Sumário
I. O ASSB (Adicional de Solidariedade Sobre o Sector Bancário), constante do anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é um imposto criado no contexto de resposta à crise pandémica, incidente sobre o passivo e sobre o valor nocional dos instrumentos derivados fora do balanço das instituições de crédito, e que, nos termos da lei, visa a compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras.
II. Atenta a pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia quanto à incompatibilidade de normas do regime jurídico do ASSB com o disposto 49.° e 54.° TFUE, há que desaplicar a norma de direito interno contrária ao Direito da União e, em consequência, anular a autoliquidação do referido imposto.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros José Poças Falcão, Fernando Miranda Ferreira e Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 09-01-2025, acordam no seguinte:
I – Relatório
1. A...- SUCURSAL EM PORTUGAL (doravante, abreviadamente designada por “Requerente”), com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-..., Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.
2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:
(i) anulação do ato tributário de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (doravante, ASSB) referente ao ano de 2023 (doc. n.º 02), e do ato de indeferimento integral da reclamação graciosa que sobre ele incidiu (doc. n.º 1);
(ii) a condenação da AT na restituição do montante de ASSB indevidamente pago pela Requerente, na quantia de € 180.660,59, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT.
3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).
4. O pedido de constituição de Tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação.
5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os Signatários como Árbitros do Tribunal arbitral coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo devido.
6. Foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 09-01-2024.
7. Na mesma data, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).
8. A Requerida veio apresentar resposta, em 11-02-2025, remetendo o processo administrativo. Na sequência do Despacho do Tribunal arbitral de 18-02-2025, veio a Requerente indicar que “abdicava” da prova testemunhal requerida com o PPA.
9. Em 04-04-2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por se entender que a prova testemunhal seria inútil ou sem objeto, concedendo-se às partes o prazo simultâneo de 15 (quinze) dias para a produção de alegações escritas, de facto e de direito, com conclusões expressas. Requerida e Requerente apresentaram alegações escritas em 06-05-2025.
II - Síntese da posição das partes
10. Compulsado o pedido arbitral, a Requerente considera, em síntese, que:
a) O ASSB é um imposto sobre o setor bancário, apesar de partilhar a base de incidência objetiva e subjetiva com a Contribuição sobre o setor bancário (CSB), qualificada pelo Tribunal Constitucional como uma contribuição financeira. Inexiste, com efeito, qualquer bilateralidade difusa ou genérica na estrutura do tributo, o que significa que os montantes liquidados a título de ASSB não são contrapartida de uma prestação administrativa, individual ou grupal, de que as entidades do setor bancário sejam beneficiárias. Esta conclusão é corroborada pela jurisprudência arbitral e pela jurisprudência constitucional. Sendo o ASSB um imposto, a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação reentra no âmbito material de competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do RJAT (artigo 2.º, n.º 1, a) do RJAT) – cf. ponto 66.º do PPA.
b) O regime jurídico do ASSB viola os princípios constitucionais da igualdade tributária e da capacidade contributiva. Isto acontece porque o ASSB, ao incidir exclusivamente sobre as entidades do setor bancário, impõe um tratamento arbitrário a uma categoria de contribuintes. Arbítrio decorrente, primeiro, de o ASSB não se aplicar a todos os setores que também beneficiam da isenção de IVA, mas apenas ao setor bancário (ponto 91.º do PPA); e segundo, porque a isenção de IVA não se traduz em nenhum benefício para as entidades do setor bancário, nada havendo para compensar através do ASSB (ponto 98.º do PPA).
c) O Regime do ASSB viola o princípio constitucional da capacidade contributiva. Efetivamente, a incidência objetiva do ASSB mimetiza a incidência objetiva da CSB, que pretende tributar os sujeitos passivos, não em função da capacidade contributiva, mas em razão do risco sistémico que estes aportam para o setor bancário. O ASSB não incide sobre uma manifestação de capacidade contributiva à luz da Constituição, seja ela o rendimento, o consumo ou o património. “Simplesmente não faz sentido criar um imposto deste tipo desenhado com base na incidência de uma contribuição financeira” (ponto 82.º do PPA).
d) O regime jurídico do ASSB – na parte em que não permite às sucursais das instituições de crédito não residentes exercer as suas atividades nas mesmas condições que se aplicam às filiais de instituições de crédito não residentes – é contrário ao direito da União, mais concretamente à liberdade de estabelecimento inscrita nos artigos 49.º e 54.º do TFUE. Contrariedade reconhecida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Cofidis, processo C-340/22 (ponto 125.º do PPA). Em face da incompatibilidade com o direito da União, deverá o Tribunal arbitral, em linha com os princípios da cooperação leal, da interpretação conforme, do primado e do efeito direto, desaplicar o direito interno e, em consequência, anular o ato de liquidação de ASSB.
11. A Requerida respondeu nos seguintes termos:
a) A Requerida alega que o ASSB é um imposto indireto que pretendeu mitigar o impacto económico da resposta à crise pandémica. Ao contrário do que invoca a Requerente, não há violação do princípio da igualdade e da proibição do arbítrio, porquanto a diferenciação de tratamento estabelecida pelo legislador assenta num critério objetivo, razoável e justificado. (ponto 35.º da Resposta).
b) O ASSB incide sobre um bem tributário, ou seja, tem subjacente uma manifestação de capacidade contributiva prevista na Constituição, uma vez que se trata de um imposto sobre o consumo (ponto 125.º da Resposta). O valor do passivo e dos derivados fora de balanço traduz, efetivamente, a realidade económica relevante dos sujeitos passivos visados e é um fator que “permite mensurar, de forma rigorosa, a sua capacidade contributiva” (ponto 126.º da Resposta). O ASSB é um sucedâneo do IVA no setor bancário, assente no valor do passivo e dos derivados fora do balanço, que assomam como critérios mais acertados para estabelecer uma correlação com a atividade bancária do que, por exemplo, o volume de negócios (ponto 132.º da Resposta). O ASSB não enferma, portanto, das inconstitucionalidades apontadas pela Requerente (ponto 153.º da Resposta).
c) O regime jurídico do ASSB não é incompatível com o Direito da União, concretamente com a liberdade de estabelecimento. O que se retira do acórdão Cofidis (processo C-340/22), do Tribunal de Justiça, é tão-somente que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio aferir se é ou não legalmente admissível, à luz das regras nacionais aplicáveis, a dedução pelas sucursais dos capitais próprios e dos instrumentos de dívida equiparados a capitais próprios (ponto 165.º da Resposta). A AT argumenta que o “capital afecto” (fundos alocados pela sede à sucursal em Portugal, não remunerados) é, por natureza, equiparado a “capital próprio”, logo, não entra para a base de incidência do ASSB (ponto 178.º da Resposta). Consequentemente, não existe tratamento discriminatório entre bancos que operam em Portugal através de uma sociedade residente e bancos que operem em Portugal através de uma sucursal. Todas as instituições de crédito que operam em Portugal, sejam ou não residentes, podem deduzir os elementos de capital próprio (ponto 217.º da Resposta), ou seja, elementos reconhecidos em balanço que representem dívida para com terceiros, independentemente da sua forma ou modalidade (ponto 224.º da Resposta). Não decorrem, portanto, do regime do ASSB, efeitos dissuasores do estabelecimento em Portugal de sucursais não residentes (ponto 224.º da Resposta). Conclusão corroborada pelo acórdão do STA de 21-09-2022, processo n.º 0938/17.6BELRS, de 21-09-2022.
d) A AT avança ainda que, mesmo que o Tribunal arbitral entenda coisa diversa, não são devidos juros indemnizatórios, nem à luz do n.º 1 do artigo 43.º da LGT – porque não existiu “erro imputável aos serviços” (ponto 242.º da Resposta) – nem à luz da al. d) do n.º 3 do mesmo preceito legal – dado que sobre as normas do Regime do ASSB não recaiu nenhuma declaração de inconstitucionalidade nos termos dos artigos 281.º e 282.º da CRP e não está em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis ao contribuinte, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (ponto 246.º da Resposta). Acresce que, no entender da AT, aquela disposição normativa (artigo 43.º, n.º 3, al. d) da LGT) é inconstitucional, por violação dos artigos 281.º, 282.º e 18.º da Constituição, “dado que a AT não tinha disponibilidade legal de decidir de modo diferente” (ponto 249.º da Resposta).
III – Saneamento
12. O Tribunal arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.
IV – Matéria de facto
§1 – Factos provados
13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente é a sucursal em Portugal do B..., instituição de crédito de direito alemão com sede e efetiva administração na Alemanha.
B. Em 23-05-2024, a Requerente procedeu à autoliquidação de ASSB referente a 2023, mediante a submissão da declaração Modelo 57, no montante de € 180.660,59 (doc. n.º 2).
C. Em 24-05-2024, a Requerente procedeu ao pagamento do tributo liquidado por referência ao ano de 2023 (doc. n.º 4).
D. A autoliquidação referente ao ASSB de 2023 incidiu sobre a média anual dos saldos finais do passivo de cada mês relativo às contas do ano de 2023, tendo sido concretizada com base nos dados contabilísticos cristalizados em 31 de dezembro desse ano (doc. n.º 6), sem dedução de qualquer valor a título de capitais próprios, por impossibilidade dessa dedução.
E. Em 05-08-2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa pedindo a anulação do ato de autoliquidação de ASSB.
F. A Requerente exerceu o seu direito de audição, por ofício remetido em 06-08-2024.
G. Em 27-08-2024 foi a Requerente notificada do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada (doc. n.º 1), com a seguinte fundamentação:
“(...)
Análise da reclamação
12. Como referido, é pretensão da Reclamante ver anulado o ato tributário identificado, com a natural e respetiva restituição do locupletado, com fundamento na suposta inconstitucionalidade material do tributo designado por “Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário” (ASSB), através das suas diversas normas, introduzido no ordenamento jurídico-tributário pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, diploma que promove várias alterações ao Orçamento de Estado para 20202, pelos motivos sumariamente expostos.
13. Faz-se notar que nenhum fundamento ou argumento avançado pela Reclamante respeita a ilegalidade por erro quanto aos pressupostos da aplicação das normas a que refere o regime do ASSB, nem de interpretação ilegal, ainda que com fundamento em inconstitucionalidade, dessas normas.
14. Dito isto, e a respeito da conformidade constitucional da ASSB ou das normas que integram o seu regime, ou de qualquer outra figura tributária diga-se, tem sido a posição da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não se pronunciar sobre o mérito e de facto nenhuma outra posição poderá ser tomada.
15. Com efeito, a AT, como órgão da administração pública sob direção do Governo, não tem competências no foro da apreciação da conformidade constitucional de normas jurídicas, ou sequer da atividade legiferante, pelo que qualquer pronúncia decisória encontrar-se-ia ela mesma ferida de legalidade institucional.
16. Determina o Decreto-lei n.º 118/2011 de 15 de dezembro, diploma que aprova a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, no seu artigo 2.º, n.º 1, que “[a]AT tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos, bem como exercer o controlo da fronteira externa da União Europeia e do território aduaneiro nacional, para fins fiscais, económicos e de proteção da sociedade, de acordo com as políticas definidas pelo Governo e o Direito da União Europeia” [sic].
17. O n.º 2 do mesmo preceito elenca as diversas atribuições ou tarefas administrativas da AT, que no fundo aprofundam apenas o conceito de administração dos impostos referido no número anterior e, naturalmente, nenhuma faz referência ao controlo legal ou constitucional de normas tributárias.
18. Isto porque o controlo legal ou constitucional de normas tributárias não se insere no escopo da função administrativa.
19. Essa função é sim assegurada pelo Tribunal Constitucional, conforme disposto no artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que veda nessa matéria em exclusivo a esse órgão, e claro, à própria Assembleia da República.
20. Acrescente-se também que a Administração Pública, da qual a AT faz parte, não goza das mesmas prerrogativas dos tribunais, isto é, de desaplicar uma norma jurídica em caso concreto com fundamento na sua inconstitucionalidade e que no fundo será sempre uma suposição até pronúncia por parte do Tribunal Constitucional, conforme o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP.
21. É de facto uma questão relativamente pacífica que na arquitetura jurídico-administrativa nacional que os órgãos administrativos, pelo dever de obediência (ao Governo) que lhes é imposto pela lei fundamental, não podem rejeitar a aplicação da lei com tal fundamento.
22. A este respeito, veja-se as considerações de Vieira de Andrade, da sua obra “Direito Constitucional”, Almedina, 1977, pág. 270:
«Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o quê está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos [...]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o principio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» [sic]
23. E no mesmo sentido vem João Caupers, na sua obra “Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição", Aímedína, 1985, pág. 157.
«(...) a Administração não tem, em princípio, competência para decidira não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contraríamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207°[hoje, 2O4.°]e 266°, n°2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei. Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, porparte daquela tem de ser visto como excepcional» [síc]
24. Ora; não se encontrando prevista nas leis orgânicas da AT ou até do Ministério das Finanças a competência para o controlo legal ou constitucional de normas tributárias, qualquer decisão sobre o mérito do pedido encontrar-se-ia ferida de nulidade.
25. Deste modo, não obstante possuirmos uma opinião vincada nesta matéria, qualquer pronúncia nossa, favorável ou não aos interesses da Reclamante, pecará sempre por inutilidade da mesma, razão pela qual nos abstemos de quaisquer demais considerações para além das já enunciadas.
26. Nestes termos, deverá ser assim rejeitada a pretensão formulada.
Direito de audição
27. Através de oficio, remetido via correio registado a 6 de agosto, foi a Reclamante, na pessoa do mandatário, notificada do projeto de decisão e convidado a exercer o seu direito de participação nos termos da al. b) do n.° 1 do artigo 60.º da LGT, faculdade que viria a exercer através de requerimento apresentado via correio registado em 20 de setembro.
28. A Reclamante contesta a posição tomada no projeto de decisão, ou antes, a ausência de posição perante os vícios de ilegalidade constitucional e de violação do direito da União Europeia que esta aponta ao ASSB e ao regime que o institui.
29. Ora, da nossa parte, mantemos na integra a posição tomada no projeto de decisão que antecede.
30. A AT não é ignorante quanto à posição tomada por alguns tribunais (ou magistrados) ou académicos que vai em linha ao propugnado pela Reclamante, sobre as competências e atribuições das autoridades publicas, onde se insere a AT, abrangerem normas de natureza constitucional e comunitárias.
31. Alerta-se, porém, que não deve ser confundida a possibilidade de controlo constitucional de normas com a obrigação da AT de pleno cumprimento das decisões judiciais (ou judiciárias, já que envolvem juízos arbitrais) pois é isso que sugere a jurisprudência arbitrai por sí invocada.
32. Mas a realidade é que a nossa arquitetura constitucional não permite aos órgãos da administração publica sindicara conformidade constitucional de normas, onde por forca do disposto do artigo 8.° da CRP também se inserem as normas do direito primário e derivado europeu.
33. Acrescendo ao que já foi relatado no projeto de decisão, traz-se à colação a já abundante jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre o tópico como as proferidas nos processos n.° 01529/14, de 4 de março de 2015, n.° 0703/14, de 21 de janeiro de 2015, n.° 0860/10 de 12 de outubro de 2015.
34. Enquanto se mantiver este paradigma jurídico-administrativo nacional nunca poderá ser esta a posição da AT sob pena de nulidade da decisão tomada.
35. Já quanto à omissão dos vícios ditos legais pela Reclamante, de violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, do princípio da igualdade e ainda da violação da lei de enquadramento orçamenta] mais uma vez, é sobre as normas do regime do ASSB que a Reclamante faz recair a suposta desconformidade legal.
36. Reitera-se aquilo que já havia sido referido no projeto de decisão, ou seja, nenhum fundamento ou argumento avançado pela Reclamante respeita a ilegalidade por erro quanto aos pressupostos da aplicação das normas a que refere o regime do ASSB, nem de interpretação ilegal, ainda que com fundamento em inconstitucionalidade, dessas normas.
37. Todos os vícios apontados pela Reclamante são ao próprio tributo e às normas que compõe o seu regime pelo que em última, são vícios de conformidade legal, constitucional ou do direito europeu, que apenas pelos órgãos judiciários podem ser sindicados.
38. Razão pela qual mantemos as conclusões apurados no projeto de decisão que antecede.
(...)”
H. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 31-10-2024.
§2 – Factos não provados
14. Não existem factos não provados com relevo para a causa.
§3 – Fundamentação da decisão da matéria de facto
15. Os factos dados como provados resultam exclusivamente da prova documental junta com o PPA e do processo administrativo.
V – Matéria de direito
16. As questões de direito a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral têm que ver com:
a) a ilegalidade abstrata do ato de autoliquidação de ASSB, por o respetivo regime jurídico, tal como constante do anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, ser incompatível com a liberdade de estabelecimento, garantida nos artigos 49.º e 54.º do TFUE;
b) a ilegalidade abstrata do ato de autoliquidação de ASSB, por o respetivo regime jurídico – em especial os artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1 do anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que procedeu à segunda alteração à Lei n.º 2/2020, de 31 de março – estar ferido de inconstitucionalidade material, decorrente de violação do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio (artigo 13.º da CRP), e do princípio da capacidade contributiva, enquanto pressuposto da tributação (artigos 13.º, 103.º e 104.º da CRP).
A. Da precedência da questão da compatibilidade com o Direito da União sobre a questão de constitucionalidade
17. Importa determinar qual destas questões deverá ser apreciada em primeiro lugar. Este ponto, como se antecipa, não é despiciendo, porquanto a verificação do primeiro vício de ilegalidade abstrata dispensará o Tribunal arbitral de apreciar o segundo. O Tribunal só o fará a título de obiter dictum, com o propósito de reforçar a fundamentação da decisão recorrida. Como o Tribunal Constitucional vem reconhecendo, nos casos em que o tribunal a quo desaplique uma norma de direito interno por incompatibilidade com o direito da União e também por desconformidade com a Constituição, o recurso de constitucionalidade mostra-se desprovido de utilidade, atenta a instrumentalidade que aquele deve manter com a decisão da questão principal do processo. Inexiste, nestas hipóteses, “verdadeira recusa” de aplicação”, porquanto “o juízo de inconstitucionalidade consubstancia um simples obiter dictum ou um argumento ad ostentationem, no sentido em que a norma aparentemente qualificada de inconstitucional acaba por não ter qualquer influência sobre a conclusão obtida, não constituindo por isso ratio decidendi do pronunciamento recorrido” (Acórdãos n.º 618/2022 e 651/2023, do Tribunal Constitucional).
18. Ora, o Tribunal arbitral entende que a questão da compatibilidade com o direito da União goza de precedência relativamente à questão de constitucionalidade ou que é pelo menos essa a interpretação dos dispositivos constitucionais pertinentes (artigos 8.º, n.º 4, 204.º e 280.º da CRP) que melhor assegura a plena eficácia do direito da União. Esta conclusão entronca nas caraterísticas essenciais do direito da União e no quadro constitucional que lhe é próprio, nos termos do qual a União se afirma como “uma nova ordem jurídica de direito internacional”, assente na interpretação e aplicação uniformes das suas disposições.
19. Assim, o juiz nacional está sob o dever de, no âmbito das suas competências, assegurar a plena eficácia do direito da União, se necessário desaplicando o direito interno que o contrarie, “sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional” (Acórdão Simmenthal, processo 106/77). Mais recentemente, no acórdão Melki e Abdeli (processos C‑188/10 e C‑189/10), o Tribunal de Justiça reiterou que seria incompatível com a própria natureza do direito da União qualquer disposição ou prática de uma ordem jurídica nacional que “tivesse como efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de recusar ao juiz competente para aplicar esse direito o poder de fazer, no momento exato dessa aplicação, tudo o que é necessário para afastar as disposições legislativas nacionais que eventualmente constituam um obstáculo à plena eficácia das normas da União”. Seria o caso – acrescenta o Tribunal de Justiça – “se, na hipótese de uma disposição do direito da União ser contrária a uma lei nacional, a solução desse conflito fosse reservada a uma autoridade diferente do juiz chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investida de um poder de apreciação próprio, mesmo que o obstáculo daí resultante para a plena eficácia desse direito fosse apenas temporário” (§44).
20. Não obstante a CRP conferir a todos os tribunais o poder-dever de desaplicar as normas inconstitucionais (artigo 204.º da CRP), o que afasta o modelo português de fiscalização concreta de um modelo de suspensão da instância, a efetiva desaplicação de tais normas pelo tribunal a quo dá lugar a recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público nas hipóteses previstas no artigo 280.º, n.º 3 da CRP. Isto para dizer que a última palavra quanto à constitucionalidade de normas – pelo menos de normas constantes de ato legislativo, convenção internacional e decreto regulamentar – pertence necessariamente ao Tribunal Constitucional, que é o órgão ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221.º da CRP).
21. Assim, dar precedência à questão de constitucionalidade sobre a questão de compatibilidade com o direito da União pode, na interpretação do Tribunal de Justiça, comprometer a plena eficácia do direito da União, retardando a sua aplicação ou a adoção de medidas necessárias para garantir a tutela jurisdicional provisória dos direitos garantidos pelo direito da União, ou obstando a que o órgão jurisdicional nacional proceda de imediato ao reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º do TFUE, quando o repute necessário ou a isso estiver obrigado por decidir em última instância (Acórdão Mecanarte, processo C-348/89, §45; na doutrina, Afonso Patrão, “A relevância da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia na fiscalização da constitucionalidade de normas nacionais”, Estudos em homenagem ao Conselheiro Presidente Costa Andrade, vol. 1, Almedina, Coimbra, 2023, pp. 9-46, em especial a p. 20).
22. A este arrazoado acresce um argumento de eficiência processual. A não inconstitucionalidade de uma norma instrumental para a resolução de um caso concreto, mesmo quando atestada pelo Tribunal Constitucional, não soluciona a questão da respetiva eficácia no plano do direito interno. Esta depende, em última instância, da compatibilidade com o direito originário e derivado da União, atentos os princípios do primado e do efeito direto, recebidos no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, que valem como critérios de resolução de uma antinomia, de aplicação imediata num litígio concreto (Acórdão n.º 422/2020, do Tribunal Constitucional).
Eis as razões pelas quais o Tribunal arbitral analisará, primeiramente, a questão da alegada incompatibilidade do regime jurídico do ASSB com o direito da União.
B. Da (in)compatibilidade do regime jurídico da ASSB com a liberdade de estabelecimento garantida nos artigos 49.º e 54.º do TFUE
23. O ASSB foi criado pelo anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que procedeu à segunda alteração à Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Orçamento do Estado para 2020), em contexto de crise pandémica. Integrava, por isso, o Programa de estabilização económica e social, aprovado em anexo à Resolução de Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 4 de junho, que continha um conjunto de medida excecionais (“com um horizonte temporal até ao fim de 2020”) de reação à emergência sanitária e económica e de preparação da recuperação económica. Entre elas contava-se, segundo o ponto 4.3.5 do Programa, a criação de um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, cuja receita estaria adstrita à cobertura dos custos da resposta pública à crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
24. Estruturalmente, o ASSB incide as instituições de crédito sedeadas em território português ou sobre filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1, a), b) e c) do Regime do ASSB). O Adicional incide sobre o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço (artigo 3.º, a) e b) do Regime do ASSB), com as exceções enunciadas no artigo 4.º.
Segundo este normativo, que fixa as regras sobre a quantificação da base incidência do ASSB, o passivo das instituições de crédito integra “o conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”, com exceção, precisamente, dos “elementos que, segundo as normas de contabilidade aplicáveis, sejam reconhecimentos como capitais próprios” (artigo 4.º, n.º 1, a) do regime do ASSB). O n.º 2 daquele normativo dispõe o seguinte:
“(...)
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do artigo anterior, observam-se as regras seguintes:
a) O valor dos fundos próprios, incluindo os fundos próprios de nível 1 e os fundos próprios de nível 2, compreende os elementos positivos que contam para o seu cálculo de acordo com o disposto na parte II do Regulamento (UE) 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e que altera o Regulamento (UE) n.º 648/2012, tendo em consideração as disposições transitórias previstas na parte X do mesmo Regulamento que, simultaneamente, se enquadrem no conceito de passivo tal como definido no número anterior;
b) Os depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo ou por um sistema de garantia de depósitos oficialmente reconhecido nos termos do artigo 4.º da Diretiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, ou considerado equivalente nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 156.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, dentro dos limites previstos nas legislações aplicáveis relevam apenas na medida do montante efetivamente coberto por esses Fundos.
(...)”
25. Foi este o enquadramento legal que motivou o pedido de reenvio prejudicial que deu origem ao Acórdão Cofidis, processo C-340/2022. O órgão jurisdicional nacional colocou ao Tribunal de Justiça (para o que agora interessa) a seguinte questão: “[A] liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.° do TFUE opõe‑se a uma legislação nacional, como a que está em causa no regime doméstico português do [ASSB], que permite deduzir ao passivo apurado e aprovado certos elementos do passivo que contam para o cálculo dos [capitais] próprios de nível 1 e os [capitais] próprios de nível 2, de acordo com o disposto na parte II do [Regulamento n.° 575/2013], tendo em consideração as disposições transitórias previstas na parte IX do mesmo Regulamento, que apenas podem ser emitidos por entidades com personalidade jurídica, isto é, que não podem ser emitidos por sucursais de instituições de créditos não residentes?”.
26. O entendimento do Tribunal de Justiça pode ser sintetizado da seguinte forma:
a) A liberdade de estabelecimento, consagrada no artigo 49.º do TFUE, confere às sociedades constituídas segundo a legislação de um Estado‑Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na União, o direito de exercerem a sua atividade noutros Estados-membros por intermédio de sucursais, em condições idênticas às que são aplicáveis às filiais, vedando que o exercício da liberdade de escolha da forma jurídica apropriada para o exercício da suas atividades noutro Estado-membro possa ser limitada por disposições fiscais – direta ou indiretamente – discriminatórias (§36-42).
b) No caso em apreço, a regulamentação nacional aplica-se indistintamente às instituições de crédito residentes e não residentes. Contudo, as sucursais portuguesas de instituições de crédito não residentes estão impossibilitadas, por não terem personalidade jurídica, de deduzirem capitais próprios. A regulamentação nacional em causa no processo principal não permite às sucursais das instituições de crédito não residentes exercer as suas atividades nas mesmas condições que se aplicam às filiais de instituições de crédito não residentes, tornando menos atrativo, para sociedades sedeadas noutro Estado-membro, o exercício de atividades no setor financeiro em Portugal. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar aquela impossibilidade (§43-46).
c) Sendo a situação das instituições residentes objetivamente comparável à situação das sucursais portuguesas de instituições de crédito não residentes, à luz do objetivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas, a diferenciação de tratamento indiretamente promovida pelo legislador português não se mostra, todavia, justificada por uma razão imperiosa de interesse geral. Essa justificação não poderá ser, ao contrário do sustentado pelo governo português, a necessidade de garantir a coerência do regime fiscal nacional. No caso em apreço, nenhum elemento indica que a dedutibilidade dos capitais próprios da base incidência do ASSB é compensada por uma determinada cobrança fiscal (§48-57).
d) Não vinga, de igual forma, a justificação associada à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-membros. Esta justificação, motivada pela simetria entre o direito de tributar os lucros e a faculdade de deduzir as perdas de um estabelecimento estável, não se aplica ao caso em apreço, porquanto a opção do legislador português foi no sentido de não tributar as instituições de crédito residentes e as filiais de instituições de crédito não residentes no que respeita aos instrumentos de dívida equiparáveis aos capitais próprios (§58-64).
e) De onde se conclui, nas palavras do Tribunal de Justiça, que “a liberdade de estabelecimento garantida nos artigos 49.° e 54.° TFUE deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que cria um imposto cuja base de incidência é constituída pelo passivo das instituições de crédito residentes, bem como das filiais e das sucursais das instituições de crédito não residentes, uma vez que a referida regulamentação permite deduzir capitais próprios e instrumentos de dívida equiparáveis a capitais próprios, que não podem ser emitidos por entidades sem personalidade jurídica, como essas sucursais” (§65).
27. A AT contesta, na sua Resposta, os pressupostos de que partiu a pronúncia do Tribunal de Justiça, à luz do enquadramento – no entender da AT, “manifestamente incompleto” – fornecido pelo órgão jurisdicional nacional de reenvio (ponto 167.º da Resposta). A Requerida adianta que os fundos que constituem o designado “capital afecto” (fundos alocados pela sede, não remunerados) são, por natureza, equiparados a “capital próprio”, tal como outras rubricas, como sejam os Resultados Transitados, logo, não entram para a base de incidência, porque não cabem no conceito de passivo constante da regulamentação aplicável. (artigo 4.º do Regime do ASSB) – ponto 178.º da Resposta. O ASSB, acrescenta a AT, não é uma forma de financiamento das medidas de resolução nem do Fundo Único de Resolução, pelo que não se encontra abrangido pela Diretiva 2014/59/UE do Parlamento e do Conselho, nem está, a fortiori, em contradição com as suas disposições (ponto 196.º da Resposta). Importa sublinhar que nenhum destes elementos consta da fundamentação da reclamação graciosa (cf. processo administrativo remetido pela Requerida), onde a AT, nada adiantando sobre a noção de capitais próprios, se limitou a referir que, enquanto órgão da administração pública, não teria competência para fiscalizar a compatibilidade das normas aplicadas com a lei, com a Constituição ou com o Direito da União.
28. A Requerida louva-se ainda no acórdão do STA de 12-10-2022, processo n.º 0850/17.9BELRS, proferido a propósito da CSB, mas em termos transponíveis para o ASSB, cuja base de incidência (objetiva e subjetiva) é idêntica. Ficou dito nesse aresto que “as sucursais têm elementos que podem ser reconhecidos como capitais próprios, uma vez que são criadas e movimentadas contas de capital próprio, pelo menos o “capital afecto” (se existir) e os resultados transitados, nada impedindo que a sociedade-mãe aloque à sua sucursal em Portugal uma dotação de capital de base (“elementos do capital próprio”) registado em contas de capital próprio, caso em que tudo se assemelha às entradas feitas pelos sócios às empresas e que não são remuneradas, o que significa que, tal como o capital próprio dos bancos residentes é excluído da base de incidência da CSB, o mesmo sucede ao “capital afecto” às sucursais, quando contabilizado como tal”.
29. Já a Requerente argumenta que “não obstante as sucursais não disporem de capitais próprios stricto sensu, poderia a Administração ter adotado orientações para a incidência do ASSB com base em pressupostos similares àqueles que fundaram as orientações que adotou para efeitos de IRC, no que diz respeito ao designado free capital das sucursais” – o que não sucedeu. Subsiste, na compreensão da Requerente, ambiguidade e contradição no entendimento da AT sobre o que constituem “capitais próprios” para efeitos do artigo 4.º, n.º 2, a) e b) do regime do ASSB, e sobre os critérios que deveriam relevar para a qualificação dos fundos próprios enquanto capital base. Os elementos essenciais do imposto, entre eles a base tributável (incidência objetiva), devem ser definidos por lei da AR, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, i) da CRP, e não por entendimentos posteriormente veiculados pela AT, através de orientações ou informações vinculativas. Além disso, a AT não sustentou a existência de capitais próprios em sede de fundamentação da reclamação graciosa.
31. Ora, o Tribunal arbitral entende não ser inequívoca, em face da redação do artigo 4.º, n.º 2 do regime do ASSB e dos elementos trazidos pelas partes ao processo, a questão de saber se a sucursal podia ou não ter capital próprio, designadamente sob a forma de “capital afecto” alocado pela sociedade-mãe à sucursal em Portugal.
Tanto assim é que a AT em momento algum da fundamentação da reclamação graciosa invocou a possibilidade legal de as sucursais deduzirem elementos de capital próprio (cf. facto provado “G”). Isto apesar de a decisão do procedimento de reclamação graciosa ter data de 27-08-2024, sendo, neste sentido, posterior ao acórdão Cofidis, processo C-340/2022, e ao acórdão do STA onde tal possibilidade legal foi alvitrada.
Como resulta da reclamação graciosa apresentada, a Requerente pediu a desaplicação da norma artigo 4.º, n.º 2 do regime do ASSB porque a referida disposição permite deduzir capitais próprios e instrumentos de dívida equiparáveis a capitais próprios, que não podem ser emitidos por entidades sem personalidade jurídica, como as sucursais (cf. pontos 268-269 da reclamação graciosa). Se a AT admitisse, ao tempo da decisão da reclamação, a possibilidade de as sucursais emitirem e deduzirem capitais próprios (sob a forma de “capital afecto” ou outra), a questão da desaplicação da norma constante do artigo 4.º, n.º 2 do regime do ASSB não chegaria a colocar-se, pois não haveria desconformidade com o Direito da União nem, consequentemente, qualquer norma de direito interno que houvesse de ser desaplicada. É precisamente porque a AT não contemplou, ao tempo da decisão da reclamação graciosa, essa possibilidade que a respetiva fundamentação é completamente omissa quanto ao argumento agora constante da Resposta.
Circunstância que, na compreensão do Tribunal arbitral, adensa a incerteza jurídica existente, à luz da redação da norma do artigo 4.º, n.º 2 do regime do ASSB, quanto à possibilidade de as sucursais possuírem capitais equiparados a capitais próprios suscetíveis de poderem ser deduzidos no apuramento da base tributável do imposto. Estando em causa um elemento essencial do imposto – a incidência objetiva (artigo 103.º, n.º 2 da CRP) – exigia-se que as regras de apuramento da matéria tributável – e, consequentemente, a equiparação do “capital afecto” (fundos alocados pela sede, não remunerados) a elementos de “capital próprio” das sucursais – resultassem com clareza do texto legal ao tempo da liquidação. Isso não acontece, pelas razões já aduzidas.
32. Em face do que vem de ser dito, impõe-se ao Tribunal arbitral, em linha com os princípios do primado e do efeito direto, recebidos ex vi do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, a desaplicação das normas do regime do ASSB, por desconformidade com a liberdade de estabelecimento consagrada nos artigos 49.º e 54.º do TFUE, e, consequentemente, a anulação do ato de liquidação de ASSB referente ao ano de 2023.
33. Sendo essa a situação que ocorre nos autos, tal implica necessariamente a procedência do pedido, ficando prejudicada a apreciação das demais questões ou vícios suscitados (cf. artigo 124º, do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29º, do RJAT). Julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos da impugnante, não é necessário conhecer dos restantes, concretamente da questão da constitucionalidade de várias normas do regime jurídico do ASSB, igualmente geradoras de ilegalidade abstrata do ato de autoliquidação.
C. Do pedido de condenação em juros indemnizatórios
34. A par dos pedidos de anulação dos atos de autoliquidação de ASSB, e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagou em excesso, a Requerente pede ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
35. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Na al. d) do n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
36. A necessidade de incluir a al. d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT (Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro) justifica-se pelo facto de à AT, enquanto autoridade administrativa, não ser reconhecido, via de regra, o poder de desaplicar normas jurídicas desconformes com a CRP. Este é um poder-dever que a CRP reserva aos tribunais, nos termos do artigo 204.º da CRP. Logo, a aplicação pela AT de uma norma inconstitucional não pode ser qualificada como um “erro imputável aos serviços”, na aceção do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas como uma decorrência inevitável do funcionamento do princípio constitucional da legalidade da administração (artigo 266.º, n.º 2 CRP).[1]
37. Já assim não é no caso de anulação de ato de autoliquidação com fundamento em incompatibilidade com o DUE. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a normas de direito da União que gozem de efeito direto, como é o caso dos artigos 49.º e 54.º do TFUE (Acórdão do Tribunal de Justiça de 22-06-1987, Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, ponto 31, disponível em http://curia.europa.eu/). A aplicação, pela AT, de norma legal contrária ao Direito da União constitui erro imputável aos serviços, na aceção do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
38. Isto mesmo é explicado no Acórdão do STA, de 18-01-2017, quando aí se dá conta que «o facto de a ilegalidade determinante da procedência da impugnação se concretizar em violação de norma comunitária, também não implica tratamento similar àquele que equaciona a aplicação de normas que venham a ser declaradas inconstitucionais, enquanto que, no caso dos preceitos de direito comunitário do que se trata é da aplicação de normas que vigoram diretamente na ordem jurídica interna e, mais do que isso, prevalecem sobre as normas do direito interno, não podendo os Estados-membros aplicar qualquer regra de direito interno que colida com as regras do direito da UE» (Acórdão do STA, 18-01-2017, processo n.º 0890/16).
39. São, portanto, devidos juros indemnizatórios nos termos gerais, contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito (artigos 43.º, n.º 1 e 100.º da LGT, conjugado com o artigo 61.º, n.º 5 do CPPT).
VI – Decisão
Termos em que delibera este Tribunal julgar totalmente o procedente o pedido arbitral e, em consequência, decide:
(a) Anular a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada;
(b) Anular o ato de liquidação de ASSB referente ao ano de 2023;
(c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do ASSB liquidado e pago, com juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido até à data de emissão da correspondente nota de crédito; e
(d) Condenar a Requerida nas custas do processo, atento o seu total decaimento.
VII – Valor do processo
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 180.660,59, valor atribuído pela Requerente, sem contestação da AT.
VIII – Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 3.672,00, a cargo da Requerida.
Lisboa, 14 de maio de 2025
Os Árbitros
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(José Poças Falcão– Árbitro Presidente)
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(Fernando Miranda Ferreira – Árbitro Adjunto)
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(Marta Vicente – Árbitro Adjunto)
[1] Hugo Flores da Silva, “Desenvolvimentos sobre juros indemnizatórios: a ilegalidade ou inconstitucionalidade das normas habilitantes da tributação”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 42, 2023, pp. 17-27 (p. 20).