SUMÁRIO:
I. A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) qualifica-se como um “imposto” e não como uma “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação deste tributo.
II. A Requerente não é o sujeito passivo da CSR mas apenas uma mera adquirente/consumidora de combustíveis rodoviários, que não suportou o encargo daquele imposto por repercussão legal e que não logrou demonstrar um interesse legalmente protegido, pelo que carece de legitimidade activa para contestar a legalidade dos actos de liquidação daquele imposto.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Maria Alexandra Mesquita e Hélder Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., S.A., titular do número único de pessoa colectiva..., com sede Rua ..., nº ..., ... e ... (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º, n.º 1 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, apresentado em 28 de Maio de 2024, tendo em vista a apreciação da legalidade dos actos de liquidação respeitantes à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) consubstanciados nas facturas referentes à gasolina e ao gasóleo adquiridos no período compreendido entre Maio de 2020 e Dezembro de 2022 cujo encargo foi repercutido na esfera jurídica da Requerente pelos fornecedores de combustível.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 2 de Janeiro de 2025 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido arbitral a Requerente defendeu, em síntese, que nos termos do artigo 2.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, o Tribunal Arbitral era materialmente competente para conhecer o pedido de anulação das liquidações de CSR, que qualifica como um imposto. Defendeu também a Requerente, com base no artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e nos artigos 18.º, n.º 4, alínea a) e 54.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), que tinha legitimidade processual activa para intervir no processo tributário, por suportar o encargo económico do imposto através do mecanismo da repercussão legal. Prosseguiu a Requerente efectuando um enquadramento do regime geral dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”) vertido na Directiva 2008/1188/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 e do regime jurídico da CSR previsto na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, concluindo, com base em diversa jurisprudência dos tribunais arbitrais, bem como no Despacho do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) de 7 de Fevereiro de 2022, proferido no caso Vapo Atlantic, processo C-460-21, que a CSR não prossegue “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação directa entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objectivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, consubstanciando, por conseguinte, todos os actos tributários praticados ao seu abrigo, designadamente os actos objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, uma violação do direito da União Europeia. Com base nesta desconformidade, e remetendo uma vez mais para a jurisprudência do TJUE, invocou a Requerente que a AT estava obrigada, por força do princípio do primado, a desaplicar as normas nacionais que regulam a CSR e que são contrárias ao Direito Europeu, sendo este um erro de direito imputável aos serviços nos termos e para os efeitos do artigo 78.º, n.º 1, alínea a) da LGT. Defendeu, ainda, a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por preterição do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP. Concluiu a Requerente pela anulação dos actos tributários contestados, com o consequente reembolso das quantias indevidamente suportadas a título de CSR, no valor total de € 540.947,40, acrescidas de juros indemnizatórios.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a)e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes foram notificadas dessa designação em 18 de Fevereiro de 2025, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 10 de Março de 2025, sendo que no dia imediatamente seguinte foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 11 de Abril de 2025, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo-se por excepção e por impugnação. Por excepção, começou a Requerida por invocar a incompetência do Tribunal Arbitral, por considerar que a CSR é uma contribuição cuja apreciação da legalidade extravasa o âmbito material da arbitragem previsto nos artigos 2.º do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Ainda a respeito desta excepção, alegou a AT que mesmo que o Tribunal Arbitral se considerasse competente para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR, nunca teria este competência para pronunciar-se sobre actos de repercussão, subsequentes e autónomos da liquidação. De seguida, invocou a AT que a Requerente não é sujeito passivo da CSR, carecendo de legitimidade para contestar os actos de liquidação daquele tributo, por força do disposto nos artigos 4.º, 15.º e 16.º do CIEC. Ilegitimidade que a AT defendeu resultar igualmente dos artigos 9.º do CPPT e 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, que apenas abrangem os casos de repercussão legal e já não de repercussão meramente económica ou de facto, como sucede no presente caso. Isto sem contar que, no entender da AT, a Requerente não logrou sequer provar que suportou, a final, o encargo da CSR, por ter sido incluído no preço dos combustíveis que adquiriu e não ter sido repassado no preço dos serviços prestados aos seus clientes. Continuou a AT por invocar que o pedido de pronúncia arbitral não respeitou os pressupostos legais de aceitação do requerimento / petição inicial previstos na alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT, por falta de identificação dos actos de liquidação de ISP / CSR contestados, o que determina a nulidade de todo o processo e implica a ineptidão do pedido por falta de objecto. Defendeu, ainda, a AT que a Requerente formula um pedido de declaração de ilegalidade de liquidações de CSR através da mera impugnação das alegadas repercussões, sem identificar, porém, o nexo entre as repercussões e as liquidações da CSR, sendo que a eventual ilegalidade de uma não se repercute na outra, ficando assim patente a ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir, o que implica igualmente a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral. Por último, no âmbito da defesa por excepção, defendeu a AT que inexiste no presente caso um erro imputável aos serviços que permitisse utilizar o prazo de 4 anos para a revisão oficiosa previsto na 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 78.º da LGT, sendo certo que era aplicável o regime especial previsto nos artigos 15.º a 20.º do CIEC, nos termos do qual o erro na liquidação apenas pode ser contestado no prazo de 3 anos, verificando-se assim a caducidade parcial do direito de acção quanto a todas as aquisições efectuadas pela Requerente em data anterior a 28 de Fevereiro de 2021. De seguida, prosseguiu a AT com a sua defesa por impugnação, invocando que a Requerente não logrou provar que suportou o encargo da CSR que as fornecedoras de combustível alegadamente repercutiram nas respectivas facturas, incumprindo o ónus que sobre si recaía nos termos do artigo 74.º da LGT. Defendeu também a Requerida não se verificar qualquer desconformidade do regime da CSR com o Direito Europeu, inexistindo também qualquer decisão judicial transitada em julgado que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução. Por último, argumentou a AT que ainda que se verificassem os pressupostos legais e processuais, e se considerasse efectuada a prova da repercussão económica da CSR, o Estado‑Membro pode recusar / opor-se a um pedido de reembolso, apresentado pelo comprador repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo, tal como ocorre no direito nacional.
7. Em 15 de Abril de 2025, foi a Requerente notificada para, querendo, exercer o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
8. A Requerente exerceu aquele direito através de requerimento apresentado em 24 de Abril de 2025, no qual pugnou pela improcedência de todas as excepções suscitadas pela Requerida. De forma sucinta, começou a Requerente por referir que a CSR já foi qualificada como imposto pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito do processo C-460/2021. E que o que a Requerente pede ao Tribunal Arbitral é a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de CSR, cujo encargo tributário suportou por repercussão, e não a apreciação da legalidade dos actos de repercussão, pelo que a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida não pode ser considerada procedente. De seguida, defendeu que a legitimidade activa dos repercutidos é reconhecida pelo artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, pelo que restringir aos sujeitos passivos da relação jurídico-tributária a legitimidade para reagir destes actos de liquidação da CSR, comportaria uma grave violação do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º e 268.º da CRP), uma vez que, quem vê a sua capacidade contributiva onerada é o repercutido. A atribuição de legitimidade ao repercutido justifica-se por ser sobre este que recai o encargo patrimonial inerente ao pagamento do tributo e porque, caso o montante liquidado não se mostre legalmente devido, será ele o lesado. Em qualquer situação de repercussão, legal ou económica, verifica-se uma diminuição do património pessoal do repercutido, que suporta o encargo tributário ainda que sem participar no procedimento de liquidação. Pelo que, não se descortina razão alguma que justifique distinguir a repercussão legal da repercussão de facto para efeitos de aferição da legitimidade procedimental ou processual do repercutido, desde que se verifique a transmissão do encargo do imposto. O repercutido sempre será o titular de um interesse legalmente protegido e por isso terá legitimidade para reagir contra actos tributários que o lesem, nos termos dos artigos 20.º e 268.º da CRP, dos artigos 9.º, 65.º e 95.º da LGT, do artigo 9.º do CPPT e do artigo 29.º do RJAT. Concluindo a Requerente que a legitimidade procedimental ou processual será reconhecida a quem suportou, de facto, o encargo do imposto, independentemente de se tratar do sujeito passivo, do repercutido legal ou do repercutido económico. E que a prova da repercussão reside nas facturas apresentadas (nas quais é discriminado o tipo de combustível, os litros adquiridos, as datas e a identificação das fornecedoras de combustível), ainda que não existisse uma obrigação de incluir na factura o montante de CSR repercutido. Relativamente à ineptidão da petição inicial, referiu a Requerente que não é parte da relação jurídico-tributária, no sentido em que não recai sobre esta uma obrigação tributária. A Requerente é sim titular de um interesse legalmente protegido, nos termos do artigo 18.º n.º 4 alínea a) da LGT, enquanto repercutida que efectivamente suportou o encargo tributário em virtude de ser a consumidora final do combustível. Nesta linha, não pode a Requerente ser penalizada com a exigência de uma prova documental específica cujo acesso lhe é impossível, quando essa prova, com todos os dados facultados pela Requerente nas facturas apresentadas, teria sido de fácil acesso à Requerida, pois que foi a esta que as emitiu e com os seus poderes facilmente as pode solicitar aos sujeitos passivos. Exigência essa que conflituaria com o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP). E que não pode ser exigida à Requerente a identificação das liquidações pois estas não lhe são emitidas. Por sua vez, o acesso a essas informações é impossível para a Requerente e tal exigência configuraria uma preclusão ao seu direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 18.º n.º 4 alínea a) da LGT, pelo que não pode obstar à procedência da acção. Relativamente à caducidade do direito de acção, alegou a Requerente que, segundo, a AT ainda que estando em causa actos praticados entre Maio de 2020 a Dezembro de 2022, o prazo de 120 dias previsto na primeira parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT já se teria verificado aquando da apresentação do pedido de revisão em Maio de 2024. No entanto, defende a Requerente não ser este o prazo aplicável à situação controvertida, mas sim o prazo de 4 anos previsto na segunda parte do artigo 78.º n.º 1 da LGT, por se tratar de um erro de direito, pugnando pela improcedência da excepção de caducidade do direito de acção.
9. Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, foiproferido despacho arbitral, em 30 de Abril de 2025, a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, bem assim, a apresentação de alegações escritas.
II. SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º e 3.º da Portaria de Vinculação.
11. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral, (ii) ilegitimidade da Requerente (iii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e (iv) caducidade do direito de acção, o que será feito por esta ordem logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
II. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
12. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica à exploração de actividades turísticas, transporte de passageiros e arrendamento de bens imobiliários.
b) No período compreendido entre Maio de 2020 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu, no âmbito da sua actividade comercial, 4.873.365,64 (quatro milhões oitocentos e setenta e três mil trezentos e sessenta e cinco vírgula sessenta e quatro) litros de gasóleo e 43,82 (quarenta e três vírgula oitenta e dois) litros de gasolina às sociedades B... LDA, C... LDA, D..., LDA, E..., S.A., F... LDA, G..., S.A, H... LDA, I..., S.A, J..., LDA, K... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA, L..., S.A., M... UNIPESSOAL, LDA, N..., LDA, O..., LDA., P... S.A, Q..., LDA, R... LDA, S..., LDA, T... LDA, U..., S.A, V..., LDA, W... LDA, X..., S.A., Y... LDA, Z..., S.A., AA..., LIMITADA, BB..., LDA, CC..., LDA, DD... LDA, EE... LDA, FF..., LDA, GG... LDA, II..., LDA, JJ... LDA, KK..., LDA e LL..., S.A. (fornecedores de combustível).
c) Em 28 de Maio de 2024, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa, ao abrigo do disposto na 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 78.º, da LGT, com vista à anulação das liquidações de CSR que associou aos 4.873.365,64 litros de gasóleo e 43,82 litros de gasolina adquiridos aos fornecedores de combustível, solicitando o reembolso do valor total de CSR de € 540.947,40 euros;
d) Até à presente data, não foi proferida decisão expressa de indeferimento do referido pedido de revisão oficiosa;
e) Em 30 de Dezembro de 2024, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.
§2 – Factos não provados
13. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:
1) Os fornecedores de combustível, enquanto sujeitos passivos da relação jurídico‐tributária, entregaram ao Estado os valores apurados nos actos de liquidação conjunta de ISP e de CSR praticados pela AT com base nas DIC por aqueles submetidas;
2) Os fornecedores de combustível, no período compreendido entre Maio de 2020 e Dezembro de 2022, repercutiram nas facturas emitidas à Requerente a CSR correspondente a cada um dos consumos de gasóleo e gasolina, tendo esta última suportado o encargo daquele imposto, no valor global de € 540.947,40 euros;
3) A Requerente é a consumidora final dos combustíveis rodoviários adquiridos aos fornecedores de combustível, não tendo repercutido o encargo económico da CSR que alegou ter suportado no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
14. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
15. O Tribunal Arbitral formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
16. Os factos assentes nas alíneas a) e d) foram invocados pela Requerente e não impugnados pela Requerida, razão pela que se deram como provados nos presentes autos. Os factos assentes nas alíneas b) e c) foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo pela Requerente, designadamente os Documentos 1 a 3, cujo teor não foi impugnado pela Requerida, e bem assim, pelo processo administrativo junto aos autos. O facto assente na alínea e) encontra-se certificado pelo sistema de gestão processual do CAAD.
17. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto 1), considerou este Tribunal Arbitral que a falta de junção aos autos das DIC globalizadas submetidas pelos fornecedores de combustível, dos consequentes actos de liquidação emitidos pela AT e dos respectivos comprovativos de pagamento, que não foram também associados às facturas juntas aos autos, não permitem certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo dos combustíveis rodoviários posteriormente adquiridos pela Requerente.
18. Quanto ao facto dado como não provado no ponto 2), impõe-se desde logo registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se viu, não foi feito pela Requerente.
19. Acresce que a Requerente não cumpriu o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:
“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).
45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário.Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).
46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).
(…)
48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)
20. Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros não pode em caso algum ser presumida. O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno meramente económico, com uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:
“A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.
A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.
21. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida, até porque tal não resulta da lei, impondo-se uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final – o que abrange, necessariamente, a repercussão na esfera da Requerente.
22. E assim é por muito que a repercussão seja expectável e/ou pretendida na lógica de funcionamento do tributo. E assim continuaria a ser mesmo que a repercussão resultasse da lei. A este respeito, sublinha-se que ao contrário do defendido pela Requerente, não constava do regime jurídico da CSR previsto na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, uma qualquer obrigação legal de repercussão deste tributo. Com efeito, só por via da alteração efectuada ao artigo 2.º do CIEC, concretizada pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, é que se veio estabelecer a repercussão como pressuposto inerente aos impostos especiais de consumo. Nota-se, porém, que esta alteração feita com uma “mera” natureza interpretativa consubstancia, na verdade, uma alteração materialmente retroactiva. Consequentemente, “[f]ica juridicamente vedada a inferência de que, sendo esta uma norma de aplicação retroactiva, o ISP, e com a ele a CSR, é, e foi, sempre repercutido nos consumidores.”, conforme referiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 30 de Julho de 2024, no processo n.º 118/2024-T, para onde se remetem maiores desenvolvimentos sobre o tema.
23. Em suma, a repercussão carecia de ser demonstrada e esse exercício não foi realizado pela Requerente, que se limitou a alegar que a repercussão resulta de uma obrigação sobre os consumidores finais dos combustíveis, bem como a juntar aos autos algumas facturas.
24. Sucede que das facturas não decorre, sem mais, a prova da repercussão, sendo este um facto que carecia de demonstração perante as concretas transacções realizadas entre os fornecedores de combustível e a Requerente.
25. Ora, apenas com base nos referidos elementos não é possível fazer a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não é possível estabelecer a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não é possível demonstrar a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasolina e gasóleo à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou. Na verdade, não ficou sequer provado que os fornecedores de combustível suportaram, eles própria, enquanto intermediários na cadeia de abastecimento/distribuição, o encargo da CSR que a Requerente alega ter sido repercutido na sua esfera.
26. Acresce ao exposto que mesmo que tivesse ficado demonstrada a repercussão da CSR, não ficou ainda assim provado que esse encargo se cristalizou na esfera jurídica da Requerente. Pelo contrário, impunha-se à Requerente provar que, em última instância, foi a entidade onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o respectivo custo no preço dos serviços prestados aos seus clientes, que no circuito ou cadeia económico-comercial podem situar‑se como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 3) supra.
27. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1. Questões prévias – saneamento
§1 – Incompetência do Tribunal Arbitral
28. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer do pedido formulado pela Requerente, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, são arbitráveis as pretensões referentes à CSR, isto é, se a sindicância da legalidade deste tributo está ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
29. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)
30. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:
“Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
31. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão da apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais.
32. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
33. Nas decisões arbitrais proferidas, entre outros, nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T, a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
34. Em sentido contrário pronunciaram-se, entre outros, os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.
Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.
Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”
35. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos, onde se inclui a CSR.
36. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar o concreto pedido formulado pelas Requerentes com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.
37. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente pede ao Tribunal Arbitral é a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de CSR, cujo encargo tributário suportou por repercussão, e não a apreciação da legalidade dos actos de repercussão.
38. Em face do exposto, declara-se o presente Tribunal Arbitral competente, em razão da matéria, para conhecer o pedido de apreciação da legalidade de actos de liquidação de CSR, que é subsumível ao âmbito material da arbitragem previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, improcedendo a excepção invocada pela AT a este respeito.
§2 – Ilegitimidade
39. Na resposta que apresentou invocou também a Requerida a ilegitimidade processual activa e substantiva da Requerente para solicitar o reembolso da CSR alegadamente suportada.
40. Quanto a este tema, pronunciaram-se já de forma extensa e cuidada os Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui ter em consideração em respeito do já mencionado artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
41. Ao que importa, referiu-se, entre outros, o seguinte no acórdão arbitral proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no âmbito do processo n.º 296/2023-T:
“III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos
Numa passagem do seu manual , Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”.
Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias . Fê-lo (…) com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (…)
A questão é: pode ela [a Requerente] suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito?
A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.
(…) qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida: “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”. Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção: “1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo: a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;
(…)
2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:
a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”
Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.
Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.”.
42. Ora, a Requerente não é sujeito passivo de CSR, mas tão só uma mera adquirente/consumidora de combustíveis, pelo que fica liminarmente afastada a sua legitimidade para suscitar a ilegalidade das liquidações daquele imposto, por força do regime especial previsto no artigo 15.º do CIEC.
43. Mas ainda que aquele regime não fosse aplicável, a verdade é que a Requerente continuaria a não ter legitimidade processual activa para discutir em juízo a legalidade das liquidações de CSR.
44. Remete-se aqui, uma vez mais, para as conclusões já alcançadas pela jurisprudência, em concreto, pelo Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 15 de Janeiro de 2024, no âmbito do processo n.º 375/2023-T, onde se referiu, ao que importa, o seguinte:
“III.3. Ilegitimidade das Requerentes
20. Não consta do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do art. 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”), do CPTA e do CPC.
21. A regra geral do direito processual, que emana do art. 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (vd. art. 9.º, n.º 1, do CPTA).
22. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”), como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”
23. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (vd. art. 1.º, n.º 2, da LGT).
24. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo-se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu art. 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”
25. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (vd. art. 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (vd. art. 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.
26. Na situação em análise, as Requerentes invocam a qualidade de repercutidos legais para deduzirem a acção arbitral.
27. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado art. 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT).
28. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do art. 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT).
29. Neste âmbito, assinala JORGE LOPES DE SOUSA: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.º, n.º 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do respectivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – vd. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.
30. JORGE LOPES DE SOUSA assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.” – vd. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.
31. Com posição similar, LIMA GUERREIRO, em anotação ao art. 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”
32. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31/8, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas[3] repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vd. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
33. Infere-se do articulado das Requerentes que estas legitimam a sua intervenção processual no facto singelo de lhes ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis, caracterizando-se no artigo 31.º do ppa como um “consumidor” de combustíveis, sobre o qual “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo”.
34. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, e começando por esta última parte, as Requerentes são sociedades que se dedicam ao transporte, nacional e internacional, de mercadorias. Desta forma, o combustível adquirido é um factor de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da actividade de prestação de serviços de transporte realizada pelas Requerentes, não configurando um consumo final. Nestes termos, se a CSR, conforme alegam as Requerentes, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida estas não fazem parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos.
35. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31/8), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico, pelo que é errónea a afirmação das Requerentes de que é sobre as mesmas que “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo [da CSR]”. Basta atentar, para esta conclusão, no art. 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”[4] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do art. 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.
36. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”) efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.
37. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:
i. A referida Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
ii. As ora Requerentes não são consumidoras finais, o que significa que os gastos em que incorrem são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
iii. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis às ora Requerentes, não há razões para crer que estas, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, os quais nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).
38. Ora, não sendo as ora Requerentes os sujeitos passivos da CSR, nem repercutidos legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstrem factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., a menos que evidenciem a existência de um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre as mesmas impende.
39. Contudo, o único facto que as ora Requerentes alegam para este efeito é o de lhes ter sido repercutida a CSR. Qualificam esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indiquem onde está prevista essa repercussão – que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe). O paralelismo que as Requerentes estabelecem entre a CSR e o IVA não tem qualquer suporte jurídico, pois a repercussão neste último imposto tem previsão legal expressa no art. 37.º do Código do IVA, permitindo o seu controlo e prova, dado que o imposto e respetivo montante são mencionados na factura emitida pelo fornecedor de bens ou prestador de serviços.
40. Também não tem qualquer pertinência a equiparação que as ora Requerentes pretendem estabelecer entre a CSR e o Imposto do Selo que tanto pode incidir sobre o sujeito passivo originário (em relação ao qual se verifica a capacidade contributiva) como sobre outra entidade. Neste último caso, como sucede de forma paradigmática com as operações financeiras, a doutrina e jurisprudência têm qualificado o fenómeno como substituição tributária sem retenção (vd., a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25 de março de 2015, processo n.º 01080/13). Conforme atrás referido, o substituto é uma espécie do género “sujeito passivo”, logo dispõe de legitimidade activa para demandar o Estado, além de que, à semelhança do IVA, a liquidação do imposto é perfeitamente controlável através da documentação emitida, pois, nos termos do art. 23.º, n.º 6, do Código do Imposto do Selo, “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”
41. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que as ora Requerentes afirmam (nas suas palavras, o apontado “consumidor de combustíveis”, que, todavia, na realidade, a Lei não aponta...).
42. Rigorosamente, as ora Requerentes são tão-só clientes comerciais dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não são os sujeitos passivos dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integram, nem são parte da relação tributária, nem são repercutidos legais. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
i. Que a CSR foi repercutida às ora Requerentes, quais os montantes e em que períodos;
ii. Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que prestam aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comportam, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportaram, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respetivo quantum.
43. As ora Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, as quais estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não lograram, por isso, atestar que suportaram o tributo contra o qual reagem. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não são sujeitos passivos, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.
44. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
45. Por fim, não se diga que as ora Requerentes ficaram desprovidas de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vd. artigo 20.º da Constituição).
46. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vd. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).”.
45. Ora, conforme já anteriormente referido, inexiste no regime jurídico da CSR uma imposição legal de repercussão do imposto, sendo apenas expectável em face da lógica subjacente a este tributo que o respectivo encargo seja repassado para os intervenientes que estão a jusante no circuito económico-comercial e que procedam à aquisição dos combustíveis. O que significa que não estavam preenchidos os pressupostos atributivos de legitimidade que constam do artigo 18.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), da LGT.
46. Para além disto, a Requerente também não logrou provar que suportou definitivamente na sua esfera jurídica o encargo da CSR, quem em si teria alegadamente sido repercutido pelos fornecedores de combustível, o que significa que também não logrou demonstrar um interesse legalmente protegido, merecedor de tutela do direito substantivo, por forma a invocar a norma residual atributiva de legitimidade prevista no artigo 9.º do CPPT.
47. Conclusões estas que, sublinha-se ainda, não violam os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigos 13.º e 20.º da CRP), nem tão pouco o princípio da efectividade tal qual teorizado pelo TJUE. É que a Requerente, apesar de não integrar o âmbito da relação jurídico-tributária e de não ter legitimidade para contestar a legalidade dos actos de liquidação da CSR, mantém de forma plena o direito de demandar directamente os fornecedores de combustível, no âmbito da relação jurídico-privada estabelecida entre ambas, através de uma acção civil de repetição do indevido, exigindo nessa sede o reembolso do imposto que alega ter indevidamente suportado por via da repercussão nas aquisições de combustível que realizou.
48. Pelo exposto, julga-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa da Requerente, com a consequente absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
49. Em face do decidido, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.
V. DECISÃO
50. Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de liquidação de CSR;
b) Julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa da Requerente e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
c) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
51. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 540.943,59.
VII. CUSTAS
52. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 8.262,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 14 de Maio de 2025
Os árbitros,
Carlos Alberto Fernandes Cadilha (com declaração de voto)
(Presidente)
Maria Alexandra Mesquita
Hélder Faustino (Relator)
Declaração de voto de vencido
Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CPTA, subsidiariamente aplicável, e da correspondente disposição do artigo 30.º, n.º 3, do CPC, a legitimidade processual é aferida pela relação jurídica controvertida tal como é apresentada pelo autor. E, deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca ou contra quem é feito valer, matéria que diz antes respeito à questão de fundo e poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 45 e segs.).
Alegando a Requerente, na petição inicial, que pretende impugnar os atos tributários de liquidação da contribuição de serviço rodoviário (CSR) incidentes, em determinado período de tempo, sobre os fornecedores de combustíveis e cujo encargo tributário se repercutiu na sua esfera jurídica, não pode deixar de entender-se que o contribuinte dispõe de legitimidade processual para deduzir o pedido, independentemente de saber se houve uma efetiva repercussão ou se as faturas de aquisição de combustível corporizam o valor pago a título de CSR.
A propósito da questão que assim vem colocada, cabe recordar a norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, que é do seguinte teor:
4 - Não é sujeito passivo quem:
a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso ou impugnação nos termos das leis tributárias.
Ainda segundo o disposto no n.º 3 desse artigo, como sujeito passivo entende-se “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável”.
Como se depreende do transcrito artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, o preceito recusa a qualidade de sujeito passivo a quem não estiver sujeito diretamente a uma obrigação fiscal, como é o caso do consumidor final de bens ou serviços, mas admite que da repercussão do imposto possa resultar a violação de um interesse legalmente protegido, e, nesse sentido, confere ao repercutido o direito à impugnação administrativa ou judicial como meio adequado de reação contra a repercussão ilegal do imposto, o que se justifica, no plano de política legislativa, por razões de similitude com a lesão que seja causada por um ato ilegal de liquidação (cfr. António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, 2001, págs. 116-117).
Como resulta da redação originária do artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que regula o financiamento da rede rodoviária nacional e cria a contribuição de serviço rodoviário, o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal “é assegurado pelos respetivos utilizadores”, e, nos termos do subsequente artigo 3.º, “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”. E, por outro lado, segundo o disposto no artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais do Consumo (CIEC), na redação da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro - disposição essa a que foi atribuída natureza interpretativa (artigo 6.º dessa Lei) -, “os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Quer as disposições da Lei n.º 55/2007, especificamente aplicáveis à contribuição de serviço rodoviário, quer a disposição geral do artigo 2.º do CIEC, consagram um princípio de repercussão legal do imposto, significando que o encargo do imposto não seja suportado pelo sujeito passivo, mas pelo contribuinte que intervém no processo de comercialização dos bens ou serviços. Havendo de admitir-se, por efeito da norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, que as entidades repercutidas dispõem de legitimidade procedimental e processual para deduzirem reclamação graciosa ou recurso hierárquico ou impugnação judicial contra o acto tributário de liquidação do imposto que é objeto de repercussão (cfr. Lopes de Sousa, Código de Processo e Procedimento Tributário Anotado e Comentado, vol. I, Lisboa, 2011, pág. 115, e Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 98).
Para além da legitimidade ativa da Requerente se encontrar coberta pela referida disposição da LGT, essa legitimidade é também reconhecida pela regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”. Ou seja, ainda que se entendesse que a situação do caso não corresponde a repercussão legal, mas a mera repercussão económica ou de facto, não pode deixar de considerar-se que a entidade que alega suportar o imposto no âmbito da cadeia de comercialização dispõe de legitimação para impugnar o ato de liquidação com fundamento em ilegalidade.
Por tudo, teria considerado verificada a legitimidade ativa da Requerente, tal como se decidiu, entre outros, nos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 790/2023, 808/2023, 914/2023, 1049/2023, 131/2024 e 151/2024, e julgado improcedente o pedido arbitral por se não encontrar provado que se tenha verificado a efetiva repercussão da CSR na esfera jurídica da Requerente.
Carlos Fernandes Cadilha