DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão, Dra. Sofia Quental e Dr. Francisco Melo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, decidem no seguinte:
I- RELATÓRIO
1. A..., S.A., (doravante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), com o número único de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa,, vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” ou “RJAT”) e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, abreviadamente identificada por “Autoridade Requerida”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente por “AT”), com vista à correcção dos actos tributários de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), com referência aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, feito em 30 de Setembro de 2024, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 01 de Outubro de 2024, tendo ambas as partes sido notificadas no mesmo dia.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros o Juiz José Poças Falcão, a Dra. Sofia Quental e o Dr. Jorge Belchior de Campos Laires, do Tribunal Arbitral Colectivo, presidindo o Juiz José Poças Falcão, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 20 de Novembro de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 10 de Dezembro de 2024 para apreciar e decidir o objecto do presente litígio, em conformidade com o estipulado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
6. Por despacho do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, foi determinada a substituição do Árbitro Adjunto Dr. Jorge Belchior de Campos Laires, pelo Dr. Francisco Melo, tendo sido notificado às partes o despacho arbitral dessa substituição e das suas eventuais consequências, não tendo as mesmas deduzido qualquer oposição.
7. Nestes termos, o Tribunal Arbitral Colectivo encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
8. A Autoridade Tributária apresentou Resposta em que suscitou a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
9. A Requerente foi notificada para se pronunciar sobre tal matéria, tendo exercido o contraditório.
10. Por despacho arbitral, de 04 de Fevereiro de 2025, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas.
11. Ambas as partes apresentaram alegações reiterando as posições constantes dos articulados precedentes.
I – A) Fundamentação do pedido
12. O pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente fundamenta-se, em síntese, no seguinte:
a) Os actos objecto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral são o indeferimento da revisão oficiosa e da reclamação graciosa apresentadas relativamente ao assunto em epígrafe e, consequentemente, os actos de autoliquidação de IRC, na componente de parte da derrama municipal suportada, relativos aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022, na medida em que estas autoliquidações enfermam de ilegalidade por incluírem derrama municipal indevidamente suportada sobre parte do lucro tributável respeitante a rendimentos obtidos no estrangeiro e aplicação da isenção da derrama municipal de Lisboa.
b) Neste sentido, pretende a ora Requerente submeter à apreciação do Tribunal Arbitral (i) a legalidade dos indeferimentos destes procedimentos administrativos, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade (por indevida liquidação) daquela parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referentes aos exercícios fiscais de 2019, 2020, 2021 e 2022 e (ii) a legalidade daquela parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) referentes aos exercícios fiscais de 2019, 2020, 2021 e 2022, mais especificando ilegalidade no que respeita ao montante total de € 404.756,02 (o qual é composto pelos montantes de € 20.107,61, € 272.000,27, € 15.041,34 e € 97.607,07, referentes aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022, respectivamente) referente a rendimentos obtidos no estrangeiro, e € 200.000,00, referente à isenção de derrama municipal de Lisboa, com referência ao período de tributação de 2021.
c) Alega a Requerente que, conforme resulta do disposto do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, a derrama municipal que se encontra prevista no âmbito do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“Regime Financeiro das Autarquias Locais”), configura-se como um verdadeiro imposto, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC.
d) Por sua vez, o valor da derrama municipal é apurado na medida da proporção do rendimento gerado na área geográfica de um determinado município, acrescendo ao IRC de cuja existência prévia depende que, não obstante ser cobrado pela AT, é transferida para o município titular daquele rendimento.
e) Em concreto, e para o que aqui releva, a Requerente liquidou derrama municipal sobre a totalidade dos respectivos lucros tributáveis apurados com referência aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da AT.
f) O próprio modelo oficial da Declaração Modelo 22, constante do site da AT, para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A, impõe a consideração do lucro tributável total apresentado no campo 302 do quadro 09.
g) Na opinião da Requerente, aquelas declarações incluem um valor de derrama municipal que se revela excessivo.
h) A Requerente sustenta que não está em causa a sujeição a IRC desses rendimentos, mas sim a sua exclusão da base de incidência de um imposto de natureza municipal, que deve reflectir o rendimento efectivamente gerado no território de cada município, por analogia com o princípio do "benefício autárquico".
i) Para o efeito, apresentou pedidos de revisão oficiosa (relativos a 2019 e 2020) e reclamações graciosas (relativas a 2021 e 2022), que foram indeferidos.
j) Invoca o princípio da legalidade tributária e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do CAAD, que reconhecem que a derrama municipal deve incidir apenas sobre rendimentos efectivamente gerados em território nacional.
k) Quanto à derrama municipal de Lisboa incorrectamente autoliquidada, no período de tributação de 2021, alega a Requerente que fundamentou e provou que, no decurso do ano de 2018, criou mais de 5 postos de trabalho (em regime de contratos de trabalho sem termo), que se mantiveram durante um período de 3 anos, pelo que, uma vez verificados os requisitos para a aplicação da isenção da derrama municipal de Lisboa, deverá ser reembolsada no montante de € 200.000 (cujo montante corresponde ao limite máximo concedido ao abrigo do regime de auxílios de minimis, do qual a Requerente ainda não beneficiou).
l) Sustenta, nesse sentido, que o benefício fiscal está condicionado ao compromisso de criação ou manutenção de, pelo menos, 5 postos de trabalho durante um período de 3 anos, sendo que tal compromisso deve ser aferido ex ante, com base na criação efectiva e manutenção desses postos de trabalho durante os três anos anteriores ao ano a que respeita o benefício.
I – B) Posição da Requerida
13. A Autoridade Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
a) A Autoridade Tributária sustenta que os actos de autoliquidação de derrama municipal impugnados foram praticados em conformidade com a legislação aplicável.
b) Entende que a derrama municipal é um imposto acessório ao IRC e que, por isso, incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento, apurado nos termos do Código do IRC, independentemente da origem geográfica dos rendimentos que o compõem.
c) A AT sublinha que a Lei n.º 73/2013 não estabelece critérios de territorialidade para determinar a base de incidência da derrama, remetendo expressamente para o lucro tributável sujeito e não isento de IRC.
d) Assim, e na ausência de norma que exclua os rendimentos obtidos no estrangeiro, esses devem ser considerados para efeitos de liquidação da derrama.
e) Alega ainda que a jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 603/2020) e do Supremo Tribunal Administrativo (STA) (Acórdão de 10.11.2021, processo n.º 0255/17.1BESNT) reconhece que é possível deduzir à colecta da derrama municipal o crédito de imposto por dupla tributação internacional, o que apenas é compatível com a sua sujeição a esse imposto.
f) Quanto à aplicação da isenção de derrama municipal de Lisboa para o ano de 2021 a Requerida reconhece que o Regulamento de Benefícios Fiscais do Município de Lisboa, publicado em 28 de Dezembro de 2020, prevê a possibilidade de isenção de derrama municipal, nomeadamente ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 5.º, para empresas que tenham criado e mantenham, por um período mínimo de três anos, pelo menos cinco novos postos de trabalho.
g) Não obstante a Requerente ter invocado a referida norma, apresentando documentação comprovativa da criação de cinco contratos de trabalho sem termo, conclui a AT que os contratos de trabalho apresentados pela Requerente reportam-se ao ano de 2018 e não ao período posterior à entrada em vigor do Regulamento (29 de Dezembro de 2020).
h) Assim, entende que não se verifica a condição essencial da “criação” de postos de trabalho no âmbito temporal definido, o que inviabiliza o reconhecimento da isenção peticionada para o ano de 2021.
i) Mantém-se, por isso, a validade da autoliquidação de IRC efectuada.
j) A AT conclui pela total improcedência do pedido, por considerar que a liquidação foi efectuada nos termos legais e que os fundamentos apresentados pela Requerente não têm suporte legal nem jurisprudencial suficiente.
II- SANEADOR
14. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
15. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de Março.
16. A procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito pelo que é admissível a cumulação de pedidos (artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).
17. O processo não enferma de nulidades.
18. Foi suscitada pela AT a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral.
19. Esta excepção improcede nos termos e com os fundamentos que serão assinalados infra, no momento de apreciação do mérito do pedido.
III- MATÉRIA DE FACTO
III – A) Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) Em 30 de Julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC (“Declaração Modelo 22”), com número de identificação..., com referência ao período de tributação de 2019. (cfr. Documento n.º 1).
b) Com base nos montantes vertidos naquela declaração, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 8.266.318,62 e uma derrama municipal no montante de € 122.776,49, conforme demonstração de liquidação de IRC n.º 2020... (cfr. Documento n.º 2).
c) Posteriormente, a Requerente apresentou Declaração Modelo 22 de substituição, com referência ao período de tributação de 2019, com número de identificação..., submetida a 30 de Novembro 2021 (cfr. Documento n.º 3).
d) Na sequência da submissão da referida declaração, a Requerente apurou um lucro tributável no período de tributação de 2019, no montante de € 8.266.318,62 e uma derrama municipal no montante de € 122.776,49, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º da compensação: 2021... e n.º de liquidação: 2021...) (cfr. Documento n.º 4).
e) A Requerente foi alvo de inspecção tributária por parte da Autoridade Tributária, com referência ao período de tributação de 2019, acabando por apurar um lucro tributável no montante de € 8.615.612,44 e uma derrama municipal no montante de € 127.964,41, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º da compensação: 2022 ... e n.º de liquidação: 2022 ...) (cfr. Documento n.º 5).
f) No que respeita ao período de tributação de 2020, a Requerente apresentou, no dia 16 de Julho de 2021, Declaração Modelo 22, com o código de identificação n.º ...(cfr. Documento n.º 6).
g) A 30 de Setembro de 2022, a Requerente apresentou Declaração Modelo 22 de substituição, com o código de identificação n.º ... (cfr. Documento n.º 7).
h) Conforme resulta daquela declaração de substituição, a Requerente apurou um lucro tributável, por referência ao período de tributação de 2020, no montante de € 35.518.485,37 e uma derrama municipal no montante de € 528.818,75, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º da compensação: 2022 ... e n.º de liquidação: 2022...) (cfr. Documento n.º 8).
i) A Requerente foi alvo de inspecção tributária por parte da AT ao período de tributação de 2020, acabando por apurar um lucro tributável no montante de € 36.000.194,11 e uma derrama municipal no montante de € 535.990,69, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º da compensação: 2024 ... e n.º de liquidação: 2024...) (cfr. Documento n.º 9).
j) Em 06 de Junho de 2022, a Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 22 com número de identificação..., referente ao período de tributação de 2021 (cfr. Documento n.º 10).
k) Com base nos montantes vertidos naquela declaração, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 24.310.630,00 e uma derrama municipal no montante de € 360.212,80, conforme demonstração de liquidação de IRC (identificação do documento: 2022... e n.º de liquidação: 2022...) (cfr. Documento n.º 11).
l) Posteriormente, a Requerente apresentou Declaração Modelo 22 de substituição, referente ao período de tributação de 2021, com número de identificação..., submetida a 4 de Abril de 2024 (cfr. Documento n.º 12).
m) Na sequência da submissão da referida declaração, a Requerente apurou um lucro tributável, com referência o período de tributação de 2021, no montante de € 24.310.630,00 e uma derrama municipal no montante de € 360.212,80, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º de acerto de contas: 2024 ... e n.º de liquidação: 2024 ...) (cfr. Documento n.º 13).
n) Tendo em conta o facto de ser aplicável ao município de Lisboa a isenção de derrama municipal prevista no Ofício-Circulado n.º 20237/2022, de 27 de Janeiro de 2022, são relevantes os seguintes montantes:

o) A 29 de Maio de 2023, a Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 22, com número de identificação..., referente ao período de tributação de 2022, (cfr. Documento n.º 14).
p) Com base nos montantes vertidos naquela declaração, a Requerente apurou um lucro tributável no montante de € 38.663.642,12 e uma derrama municipal no montante de € 572.753,33, conforme demonstração de liquidação de IRC (identificação do documento: 2023 ... e n.º de liquidação: 2023...) (cfr. Documento n.º 15).
q) Posteriormente, a Requerente apresentou Declaração Modelo 22 de substituição, com referência ao período de tributação de 2022, com número de identificação..., submetida a 6 de Maio de 2024 (cfr, Documento n.º 16).
r) Na sequência da submissão da referida declaração, a Requerente apurou um lucro tributável no período de tributação de 2022, no montante de € 38.711.035,65 e uma derrama municipal no montante de € 573.455,41, conforme demonstração de liquidação de IRC (n.º de acerto de contas: 2024... e n.º da liquidação 2024...) (cfr. Documento n.º 17).
s) Em suma, e para o que de seguida se peticionará, são relevantes os seguintes montantes apurados a título de derrama municipal pela Requerente:
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Valores em Euro
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Período
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Lucro tributável
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Derrama municipal
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Lucro tributável sujeito a derrama municipal corrigida
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Derrama municipal corrigida
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2019
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8.615.612,44
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127.964,41
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7.261.821,59
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107.857,07
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2020
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36.000.194,11
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535.990,69
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17.731.103,52
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263.990,42
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2021
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24.310.630,00
|
360.212,80
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23.295.495,69
|
345.171,46
|
2022
|
38.711.035,65
|
573.455,41
|
32.074.689,06
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475.848,34
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Total
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107.637.472,20
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1.597.623,31
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80.363.109,86
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1.192.867,29
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t) Em concreto, e para o que aqui releva, a Requerente liquidou derrama municipal sobre a totalidade dos respectivos lucros tributáveis apurados com referência aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da AT (cfr. artigo 29.º do PPA).
u) O próprio modelo oficial da Declaração Modelo 22, constante do site da AT, para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A, impõe a consideração do lucro tributável total apresentado no Campo 302 do Quadro 09 (cfr. artigo 30.º do PPA).
v) No decurso do ano de 2018, a Requerente criou 18 novos postos de trabalho, dos quais 15 se mantiveram (pelo menos) até ao período de tributação de 2021, tendo sido admitidos em contratos de trabalho sem termo (cfr. Documentos n.ºs 44 a 53).
w) Em 22 de Maio de 2024 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa contra os actos de autoliquidação de IRC, com referência aos períodos de tributação de 2019 e de 2020 (cfr. Documento n.º 18).
x) E ainda pedido de reclamação graciosa contra os actos de autoliquidação de IRC, com referência aos períodos de tributação de 2021 e 2022 (cfr. Documento n.º 19), meios através dos quais procurou ver ressarcido o montante das derramas municipais suportadas por si naqueles períodos, na parte que resultou da desconsideração dos rendimentos obtidos no estrangeiro dos respectivos lucros tributáveis.
y) A Requerente foi notificada, no dia 8 de Julho de 2024, da decisão final de indeferimento da revisão oficiosa (cfr. Documento n.º 20).
z) Ademais, ultrapassado o prazo legal de decisão (quatro meses), nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da LGT e alínea d) do n.º 1 do artigo 1.º do CPPT, aplicável ex vi da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, a reclamação graciosa presume-se indeferida para efeito de apresentação do pedido de pronúncia arbitral (artigo n.º 36.º do PPA).
aa) A argumentação que a AT sustenta na decisão final de indeferimento é, sucintamente, a seguinte:
(i) nos termos do Regime Financeiro das Autarquias Locais, a derrama municipal, que é um imposto acessório ao IRC, tem como base de tributação, tal como este último, o lucro tributável de entidades residentes que exerçam, a um título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável que estão situadas em território português.
(ii) o Regime Financeiro das Autarquias Locais não possui regras específicas para a determinação da derrama municipal, pelo que, na ausência de outra legislação sobre o tema, terão de ser tomadas em consideração as regras consagradas no Código do IRC, como o seu artigo 3.º – “Base de imposto”, o artigo 4.º – “Extensão da territorialidade” e ainda o artigo 17.º - “Determinação do lucro tributável”, incluindo, desta forma, a base tributável da derrama os rendimentos provenientes de fonte estrangeira, conforme defendido pela Direção de Serviços do IRC.
(iii) na legislação em vigor que disciplina a figura da derrama municipal não existe qualquer norma que exclua da base tributável rendimentos provenientes do estrangeiro, pelo que não se pode inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei correspondência verbal.
(iv) do Regime Financeiro das Autarquias Locais não consta qualquer exclusão de tributação relativamente à parte do lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo que o Código do IRC estabelece a extensão da obrigação do imposto relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, havendo assim, o englobamento da totalidade dos rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.
(v) da alusão da REQUERENTE à decisão do STA, proferida no Processo n.º3652/15.3BESNT, de 13-01-2021, da qual a Direção de Serviços tem uma opinião diversa, acabando por concluir que, “para a base de cálculo da Derrama Municipal concorrem todos os rendimentos quer os auferidos em território português quer os obtidos fora dele, entendendo, com o devido respeito, ter o Tribunal olvidado dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam as mesmas normas (…). Por um lado, quanto às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o lucro tributável obedece ao princípio da universalidade (…), isto é, releva no seu cômputo todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua providência.”
bb) A Requerente em 30 de Setembro de 2024 apresentou pedido de pronúncia arbitral (cfr. Registo no SGP do CAAD).
III – B) Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.
III – C) Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto fixada por este Tribunal Arbitral Colectivo assenta nas posições assumidas pelas Partes e na prova documental apresentada e produzida nos autos, nos documentos juntos aos autos e não impugnados por nenhuma das Partes e nos factos admitidos por acordo das Partes, sendo de observar que dos articulados apresentados não emerge discordância das Partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se a divergência à matéria de direito.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente e considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito [cf. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cf. artigos 13.º do CPPT, artigo 99.º da LGT, 90.º do CPTA e artigos 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC).
IV- DO DIREITO
IV-A) A excepção de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria
A AT suscita a questão da incompetência do Tribunal Arbitral por, em suma, considerar que, relativamente aos anos de 2019 e 2020, os actos de autoliquidação em causa não foram precedidos de reclamação graciosa, tendo sido objecto apenas de pedidos de revisão oficiosa.
Considera, assim, que não se encontra verificado o requisito previsto na alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que exige o prévio recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, sem que aí se preveja o mecanismo da revisão oficiosa estabelecido no artigo 78.º da Lei Geral Tributária.
Contudo, a jurisprudência dos tribunais superiores e a jurisprudência arbitral tem sido uniforme no sentido de admitir a competência dos tribunais arbitrais para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa.
A este propósito este Tribunal adere ao acórdão arbitral proferido no processo n.º 560/2023-T, em 15 de Abril de 2024 que refere o seguinte:
“O recurso à via administrativa é exigido como condição de impugnabilidade contenciosa dos atos de retenção na fonte e de autoliquidação nos termos do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e da remissão por esta operada para o artigo 131.º do CPPT, que dispõe que a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.”
A alegação da AT é improcedente, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, tendo sido apresentado previamente à propositura da ação arbitral, entendimento reiterado sucessivamente pela doutrina e jurisprudência portuguesas.
É verdade que os artigos 131.º e 132.º do CPPT, para os quais a Portaria n.º 112-A/2011 remete, fazem referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação e as retenções na fonte (em que os contribuintes atuam em substituição e no interesse da Autoridade Tributária) sejam objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte ou nas retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.
Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência portuguesas (acórdão do STA de 12.07.2006, Processo nº 042/06) veem no pedido de revisão do ato tributário um meio impugnatório administrativo com um prazo mais alargado que os restantes, um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária.
Como referido por Carla Castelo Trindade (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado” Coimbra, 2016, Almedina, páginas 96 e 97 “(…) as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessidade de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária, mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.
E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.”
Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid(a)s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.
Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretadas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011, aludindo-se neste sentido às decisões proferida nos processos arbitrais n.º 245/2013-T e 678/2021T.
De igual modo, o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação, entre outros, no acórdão de 26.05.2022, no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB, cujo excerto se transcreve de seguida:
“O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa (cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)(…)”
De referir ainda que o problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da impugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.). Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer (vide decisão do processo arbitral n.º 397/2019-T, de 12 de junho de 2020).
Em qualquer caso, independentemente da qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação e/ou de retenção na fonte que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.
Nestes termos, aderindo à jurisprudência reproduzida, julga-se improcedente a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria invocada pela Autoridade Tributária, quanto ao âmbito da sua vinculação.
IV-B) Do mérito da causa
Atenta as posições das partes assumidas nos argumentos apresentados, constitui questão central dirimida, a qual cumpre, pois, apreciar e decidir:
i) se a derrama municipal, prevista no artigo18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro (RFALEI), incide sobre o lucro tributável das pessoas colectivas em sede de IRC, gerado na área geográfica em que tenham a sua sede em território português ou também sobre o lucro tributável que resulte do exercício da sua actividade económica em Estado terceiro; e
ii) se deverá ser aplicada à Requerente a isenção da derrama municipal de Lisboa prevista no Regulamento dos Benefícios Fiscais no âmbito de impostos municipais do Município de Lisboa (Aviso n.º 20988/2020, publicado na II série do Diário da República, de 28 de Dezembro) em articulação com o n.º 1 do artigo 18.º do RFALEI
IV-B1) Da não sujeição a Derrama Municipal dos rendimentos obtidos fora de Portugal
A questão ora submetida à apreciação deste Tribunal foi já decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo, num caso idêntico ao destes autos, no acórdão de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT, em que refere, nomeadamente, o seguinte:
“... o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede ...
Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente ... certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e devem respeitar "os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material" (Artigo 5º da Lei Geral Tributária (LGT), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo...
Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a "massa salarial", ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).
Obviamente, não é incorreto afirmar ... que, na LFL, "nada se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas ..., a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do artº 4º, do CIRC”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável, (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, "relativamente ligeira"”.
Também a jurisprudência do CAAD tem seguido a interpretação adoptada pelo STA, conforme demonstrado na análise e resolução da questão ora apresentada, que já foi objecto de diversas decisões anteriores no âmbito do CAAD – nomeadamente, nos processos n.ºs 552/2021-T, 720/2021-T, 234/2022-T, 211/2023-T, 958/2023-T, 947/2024-T e 1111/2024-T – cujos fundamentos se subscrevem integralmente.
A este propósito convoca-se a decisão arbitral emitida no processo n.º 211/2023-T ao referir:
“A presente análise exige ainda o respetivo enquadramento constitucional, no quadro da autonomia financeira dos municípios (e das freguesias), enquanto vetor central da autonomia local (artigo 238.º CRP) estabelecendo-se que, “(…) As autarquias locais têm património e finanças próprios”, sendo que “(…) As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços», podendo «(…) dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.»
Desta forma, “o que legitima a atribuição de poderes tributários às autarquias locais é, fundamentalmente, o seu nível de estruturação política e administrativa, pois, tal como sucede com as regiões autónomas, elas têm como base uma representação directa dos cidadãos eleitores.” 5 Pelo que, “Só assim se pode entender que a Lei das Finanças Locais possa atribuir às Assembleias Municipais algum espaço de decisão, alguma autonomia no sentido próprio de auto-governo, em matéria tributária quanto à criação de taxas e no lançamento de derramas.”
Neste contexto, «(…), as derramas constituem uma manifestação tradicional do poder tributário dos órgãos do Poder Local, cuja origem se descobre nas antigas fintas que os concelhos podiam lançar para ocorrer aos encargos que excedessem as suas rendas (Ordenações, Livro I, Tít. 66, § 40). Este poder tributário permaneceu, com algumas oscilações, nos vários Códigos Administrativos que se sucederam, entre nós, desde o Código de 1836 ao Código de 1936-1940 (cfr. o artigo 781.º deste último Código, quanto à faculdade de lançamento de derramas pelas freguesias) e chegou até aos diplomas sobre finanças locais aprovados já no domínio da Constituição de 1976 (…)».
Sendo assim certo que «a derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. E que, “(…) a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (…)»8, os poderes tributários locais são, por natureza, limitados, não podendo ser exercidos para além do âmbito de interesses locais da própria representação e legitimação democrático-representativa subjacente.
Importa ainda destacar do mencionado acórdão do STA de 13-01-2021:
“Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”.
Seguindo esta linha jurisprudencial, que aqui se perfilha, conclui-se que assiste razão à Requerente ao sustentar que não deve incidir derrama municipal sobre o lucro tributável proveniente de rendimentos obtidos fora do território nacional.
Assim, impõe-se reconhecer que as autoliquidações de IRC e de derrama relativas aos exercícios de 2019, 2020, 2021 e 2022 padecem de ilegalidades que justificam a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT.
A decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e das reclamações graciosas enfermam dos mesmos vícios.
Por conseguinte, este Tribunal considera procedente o pedido de anulação dos actos de autoliquidação de IRC, na componente de parte da derrama municipal suportada, relativos aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022, na medida em que estas autoliquidações enfermam de ilegalidade por incluírem derrama municipal indevidamente suportada sobre parte do lucro tributável respeitante a rendimentos obtidos no estrangeiro
IV-B2) Da isenção da Derrama Municipal de Lisboa
Cumpre apreciar a legalidade da autoliquidação da derrama municipal relativa ao exercício de 2021, à luz do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do Regulamento dos Benefícios Fiscais no Âmbito de Impostos Municipais do Município de Lisboa, aprovado por Aviso n.º 20988/2020, publicado na II Série do Diário da República de 28 de Dezembro de 2020 (“Regulamento”).
Alega a Requerente que fundamentou e provou que, no decurso do ano de 2018, criou mais de 5 postos de trabalho (em regime de contratos de trabalho sem termo), que se mantiveram durante um período de 3 anos, conforme expressamente previsto no Ofício-Circulado n.º 20237/2022, de 27-01-2022, pelo que, uma vez verificados os requisitos para a aplicação da isenção da derrama municipal de Lisboa, deverá ser reembolsada a Requerente do montante de € 200.000 (cujo montante corresponde ao limite máximo concedido ao abrigo do regime de auxílios de minimis, do qual a Requerente ainda não beneficiou), referente à derrama municipal de Lisboa incorrectamente autoliquidada, no período de tributação de 2021.
Sustenta, nesse sentido, que o benefício fiscal está condicionado ao compromisso de criação ou manutenção de, pelo menos, 5 postos de trabalho durante um período de 3 anos, sendo que tal compromisso deve ser aferido ex ante, com base na criação efectiva e manutenção desses postos de trabalho durante os três anos anteriores ao ano a que respeita o benefício.
Entende que a interpretação restritiva proposta pela AT, segundo a qual apenas os postos de trabalho criados após a entrada em vigor do Regulamento — i.e., após 29 de Dezembro de 2020 — seriam considerados, tornaria impraticável a fruição do benefício fiscal, designadamente no ano de 2021, porquanto:
i) ou os sujeitos passivos teriam de assumir, numa lógica meramente especulativa, que os postos de trabalho criados se manteriam por três anos, declarando desde logo o direito à isenção sem qualquer segurança quanto ao preenchimento do requisito temporal;
ii) ou, alternativamente, apenas poderiam invocar a isenção após o decurso do referido prazo de três anos, momento em que já se encontrariam, na maioria dos casos, fora do prazo legal para apresentação de reclamação graciosa relativamente à autoliquidação do imposto.
Por sua vez, a AT sustenta que, sendo o Regulamento apenas aplicável a partir de 29 de Dezembro de 2020, não podem ser considerados os postos de trabalho criados anteriormente a essa data, nomeadamente no ano de 2018.
Consequentemente, entende que não se verificam os requisitos para a aplicação da isenção da derrama municipal no exercício de 2021, na medida em que os postos de trabalho mantidos nesse ano não teriam sido criados ao abrigo do regime em vigor.
Cabe assim a este Tribunal determinar se os postos de trabalho criados pela Requerente no ano de 2018 — e mantidos ininterruptamente até ao final de 2021 — podem ser considerados para efeitos da isenção prevista no referido Regulamento, ou se, como defende a Autoridade Requerida, apenas os postos de trabalho criados após a entrada em vigor do regulamento (29 de Dezembro de 2020) são relevantes.
Ora o artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do Regulamento dos Benefícios Fiscais no Âmbito de Impostos Municipais do Município de Lisboa prevê a isenção da derrama para “Para as empresas que tenham criado ou criem e mantenham durante o período de 3 (três) anos, no mínimo, 5 (cinco) novos postos de trabalho.”
A norma utiliza uma formulação que abrange expressamente situações anteriores e posteriores à entrada em vigor do Regulamento, ao referir “tenham criado ou criem”, o que indicia uma intenção clara de incluir situações pré-existentes à publicação do Regulamento, desde que os requisitos de manutenção estejam verificados no exercício a que respeita a isenção.
No caso concreto, resulta da matéria de facto que a Requerente criou no decurso do ano de 2018, 18 novos postos de trabalho, dos quais 15 se mantiveram (pelo menos) até ao período de tributação de 2021.
Verifica-se, assim, o cumprimento da condição material de manutenção de, pelo menos, 5 postos de trabalho durante 3 anos, em momento coincidente com o exercício fiscal em que se pretende aplicar a isenção.
A interpretação restritiva defendida pela Autoridade Requerida — no sentido de que apenas seriam relevantes os postos de trabalho criados após 29 de Dezembro de 2020 — não colhe provimento ao não encontrar respaldo na letra da norma.
Com efeito, se apenas fossem elegíveis os postos de trabalho criados após a entrada em vigor do regulamento, a isenção não poderia ser aplicada ao exercício de 2021, pois os postos de trabalho criados nesse ano apenas completariam os três anos legalmente exigidos em 2024.
A norma em análise, sendo concessiva de um benefício fiscal, deve ser aplicada nos termos estritos que dela resultam — mas não em termos mais restritivos do que os por ela definidos.
O entendimento propugnado pela Requerente, ao considerar relevante a criação dos postos de trabalho em 2018, desde que mantidos até 2021, é o único que assegura uma aplicação conforme à letra da norma, ao seu espírito e aos princípios fundamentais do sistema fiscal.
Ademais, a posição da Requerente é ainda corroborada pelo Ofício-Circulado n.º 20237/2022, de 27/01/2022, que acolhe a interpretação de que os requisitos de criação e manutenção de postos de trabalho devem ser aferidos no momento em que perfazem 3 anos de duração, o que, no presente caso, ocorre precisamente no exercício de 2021.
Nestes termos, reconhece-se que a Requerente preenche os requisitos materiais para beneficiar da isenção da derrama municipal prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do referido Regulamento, no exercício de 2021.
Pelo exposto, considera-se procedente o pedido de anulação do acto de autoliquidação da derrama municipal de Lisboa relativa ao período de tributação de 2021, na parte em que inclui o montante de € 200.000.
IV.B3) Juros indemnizatórios
A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, o direito a juros indemnizatórios é reconhecido sempre que, em sede de reclamação graciosa ou impugnação judicial, se determine que ocorreu erro imputável aos serviços da Administração Tributária.
No caso em apreço, a Requerente apresentou, em 22 de Maio de 2024, pedido de revisão oficiosa dos actos de autoliquidação de IRC relativos aos períodos de tributação de 2019 e 2020, bem como pedido de reclamação graciosa relativamente aos actos de autoliquidação de IRC dos períodos de 2021 e 2022.
A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi notificada à Requerente em 8 de Julho de 2024, enquanto a reclamação graciosa foi objecto de indeferimento tácito.
Conforme entendimento reiterado do Supremo Tribunal Administrativo – v.g., nos acórdãos de 12-07-2006 (proc. n.º 0402/06), de 14-11-2007 (proc. n.º 0565/07), de 30-09-2009 (proc. n.º 0520/09) e de 12-09-2012 (proc. n.º 0476/12) – o pedido de revisão oficiosa apresentado dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT deve ser equiparado, para efeitos do disposto no artigo 43.º da LGT, à reclamação graciosa.
Sendo assim, a decisão que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa deveria ter acolhido a pretensão da Requerente, pelo que enferma de erro imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira.
A omissão da reposição da legalidade, em momento em que tal se impunha, consubstancia um comportamento passivo da Administração que, por via de interpretação declarativa, deve ser enquadrado no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Trata-se de uma situação em que existe um nexo de causalidade adequado entre o erro dos serviços e a manutenção de um pagamento indevido, sendo equiparável, para este efeito, a uma acção.
Este entendimento tem sido reiteradamente perfilhado pelo Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente nos acórdãos de 28-10-2009 (proc. n.º 601/09), de 18-11-2020 (proc. n.º 2342/12.3BELRS), de 28-04-2021 (proc. n.º 16/10.9BELRS – 0884/17), de 09-12-2021 (proc. n.º 1098/16.5BELRS), do Pleno, de 29-06-2022 (proc. n.º 93/21.7BALSB) e de 13-07-2022 (proc. n.º 1693/09.9BELRS).
Deste modo, relativamente aos períodos de 2019 e 2020, os juros indemnizatórios são devidos desde 8 de Julho de 2024, data da notificação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa. No que respeita aos períodos de 2021 e 2022, os juros são devidos desde o termo do prazo legal de decisão da reclamação graciosa, previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT, ou seja, 22 de Setembro.
Os juros indemnizatórios serão devidos sobre os montantes a reembolsar, a apurar em sede de execução da presente decisão arbitral, e calculados nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, aplicando-se a taxa legal supletiva, desde os momentos acima indicados até à data do processamento do respectivo pagamento.
V- DECISÃO
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral Colectivo julga totalmente procedente o pedido de pronuncia arbitral, e, em consequência:
A. declara a ilegalidade das autoliquidações sub judice, nas partes em que nelas não foram desconsiderados os rendimentos provenientes de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal relativos aos períodos de tributação de 2019, 2020, 2021 e 2022;
B. reconhece o direito ao reembolso das quantias indevidamente pagas acrescido de juros indemnizatórios;
C. corrige a autoliquidação de derrama municipal de Lisboa, por referência ao período de tributação de 2021;
D. determina, igualmente, a restituição em favor da Requerente do montante de € 200.000,00, com referência ao período de 2021 (cujo montante corresponde ao limite máximo concedido ao abrigo do regime de auxílios de minimis), acrescida dos respectivos juros indemnizatórios e
E. condena a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
VI- VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor da acção em € 604.756,02 (seiscentos e quatro mil setecentos e cinquenta e seis euros e dois cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII- CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €9.180,00, cujo pagamento fica a cargo da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Maio de 2024
O Tribunal Arbitral Colectivo,
José Poças Falcão
(Árbitro Presidente)
Sofia Quental
(Árbitro Vogal e Relator)
Francisco Melo
(Árbitro Vogal)