do RIT, e incontrovertido).

 

G. I... afetou este valor a suprimentos para cobrir os prejuízos acumulados da Requerente e para a constituição de prestações suplementares (Resposta, PA, designadamente o Anexo I do RIT, e incontrovertido).

 

H. No decurso do procedimento de inspeção, foi possível comprovar a existência de relações especiais entre a Requerente e o grupo J..., na medida em que:

       •          O local efetivo onde o SP desenvolve a sua atividade é nas instalações da M... S.A., estamparia denominada A..., situada na Rua ..., n.º..., ... –... ...Vizela;

       •          A contabilidade é efetuada nas instalações e com recursos humanos da K..., sita na ..., n.º..., ...–... ... Guimarães;

       •          O contabilista certificado (doravante CC) da Requerente é trabalhador dependente da K...;

       •          A Requerente tem um Acordo de Licença de Exploração comercial da marca ... para um horizonte temporal de 15 anos, assinado com o Grupo J..., em abril de 2015, através do qual o Grupo J... cede a total exclusividade de exploração da marca ... à Requerente e a K... se torna a sua principal fornecedora de artigos têxteis lar.

       •          Os titulares do capital da Requerente e das entidades do grupo J... encontram-se ligados por laços de filiação, já que I..., detinha 100% do capital social da Requerente e a sua mãe, H..., é detentora de mais de 20% do capital das empresas do Grupo (L... SGPS, K..., M... S.A. e cliente N... GmbH) - (Resposta, PA, designadamente o Anexo VIII do RIT / Doc. 6, junto com o PPA, e incontrovertido).

 

I. Entre 2016 e 2018, a empresa K..., SA (K...) vendeu bens à Requerente, ficando com um crédito de 900.000 € [PA, PPA – item 27 (gralha corrigida nas Alegações) e incontrovertido].

 

J. H... era administradora das sociedades L..., SGPS, SA e K..., SA. (PA/RIT).

 

K. As operações em causa visaram unicamente reconstituir os capitais próprios da Requerente, evitando a insolvência da empresa, o encerramento da mesma e o fim do projeto que lhe estava subjacente (PPA e depoimentos das testemunhas  C... e D...).

 

L. Tais operações permitiram efectivamente salvar a empresa e reconstituir os capitais próprios, objetivo comum a todos os intervenientes do Grupo J..., uma vez que a Requerente  detinha a marca ... e fazia a promoção dessa marca no exterior (PPA e depoimento da testemunha C...).

 

M.  Por isso, fazia todo o sentido manter a Requerente em atividade quando, pelo contrário, se a mesma fosse à insolvência iria denegrir a imagem de todo o Grupo junto da Banca (PPA e depoimento da testemunha C...).

 

N. A alternativa à solução encontrada teria sido a entrada de dinheiro para a recomposição dos capitais próprios, mas, naquele momento, havia escassez de meios financeiros no Grupo, pelo que a estrutura da área financeira da Empresa, incluindo o Director Financeiro, o Contabilísta o Tesoureiro e o Cobrador, não encontrou outra solução senão a adoptada (PPA e depoimentos das testemunhas C... e D...).

 

O. O projeto da Requerente, voltado para a internacionalização, constitui uma tentativa de conquistar para o setor do têxtil−lar, indústria de capital humano intensivo, o domínio da última fase da cadeia de valor, que propicia a maior fatia da margem de venda do produto, perante uma forte concorrência internacional, como a proveniente a India, Turquia e Paquistão (PPA e testemunha C...).

 

P. A AT valorizou diferentemente os suprimentos no valor de €165.000,00 (realizados por doação em dinheiro), dos de €900.000,00 (realizados por doação do crédito), mas ambos tiveram origem em doações de H... ao filho I..., com a única diferença de a segunda operação ter resultado de compensação de saldos, sem fluxos financeiros, mas culminando igualmente num acto gratuito, por opção exclusiva da doadora (PPA e depoimentos das testemunhas C... e D...).

 

Q. Na área de vendas por grosso à N..., a intervenção da Requerente é minimalista, pouco acrescentando na cadeia de valor deste negócio, uma vez que o único serviço que presta é o uso da marca ... que lhe compete potenciar, em conhecimento e notoriedade (Doc. 6 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido, e depoimentos das testemunhas C... e D...).

 

R. A N... já integrava o grupo de clientes que compravam sob a marca ... antes de esta ser passar a ser gerida pela Requerente, sendo que as vendas, armazenamento, transporte, embalagem e envio das mercadorias continuaram a ser efetuadas sem alteração do preço pela K..., SA.  / K...(PPA e depoimentos das testemunhas C... e D...).

 

S. As vendas continuaram sem alteração do preço, dado que a Requerente recebe a facturação da K... e replica essa facturação para a N..., sem acrescentar qualquer valor, limitando-se a cobrar, trimestralmente, um “rappel” ou comissão de intermediação de 2,5%, sobre o volume de vendas (PPA e depoimentos das testemunhas C... e D...).

 

T. A N... em nada vê alterado o preço que antes pagava à K..., pois apenas esta vê a sua margem diminuída de 2,5%, sendo este procedimento baseado na estragégia comercial do “Grupo”, centrada na Requerente, e também no facto os preços serem bastante concorrenciados, pelo que se fosse acrescentado mais valor na faturação o preço ficaria desajustado do mercado (cit. Doc. 6, Docs. 7 a 16 juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos, e depoimento da testemunha C...).

 

U. Os negócios que envolviam tecelagem e estampagem e esforço de vendas online a consumidor final tinham margens diferentes, porque obedeciam a políticas comerciais diferentes, não comparáveis com a relação que envolvia a Requerente com a K... e a N... (PPA e depoimento da testemunha D...).

 

V. Do Processo Administrativo (PA), nomeadamente do ponto 336, a fls. 62 do Relatório da Inspecção Tributária (RIT) consta o depoimento prestado perante a AT, em 15-06-2022, pelo Dr. B..., revisor oficial de contas, do qual se transcreve o seguinte:

1 – O meu relacionamento com a empresa G..., resulta de em Junho de 2018 me ter sido pedida uma intervenção para analisar e auditar o balanço intercalar e a estrutura financeira da empresa nomeadamente a sua estrutura de capitais próprios, necessária para a empresa se poder candidatar-se a programa de internacionalização e de criação de notoriedade de marcas, sua principal missão.

2 – Esta intervenção realizou-.se após a empresa ter concretizado uma reestruturação da sua estrutura financeira mediante a entrada suprimentos e cobertura de prejuízos, por parte do sócio único de forma a superar a situação de dissolução prevista no artigo 35º do Código das sociedades comerciais.

3 – A factualidade descrita pela At corresponde à forma como o sócio da G... ficou a deter o crédito sobre esta empresa, pesem as adjetivações, advérbios e convicções expostos pela AT que que nos parecem não suportados pelos factos, é a descrita pela AT, sendo que sobre os factos tivemos na altura e hoje, leituras completamente opostas.

Há abuso de lei, quando se usa esta para além do pretendido pelo legislador e do socialmente aceitável. E isto acontece para ambos os usuários da lei, contribuintes e AT.

Em nenhum momento deste processo de análise de reestruturação financeira se me colocou qualquer motivação de natureza fiscal para esta operação, e muito menos o aludido propósito (ver ponto 56 do relatório da AT) de as operações realizadas terem como finalidade evitar qualquer possível tributação em IRC.

4 – A convicção criada pela AT resultante da análise destas operações de que o único propósito desta operação seria eludir qualquer tributação em IRC não tem qualquer suporte nas evidências recolhidas nem pode ignorar que a única razão desta operação e as consequências desta, são absolutamente transparente e se se destinam a evitar a situação de insolvência em que a empresa se encontrava e lhe impedia o acesso a programas de internacionalização que lhe permitissem cumprir a sua missão de conquista de mercados na última fase da cadeia de valor dos têxteis lar.

Não houve qualquer ganho de ninguém e o facto de as operações se terem realizado com créditos e não dinheiro mais reforça a ideia de não haver ganhos de ninguém, sendo a melhoria dos capitais próprios da G... uma operação que o legislador incentiva e beneficia.

5 – A motivação e missão da G... e utilidade da sua continuidade e do seu projeto, continua a ser absolutamente vital para  sobrevivência da indústria têxtil baseada tradicional, que vende produtos de excelente qualidade mas está na mão de intermediários estrangeiros que canibalizam toda a margem.

6 – A não ser conseguida este difícil desiderato de integrar alguma margem da última fase da venda internacional, a indústria tradicional, nomeadamente os têxteis, não sobreviverá em Portugal, pois os baixos custos a suportam.

7 – Assim, onde a AT viu artifício e intenções de eludir impostos devidos, o declarante apenas viu um ato de gestão racional e inequivocamente dirigido a cometer um dos atos mais sagrados da gestão: permitir a continuidade da empresa.

8 – A K... não perdoou qualquer dívida à G... . A K... cedeu o crédito que tinha sobre a G... para pagar uma dívida do mesmo montante.

9 – O facto de as operações se terem realizado por cedências de créditos em vez de movimento de dinheiro, comunicadas a AT com toda a transparência, não suportam, sem abuso, a utilização da AT da denominada Cláusula geral Anti Abuso.

10 – Sobre as razões económicas da existência da própria G..., parece-nos a existência de grupos de empresas mais ou menos formais ou informais, e as sinergias que podem criar, são fonte de crescimento e capacidade de enfrentar a concorrência e nem sempre compagináveis com limites e preconceitos relativamente à gestão.

No caso das marcas, nem sempre os grupos têm capacidade, sem retaliação dos seus clientes tradicionais, de desenvolver marcas próprias que se configuram com concorrência desleal aos olhos dos seus próprios clientes.

10 – Assim, anexamos neste testemunho, o relatório de CLC emitido à data dos factos, reiterando a nossa convicção atual, de que, por parte da empresa G... e dos seus responsáveis, a única motivação da reestruturação, foi salvar a empresa da insolvência e não me parece ter havido qualquer intenção fiscal na reestruturação efetuada, sendo inadequada a utilização do n.º 2 do artigo 38º, procurando tributar-se lucros ficcionados e não reais.

11. Por último, e na minha qualidade de ROC do Grupo J..., largamente referenciado no relatório, também me é sugerido testemunhar que este grupo, que emprega atualmente mais de 800 trabalhadores, enfrenta nos últimos anos uma concorrência feroz e a exemplo de outros grandes grupos baseados em capital humano intensivo tem de encontrar caminhos de inovação sobretudo na área comercial ou não sobreviverá.

O tempo é claramente de vacas muito magras e este e outros setores precisam de sinergias de apoio para e mudanças para subsistir.

12. No contexto dos preços de transferência a G...´+e remunerada em 2,5% pelo pouco contributo que tem, que é permitir que nos produtos vendidos à G... esta continue a vendê-los com a marca ... .

13. Nesta diligência o declarante protestou juntar um relatório composto por 3 páginas elaborado em 29 de outubro de 2018 o qual tem subjacente a ideia de que a reestruturação financeira efetuada em junho com a cessão de créditos nada lhe sugeriu para além dos objetivos de reestruturação dos capitais próprios”.

 

W. Do Certificado do Revisor Oficial de Contas sobre o Balanço Intercalar, emitido em 29-10-2018,

por “O... SROC”, consta, além do mais, o seguinte:

 

 

G...

 

 

G...

 

(Doc. junto pela Requerente, em 07-02-2025).

 

X. Do procedimento de inspeção em apreço resultaram as seguintes correções:

       a)         Acréscimo ao Lucro Tributável de € 900.000,00 por aplicação da norma da Cláusula Geral Anti-abuso (CGAA), prevista no art.º 38.º da LGT;

       b)         Acréscimo ao Lucro Tributável no montante de € 193.824,29 por aplicação da norma de Preços de Transferência prevista no art.º 63.º do Código do IRC;

       c)         Correção no valor de € 3.348,09 no campo 714 (dotação do período) e 716 (saldo que transita para o período seguinte) do quadro 074 do Anexo D à Modelo 22, relativamente ao Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) - (Resposta, PA e incontrovertido).

 

Y. Inconformada, a Requerente apresentou, em 19-05-2023, Reclamação Graciosa (RG) n.º ...2023... contra os consequentes actos de demonstração de liquidação de IRC n.º 2022..., de demonstração de liquidação de juros n.º 2022... e da demonstração de acerto de contas n.º 2022..., do ano de 2018 (PA e Docs. 1 a 5, juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos).

 

Z. Tal Reclamação foi indeferida por despacho de 26-04-2024, comunicado à Requerente através do Ofício n.º..., de 29-04-2024, em correio registado de 02-05-2024 e recebido no dia seguinte, dele constando, designadamente, o seguinte:

(...)

“1. A liquidação do IRC aqui atacada, respeita ao período económico de 2018, tendo sido efetuada pela AT em resultado de um procedimento inspetivo a coberto da ordem de serviço n.º OI2021... .

2. Naquele procedimento, entre outras, foram efetuadas as seguintes correções, que, a Reclamante aqui contesta:

       a. Acréscimo ao Lucro Tributável de 900.000,00 € por aplicação da norma da CGAA (art.º

38.º da LGT) em virtude da utilização de negócios jurídicos, essencial ou principalmente, dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas à eliminação da incidência de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios.

       b. Acréscimo ao Lucro Tributável no montante de 193.824,29 € por aplicação da norma de

Preços de Transferência (art. 63.º do Código do IRC).

3. Quanto à aplicação da CGAA, foi a mesma motivada pelo facto dos SIT terem considerado que a sucessiva cedência de crédito do montante de 900.000,00 € detido sobre a Reclamante, entre entidades do mesmo grupo empresarial denominado “K...”, designadamente entre a K... SA (detentora original do crédito e doravante denominada K...), à sociedade mãe L... SGPS, SA (doravante denominada L... SGPS) e desta para H..., acionista e administradora das duas sociedades antes referidas, sendo também gerente de facto da Reclamante e doadora do mesmo crédito ao seu filho I..., que por sua vez o incorporou na sociedade Reclamante (onde é sócio único e gerente de direito) a titulo de reestruturação do capital, com cobertura de prejuízos, visou dissimular o verdadeiro negócio que é um perdão de dívida da primeira entidade (o fornecedor K...) à última entidade (o cliente A...), naquele valor de 900.000,00 €.

4. Ou seja, entenderam os SIT que se tratou de um esquema ardiloso, a dissimular o verdadeiro

negócio do perdão de divida naquele montante, com o objetivo de afastar a tributação desta

variação patrimonial positiva na Reclamante, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 21.º do

CIRC.

5. Quanto à aplicação dos Preços de Transferência, os SIT consideraram que, as vendas da Reclamante para o cliente N..., entidade relacionada sedeada na Alemanha, eram abaixo do preço de mercado, já que apresentavam margens nulas, violando assim o principio da plena concorrência e ajustaram o preço ao valor apurado pelo método da margem liquida da operação, que demonstraram ser o mais adequado a aplicar ao caso em apreço.

V - PARECER

Quanto à correção pela CGAA4

6. Entende a Reclamante que não se verificam os pressupostos de que depende a aplicação da CGAA.

7. Para a Reclamante não se verificam:

       a. o “elemento intelectual” que exige a ausência de outras motivações, para além da redução da carga fiscal, que possam ser imputáveis às operações efetuadas, defendendo que a motivação de tal operação foi evitar a insolvência da mesma;

       b. o “elemento meio” que corresponde à via escolhida para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;

       c. o “elemento resultado” que corresponde na vantagem fiscal;

       d. o “elemento normativo” que corresponde à interpretação e aplicação do Direito Tributário, já que os atos praticados estão conformes com o ordenamento jurídico e respeitam o

principio da liberdade de iniciativa económica porque assentam em razões empresariais legítimas;

       e. o “elemento sancionatório” que corresponde à efetivação da clausula, dependendo da verificação cumulativa dos demais elementos já referidos – elemento meio, resultado, intelectual e normativo;

       f. pelo que não estão preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da CGAA.

8. Por outro lado, entende também a Reclamante que a AT errou na identificação do negócio alternativo, que não seria o perdão de dívida de 900.000,00 € pela K... SA, mas, seria sim, a L... SGPS SA pagar os suprimentos detidos por H... e esta doar aquele montante ao filho I... que daria entrada do montante de 900.000,00 € na Reclamante, reestruturando os capitais próprios.

9. É nosso entendimento que, ainda que o objetivo último de tais negócios / actos jurídicos fosse

a cobertura dos prejuízos da Reclamante, as operações em causa não são a cobertura de prejuízos, mas sim os contratos de cessão de crédito e a doação.

10. Estas operações de cedência sucessiva do crédito padecem da ausência de qualquer motivação que justifiquem a sua concretização, para além das meramente fiscais.

11. O que está em causa, é o caminho seguido para atingir o objetivo da cobertura de prejuízos.

12. É a escolha de um negócio jurídico, in casu a cessão de créditos e a doação, como forma jurídica de atingir um certo objetivo, a cobertura de prejuízos, com menor (nula) oneração fiscal.

13. Fica bem patente que a Reclamante e seus pares escolheram aquela sucessão de negócios jurídicos que não são típicos nem normais na gestão de sociedades comerciais, efetuada com base na simples racionalidade económico-financeira, negócios estes que só aconteceram pelo facto dos seus intervenientes serem entidades relacionadas.

14. De outro modo, se a Reclamante estivesse a operar em contexto de entidades independentes jamais seriam aceites os contratos de cessão de créditos, pois nenhuma outra empresa aceitaria a cessão de créditos sobre uma entidade com prejuízos consecutivos com o inerente elevado risco de não cobrança em troca de um crédito sobre uma empresa como:

       • A K... S.A. com volume de negócios no valor de mais de 22 milhões de euros e capitais próprios em valores acima dos 20.000.000,00€; ou da

       • L... SGPS S.A. com resultado líquido no valor de perto de 1 milhão de euros e capitais próprios em valores acima dos 32.000.000,00€.

16. A aceitação da cessão de créditos destas entidades é desprovida de qualquer racionalidade económica, demonstrando, inequivocamente, a inexistência de razões económicas válidas para a celebração dos mesmos.

17. Tais contratos só foram assinados por via das relações especiais entre os seus intervenientes, o que nos leva a concluir que estes contratos tiveram como principal objetivo - ou exclusivo - o de beneficiar da exclusão de tributação de um rendimento no valor de 900.000,00€, em claro abuso de direito.

18. De facto, cabe aos contribuintes “a escolha dos meios específicos pelos quais realizam os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se como uma razão comercial legítima”.

19. Ora, no caso em apreço, tratando-se de uma série de operações em contexto familiar sem justificação económica, resta a motivação fiscal, constituindo a poupança fiscal em sede de IRC alcançada com a entrada de suprimentos por parte do sócio para a cobertura dos prejuízos afastada de tributação, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do CIRC.

20. Só se compreende esta sucessão de atos e negócios jurídicos no contexto da procura de um determinado resultado fiscal (a não tributação do perdão de dívida).

21. Comparando a carga fiscal decorrente do “negócio”, considerando a cessão de créditos e a doação, com a que resultaria do perdão de dívida do fornecedor, é forçoso concluir que o sujeito passivo logrou aproveitar um tratamento fiscal muito mais vantajoso.

22. Pelo exposto, justifica-se a aplicação da CGAA.

Quanto à correção pelos Preços de Transferência

23. A Reclamante defende que relativamente às vendas por grosso à N..., a sua intervenção é mínima e resulta da circunstância de ser detentor da exploração da marca ..., cujo detentor originário é a K..., que, deste acordo de exploração da marca, resulta o compromisso da Reclamante contribuir, por todos os meios, para o aumento do conhecimento e notoriedade da marca ... .

24. E afirma que, no que se refere à área de vendas por grosso à N..., a sua intervenção

é minimalista, pouco acrescentando na cadeia de valor, sendo o único serviço a utilização da marca ..., pelo que a remuneração da A... corresponde a um rappel de 2,5% sobre o volume de vendas e debitado à K... .

25. Defende ainda que a N... em nada vê o preço habitual antes pago à K... alterado; apenas a K... vê a sua margem diminuída em 2,5%.

26. Todos estes argumentos não justificam a prática daquela margem de apenas 2,5% (que como demonstrado nem sequer esta se verificou), pois se se comparar com a margem praticada na Unidade Orgânica - Braga - em empresas cuja atividade é o comércio por grosso de têxteis, portanto sem transformação, a média praticada é de 15,5% e a nível nacional tal média sobe para 19,77%.

27. Quanto à N... não ver o seu preço alterado, não podemos esquecer que, os negócios entre a K... e a N..., são também negócios entre entidades vinculadas, que, deveriam também ser apreciados pela norma dos preços de transferência.

28. E, tal facto, reforça até a evidência de que, a margem praticada pela Reclamante só é possível por força das relações especiais amplamente demonstradas no relatório da inspeção tributária e que não seria praticada e aceite entre entidades independentes como resulta evidente das médias praticadas por outros operadores económicos que exercem a mesma atividade, como atrás referido.

28. E, constata-se que, a prática de tal (pequena) margem contribui e afeta os resultados obtidos pela A..., que vem apresentando prejuízos consecutivos desde 2015 (ou seja, desde o ano da sua constituição).

29. Nenhuma entidade independente aceitaria a manutenção das mesmas condições, sabendo que as mesmas conduziriam, a prazo, à sua insolvência.

29. E, à data, a A... estava isenta de pagamento de royalties de 1%, o que a partir do 4.º ano de exploração da marca, reduzirá a margem liquida contratada de 2,5% para apenas 1,5%.

30. Segundo a OCDE5, o facto de uma empresa com prejuízos efetuar operações com os membros lucrativos do seu grupo multinacional pode sugerir que essa empresa não esteja a ser corretamente remunerada pelo grupo multinacional a que pertence, atendendo aos benefícios que este retira das suas atividades.

30. Esta é claramente outra evidência que denuncia que estas entidades, em relações especiais,

não operam em condições que normalmente seriam aceites e praticadas entre entidades independentes.

31. A Reclamante defende ainda que a AT utilizou como negócio comparável, negócios em que há acréscimo de valor (tecelagem estampagem e esforço de vendas online).

32. De forma a concluir se são comparáveis as operações vinculadas e as operações realizadas entre entidades não relacionadas, define o artigo 5.º da Portaria 1446-C/2001 que dever-se-ão considerar os seguintes fatores de comparabilidade:

       • As características que se podem revelar importantes relativas aos bens ou serviços transacionados [alínea a)];

       • As funções exercidas pelas partes (incluindo os ativos utilizados e os riscos assumidos) [alínea b)];

       • As cláusulas contratuais [alínea c)];

       • As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respetivas partes

operam [alínea d)];

       • E as respetivas estratégias negociais [alínea e)].

33. Neste caso, analisou-se a comparabilidade entre a margem praticada entre as entidades vinculadas (Reclamante e N...) na venda de têxteis da marca ... com a margem de venda praticada com outros clientes.

34. E, concluíram os SIT, pela análise do perfil de clientes  expurgando os clientes de serviços exclusivamente, que a reclamante apresenta vendas no canal online de mercadorias têxteis lar da mesma marca ... e adquiridas junto do mesmo fornecedor das mercadorias vendidas à N..., portanto vendas a consumidor final.

35. Pelo que, estas caraterísticas dos bens transacionados, são, sem qualquer dúvida, equivalentes, na qualidade, na fiabilidade e na disponibilidade.

36. Diferem apenas quantidades que podem influenciar significativamente a margem praticada, que neste caso é acima dos 50%.

36. Assim, concluíram os SIT que se mostrava necessário um ajustamento neste fator que nos é dado pela margem praticada com clientes (empresas) de produtos acabados e intermédios, calculada em 16,15% de acordo com a informação disponível na própria contabilidade da Reclamante.

37. Portanto, a margem a praticar em plena concorrência, partindo da comparabilidade com os mesmos produtos vendidos da marca ... estará no intervalo que nos é dado pelos dois valores acima referidos (16,15% - 50,00%).

38. Os SIT não utilizaram como comparável o negócio em que há acréscimo de valor (tecelagem e esforço de vendas online).

39. Como comparável, consideraram as vendas no canal online – mesmo produto vendido à N..., com ajustamento para o intervalo dado pelo valor praticado com outros clientes independentes (16,15% - 50%).

40. E, mesmo assim, foi considerado o valor mínimo do intervalo 16,15%, valor este que se encontra dentro do intervalo de médias das margens praticadas na unidade orgânica e nacional [15,5% - 19,77%], no setor de comércio por grosso de têxteis.

41. Pelo exposto, concluiu-se também pela adequada aplicação das correções propostas no âmbito do regime dos preços de transferência.

(...) -  (PA).

 

AA. O presente PPA foi apresentado em 02-09-2024 (SGP do CAAD).

 

            2. FACTOS NÃO PROVADOS

 

            Não se provou que, subjacente aos contratos referidos estivesse apenas a intenção de operar um perdão de dívida da K..., SA / K... à G.../ A... , antes se tendo provado que o objectivo dessas operações foi o de salvar esta última da situação de insolvência iminente em que se encontrava, desiderato legítimo e, mais ainda, pelo efeito deletério que causaria na imagem do “Grupo” quer junto da Banca, quer no lançamento do projecto de internacionalização que estava a ser lançado e era liderado pela Requerente, implementando uma estratégia comercial destinada a potenciar o conhecimento e a notoriedade da marca ... .

 

            Também não se provou qualquer conexão entre os pressupostos considerados pela AT para a aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso e a cessão quotas de E... a F..., ocorrida em 31-12-2020.

 

            3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

 

            Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

            A convicção do Tribunal fundou-se nos factos alegados que não mereceram controvérsia, na análise dos documentos juntos aos autos, designadamente no PA, nos que foram juntos com as peças principais e ao longo da tramitação processual, bem como nos depoimentos das testemunhas C..., empresário, tendo sido diretor financeiro do grupo da Requerente entre 1995 e 2023, e D..., contabilista da Requerente, desde a data da sua formação, tendo ambas aparentado isenção e respeito pela verdade, tudo conforme está refectido em relação a cada facto considerado provado. 

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.         

 

            IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA 

 

            1. QUESTÕES A DECIDIR

 

            A questão primordial é a de saber se estão cumpridos os pressupostos para a aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA) à situação de facto relatada.

            Seguidamente impõe-se analisar se o preço praticado nas vendas por grosso à N... corresponde ao preço de mercado ou se ofende as normas que regulam os preços de transferência.

            

            2. CLÁUSULA GERAL ANTIABUSO       

 

            A Requerida resume o seu entendimento, extraído do RIT, dizendo que o encadeamento factual apurado revela que, através da prática de uma série de actos e negócios jurídicos perfeitamente descritos, realizados por entidades e sócios do Grupo J..., o que se logrou foi a constituição de duas realidades distintas e perfeitamente delimitadas: 

            “i.        uma real, que consiste num perdão de dívida da empresa L... SGPS SA à Requerente, referente a um crédito no valor de 900.000,00 €; 

            ii.         e outra, aparente, construída através da sucessão de cessões de créditos que culminaram numa doação por parte da H..., acionista da L... SGPS, SA e gerente de facto da A..., ao seu filho I... e na constituição por este de suprimentos e prestações suplementares na A... ”   

            Já a Requerente rejeita que estivessem cumpridos os pressupostos para a aplicação da CGAA, alegando que o resultado pretendido com as operações de cedência de créditos foi, única e exclusivamente, o de salvar a Requerente que se encontrava com capitais próprios muito negativos e, perante a escassez de meios financeiros, a cessão de créditos foi a forma encontrada pela estrutura da área financeira do Grupo para evitar a insolvência da Requerente, sendo que daí não resultou qualquer prejuízo para a AT.

            A AT não discorda do entendimento de que o objetivo último era a cobertura dos prejuízos da Requerente, no entanto, alega ser manifesto que não existiram quaisquer outras motivações por parte da Requerente, para além da redução da carga fiscal, suscetíveis de justificar a escolha dos negócios jurídicos (cessões de crédito sucessivas e doação) utilizados para atingir esse fim.

            A Requerente contrapõe que também dos depoimentos das duas testemunhas ouvidas resulta demonstrado que as operações efetuadas não tiveram por objetivo qualquer intenção de poupança fiscal, mas antes de reforçar os capitais da empresa, evitar a insolvência da  G... e cumprir com o disposto no artigo 35.º do CSC, não se verificando nenhum perdão de dívida.

 

***

A redação da CGAA aplicável é a introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, em vigor no ano de 2018,[1]que, sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, dispunha:  “São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

            

            Segundo SALDANHA SANCHES[2]: o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».

            Assim, e como se evidenciou na DA proferida em 26-06-2015, no P. 666/2014-T, dentro do quadro do planeamento fiscal podemos distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

             “Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal[3] passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

            A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal»[4]Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema»[5]. Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta SALDANHA SANCHES, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»[6].

            Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem” [7].

 

            No caso que agora de aprecia, a Requerente nega que se verifique qualquer tipo de planeamento fiscal abusivo, argumentando que as operações em causa visaram unicamente reconstituir os seus capitais próprios, para evitar a insolvência da empresa, o encerramento da mesma e o fim do projeto de internacionalização que lhe estava subjacente.

 

            2.1. ELEMENTOS DA CLÁUSULA GERAL ANTIABUSO

 

            A supra transcrita norma contida no artigo 38.º, n.º 2, da LGT (CGAA) é complementada pelo artigo 63.º do CPPT, que incorpora um conjunto disposições concretizadoras dos parâmetros que conformam o procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

            Continuando a seguir a sobredita DA (P.666/2014-T), a doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo[8].

       Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

            - no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal[9].

       - no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente [10];

       - no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»[11]

       - no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela»[12];

       - e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente»[13].

 

       2.2. AUSÊNCIA DO ELEMENTO INTELECTUAL

 

No caso presente, face à prova produzida torna-se claro que não se verifica o elemento intelectual. 

Com efeito, emerge da prova que as operações em causa visaram unicamente reconstituir os capitais próprios da Requerente, evitando a insolvência da empresa, o encerramento da mesma e o fim do projeto que lhe estava subjacente. Tais operações permitiram efectivamente salvar a empresa e reconstituir os capitais próprios, objetivo comum a todos os intervenientes do Grupo J..., uma vez que a Requerente  detinha a marca ... e fazia a promoção dessa marca no exterior. Por isso, fazia todo o sentido manter a Requerente em atividade quando, pelo contrário, se a mesma fosse à insolvência iria denegrir a imagem de todo o Grupo junto da Banca. A alternativa à solução encontrada teria sido a entrada de dinheiro para a recomposição dos capitais próprios, mas, naquele momento, havia escassez de meios financeiros no Grupo, pelo que a estrutura da área financeira da Empresa, incluindo o Director Financeiro, o Contabilísta o Tesoureiro e o Cobrador, não encontrou outra solução senão a adoptada. O projeto da Requerente, voltado para a internacionalização, constitui uma tentativa de conquistar para o setor do têxtil−lar, indústria de capital humano intensivo, o domínio da última fase da cadeia de valor, que propicia a maior fatia da margem de venda do produto, perante uma forte concorrência internacional, como a proveniente a India, Turquia e Paquistão (Factos K, L, M, N e O). 

Não pode ainda deixar de evidenciar-se o depoimento do Revisor Oficial de Contas (ROC), uma entidade independente que auditou e certificou o Balanço Intercalar da Requerente, em 29-10-2018, tendo emitido a opinião de que o mesmo “apresenta de forma apropriada, em todos os aspetos materiais, a posição financeira da [G...] … de acordo com os requisitos das Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro adoptadas em Portugal, através do Sistema de Normalização Contabilística…”. Mais expressou que a sua opinião se baseou nas Normas Internacionais de Auditoria (ISA) e nas demais normas e orientações técnicas da Ordem dos ROC, não deixando de assinalar as suas responsabilidades enquanto Auditor independente da entidade auditada, nos termos da Lei e dos demais requisitos do Código de Ética da mencionada Ordem. 

Do seu depoimento, prestado perante a AT, em 15-06-2022, destacam-se as seguintes passagens:

1 – O meu relacionamento com a empresa G..., resulta de em Junho de 2018 me ter sido pedida uma intervenção para analisar e auditar o balanço intercalar e a estrutura financeira da empresa nomeadamente a sua estrutura de capitais próprios, necessária para a empresa se poder candidatar-se a programa de internacionalização e de criação de notoriedade de marcas, sua principal missão.

(…)

Em nenhum momento deste processo de análise de reestruturação financeira se me colocou qualquer motivação de natureza fiscal para esta operação, e muito menos o aludido propósito (ver ponto 56 do relatório da AT) de as operações realizadas terem como finalidade evitar qualquer possível tributação em IRC.

4 – A convicção criada pela AT resultante da análise destas operações de que o único propósito desta operação seria eludir qualquer tributação em IRC não tem qualquer suporte nas evidências recolhidas nem pode ignorar que a única razão desta operação e as consequências desta, são absolutamente transparente e se se destinam a evitar a situação de insolvência em que a empresa se encontrava e lhe impedia o acesso a programas de internacionalização que lhe permitissem cumprir a sua missão de conquista de mercados na última fase da cadeia de valor dos têxteis lar.

(…)

7 – Assim, onde a AT viu artifício e intenções de eludir impostos devidos, o declarante apenas viu um ato de gestão racional e inequivocamente dirigido a cometer um dos atos mais sagrados da gestão: permitir a continuidade da empresa.

8 – A K... não perdoou qualquer dívida à G... . A K... cedeu o crédito que tinha sobre a G... para pagar uma dívida do mesmo montante.

9 – O facto de as operações se terem realizado por cedências de créditos em vez de movimento de dinheiro, comunicadas a AT com toda a transparência, não suportam, sem abuso, a utilização da AT da denominada Cláusula geral Anti Abuso.

10 – Assim, anexamos neste testemunho, o relatório de CLC emitido à data dos factos, reiterando a nossa convicção atual, de que, por parte da empresa G... e dos seus responsáveis, a única motivação da reestruturação, foi salvar a empresa da insolvência e não me parece ter havido qualquer intenção fiscal na reestruturação efetuada, sendo inadequada a utilização do n.º 2 do artigo 38º, procurando tributar-se lucros ficcionados e não reais.

(…) – Factos Provados V e W.

       

Conclui-se, portanto, que não se verifica a demonstração ou prova de um dos pressupostos de facto de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso, que é o acto ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios de idêntico fim económico.

Acresce que, à luz do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, ao expressar que, para aplicação da cláusula geral antiabuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo também indispensável que a obtenção destas tenha sido um objectivo essencial ou principal visado pelos sujeitos passivos.

E dado que os requisitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT são cumulativos, deve concluir-se, sem mais, que a aplicação da cláusula geral antiabuso e a subsequente correcção da matéria tributável de IRC da Requerente efectuada com base naquela aplicação enferma de ilegalidade.

 

       3. PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA

 

A Requerente alega, em síntese:

       - O único serviço da Requerente neste negócio é o uso da marca ... que lhe compete potenciar, contribuindo para o aumento do conhecimento e notoriedade da marca.

       - A remuneração da Requerente por este serviço é mínima pois não acrescenta qualquer operação física, motivo pelo qual a sua remuneração neste processo é feita através do cálculo de um rappel de 2,5%, calculado sobre o volume de vendas, e debitado à K... .

       - A N... em nada vê o preço habitual, que antes pagava à K..., alterado, pois apenas a K... vê a sua margem diminuída de 2,5%, sendo, do ponto de vista económico, um investimento de uma marca cujo desenvolvimento ficou a cargo da Requerente mas que continua a pertencer−lhe e poderá retornar devidamente valorizada.

       - Da análise do projeto de relatório de inspeção resulta que esta não entendeu a operação em causa e tirou conclusões afastadas da realidade: nem o preço de compra é igual ao da fatura, nem a margem normal desta operação deveria ser diferente daquela que está estabelecida (2,5%), nem esta operação tem algo que possa envolver preços de transferência com a N... pois esta paga o preço contratualizado com a K..., que é o preço normal praticado desde sempre e cuja alteração lhe retiraria competitividade.

       - Não há qualquer comparativo de mercado a que se possa recorrer para corrigir o valor deste rappel que face à limitação do valor acrescentado pela Requerente se considera adequado.

            - O regime jurídico dos preços de transferência tem como modelo o princípio de plena concorrência, ao determinar que nas operações efetuadas entre entidades relacionadas devem ser contratados, aceites e praticados termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

            - A AT não utilizou o método adequado, uma vez que não há negócio comparável com aquele que é efetuado com a N... .

 

            Repristinando os argumentos fundamentadores do RIT e da decisão da RG, a Requerida contesta, em súmula:

            - Os SIT verificaram que, nas vendas realizadas pela Requerente ao cliente  N... GmbH (doravante, N...), entidade relacionada sedeada na Alemanha, eram praticados valores abaixo do preço de mercado, já que apresentavam margens nulas, violando assim o princípio da plena concorrência.

       - Deste modo, os SIT concluíram que o resultado fiscal da Requerente se encontrava subvalorizado e ajustaram o valor praticado ao preço de transferência, tendo por base uma margem de 16,15%, apurada através da aplicação do método da margem líquida da operação (MMLO).

            - Tanto entre a Requerente e a N... como entre a K... e a N... existem relações especiais, e, como tal, a manutenção do preço praticado apenas vem reforçar a evidência de que a margem praticada pela Requerente só é possível por força das relações especiais amplamente demonstradas no Relatório de Inspeção Tributária.

            - A Requerente alega que a AT utilizou como negócios comparáveis negócios em que há acréscimo de valor (tecelagem e estampagem e esforço de vendas online) e, como tal, tratou negócios diferentes de forma igual.

            - No entanto, tal não é verdadeiro, já que os SIT utilizaram como negócio comparável as vendas no canal online, a consumidor final, de mercadorias têxteis lar da mesma marca ... e adquiridas junto do mesmo fornecedor das mercadorias vendidas à N... .

 

***

 

            Sob a epígrafe “Preços de Transferência”, o artigo 63.º do CIRC preceitua o seguinte:

            “1 - Nas operações efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

            (…)”

 

            Da prova recolhida resulta o seguinte:

            - Na área de vendas por grosso à N..., a intervenção da Requerente é minimalista, pouco acrescentando na cadeia de valor deste negócio, uma vez que o único serviço que presta é o uso da marca ... que lhe compete potenciar, em conhecimento e notoriedade (Facto Q);

            - A N... já integrava o grupo de clientes que compravam sob a marca ... antes de esta ser passar a ser gerida pela Requerente, sendo que as vendas, armazenamento, transporte, embalagem e envio das mercadorias continuaram a ser efetuadas sem alteração do preço pelaK... , SA.  / K... (Facto R);

            - As vendas continuaram sem alteração do preço, dado que a Requerente recebe a facturação da K... e replica essa facturação para a N..., sem acrescentar qualquer valor, limitando-se a cobrar, trimestralmente, um “rappel” ou comissão de intermediação de 2,5%, sobre o volume de vendas (Facto S);

            - A N... em nada vê alterado o preço que antes pagava à K..., pois apenas esta vê a sua margem diminuída de 2,5%, sendo este procedimento baseado na estragégia comercial do “Grupo”, centrada na Requerente, e também no facto os preços serem bastante concorrenciados, pelo que se fosse acrescentado mais valor na faturação o preço ficaria desajustado do mercado (Facto T);

            - Os negócios que envolviam tecelagem e estampagem e esforço de vendas online a consumidor final, tinham margens diferentes porque obedeciam a políticas comerciais diferentes, não comparáveis com a relação que envolvia a Requerente com a K... e a N.. (Facto U).

  

***

       

Apreciando, da matéria de facto dada como provada resulta claro que a norma dedicada a regular os “preços de transferência” foi aplicada indevidamente, pois, desde logo, não se está em presença de “operações comparáveis”. Isso mesmo é denunciado pela própria AT quando afirma que utilizou como negócio comparável as vendas no canal online, a consumidor final, tendo por base uma margem de 16,15%, apurada através da aplicação do método da margem líquida da operação (MMLO), nas correcções implementadas. Aliás, é cristalino que o negócio com a N... não corresponde nem a vendas online, nem a consumidor final.

Na verdade, a N... continuou a pagar o mesmo preço que já pagava à K..., dado que já integrava o conjunto de clientes desta, mesmo antes de existir qualquer intervenção da Requerente, e também porque os preços eram de tal modo concorrenciados que um eventual aumento os tornaria desajustados do mercado. 

       Daí, o facto de a intervenção da Requerente ser minimalista, consistindo exclusivamente na prestação de um serviço, votado a potenciar a notoriedade da marca ..., no âmbito do seu projeto de internacionalização, tendente a conquistar para o setor do têxtil−lar o domínio da última fase da cadeia de valor, que propicia a maior fatia da margem de venda do produto, perante uma forte concorrência internacional, numa indústria que é de capital humano intensivo.

       Também assim se explica que a única remuneração da Requerente de reduza um “rappel” ou comissão de intermediação de 2,5%, sobre o volume de vendas facturado pela K... em cada trimestre. Esta margem não suscita admiração desde que se considere a prova de que tudo (vendas, armazenamento, transporte, embalagem e remessa do produto) continuou a cargo da K... . Com efeito, a Requerente  limita-se a replicar a facturação para a N..., nada cobrando desta, sendo a K... quem vê a sua margem diminuída de 2,5%, procedimento baseado na estratégia comercial do “Grupo”. 

       Em boa verdade, não há lugar à aplicação da norma que rege os “preços de transferência”, quando a prova nos remete para uma comissão de intermediação, estabelecida entre duas empresas do mesmo “Grupo” e havida como justa, no âmbito da estratégia comercial delineada para potenciar o conhecimento e a notoriedade da respectiva marca no mercado internacional, sem que se tenha demonstrado haver operação comparável de mercado praticada entre entidades independentes.

       Concluindo, padecem de ilegalidade as liquidações aqui postas em causa, também na parte derivada da aplicação da norma que rege os “Preços de Transferência”.

 

       4. QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

       Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

       Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

       Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

       V. Decisão

 

            De harmonia com o supra exposto, decide este Tribunal: 

            a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

            b) Declarar a ilegalidade e anular a demonstração de liquidação de IRC n.º 2022..., a demonstração de liquidação de juros n.º 2022 ... e a demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., do ano de 2018, objeto do presente pedido de pronúncia arbitral;

            c) Condenar a Requerida nas custas do processo arbitral.

 

            VI. Valor da Causa 

 

            Fixa-se o valor do processo em 41.088,15 €. (quarenta e um mil e oitenta e oito euros e quinze cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e dos artigos 296.º e 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

            VII. Custas

 

            Custas no montante de € 2.142,00, a cargo da Requerida, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

            

Notifique-se.

 

Lisboa, 02 de Junho de 2025.

 

O Árbitro,

 

(A. Sérgio de Matos)

 

 

 

 

 



[1] Redação anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio.

[2] Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.

[3] Cfr. Ac TCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.

[4] Cfr. JÓNATAS MACHADO e NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.

[5] Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 181.

[6] Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central

Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[7] Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, MARQUES, PAULO, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[8] Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[9] Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».

[10] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».

[11] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 180.

[12] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 211.

[13] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 165. Identicamente, SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».