SUMÁRIO:
I – A norma do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT é uma norma definidora da competência dos Tribunais arbitrais em matéria de cumulação de pedidos e difere – de forma que não pode deixar de se considerar deliberada – da norma sobre cumulação de pedidos do CPPT.
II – As normas do artigo 5.º do RJAT são normas definidoras da competência dos Tribunais arbitrais singulares e colectivos em função do valor.
III – Qualquer desrespeito de tais normas interfere com o princípio do juiz natural tal como definido pelo legislador para a jurisdição arbitral, pelo que não pode ser legitimado por razões de pragmatismo ou de avaliação relativa de garantias (tais que não se admitiriam tribunais arbitrais singulares a decidir causas de valor superior à da sua competência, mas se admitiriam tribunais arbitrais colectivos a decidir causas de valor inferior ao da sua competência).
DECISÃO ARBITRAL
RELATÓRIO
1. No dia 23 de Setembro de 2024 A..., LDA, sociedade comercial com sede na Rua da ..., ...-... ..., contribuinte n.º ..., coletada no Serviço de Finanças de ... ... (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
2. Pretendia que fossem “anulados os atos de liquidação de IRC, IVA, retenção na fonte de IRS e respetivas liquidações de juros compensatórios sequentes às correções determinadas no RIT, por erro nos pressupostos de facto e de direito da tributação”.
3. Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 3 de Dezembro de 2024.
4. Seguindo-se os normais trâmites, em 20 de Fevereiro a AT apresentou resposta e protestou juntar o processo administrativo.
5. Em 11 de Março, foi proferido despacho cujo teor substantivo se reproduz:
“Tendo em conta a norma delimitadora da competência dos Tribunais Arbitrais que consta do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, convida-se a Requerente a, no prazo de 10 dias, reequacionar o seu pedido de pronúncia arbitral, optando, se for caso disso, pelo(s) acto(s) tributário(s) que pretende ver sindicado(s) por este Tribunal Colectivo (cuja composição também é delimitada pelo disposto no artigo 5.º do RJAT), indicando as testemunhas e os factos sobre os quais, para esse efeito, se lhe afigure relevante que elas deponham.”
6. A 25 de Março, em resposta ao antecedente despacho, veio a Requerente comunicar ao Tribunal, entre o mais, o seguinte:
“pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral quanto à ilegalidade por vício de violação de lei - erro nos pressupostos de facto e de direito da tributação - dos atos de primeiro grau todos resultantes do procedimento de inspeção pasmados no RIT indicado, a saber:
i) Ilegalidade da liquidação de IRC e de juros compensatórios do ano de 2019, no montante de 29.583,16€;
ii) Ilegalidade da liquidação de retenções na fonte de IRS e de juros compensatórios do ano de 2019, no montante de 23.874,96€;
iii) Ilegalidade das liquidações mensais de IVA, inclusive as que dão lugar ao pagamento de imposto, e de juros compensatórios do ano de 2019, no montante de 28.611,72€;”.
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
7. O tribunal arbitral foi regularmente constituído face ao pedido da Requerente.
8. Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
9. O pedido de pronúncia arbitral foi tempestivo.
10. Em todo o caso, o pedido de pronúncia arbitral exorbita do âmbito das atribuições do presente Tribunal, como este sinalizou no despacho referido em 5., invocando as normas do n.º 1 do artigo 3.º e do artigo 5.º do RJAT.
11. Dispõe a primeira o seguinte:
“1 - A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”.
12. Ora, como se referiu em 2. e 6., a Requerente pretendia a apreciação de uma dose tripla de impostos: “atos de liquidação de IRC, IVA, retenção na fonte de IRS”, que não dependem “essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.” [1].
13. A este respeito escreveu-se o seguinte na decisão do processo n.º 708/2022-T:
“k) Resulta do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT que “[a] cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito” (destaques do Tribunal), norma que não sofreu qualquer alteração desde a aprovação deste diploma.
l) No caso dos autos, a Requerente fundava o pedido de anulação das liquidações de IRC e IVA (i) em vícios do procedimento inspetivo (e caso esse fosse o único fundamento a exceção de ilegal cumulação seria claramente improcedente em face da letra do citado artigo 3.º, n.º 1 do RJAT) mas também (ii) em erros sobre os pressupostos de facto e de direito que imputava às mencionas liquidações, que não eram coincidentes entre si; aliás, como resulta do relatório de inspeção inserido no processo administrativo instrutor, tirando o caso de uma diminuta correção em sede de IVA, os factos que deram origem às correções efetuadas pela AT em sede de IRC e de IVA são totalmente díspares, não se verificando sequer aquela circunstância corrente na prática de um determinado custo não ser fiscalmente aceite para efeitos de IRC, numa parte, e de IVA, noutra.
m) E, portanto, afigura-se a este Tribunal que a procedência daqueles pedidos de anulação de liquidações de IRC e de IVA não dependia da apreciação das mesmas circunstâncias de facto (como sucederia caso a questão fosse a de dedutibilidade dos mesmos gastos para efeitos de IRC e de IVA, que desse origem a liquidações adicionais de ambos os impostos), pelo que, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, a cumulação era realmente inadmissível.
n) Não olvida este Tribunal que alguma doutrina e jurisprudência arbitral defendem que, sobretudo desde a alteração ao artigo 104.º do CPPT resultante da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro (do qual passou a constar que na impugnação judicial é admitida a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos desde que, cumulativamente “a) aos pedidos corresponda a mesma forma processual; e b) A sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto OU O mesmo relatório de inspeção tributária, OU sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo”, deve ser feita uma interpretação atualista daquele artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.
o) Com efeito, as referidas alterações ao artigo 104.º do CPPT ocorridas em 2019 tornam, na letra da lei, a possibilidade de cumulação de pedidos mais ampla no processo de impugnação judicial face ao arbitral, o que poderia induzir o intérprete no sentido da mencionada interpretação atualista.
p) Sucede, contudo, que a mesma Lei .º 118/2019, de 17 de setembro, também alterou normas do RJAT (concretamente os seus artigos 16.º, 17.º e 27.º), mantendo intocado o artigo 3.º.
q) E, mais tarde, tanto a Lei 119/2019, de 18 de setembro, como a Lei 7/2021,de 26 de fevereiro, alteraram quer o RJAT quer o CPPT, deixando o artigo 3.º do RJAT nos mesmos exatos termos.
r) Ou seja, o legislador teve múltiplas oportunidades para uniformizar os requisitos de cumulação de pedidos patentes no RJAT e no CPPT, sem que o tenha feito.
s) Razão pela qual, fazendo boa aplicação dos cânones constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 9.º do Código Civil, de acordo com os quais “2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, se afigura a este Tribunal que, em sede arbitral, ainda que as liquidações adicionais impugnadas resultem do mesmo relatório de inspeção, exige-se um certo grau de identidade fáctica/das circunstâncias de facto – o que é dizer, da causa de pedir.*
t) Tal identidade fáctica não se verifica no caso dos autos, pelo que se decidiu neste Tribunal, em maioria, julgar procedente a invocada exceção de ilegal cumulação de pedidos e, em consequência, solicitar à Requerente que selecionasse um dos pedidos (i.e., de anulação da liquidação de IRC ou das liquidações de IVA) para ser julgado na presente ação.”.
14. Apesar de isso mesmo ter sido solicitado à Requerente nos presentes autos – por decisão unânime do Tribunal, acrescente-se, muito embora a dificuldade fosse inultrapassável (e daí os seus termos) –, veio esta a reiterar o seu propósito de fazer avaliar, em conjunto, a totalidade dos seus pedidos: sobre, repete-se, “atos de liquidação de IRC, IVA, retenção na fonte de IRS”.
15. Na verdade, com uma razão plausível: é que qualquer das liquidações impugnadas ficava, por si só (e até em conjunto de duas, qualquer que ele fosse – IRC+IVA; IRC+IRS; ou IVA+IRS), dentro do limite que o artigo 5.º do RJAT (a outra norma para a qual o despacho transcrito em 5. chamou a atenção da Requerente) fixa para o recurso ao Tribunal singular[2].
16. Quer dizer que a única forma de a Requerente transferir para um Tribunal arbitral colectivo a necessária competência dos Tribunais arbitrais singulares do CAAD para apreciar as liquidações que queria impugnar era justamente através da soma das três[3].
17. Como tal desaforamento dos Tribunais arbitrais singulares é vedado pela norma do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, e como a competência do presente Tribunal não abrange nenhuma das liquidações (nem sequer qualquer soma de duas), tem este de se considerar incompetente em razão do valor e, consequentemente, absolver a AT da instância.
III. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Colectivo delibera:
a) absolver a Requerida da instância quanto aos pedidos de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC, IVA e retenção na fonte de IRS impugnadas, por ter sido julgada procedente a excepção de ilegal cumulação de pedidos e nenhum desses pedidos permitir, por si só, a intervenção do Tribunal arbitral colectivo;
b) condenar a Requerente nas custas do processo.
IV. VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 82.069,84 (quinhentos e oitenta e dois mil e sessenta e nove euros e oitenta e quatro cêntimos).
V. CUSTAS
Custas a cargo da Requerente, no montante de € 2.754,00 (dois mil, setecentos e cinquenta e quatro euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto nos seus artigos 3.º, n.º 2, e 4.º, bem como nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de Maio de 2025
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execepto em transcrições que o sigam.
O Árbitro Presidente e relator
Victor Calvete
O Árbitro Adjunto
António Pragal Colaço
A Árbitro Adjunta
Maria da Graça Martins
[1] Ainda que se pudesse admitir que as facturas da B... seriam potencialmente relevantes tanto para IRC como para IVA, tal só permitiria preencher o requisito “das mesmas circunstâncias de facto”, não o “da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”. Em todo o caso, como se verá infra, 15.-17., sempre isso seria irrelevante.
[2] Nos termos dos números 2 e 3 do artigo 5.º do RJAT, os processos arbitrais cabem necessariamente a Tribunais compostos por árbitros singulares se “O valor do pedido de pronúncia não ultrapass(ar) duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo.” e a Tribunais “com intervenção do colectivo de três árbitros” se o ultrapassar.
[3]
Como o n.º 4 do artigo 6.º da Lei dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) estabelece que “A alçada dos tribunais centrais administrativos corresponde à que se encontra estabelecida para os tribunais da Relação.”, e como, segundo o n.º 1 do artigo 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), “Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00”, só acima de 60.000 euros é que o presente Tribunal colectivo seria competente (como resultaria da cumulação dos três pedidos formulados: 29.583,16€ + 23.874,96€ + 28.611,72€ = 82.069,84€… se eles fossem cumuláveis).