Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1317/2024-T
Data da decisão: 2025-05-08  IRS  
Valor do pedido: € 23.116,41
Tema: IRS; mais-valias; quinhão hereditário; alienação de imóvel.
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SUMÁRIO:

I - Enquanto a herança permanecer indivisa, cada herdeiro é titular de um direito abstrato a uma fração ideal da herança, sem qualquer direito real sobre bens específicos;

II - A partilha é o momento que atribui aos herdeiros direitos plenos sobre bens concretos e individualizados;

III - A alienação do quinhão hereditário corresponde à transmissão de uma posição jurídica global na herança indivisa e não de direitos reais sobre bens concretos;

IV – Na análise contextual das transações em presença, a partir dos elementos constantes dos autos, os tribunais tributários devem privilegiar a substância económica sobre a forma jurídica, evitando que os contribuintes caracterizem as suas transações de um modo que distorça o sentido e o propósito da lei fiscal, desde que isso seja permitido por uma interpretação literal, teleológica e sistemática das disposições fiscais relevantes, metodologia inteiramente consistente com os princípios da legalidade tributária, da segurança jurídica, da separação de poderes, do combate à elisão fiscal e da preservação da base tributável. 

V – No caso concreto, substância e forma, texto e contexto, sustentam a conclusão de que o negócio jurídico em presença não se reconduziu à alienação de um quinhão hereditário, enquanto universalidade indiferenciada de bens, direitos ou encargos, procedendo antes à alienação onerosa de direitos reais sobre um bem imóvel deliberadamente individualizado, especificado e determinado, como consta, expressa e formalmente, da escritura pública, realizando o facto tributário constante da alínea a), do n.º1, do artigo 10.º do CIRS. 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão: 

 

1. RELATÓRIO

 

1. A..., titular do cartão de cidadão n.º..., válido até 15.09.2030, titular do NIF ..., divorciado, residente na Rua ... n.º ... –..., ...-..., com residência habitual na ..., ... esquerdo,  ..., cidade de Maputo, Moçambique, notificado do ato tributário de liquidação em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do exercício do ano fiscal de 2023, formalizado pela notificação da nota de liquidação n.º 2024..., no valor 23.116,41 €, veio, em 11.12.2024, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e 2 do artigo 95.º e da alínea a), do artigo 101.º, da Lei Geral Tributária (LGT), do artigo 140.º, do CIRS e da alínea a), do n.º 1, do artigo 97.º e da alínea a), do artigo 99.º, e da alínea a), do n.º 1, do art.º 102.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), impugnar o ato tributário de liquidação de 2023 acima identificada, solicitando ao CAAD, ao abrigo dos art.º 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), a constituição de Tribunal Arbitral.  

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 13.12.2024. 

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 03.02.2025. 

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c), do n.º 1, e do n.º 8, do artigo 11.º, do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 21.02.2025. 

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 27.03.2025, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por não ter sido requerida e não ter sido considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada por despacho proferido em 15.04.2025, tendo sido concedida a faculdade de produção de alegações simultâneas no prazo 10 dias, declinada por ambas as partes. 

 

1.1              Dos factos alegados pelo Requerente 

 

8. O Requerente e mais três irmãos são os quatro únicos herdeiros de B..., conforme resulta da escritura de compra e venda outorgada em 05.12.2023, no cartório da C..., notária na cidade do Porto, e da senhora sua Mãe, conforme escritura de habilitação de herdeiros datada de 24.10.2019, relativa ao seu falecimento em 18.10.2019. 

 

9.O seu Pai B..., juntamente com mais 7 irmãos e 2 irmãs, é um dos 10 herdeiros da herança de D... e de E..., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 17.11.1986, relativa ao seu falecimento do senhor seu avô paterno em 20.03.1986. Em 26.10.2002, faleceu a senhora sua Avó Paterna, conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros datada de 12.03.2003. 

10. Por força destas heranças foi-lhe atribuído uma quota, ou quinhão hereditário, do prédio rústico, composto de terra a cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar da ..., limites do lugar..., da união das freguesias de ... (...), ... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., descrito na conservatória do registo predial de Gondomar sob o número ... (...) – ..., prédio registado definitivamente em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme resulta da escritura de compra e venda, outorgada em 05.12.2023, no cartório da C..., notária na cidade do Porto, exarada a folhas 83 a 94 verso do livro 8 C.

 

11. Por força destas heranças adquiriu o direito à aquisição por via sucessória de parte do imóvel, ou seja, um direito a uma quota ou quinhão hereditário, mas nunca chegou a ser proprietário/titular de direito real sobre o imóvel, nunca existindo partilha da herança. Esta quota ou quinhão hereditário equivale assim idealmente a uma quarta parte de uma décima parte do terreno supra melhor identificado, o qual foi vendido pelo valor de 4.100.000,00€, cabendo ao requerente o valor equivalente a um quarto do décimo do total, num total de 102.500,00€.  O valor declarado na declaração de IRS para efeitos de mais valia foi de 102.500,00 €, equivalente a um quarto de uma décima parte do total recebido de 410.000,00€. 

 

1.2              Argumentos das partes

12. Os Requerentes sustentam a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

a)     É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram;

b)    Só com a partilha é que o herdeiro é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, nos termos do artigo 2119.º do Código Civil;  

c)     Não obstante cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro, só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem. Mesmo nos casos em que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes; 

d)    No caso dos autos, não obstante a escritura ser denominada de compra e venda, o que foi alienado foi o direito ao quinhão hereditário pelo que o que se transmitiu foi, um direito abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência tambémse patenteiam inseguras

e)     Não ocorreu, portanto, uma alienação de imóvel concretamente identificado, até porque só com a realização da partilha é possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tal imóvel;

f)     Assumindo o cessionário a posição do herdeiro cedente a sua situação jurídica não é igual à do proprietário, o qual dispõe de direito pleno sobre o bem que pretende alienar, pelo que não estamos perante a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, a que se refere o artigo 10.º do CIRS;

g)    O direito do herdeiro à herança indivisa nada tem a ver com o direito de propriedade, ou qualquer outro direito real;

h)    Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram;

i)      No caso dos autos, como se referiu, sob o título de compra e venda, com a cessão foi transmitido o direito ao quinhão hereditário pelo que o que se transmite é um direito abstratamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras; 

j)      Não existiu qualquer alienação de imóveis concretamente identificados porque só com a realização da escritura partilha seria possível estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tais imóveis;

k)    O artigo. 10.º, n.º1, alínea a), do CIRS, não se aplica a negócio jurídico de alienação do direito a quinhão hereditário constituído por imóvel, pois não integra o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis, pelo que a liquidação de IRS sobre os ganhos obtidos com a permuta era ilegal por erro nos pressupostos de facto e de direito. 

 

 

13. A AT sustenta improcedência do pedido e a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados: 

 

a)     Tratou-se de uma compra e venda como se pode constatar no documento de suporte, que é uma escritura de compra e venda, documento autentico, idóneo e com fé pública, o que determina que o seu teor é autentico, demonstrativo que o ora Requerente vendeu conjuntamente com os restantes herdeiros a sua quota-parte da herança sobre aquele imóvel; 

b)    Trata-se de uma alienação de bens compreendidos em herança indivisa, a qual se acha abrangida pelo artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. Com efeito, os direitos relativos à herança, incluindo a alienação dos bens que a integram, podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros; 

c)     A alienação da quota-parte no imóvel em causa não configura uma venda do quinhão hereditário, (artigo 2124.º do Código Civil) porquanto esta equivale à transmissão do direito sobre todos os bens da herança, o que significa que não poderão ser cedidos direitos sobre bens em concreto com exclusão de outros; 

d)    No caso presente, o Requerente não alienou uma universalidade de bens que compusessem a herança, tendo alienado o bem imóvel em causa, mediante escritura de compra e venda, com a intervenção de todos os herdeiros, pelo que não se está perante uma venda do quinhão hereditário, mas sim perante uma transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, e não perante uma mera transmissão do direito à herança; 

e)     O artigo 2130.º do Código Civil consagra o direito preferencial na venda de quinhão hereditário e não na alienação de bens compreendidos em herança indivisa. Tratando-se de uma herança indivisa, os herdeiros são titulares do direito a uma quota ideal até que procedam à partilha, facto que não impossibilita a venda de bens determinados, que compõe a referida herança, desde que, nesse ato intervenham todos os herdeiros; 

f)     No caso que está aqui em causa, verifica-se que foi alienado, por todos os herdeiros, um imóvel, mediante contrato de compra e venda, e não foi vendido o quinhão hereditário sobre os bens da herança indivisa, pelo que a alienação em causa não pode ser qualificada como venda de quinhão hereditário; 

g)    Anteriormente à outorga da escritura de compra e venda, e como se pode constatar por leitura da mesma, houve um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real do referido imóvel (e não de qualquer quinhão hereditário); 

h)    O facto de, da escritura de compra e venda, constar que se destina a revenda, indicia também que é um imóvel (e não uma universalidade) que está a ser objeto de transmissão; 

i)      Não pode uma escritura que as partes denominaram de compra e venda ser qualificada como um ato de alienação onerosa da herança, nem como um ato de venda de quinhão hereditário; 

j)      A alienação efetuada, por contrato de compra e venda, com identificação do bem alienado, configura uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, sujeita a tributação, por se integrar no âmbito de incidência do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, sendo esse rendimento de mais-valias imputado a cada um dos herdeiros na proporção das suas quotas; 

k)    Não se diga, que por a herança não ter sido objeto de partilha, não é possível imputar aos herdeiros os rendimentos resultantes da alienação, pois que, mesmo estando perante uma situação de contitularidade, a lei prevê que se indique a quota hereditária correspondente a cada titular de rendimentos; 

l)      Bem andou o Requerente, quando inscreveu no anexo G da sua declaração de rendimentos Modelo 3, referente ao ano fiscal de 2023, os valores de aquisição e realização da sua quota-parte no imóvel.

1.3. Saneamento   

 

 

14. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

15. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).  

 

16. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa. 

 

2    FUNDAMENTAÇÃO

2.1       Factos dados como provados

17. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)     O Requerente é, com mais três irmãos, um dos os quatro únicos herdeiros de B... (Docs. 3, 4 e 5)

b)    O Requerente é, juntamente com mais três irmãos, um dos quatro únicos herdeiros da senhora sua Mãe (Doc. 6)

c)     Seu Pai B..., juntamente com mais 7 irmãos e 2 irmãs, é um dos 10 herdeiros da herança de D... e de  E... (Doc. 7) 

d)    Em 26.10.2002, faleceu a senhora sua Avó Paterna (Doc. 8) 

e)     Por força destas heranças foi-lhe atribuído uma quota, ou quinhão hereditário, do prédio rústico, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ..., descrito na conservatória do registo predial de Gondomar sob o número ... (...) – ..., prédio registado definitivamente em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme resulta da escritura de compra e venda, outorgada em 5 de dezembro de 2023; (Doc. 4) 

f)     A escritura de compra e venda refere a existência de um contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 26.05.2023, com eficácia real do referido imóvel;

g)    Da escritura de compra e venda, consta que o imóvel se destina a revenda; (Doc.4) 

h)    O Requerente, quando inscreveu no anexo G da sua declaração de rendimentos Modelo 3, referente ao ano fiscal de 2023, os valores de aquisição e realização da sua quota-parte no imóvel. (Doc.4) 

 

 

 

2.2          Factos não provados

 

18. Com relevo para a decisão de mérito, não se provou a alienação de um quinhão hereditário. 

 

 

2.3          Motivação

 

19. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

20. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4              Questão decidenda

 

21. A questão controvertida prende-se com saber se a alienação de um prédio rústico, inscrito na matriz rústica sob o artigo ..., da União das freguesias de..., ..., ... e ..., titulada por escritura publica de 05.12.2023, configura uma “alienação de direitos reais sobre bens imóveis” para efeitos da alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do CIRS. Na sua decisão iremos seguir as decisões arbitrais dos Processos do CAAD n.º 1208/2024-T e n.º 1274/2024-T que versam sobre situações de facto idênticas às do presente processo. 

 

22. Do ponto de vista do direito civil, enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. Ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha se passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. Também não se pode confundir a comunhão hereditária (2031.º ss e 2050.º ss. do Código Civil) com a compropriedade (1403.º. ss. do Código Civil). 

 

23. Um domínio em que a jurisprudência e a doutrina têm entendido que a conjugação dos elementos de interpretação determina que os termos empregues na lei fiscal devem conservar o seu sentido jurídico-civilístico diz respeito precisamente à questão da tributação das mais-valias resultantes da alienação onerosa do quinhão hereditário composto por bens imóveis em sede de IRS. Por exemplo, o Acórdão STA, Sec. II, Processo n.º 0975/09de 25.11.2009, sobre tributação de mais-valias em IRS, disse que: “I – Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. II – Assim, porque a alienação (no caso dos autos, permuta com outros bens de terceiro) de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, não estão sujeitos a IRS os eventuais ganhos resultantes dessa alienação.”

24. No entanto, o direito fiscal não pretende responder às questões de saber em que consiste o direito de propriedade, quem o adquire, quando, como e em que condições, visando antes, nos termos do artigo 103.º, n.º1, da CRP, a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, razão pela qual o mesmo impõe ao juiz tributário uma atenção especial à substância económica das transações efetivamente efetuadas, orientação que alguma doutrina designa por realismo fiscal.  

25. Na análise contextual dos negócios jurídicos trazidos à sua apreciação, variável em função das especificidades de cada caso concreto, os tribunais tributários devem privilegiar a substância sobre a forma (substance over form), evitando que os contribuintes caracterizem as suas transações de um modo que distorça o sentido e o propósito da lei fiscal, desde que isso seja permitido por uma interpretação textual, teleológica e sistemática das normas relevantes, metodologia inteiramente consistente com os princípios da legalidade tributária, da igualdade, da justiça material tributária, da segurança jurídica, da separação de poderes, do combate à elisão fiscal e da preservação da base tributável. 

 

26. O realismo fiscal requer que se considere todos os factos e circunstâncias das transações em presença, que permitam discernir a vontade real das partes ou, dito de outro modo, a causa final da transação. In casu, isso implica que se deva distinguir a alienação de quinhão hereditário da alienação intencional dos bens específicos compreendidos em herança indivisa. Esta encontra-se abrangida pelo n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil (CC), segundo o qual os direitos relativos à herança, incluindo a alienação dos bens que a integram, podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, aplicando-se a essa alienação, nos termos do artigo 2124º do CC, as disposições reguladoras do negócio jurídico utilizado para o efeito, dispositivo que confirma que tanto a herança como o quinhão hereditário podem ser transmitidos, mas sem especificar bens concretos, precisamente o mesmo sentido para que aponta o artigo 2128.º do CC, ao determinar que o adquirente da herança ou do quinhão hereditário sucede nos bens, direitos e encargos compreendidos na herança ou no quinhão hereditário de forma global. 

 

27. No caso concreto, substância e forma convergem no mesmo resultado, visto que diante dos elementos trazidos aos autos afigura-se legítimo concluir que o negócio em presença não se reconduziu à alienação de um quinhão hereditário, enquanto universalidade indiferenciada de bens, direitos ou encargos, mas antes de um bem deliberadamente individualizado, especificado e determinado, a saber, como consta da escritura pública, um “prédio rústico, composto de terra e cultura, pastagem, pinhal, eucalipto e mato, sito no Lugar ..., limites do lugar de..., da união de freguesias de ... (...),... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo..., com o valor patrimonial tributário de  3.984,64€, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ... (...) – ...”, alienação titulada por documento autêntico dotado de força probatória plena, nos termos e para os efeitos dos nºs 1 e 2 do artigo 363.º e n.º 1 do artigo 371.º, ambos do CC. 

 

28. Na escritura pública, mais de duas dezenas de sucessíveis, únicos titulares do prédio visado, conforme aí consignado, pessoalmente ou através de representantes (e também porque nada aí consta quanto ao exercício do direito de preferência), declararam vender um prédio, devidamente identificado e individualizado, mediante um preço, à sociedade G... Lda., não tendo a notária que lavrou a escritura quaisquer dúvidas em identificar como objeto do negócio, um prédio, individual e concreto, aí se lendo “Que o prédio objeto do presente contrato é vendido no estado de conservação em que atualmente se encontra (…)” e sem qualquer declaração ou garantia dos Primeiros Outorgantes, seja de natureza expressa ou tácita, oral ou escrita, relativamente à natureza, características e situação física, construtiva e urbanística do mesmo”.  

 

29. Trata-se, no entender deste Tribunal, de situação distinta da referida no anteriormente citado Acórdão STA, Sec. II, Processo n.º 0975/09de 25.11.2009, na medida em que o elemento caracterizador preponderante do negócio jurídico em presença se afigura ser a alienação, por mais de duas dezenas de sucessíveis, únicos titulares do prédio visado, de um imóvel específico e claramente delimitado e não simplesmente a alienação de quinhão hereditário, ainda que respeitante a uma herança constituída unicamente por bens imóveis. Este entendimento procura atender, simultaneamente, aos elementos textual, teleológico e sistemático de interpretação das normas jurídicas relevantes. 

 

30. Acresce que, de acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 413.º, do CC, apenas a contratos promessa cujo objeto sejam bens imóveis ou móveis sujeitos a registo pode ser atribuída a dita eficácia real, sendo que a escritura atesta a celebração de um “contrato promessa de compra e venda com eficácia real, sem ter havido tradição”. Os promitentes vendedores, entre eles o Requerente, registaram uma promessa de transmissão de um prédio (cfr. al. f) do nº 1 do art. 2º do C.R.Predial) e não uma qualquer universalidade, englobando móveis, direitos e encargos, não passível de inscrição registal.  

 

31. Finalmente, cabe salientar que do teor da escritura consta igualmente que os representantes da segunda outorgante disseram que a F..., Unipessoal, Lda. “nunca teve intenção de adquirir para si o imóvel objeto desse contrato”, assim assumindo os representantes da sociedade/promitente compradora, expressa e inequivocamente, que a promessa de compra e venda incidiu sobre um bem imóvel especifico (e não sobre um quinhão hereditário), ou seja, consubstanciou uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, realizando o facto tributário ínsito no teor literal do artigo 10.º, n.º1, alínea a), do CIRS. 

 

32. Ora, conforme estipulado no n.º 1, do artigo 238.º, do CC, “[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, pelo que, considerando o texto e o contexto, a forma jurídica e a substância económica, este Tribunal Arbitral julga que a AT procedeu bem ao liquidar, para efeitos da alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º, do CIRS, as mais-valias geradas pela alienação de um imóvel declarada pelo Requerente no Anexo G, da sua declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2023.

 

3    DECISÃO 

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral: 

a)     Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado;

b)    Absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.

 

4    VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 23.116,41€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT. 

 

5    CUSTAS 

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 224.00 €, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 8 de maio de 2025

 

O Árbitro

 

Jónatas Machado