Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 512/2014-T
Data da decisão: 2015-01-30  Selo  
Valor do pedido: € 10.297,40
Tema: IS – verba 28.1 TGIS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

CAAD – Arbitragem Tributária

PROCESSO ARBITRAL N.º 512/2014-T

Tema: Imposto de Selo. Verba 28.1 da TGIS.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

a)                 Objeto do litígio:

1.             A Herança Indivisa aberta por óbito de A, sujeito passivo com o NIF …, representada por suas filhas e universais herdeiras, B e C, ambas naturais e residentes no Brasil, apresentou no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), para declaração da ilegalidade e inconstitucionalidade, bem como a consequente anulação das liquidações de Imposto de Selo – verba 28.1 da TGIS, com o valor global de € 10 927,40, relativas ao ano de 2013 e a dezasseis divisões de utilização independente e destinadas a habitação, do prédio urbano sito na Avenida …, n.ºs … e …, em Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de … (correspondente ao artigo … da extinta freguesia de …), da área do Serviço de Finanças de Lisboa 4;

2.             Cumulativamente, é requerida a apreciação do direito do sujeito passivo a juros indemnizatórios sobre os valores efetivamente pagos, por erro dos serviços;

3.             O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 23 de julho de 2014, tendo sido aceite em 25 de julho de 2014 e automaticamente notificado à AT, em 28 de julho de 2014;

4.             A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, foi a signatária designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral, encargo que aceitou nos termos legalmente previstos.

 

b) Matéria de facto:

Em síntese, a Requerente sustenta a sua pretensão nos seguintes factos:

a)             O prédio urbano sito na Avenida …, n.ºs … e …, em Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de …, integra a Herança Indivisa aberta por óbito de A, sujeito passivo com o NIF …;

b)             O referido prédio é constituído por vinte e um andares ou divisões de utilização independente, dezasseis das quais destinadas a habitação, não se encontrando constituído em propriedade horizontal;

c)             O valor patrimonial tributário (VPT) das diversas divisões de utilização independente foi apurado separadamente, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (adiante, CIMI), perfazendo o valor global de € 1 083 139,68, sendo o somatório dos VPT dos andares com afetação habitacional da quantia de € 1 029 739,53;

d)            As liquidações de Imposto de Selo a que se referem os autos foram emitidas em 17 de março de 2014, para pagamento em três prestações, durante os meses de abril, julho e novembro do mesmo ano, respetivamente, contendo os seguintes elementos de identificação, conforme os documentos juntos à petição inicial:

 

Descrição do prédio

Verba da TGIS

Valor Patrimonial (€)

Quota-Parte

Valor isento

Taxa

(%)

Coleta (€)

...SC-1

28.1

53 524,63

1/1

0,00

1,00

535,25

...5D

28.1

75 924,25

1/1

0,00

1,00

759,24

...1E

28.1

63 692,13

1/1

0,00

1,00

636,92

...CV D

28.1

53 524,63

1/1

0,00

1,00

535,25

...RC D

28.1

62 312,25

1/1

0,00

1,00

623,12

...2 E

28.1

62 997,00

1/1

0,00

1,00

629,97

...3D

28.1

75 924,25

1/1

0,00

1,00

759,24

...5E

28.1

62 997,00

1/1

0,00

1,00

629,97

...RC E

28.1

53 524,63

1/1

0,00

1,00

535,25

...CV E

28.1

57 342,63

1/1

0,00

1,00

573,43

...4D

28.1

75 924,25

1/1

0,00

1,00

759,24

...SC-2

28.1

53 524,63

1/1

0,00

1,00

535,25

...2D

28.1

75 924,25

1/1

0,00

1,00

759,24

...1D

28.1

76 609,00

1/1

0,00

1,00

766,09

...4E

28.1

62 997,00

1/1

0,00

1,00

629,97

...3E

28.1

62 997,00

1/1

0,00

1,00

629,97

 

e)             A primeira prestação de cada uma das liquidações identificadas foi paga em 24 de abril de 2014 e, a segunda prestação, em 15 de julho de 2014; quanto à terceira prestação, com prazo de pagamento até 30 de novembro de 2014, viriam a ser juntas aos autos, por requerimento de 18 de dezembro de 2014, cópias das notas de cobrança respetivas, sem indicação de data de pagamento.

 

Factos Provados: A convicção do Tribunal, quanto aos factos enunciados supra, que se consideram provados, deriva da análise crítica do requerimento arbitral e dos documentos a ele anexos (certidão de escritura de habilitação, certidão do registo predial, cadernetas prediais e notas de cobrança), que aqui se dão por reproduzidos, bem como da sua aceitação expressa pela AT.

 

Factos não provados: Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

II – SANEAMENTO:

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído no CAAD, no dia 21 de outubro de 2014, e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

Por despacho arbitral da mesma data, foi o dirigente máximo dos serviços da AT notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT. Não tendo sido prestada resposta dentro do prazo legalmente previsto, admitiu-se o requerimento de 4 de dezembro de 2014, em que a AT requereu a dispensa da apresentação do processo administrativo, aceitou por boa a prova documental oferecida pela Requerente, requereu dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT e da prova testemunhal, assim como a sua notificação para produção de alegações.

Tendo em vista assegurar o contraditório, foram as partes notificadas para apresentação de alegações escritas. A Requerente prescindiu de alegar, tendo as alegações da Requerida dado entrada em 26 de dezembro de 2014, e regularmente notificadas à contraparte.

Não foram invocadas exceções e o pedido é tempestivo.

 

III – FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

As questões trazidas aos autos, quer por banda da Requerente, quer pela Requerida AT, são as de saber se, num prédio urbano não submetido ao regime da propriedade horizontal, a sujeição a imposto de selo, nos termos da verba n.º 28.1, da TGIS, é determinada pelo Valor Patrimonial Tributário (VPT) que corresponde a cada uma das partes do prédio, economicamente independentes e com afetação habitacional, como defende a Requerente ou se, pelo contrário, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia ao somatório de todos os VPT dos andares ou divisões de utilização independente e com afetação habitacional que o compõem, como sustenta a AT e se qualquer das interpretações em confronto é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal.

O entendimento da Requerente, citando abundante jurisprudência arbitral é, em síntese, o seguinte:

·         “Dispõe o n.º 2 do art.º 67.º do CIS, que «às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral, aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI»(artigo 25.º, da p. i.);

·         “(…) seguindo a remissão ordenada pelo legislador, impõe-se ter em consideração o que dispõe o art.º 12.º, n.º 3 do CIMI que estatui que: «cada andar ou parte suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário»(artigo 26.º, da p. i.);

·         “(…) cada andar ou divisão suscetível de utilização independente tem o seu próprio VPT, nos termos do CIM”, pelo que, “Em sede de IMI (regime pelo qual se rege o Imposto de Selo (…) cada andar/divisão suscetível de utilização independente é individualizado, recebendo a sua própria liquidação anual de IMI (…)” (artigos 27.º e 28.º, da p. i.);

·         “Ao perfilhar a tese de que o VPT dos imóveis com afetação habitacional deverá ser calculado somando o VPT de cada um dos andares independentes, para efeitos de aplicação da verba 28 da TGIS, a AT contraria o regime legal instituído em matéria de cálculo do VPT” (artigo 29.º, da p. i.);

·         “Revelador de que o CIMI quis individualizar os andares suscetíveis de utilização independente é, para além do já mencionado, o art.º 15.º, alínea o) do DL 287/2003, quando se refere a «prédio ou parte de prédio urbano»(artigo 30.º, da p. i.);

·         “A sujeição a imposto de selo dos prédios com afetação habitacional resulta do aditamento da verba 28 da TGIS, efetuada pelo art.º 4.º da Lei 55-A/2012, de 29 de outubro que tipificou os seguintes factos tributários: «28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000,00 – sobre o valor patrimonial tributário para efeitos de IMI:

28.1 – Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI – 1%;

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%»(negrito no original – artigo 34, da p. i.);

·         “É importante constatar que, ao afirmar que o VPT a considerar em sede desta verba de Imposto do Selo é o VPT constante da matriz, nos termos do CIMI, o legislador pretendeu expressamente estabelecer a unicidade deste valor para ambos estes impostos” (artigo 35.º, da p. i.);

·         “(…) tem sido entendimento da AT (…), que deverá ser tido em conta o disposto no art.º 7.º, n.º 2, alínea b) do CIMI, o qual estabelece que «b) Caso as diferentes partes sejam economicamente independentes, cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes» (…) “no caso dos presentes autos, nem faz qualquer sentido o recurso a  este mencionado preceito legal porquanto todas as divisões tidas em consideração para efeito de cálculo do VPT do prédio têm apenas afetação habitacional (artigo 38.º, da p. i.);

·         “Ora, se o art.º 7.º, n.º 2 estabelece que «o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos com partes enquadráveis em mais do que uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior …» é que é determinável somando as várias unidades, e se no caso todas as divisões consideradas cabem na mesma classificação, habitacional, esta norma não tem aplicação ao caso sub judice (artigo 39.º, da p. i. – negrito no original);

·         “A tributação do imóvel identificado em 1, em sede de Imposto do Selo, nomeadamente por aplicação da verba 28 da TGIS, constitui uma flagrante violação do princípio da igualdade, conforme consagrado no art.º 13.º, n.º 2 e, mais especificamente, no que aos impostos diz respeito, no art.º 104.º, n.º 3, ambos da CRP” (artigo 44, da p. i.);

·         “(…) note-se que se o mesmo prédio, exatamente como se encontra de momento a nível físico, estivesse juridicamente constituído em propriedade horizontal, e ainda que os valores patrimoniais de cada uma das frações autónomas fosse igual ao atual, já não poderia ser tributado em sede de Imposto do Selo por via desta verba, ou de qualquer outra” (artigo 45, da p. i.);

·         “Objetivamente, a interpretação propugnada pela AT (…) contribui para a desigualdade entre os cidadãos, sendo, por tal, materialmente inconstitucional (…)”, “No sentido da inconstitucionalidade de semelhante interpretação, veja-se a douta decisão arbitral proferida por este mesmo CAAD no processo n.º 132/2013-T, a cuja douta fundamentação aderimos por atual e pertinente” (artigos 48 e 49, da p. i.);

·         “Importa considerar a ratio do legislador ao criar a verba 28 na TGIS, que tem subjacente (…) a ideia de que a uma capacidade contributiva muito acima da média deverá corresponder um esforço contributivo também superior (artigo 50, da p. i.);

·         “Como bem alude a douta decisão arbitral proferida por este mesmo CAAD no âmbito do processo 183/2013-T (…) «A intenção do legislador parece, pois, indiciar que o escopo da norma de incidência é tributar realidades independentes, individualizadas e não resultantes de uma agregação ou soma, ainda que jurídica»” (artigo 54, da p. i.).

Por seu turno, a posição da AT, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, é, sinteticamente, a que se segue:

·         “ A verba 28 da Tabela Geral dispõe recair imposto de selo sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do C. I. M. I., seja igual ou superior a € 1 000 000,00” (artigo 22, das alegações);

·         “Segundo a verba 28.1, em caso de prédios urbanos com afetação habitacional, o imposto recai sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de IMI (artigo 23, das alegações);

·         “O valor patrimonial relevante para efeitos da incidência do imposto é, assim, o valor patrimonial total do prédio urbano e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o componham, ainda quando suscetíveis de utilização independente” (artigo 28, das alegações);

·         “O princípio de que a cada prédio urbano corresponde um só artigo matricial apenas é excecionado (…) relativamente aos prédios mistos (…) e relativamente aos prédios constituídos em propriedade horizontal em que, apesar de, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do C. I. M. I., cada fração autónoma ser havida como constituindo um prédio, a cada edifício em regime de propriedade horizontal corresponde uma só inscrição matricial” (artigo 32, das alegações);

·         “O prédio urbano da herança de A não está em regime de propriedade horizontal, (…), mas em regime de propriedade vertical (…) Dispõe, no entanto (…) de andares ou divisões independentes, avaliadas nos termos do art. 12.º, n.º 3, do C. I. M. I. (…) Tal norma legal não é inédita, tendo correspondência no corpo do art. 232, regra 1.ª, do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (…), que dispunha cada habitação ou parte de prédio ser tomada automaticamente (sic) para efeitos de determinação do rendimento coletável sobre o qual deva incidir a liquidação (…) o rendimento coletável tinha necessariamente de corresponder à soma da renda ou valor locativo de cada uma das componentes do prédio com autonomia económica (artigos 34 a 36, das alegações);

·         “A unidade do prédio urbano em propriedade vertical composto por vários andares ou divisões não é, no entanto, afetada pelo facto de todos ou parte desses andares ou divisões serem suscetíveis de utilização económica independente (…) não sendo (…) as suas partes distintas juridicamente equiparadas às frações autónomas em regime de propriedade horizontal” (artigos 39.º e 40.º, das alegações);

·         “O facto de o IMI ter sido apurado em função do valor patrimonial tributário de cada parte do prédio com utilização económica independente não afeta igualmente a aplicação da verba 28, n.º 1, da Tabela Geral (…) É o que resulta de o facto determinante da aplicação dessa verba da Tabela Geral ser o valor patrimonial total do prédio e não separadamente o de cada uma das suas parcelas (artigos 47 e 48, das alegações); 

·         “Outra interpretação violaria, isso sim, a letra e o espírito da verba 28.1. da Tabela Geral e o princípio da legalidade dos elementos essenciais do imposto previsto no art. 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) (…) Um tipo de incidência de acordo com o qual o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos de que depende a aplicação da verba 28.1. da Tabela Geral é o valor patrimonial de cada andar ou divisão de utilização independente e não o valor patrimonial tributário global do prédio urbano com afetação habitacional não tem seguramente qualquer expressão na lei (artigos 49 e 51, das alegações);

·          “É, assim, inconstitucional, por ofensa do princípio da legalidade tributária, a interpretação da verba 28.1. da Tabela Geral, no sentido de o valor patrimonial de que depende a sua incidência ser apurado globalmente e não andar a andar ou divisão a divisão” (artigo 52, das alegações);

·         “Não se vislumbra como, por outro lado, como a tributação em causa possa ter violado o princípio da igualdade (…) a propriedade horizontal e a propriedade vertical são institutos jurídicos diferenciados (artigos 53 e 54, das alegações);

·         O legislador (..) pode submeter a um enquadramento jurídico tributário distinto, logo, discriminatório, os prédios em regime de propriedade horizontal e vertical, em especial, beneficiando o instituto juridicamente mais evoluído da propriedade horizontal, sem que essa discriminação deva ser considerada necessariamente arbitrária” (artigo 56, das alegações).

Perante as posições em confronto, começar-se-á por notar que a AT tem razão ao referir que um prédio constituído em propriedade horizontal é uma realidade jurídico-tributária distinta de um prédio urbano em “propriedade total” ou “propriedade vertical”.

A tanto obrigam as regras da interpretação, que tem o texto como partida, cabendo-lhes a função negativa de eliminar qualquer sentido que não tenha qualquer apoio na letra da lei[1].

Desde logo, porque o n.º 4 do artigo 2.º do CIMI, estabelece a ficção legal de que cada uma das frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal consubstancia um prédio, enquanto uma parte de utilização independente, de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ser apenas isso – uma parte de um prédio e não um prédio, como, aliás, a AT reconhece nas suas alegações, ao afirmar que “a propriedade horizontal e a propriedade vertical são institutos jurídicos diferenciados”.

Tanto bastaria para concluir que, tendo o legislador fixado qualificações tributárias distintas para realidades juridicamente diferenciadas (prédios e partes de prédios), não será legítimo que o aplicador da norma, em nome das “necessárias adaptações” a que se refere o artigo 23º, n.º 7 do Código do Imposto de Selo (CIS), crie uma nova norma de incidência daquele imposto, determinando a tributação de partes de prédios, por se tratar de matéria submetida ao princípio da legalidade tributária, ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual os elementos essenciais dos impostos – a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes – são estabelecidos por lei da Assembleia da República, salvo autorização legislativa ao Governo (artigo 165.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2, da CRP).

Ora, a verba 28 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei nº 55-A/2012 de 29 de outubro, veio determinar, na sua redação originária, aplicável ao caso em apreço, a incidência objetiva do imposto de selo sobre prédios urbanos com afetação habitacional (e não, como entende a AT, sobre partes de prédios), cujo valor patrimonial tributário, para efeitos de IMI, seja igual ou superior a € 1 000 000,00, ao estabelecer que o imposto de selo incide sobre:

 «28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.»

 

Também aqui o elemento literal da norma há-de ser o ponto de partida para a sua interpretação e, “na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato) de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento[2].

 

Em abono da tese de que o VPT relevante para a incidência do Imposto de Selo da verba 28.1, da TGIS, é o VPT global do prédio não constituído em propriedade horizontal, argumenta a AT que todas e cada uma das suas divisões de utilização independente foram “avaliadas nos termos do art. 12.º, n.º 3, do C. I. M. I”, norma que, segundo a Requerida, corresponde ao “corpo do art. 232, regra 1.ª, do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (…), que dispunha cada habitação ou parte de prédio ser tomada automaticamente (sic) para efeitos de determinação do rendimento coletável sobre o qual deva incidir a liquidação”, caso em que “o rendimento coletável tinha necessariamente de corresponder à soma da renda ou valor locativo de cada uma das componentes do prédio com autonomia económica”.

Porém, a transposição da interpretação dada no âmbito do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (CCPISIA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45 104, de 1 de julho de 1963 e, na sua maior parte, revogado pelo Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de novembro, para o Código do IMI, em que não existe norma idêntica à do artigo 232.º, do Código primeiramente citado, não se afigura viável por diversas ordens de razões, em especial, porque a antiga Contribuição Predial se configurava como um imposto sobre o rendimento, real ou presumido, como decorre do respetivo preâmbulo, em que se afirma que “Quanto aos prédios urbanos, tinha desde logo aplicação o princípio de tributar sempre que possível rendimentos reais, princípio que (…) no caso havia forçosamente que restringir aos prédios arrendados. (…) Quanto aos prédios não arrendados, (…) só havia que manter a tributação com base num rendimento estimado (…)”, enquanto o Imposto Municipal sobre Imóveis é um imposto sobre o património.

De facto, o § 1.º do artigo 232.º, do CCPISIA, dispunha que “Cada habitação ou parte de prédio novo suscetível de arrendamento separado será tomada autonomamente para efeito de determinação do rendimento coletável sobre que haja de incidir a liquidação,” (sublinhado nosso), mas tal autonomia apenas relevava para efeitos de lançamento nos verbetes e respetiva liquidação unitária, e já não para efeitos de inscrição matricial, que era única para cada prédio não constituído em propriedade horizontal, diferentemente do que atualmente determina o artigo 12.º, n.º 3, do CIMI.

O objetivo da autonomia a que fazia alusão o § 1.º do artigo 232.º, do CCPISIA, era, como é ainda o da inscrição matricial autónoma para cada andar ou divisão suscetível de utilização independente, o controlo do rendimento pela mesma gerado, em caso de arrendamento; contudo, esse rendimento é agora tributado em sede de IRS (categoria F).

No que respeita à determinação do valor dos prédios não constituídos em propriedade horizontal, rege o artigo 7.º, n.º 2, do CIMI, mas apenas para os “prédios urbanos com partes enquadráveis em mais de uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior”, caso em que, de acordo com a sua alínea b) “(…) cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes”.

Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, os prédios urbanos dividem-se em a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros.

Da conjugação das normas do n.º 2 do artigo 7.º e n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIMI, decorre que, se um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrar exclusivamente partes ou divisões de afetação habitacional (o que não é o caso dos autos, como defende a Requerente, embora o valor tido em consideração nas liquidações efetuadas pela AT tenha sido o somatório dos VPT das divisões destinadas a habitação), o valor do prédio não equivale à soma das suas partes.

O mesmo que é dizer-se que cada uma das partes é autónoma e que, independentemente do VPT que lhe tenha sido atribuído, fica excluída da incidência do imposto de selo previsto na verba 28, da TGIS.

Aqui chegados, caberá questionar da sujeição a imposto de selo da verba 28, da TGIS, de uma parte ou divisão de utilização independente, com afetação habitacional, de um prédio não constituído em propriedade horizontal, em que se integrem partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em outra das classificações do n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI, por exemplo, divisões destinadas a comércio indústria ou serviços, como é o caso em apreço, em que, dos 21 andares/divisões de utilização independente, apenas 16 se destinam a habitação.

Ora, a resposta há-de ser negativa, não obstante a previsão da alínea b) do n.º 2, do artigo 7.º, do CIMI, segundo a qual o valor do prédio é a soma dos valores das suas partes ou divisões de utilização independente, enquadráveis em mais do que uma das classificações do n.º 1, do artigo 6.º, do mesmo Código.

 

É que aqui, repare-se, não se estão a cotejar duas realidades juridicamente distintas, como são as partes ou divisões de utilização independente de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal com as frações autónomas de prédios submetidos àquele regime, que, para efeitos de IMI, são elas próprias prédios.

Aqui, o que está em confronto são realidades em tudo idênticas, ou seja, partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional, integradas em prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal.

E a resposta à questão há-de ser negativa, pois nada justificaria que o legislador pretendesse tributar partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado por outras partes ou divisões de utilização independente destinadas a outros fins e não tributasse partes ou divisões de utilização independente e afetação habitacional de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, integrado exclusivamente por partes ou divisões de utilização independente, destinadas a habitação. Caso o legislador pretendesse tratar de forma desigual realidades em tudo idênticas, teria, então, de se concluir por uma flagrante violação do princípio da igualdade.

Não se afigurando ser essa a intenção legislativa, não se poderá aceitar que a AT formule uma norma de incidência ex novo, diversa da que foi criada pelo legislador, pretendendo tributar partes de prédios, ainda que económica e funcionalmente independentes e, como tal, separadamente inscritas na matriz, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário (cfr. o n.º 3 do artigo 12.º, do CIMI), pois a lei é clara ao sujeitar a imposto de selo da verba 28.1, da TGIS, os prédios urbanos de afetação habitacional, cujo VPT, para efeitos de IMI, seja superior a € 1 000 000,00.

Diferente seria o caso de uma parte ou divisão de utilização independente e afetação habitacional, inserida em prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, mas com um VPT, para efeitos de IMI, igual ou superior a € 1 000 000,00, atendendo à ratio legis da norma de incidência.

Efetivamente, tal como refere a Requerente nas suas alegações e já serviu de fundamento a outras decisões arbitrais, nomeadamente a proferida nos processo n.º 50/2013-T, “A ratio legis subjacente à regra da verba 28 da TGIS, introduzida pela Lei nº 55-A/2012 de 29 de outubro, em obediência ao disposto no artigo 9º do Código Civil, segundo o qual a interpretação da norma jurídica não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos e dos restantes elementos de interpretação o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

O legislador ao introduzir esta inovação legislativa considerou como elemento determinante da capacidade contributiva os prédios urbanos, com afetação habitacional, de elevado valor, mais rigorosamente, de valor igual ou superior a € 1 000 000,00, sobre os quais passou a incidir uma taxa especial de imposto de selo, pretendendo introduzir um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de luxo com afetação habitacional. O critério foi de aplicação da nova taxa aos prédios urbanos com afetação habitacional, cujo VPT seja igual ou superior a € 1000 000,00.

Tal lógica parece fazer sentido quando aplicada a “habitação”, seja ela “casa”, “fração autónoma” ou “parte de prédio com utilização independente” “unidade autónoma”, porque se supõe uma capacidade contributiva acima da média e, nessa medida, se justifica a necessidade de realização de um esforço contributivo adicional, pouco sentido faria passar a desconsiderar os apuramentos "unidade a unidade" quando só através do somatório dos VPTs das mesmas, porque detidas pelo mesmo indivíduo, é que se superaria o milhão de euros.

Tal conclui-se da análise da discussão da proposta de Lei n.º 96/XII na Assembleia da República, disponível para consulta no Diário da Assembleia da República, I série, nº 9/XII/2, de 11 de outubro de 2012.”.

Temos pois que, para além do elemento gramatical da interpretação da norma de incidência contida na verba 28.1, da TGIS, também o seu elemento racional ou teleológico, a ratio legis ou fim visado pelo legislador ao elaborar aquela norma, aponta no sentido de a tributação incidir sobre prédios urbanos de elevado VPT e não sobre partes de prédios urbanos, ainda que de utilização independente, com VPT de valor inferior ao legalmente determinado.

Em face dos motivos expostos, fica prejudicado o conhecimento das questões relativas à alegada inconstitucionalidade das interpretações dadas pela Requerente e pela Requerida à norma da verba 28.1, da TGIS, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade fiscal, uma vez que esta norma não comporta a interpretação que dela fez, no caso, a AT, ao emitir as liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral, que se não poderão manter na ordem jurídica.

 

Dos juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda que lhe sejam pagos juros indemnizatórios, por erro dos serviços, nos termos do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT).

A cumulação de pedidos relativos ao mesmo ato tributário é implicitamente admitida pelo artigo 3.º do RJAT, em que se prevê a “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos”. Assim, também será possível relativamente ao mesmo ato tributário, a cumulação dos pedidos da sua anulação e de pagamento de juros indemnizatórios ou de indemnização por prestação indevida de garantia.

Determina o n.º 1 do referido artigo 43.º, da LGT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que “1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

O erro imputável aos serviços pode consistir em erro sobre os pressupostos de facto, que ocorre sempre que haja “uma divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do ato[3], ou em erro sobre os pressupostos de direito,  quando “na prática do ato tenha sido feita errada interpretação ou aplicação das normas legais, como as normas de incidência objetiva e subjetiva (…)”[4] e “fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação judicial dessa mesma liquidação e o erro não for imputável aos serviços[5].

Por seu turno, o processo arbitral tributário foi concebido como alternativa ao processo de impugnação judicial, determinando o artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT que, “1 -A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta (…) b) Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, acrescentando o n.º 5 do mesmo artigo que “5 — É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Tendo ficado demonstrada a errada aplicação da norma de incidência objetiva contida na verba 28.1, da TGIS, que justifica a anulação das liquidações impugnadas, reconhece-se o direito da Requerente a juros indemnizatórios sobre os valores indevidamente pagos, desde a data do pagamento de cada uma das prestações, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 61.º, do CPPT.

 

IV – DECISÃO

Em face dos fundamentos expostos e, nos termos do artigo 2º do RJAT, decide-se:

− Declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto de Selo impugnadas, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;

− Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição das quantias indevidamente pagas pela Requerente;

− Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, desde a data do pagamento de cada uma das referidas prestações, à taxa legal em vigor.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 10 297,40.

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Lisboa, 20 de janeiro de 2015.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990. 



[1] Neste sentido, cfr. MACHADO, J. Baptista, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 182 a 185.

[2] Cfr. o Autor citado, ob. e loc. cit.

[3] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado”, I Volume, Áreas Editora, 5.ª Edição, 2006, pág. 714.

[4] Idem, ibidem.

[5] CAMPOS, Diogo Leite de, RODRIGUES, Benjamim Silva, SOUSA, Jorge Lopes de, “Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada”, Encontro da Escrita, 4.ª Edição, pág. 342.